Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
680/15.2T8BGC.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: VALOR DA CAUSA
RECONVENÇÃO
SUCUMBÊNCIA
HERANÇA JACENTE
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
PRIVAÇÃO DO USO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - O facto de, para determinação do valor da causa, o valor do pedido reconvencional não se adicionar ao valor do pedido inicial, quando há identidade dos mesmos, não significa que não se atenda ao valor da utilidade económica do pedido reconvencional para cálculo do valor da sucumbência.

II - Apesar de só a herança jacente gozar de personalidade judiciária, deve considerar-se regularizada a instância em acção intentada contra herança indivisa se, em sua representação intervêm todos os herdeiros, e na extensão invocada dessa sua qualidade.

III - O dano da privação de uso não decorre da simples prova dessa privação, sendo necessário, ainda, que o lesado demonstre o uso regular da coisa, que dela retiraria as utilidades que normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE


ENTRE


AA
(aqui patrocinado por BB, adv.)
Autor / Apelado / Recorrente

CONTRA

HERANÇA INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE CC († 18MAR2014), representada pelos únicos e universais herdeiros DD casada com EE (aqui patrocinados por FF, adv.) e GG

Ré / Apelante / Recorrida


I – Relatório

O Autor, alegando ter celebrado com o ‘de cujus’, em 03ABR2013, um contrato promessa de compra e venda do R.....36, pelo preço de 3.000,00 €, já integralmente pago, com tradição do imóvel a seu favor, desde essa altura o usando como dono, e que os herdeiros se recusam a celebrar a escritura de compra e venda veio pedir a condenação da Ré a ver declarada a execução específica daquele contrato promessa, subsidiariamente, a pagar-lhe 60.000,00 € (correspondentes ao dobro do sinal) acrescidos de juros desde a citação, subsidiariamente, ainda, a pagar-lhe, a título de enriquecimento sem causa, 30.000,00 €, acrescidos de juros desde a data do recebimento daquele quantia, bem como o valor das benfeitorias que realizou no prédio, a liquidar.

  A Ré foi citada nas pessoas dos seus representantes.

Apenas DD e seu marido constituíram mandatário e apresentaram contestação na qual impugnaram os factos alegados, invocaram a excepção de nulidade por promessa de venda de bens alheios, a anulabilidade decorrente da incapacidade acidental do promitente vendedor e má-fé do Autor por ser conhecedor daquelas circunstâncias; deduziram reconvenção pedindo se declare que o prédio prometido vender integra as heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de HH († 17JUL1999), II († 17DEZ2008) e CC.

 Foi requerida e admitida a intervenção principal provocada de GG relativamente à reconvenção.

 Foi fixado o valor da acção em 33.800,00 €, nos seguintes termos:
     «Valor da causa: Tendo em conta que o pedido de restituição do imóvel visa efeito idêntico ao pedido de execução específica, deverá o valor da reconvenção ser fixada apenas no valor da indemnização peticionada, ou seja, em € 3.800,00 (três mil e oitocentos euros).
   Tal valor soma-se ao valor da acção, fixando-se este em € 30.000,00 (trinta mil euros).
  Pelo exposto fixa-se o valor da acção em € 33.800,00 (trinta e três mil e oitocentos euros).»

   A final foi proferida sentença que, considerando não ter o Autor logrado provar os factos constitutivos do direito que se arrogava e não ter sido alegado que DD e GG eram as únicas e universais herdeiras da herança na qual se integra o prédio em causa nos autos, julgou improcedentes a acção e a reconvenção.

   Inconformados, apelaram DD e marido, concluindo pela procedência do pedido reconvencional. A Relação, considerando que o facto de a acção ter sido intentada contra a herança indivisa e não contra os herdeiros e de a reconvenção ter sido deduzida em nome da herança indivisa e não pelos herdeiros não obstava à regularidade da instância uma vez estar demonstrado que a DD e GG eram as únicas e universais herdeiras da(s) herança(s) que integram o prédio em causa nos autos e que a mera privação do uso integra, por si só, um dano, julgou procedente a reconvenção e, em consequência, declarou que «o prédio em causa nos autos integra as heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de HH, II e CC, condenado o A./Reconvindo a restituir a tais heranças o aludido imóvel, bem como a indemnizar tais heranças, pela privação do uso do prédio desde a data de janeiro de 2014 até à data da respectiva futura desocupação, no valor de €100,00 por cada mês decorrido.

    Agora irresignado veio o Autor interpor recurso de revista, nos termos do art.º 671º, nº 1, do CPC, atribuindo ao recurso o valor de 3.800,00 €, e concluindo, em síntese, que o prédio em causa pertence a uma outra herança que não a herança Ré e que não é parte na acção, resultando ilidida a invocada presunção registral e que, por isso não pode a Ré ter sofrido qualquer dano de privação do uso, ademais porquanto o Autor agiu de boa-fé e não se provou que o prédio teria sido arrendado ou que se tenha perdido essa oportunidade por causa da ocupação.

 Houve contra-alegação onde se propugnou pela inadmissibilidade da revista e, subsidiariamente, pela manutenção do decidido.


II – Da admissibilidade e objecto do recurso

A situação tributária mostra-se regularizada.

   O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).

  Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (artigos 637º e 639º do CPC).

A toda a causa é atribuído um valor ao qual se atende para efeitos de competência, forma do processo e relação com a alçada do tribunal (valor processual) e como base tributária para cálculo da taxa de justiça (valor tributário ou para efeito de custas). O valor processual e o valor tributário são tendencialmente idênticos, mas situações há em que podem diferir; sendo uma delas os recursos, em que o valor para efeito de custas pode ser diferente do valor processual da causa (art.º 12º, nº 2, do RCP).

O valor processual corresponde à utilidade económica imediata do pedido no momento em que a acção é proposta, salvo nos casos de reconvenção ou intervenção principal, caso em que o valor dos novos pedidos, quando distintos dos iniciais, são somados (artigos 296º e 299º do CPC).

A taxa de justiça é devida pelo impulso processual calculado com base no respectivo valor tributário, sendo que no caso de reconvenção ou intervenção principal só se atende ao acréscimo desse valor daí resultante, para efeitos de pagamento suplementar (pelo Autor), se os novos pedidos forem distintos dos iniciais (art.º 530º do CPC).

Devendo as partes indicar o valor cabe, no entanto, ao juiz fixar o valor da causa (art.º 306º do CPC).

À presente causa foi atribuído o valor de 33.800,00 €, tendo em conta que a utilidade económica imediata de parte do pedido reconvencional (a restituição do imóvel que o Autor pretendia adquirido pelo preço de 30.000,00 €) era equivalente ao pedido inicial (execução específica do contrato promessa de compra e venda de imóvel pelo preço de 30.000,00 €). Daí que apenas haveria a adicionar ao valor inicial a utilidade económica imediata do pedido de indemnização pela privação do uso (3.800,00 €).

É esse o sentido que se dá ao acima citado despacho de fixação do valor.

Nesse conspecto o valor da causa excede o valor da alçada da Relação.

Mas será que o valor da sucumbência excede a metade daquela alçada, como exige o art.º 629º, nº 1, do CPC?

O Recorrente indicou como valor do recurso 3.800,00 €; mas como se disse essa indicação não vincula o tribunal.

O facto de, para determinação do valor da causa, o valor do pedido reconvencional não se adicionar ao valor do pedido inicial, quando há identidade dos mesmos, não significa que o pedido reconvencional fique destituído de valor ou com o valor reduzido ao correspondente ao valor dos pedidos não idênticos.

A utilidade económica do pedido da Ré Reconvinte corresponde à soma do valor do terreno cuja restituição se pretende adicionado do valor indemnizatório pretendido (33.800,00 €); tendo sido sobre esse valor que foi calculada a taxa de justiça devida pelo seu impulso processual.

Por outro lado, o Recorrente não põe apenas em causa o acórdão da Relação na parte em que o condenou no pagamento da indemnização por privação do uso; ele insurge-se também contra a condenação a restituir o imóvel. Daí que a sua sucumbência não seja apenas de 3.800,00 €, não se podendo fixar nesse quantitativo o valor do recurso (o que, a ocorrer, determinaria a inadmissibilidade da revista por a sucumbência não exceder metade da alçada da Relação), mas sim no montante da utilidade económica do pedido reconvencional.

A sua sucumbência corresponde, assim, à totalidade da utilidade económica imediata do pedido reconvencional, que corresponde ao valor da acção.

 O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º e 671º do CPC).

 Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).

  Destarte, o recurso merece conhecimento.

  Vejamos se merece provimento.

           


-*-


Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

 De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

 Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

 Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

- se há lugar à restituição do prédio;

- se há lugar a indemnização pela privação do uso.


III – Os factos

Das instâncias vêm fixada a seguinte factualidade:

Factos provados:

1.   Na freguesia de ..., concelho de ..., existe um prédio rústico, composto de cultura e pastagem, confrontando a ... com caminho, a ... com ..., a ... com JJ e a ... com LL, inscrito na matriz predial rústica da aludida freguesia sob o artigo ...27 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ....19

2.   A aquisição, sem determinação de parte ou direito, da titularidade do prédio aludido em 1) encontra-se, desde 18/10/2012, inscrita na Conservatória do Registo Predial de ... a favor de CC, DD e GG em consequência de dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária resultante do falecimento de II, falecida esposa de CC e mãe das aludidas DD e GG.

3.   Originalmente, o prédio aludido em 1) pertenceu a MM e CC (sénior), pais de 7 filhos, entre os quais, NN e de HH, sendo que aqueles faleceram em 12/10/1938 e 31/1/1940, respectivamente.

4.   Na sequência do aludido óbito dos anteriores titulares, o prédio foi mantido indiviso pelos 7 filhos dos aludidos, MM e CC (sénior).

5.   Dos referidos 7 filhos dos aludidos MM e CC (sénior), 6 nunca casaram, nem tiveram filhos;

6.    Sobrevivendo, em 17/7/1999, apenas o aludido NN e a aludida HH;

7.   Sendo que esta faleceu, igualmente no estado de solteira e sem descendentes, na referida data de 17/7/1999, deixando testamento em que instituiu como herdeiro fiduciário o seu irmão, NN (júnior) e como herdeiras fideicomissárias as filhas deste, DD e GG.

8.   Em 10/4/1948, o aludido NN (júnior), o qual havia nascido em 27/4/1919, contraiu casamento com II em primeiras únicas núpcias de ambos, sendo o regime de bens o de comunhão geral.

9.   Do aludido casamento referido em 8) nasceram as já aludidas filhas, GG e DD, representantes da Herança Demandada.

10.  A mencionada II faleceu em 17/12/2008, no estado de casada com o referido, NN (júnior);

11.   Deixando como seus únicos e universais herdeiros o seu marido sobrevivo, NN (júnior), e as filhas de ambos, DD e GG. 12. Por sua vez, o aludido NN (júnior), na altura, com 94 anos de idade, faleceu em 18/3/2014, deixando como suas únicas e universais herdeiras, DD e GG.

13.   As referidas DD e GG são as únicas e universais herdeiras das heranças de HH, II e NN.

14.   Em 3 de Abril de 2013, o falecido, NN (júnior), possuía 93 anos de idade;

15.  Tendo em 2009 sido diagnosticado como sofrendo de “reumatismo degenerativo”, “senilidade”, “labilidade emocional”;

16.   Razão pela qual, já nessa data de 2009, era considerado pela Segurança Social como sendo dependente em 1º grau;

17.   Uma vez que o seu estado de saúde “não lhe permitia praticar com autonomia os actos ordinários da vida quotidiana, necessitando da assistência permanente de outra pessoa.”

18.  Em 1 de Julho de 2013, o falecido, NN (júnior) foi ainda diagnosticado como padecendo de depressão neurótica e doença de Parkinson.

19.  Em razão do referido em 14) a 18), o aludido NN (júnior) esteve internado em 2013 e 2014 na Unidade... entre os dias: 11/6/2013 a 21/6/2013; 28/6/2013 a 20/7/2013; 4/8/2013 a 15/8/2013; 27/8/2013 a 3/9/2013; 8/11/2013 a 18/11/2013; 24/11/2013 a 29/11/2013; 6/12/2014 a 2/1/2014; 3/1/2014 a 13/1/2014, num total de 110 dias de internamento.

20.   Enquanto se encontrava de boa saúde, o aludido NN (júnior), pessoa bem conhecida da freguesia de ... e titular de um vasto conjunto de prédios rústicos, era cioso do património que integrava as heranças das quais era interessado;

21.   Património esse que pretendia manter intacto a fim de assegurar que a família (no caso, as suas duas filhas) mantivesse a posse de tais prédios;

22.   Sabendo, quando lúcido, que o prédio aludido em 1) integrava a herança dos seus pais, dos quais era herdeiro conjuntamente, pelo menos, com as suas duas filhas, estas enquanto herdeiras das respectivas falecida mãe e tia, II e HH.

23.   Fruto do referido em 14) a 19), à data de 3 de Abril de 2013, o aludido NN (júnior) não se encontrava capaz de entender o conteúdo de um eventual contrato-promessa que tivesse como objecto mediato o prédio aludido em 1), bem como para, de forma querida e esclarecida, manifestar a vontade negocial de vender, em negócio futuro, tal imóvel.

24.    O Autor é natural da ... de ..., sendo, desde sempre, residente de tal freguesia;

25.    Tal como o aludido NN (júnior) e a irmã deste, VV, os quais, até ao respectivo falecimento, sempre habitaram a mesma casa sita na Rua..., ... da referida freguesia.

26.  Como tal, o Autor bem conhecia o referido NN (júnior) e as filhas deste, DD e GG;

27.  Sabendo que estas eram herdeiras, não só do respectivo pai, como também das suas falecidas mãe e tia.

28.   Assim, em 3 de Abril de 2013, o Autor sabia que o prédio identificado em 1) não pertencia exclusivamente ao aludido NN (júnior);

29. E que qualquer venda ou mesmo cedência temporária do gozo de tal prédio teria de ter, para além do consentimento deste, pelo menos, o consentimento das filhas, DD e GG, enquanto interessadas nas heranças das suas falecidas mãe e tia.

30.   Da mesma forma, em 3 de Abril de 2013, o Autor, por ser da mesma aldeia do aludido NN, sabia do estado debilitado de saúde deste último.

31.  Em Janeiro de 2014, o Autor tomou posse do prédio identificado em 1); 32.         Passando a utilizá-lo;

33.   À vista de toda a gente e sem oposição de ninguém;

34.   Em data incerta, mas situada em 2016, o Autor arrancou as cerejeiras existentes no prédio identificado em 1);

35.    Tendo limpado o aludido terreno em todo o respectivo perímetro e delimitado o mesmo com rede ovelheira suportada em postes de madeira;

36.   Passando a colocar ovelhas no aludido prédio e a semear erva e ferranha para alimentação dos referidos animais;

37.    Bem como lavrando, para tanto, o prédio, no qual semeou igualmente batatas e plantou horta;

38.   Estando assim na presente data ainda na posse do aludido imóvel.

39.    O prédio identificado em 1) apresenta uma área de 7000 m2, possuindo aptidão para a realização de culturas e também para a pastorícia;

40.   Podendo, em caso de arrendamento, o respectivo dono cobrar uma renda de sensivelmente € 1200,00 anuais de acordo com os preços praticados na zona rural de ....

41.   Na sequência da existência de vários contratos-promessa que alegadamente vinculariam o falecido NN (júnior) e que respeitariam aos imóveis que compunham o casal de que este era possuidor e integrante do respectivo património ou do património de seus falecidos pais foram instauradas, para além da presente acção, as seguintes acções judiciais:

- Acção comum nº 391/14.... que corre termos no J.. desta Instância Local Cível e que tem como causa de pedir contrato promessa de compra e venda datado de 15/11/2012, no qual figura como promitente vendedor o referido NN e como promitente compradora a sociedade “...”, contrato esse mediante o qual o primeiro teria alegadamente prometido vender à segunda os prédios rústicos inscritos na matriz predial da freguesia de ... com os artigos matriciais …33, …30 e …13.

-  Acção comum nº 520/14.... que corre termos no J... desta Instância Local Cível e que tem como causa de pedir vários contratos-promessa datados de 16/10/2012, 19/10/2012, 2/1/2013 e 8/2/2013, nos quais figura como promitente-vendedor o aludido NN como promitente-compradora a ....”, tendo tais contratos por objecto mediato os imóveis inscritos na matriz predial da freguesia de ... sob os artigos …49 e …78; …75; …32, …96, …94, …90, …64, …95 e …39; …05 e …83.

- Acção comum nº 455/14.... que corre termos na Instância Central Cível de ... (J2) e que tem como causa de pedir alegados contratos-promessa datados de 8/10/2010, 23/10/2012, 11/2/2013, 19/2/2013 e 19/3/2013, nos quais figura como promitente-vendedor o referido NN e como promitente-comprador OO e mediante os quais o primeiro teria prometido-vender ao segundo os prédios rústicos inscritos na matriz predial da freguesia de ... sob os artigos …60, …68, …90, …07, …59, …38, …99, …10 e …43; …67 e …52; …70, …81 e …69; …23, …43 e …00; …57 e …63.

42.    No período de 18/5/2012 a 18/3/2014, o aludido NN (júnior) possuía apenas uma conta bancária com o nº ….....9-7 sedeada na ..., tendo sido tal conta, solidária e contitulada por OO, aberta naquela primeira data e nunca tendo antes aquele tido qualquer outra conta aberta na referida ....

43.   Entre Abril de 2013 e data incerta, mas situada em 2016, o prédio identificado em 1) possuía uma plantação de cerejeiras, cuja existência justificada a obtenção por parte do aludido NN de subsídios do IFAP.

Factos não provados:

A.    Que, em 3 de Abril de 2013, o Autor, AA, e o aludido NN (júnior) tivessem outorgado em negócio denominado “contrato-promessa de compra e venda”, mediante o qual o primeiro tivesse prometido-comprar e o segundo tivesse prometido-vender o prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ... sob o artigo ...27 melhor identificado em 1).

B.    Que, no acordo aludido em A), o Autor e o aludido NN (júnior) tivessem estipulado que o preço da venda definitiva do prédio aludido em 1) seria de € 30.000,00, preço esse que seria pago na data da celebração do aludido contrato-promessa em 3 de Abril de 2013.

C.     Que o aludido NN (júnior) tivesse declarado no acordo aludido A) ter sido o preço aludido em B) integralmente pago no acto da assinatura do aludido acordo em 3 de Abril de 2013, dando assim a correspondente quitação de tal valor.

D.     Que, no acordo aludido em A), o Autor e o aludido NN tivessem acordado que a escritura pública do contrato definitivo de compra e venda seria marcada pelo segundo e comunicada ao primeiro, com a antecedência mínima de 10 dias, logo que reunidas as imprescindíveis condições para o efeito, condições essas cuja obtenção ficariam a cargo do Demandante.

E.     Que ainda no aludido acordo referido em A), o Autor e o aludido NN tivessem estipulado o seguinte: “Em caso de impossibilidade absoluta e definitiva que impeça o primeiro outorgante (ou seja, o aludido NN) de celebrar o contrato prometido, assumirá o ou os seus sucessores com preferência pelo sucessor testamentário, se o houver.”

F.     Que, na sequência da celebração do negócio referido em A) e depois de pago o preço aí estipulado ao aludido NN, este tivesse autorizado a tradição do prédio identificado em 1) e, como tal, o respectivo gozo pelo Autor.

G.    Que, a partir de Janeiro de 2014, o Autor utilizasse o prédio identificado em 1) como se fosse coisa sua;

H.     Na convicção de estar a exercer o direito de propriedade sobre tal prédio e de, com isso, não ofender direitos de terceiros.

I.      Que o Autor tivesse efectivamente pago ao aludido NN os € 30.000,00 mencionados no acordo referido em 1).


IV – O direito

Invoca o Recorrente que o prédio em causa (doravante referido como ...) não pertence à herança Ré, pelo que a haver lugar à restituição do mesmo ela deveria ser a outra herança, a qual, no entanto não é parte da acção.

Nessa invocação vêm imbricadas duas questões: quem são as partes na acção e quem é o titular do direito de propriedade sobre o R......27.

Resulta do art.º 12º, al. a), do CPC que apenas a herança jacente, a herança aberta mas ainda não aceite, nem declarada vaga para o Estado (art.º 2046º do CCiv), goza de personalidade judiciária. Uma vez aceite, e ainda que indivisa, a herança fica na titularidade dos herdeiros, cabendo conjuntamente a todos eles o exercício dos correspondentes direitos (art.º 2091º do CCiv), salvas as excepções previstas na lei (que não se aplicam às situações em causa nos autos – titularidade da propriedade).

A herança indivisa aberta por óbito de NN, porque manifestamente já aceite, não teria, assim, virtualidade para ser parte na acção, cabendo essa função ao conjunto dos respectivos herdeiros.

Ocorre, porém, que a herança Ré se encontra representada pelo conjunto dos respectivos herdeiros; com efeito resulta dos autos que as citadas em representação da herança (e para intervenção principal) são, actualmente, as únicas e universais herdeiras não só da herança Ré como das demais heranças que antecederam esta (as de sua mãe II e a de sua tia HH), como tal expressamente se assumindo.

Daí que, como a 1ª instância e a Relação, se entenda que a instância se encontra regularizada, ocupando as citadas, enquanto únicas e universais herdeiras daquelas heranças, a parte passiva da mesma (rés/reconvintes).

Resulta do elenco factual que originariamente o ... integrava o património do casal de MM e CC, os quais houveram sete filhos (facto 3); que o prédio foi mantido indiviso após a morte daqueles (facto 4); que dos sete filhos seis nunca casaram nem tiveram filhos (facto 5), apenas se encontrando sobrevivos, em 1999, HH e NN (facto 6); que a HH faleceu no estado de solteira e sem descendentes deixando testamento em que instituiu como herdeiro fiduciário de todos os seus bens o seu irmão NN e como herdeiras fideicomissárias as filhas deste, DD e GG (facto 7). Retirando-se do facto 4 que a herança do casal de MM e CC não foi partilhada pelos seus filhos, e que, portanto, assim se mantém, somos levados a concluir que o ... integra o acervo patrimonial da(s) herança(s) aberta(s) pelo óbito daqueles; mas já não podemos concluir, porquanto se desconhece se os irmãos pré-falecidos dispuseram ou não da sua quota hereditária a favor de terceiros, se esse acervo hereditário se veio a fixar na exclusiva titularidade da HH e do NN; e nesse sentido não se pode dizer que o R....27 integre as heranças abertas por óbito de HH, II e NN CCC. Com efeito, só perante o conjunto dos únicos e universais herdeiros se pode considerar a titularidade de bens do acervo hereditário e não de uma quota ideal a preencher em função da partilha.

Ocorre, porém, que, desde 18OUT2012, a aquisição da propriedade do ... se encontra registada, sem determinação de parte ou direito, a favor de NN e suas filhas DD e GG, em consequência da dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária resultante do falecimento de sua esposa e mãe, II.

Esse registo constitui, nos termos do art.º 7º do CRPredial, presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define. E, consequentemente, daí resulta que o ... integrava o património comum do casal de II e NN, e que a DD e GG, na sequência dos óbitos daqueles, são a únicas e universais herdeiras do mesmo, estando encabeçadas no direito de peticionar a restituição dos bens da(s) herança (s).

E dessa presunção legal decorre a inversão do correspondente ónus da prova (art.º 344º do CCiv). Já não é o reconvinte que tem de provar, enquanto facto constitutivo do seu direito, que o imóvel integra a(s) herança(s) de que é beneficiário (art.º 350º do CCiv), mas antes o Autor que tem de demonstrar que o imóvel não integrava o acervo da(s) herança(s). Sendo que o Autor não satisfez esse ónus probatório, não ocorrendo a elisão daquela presunção.

Da referida presunção não resulta que o R.....27 integrasse também a herança aberta por óbito de HH, mas esse pormenor surge como irrelevante para efeito da decisão de restituição uma vez que na DD e GG se confunde, na actualidade, a qualidade de únicas e universais herdeiras de todas as referidas heranças, e a elas pertence a legitimidade substantiva para vindicar a restituição.

Donde se conclui não ter a Relação incorrido em erro de julgamento ao ordenar a restituição do ... àquelas heranças, o que é dizer à DD e GG.

Já o mesmo se não nos afigura relativamente à indemnização por privação do uso.

Não na consideração de verificação de culpa do Autor na ocupação do imóvel; aí, e sem necessidade de mais considerações, é manifesta a improcedência da alegação do Recorrente de ausência de culpa por ter actuado de boa-fé uma vez que a mesma é contraditória e incompatível com o constante do elenco factual apurado, designadamente os factos provados 26 a 30.

Mas antes na consideração de existência de dano.

 Relativamente à indemnização pelo dano da privação do uso em consequência da actuação ilícita e culposa de terceiros tem havido alguma divergência jurisprudencial:
a) Numa das posições defendidas entende-se que a ressarcibilidade do dano de privação do uso depende da alegação e prova da frustração de um propósito real, concreto e efectivo, de proceder à utilização da coisa, não bastando a mera privação do uso sem a alegação e a prova de (outros) danos específicos que sejam consequência dessa privação (Acórdãos do STJ de 30-10-2008, proc. 2131/07, de 09-12-2008, proc. 3401/08, de 13-01-2009, proc. 3575/08, de 30-04-2019, proc. 1721/12.0TBMGR.C2.S1, de 19-05-2020, proc. 554/13.1TVPRT.P1.S1, de 26-01-2021, proc. 6122/17.1T8FNC.L1.S1, e de 26-05-2021, proc. 1770/18.5TBALM.L1.S1;
b) Numa outra posição, o dano decorrente da privação do uso é considerado como um dano autónomo, bastando para o seu ressarcimento a prova de que o seu proprietário se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, com violação do respetivo direito de propriedade (Acórdãos do STJ de 07-02-2008, proc. 4505/07, de 17-04-2008, proc. 478/08, de 03-07-2018, proc. 36/12.9T2STC.E1.S1, de 20-02-2020, proc. 19475/17.2T8LSB.L1.S1,e de 28-09-2021, proc. 6250/18.6T8GMR.G1.S1), ressalvando-se, no entanto, a possibilidade de o lesado demonstrar em concreto a ocorrência de maior dano efectivo;
c) Numa posição intermédia, entende-se que não é suficiente a prova da privação da coisa, pura e simples, mas também não é de exigir a prova efetiva do dano concreto, bastando que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, que dela pretende retirar as utilidades que normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado (Acórdãos do STJ de 09-12-2008, proc. 08A3401, de 26-05-2009, proc. 09A0531, de 02-06-2009, proc. 1583/1999.S1, de 10-09-2019, proc. 26/13.4T2STC.E1.S1, de 23-01-2020, proc. 279/17.9T8MNC.G1.S1, de 28-01-2021, proc. 14232/17.9T8LSB.L1.S1, e de 17-06-2021, proc. 879/17.7T8EVR.E1.S1), ressalvando-se, no entanto, a possibilidade de o lesado demonstrar em concreto a ocorrência de maior dano efectivo.

Entendemos ser de adoptar a referida posição intermédia porquanto, como lapidarmente se afirmou no referido acórdão de 26MAI2009,

«Na verdade, não haverá dúvidas sérias de que a privação injustificada do uso de uma coisa pelo respectivo titular constitui um ilícito susceptível de gerar a obrigação de indemnizar, uma vez que, na normalidade dos casos, impedirá o seu proprietário do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, impede-o de usar a coisa, de fruir as utilidades que ela normalmente lhe proporcionaria, enfim, impede-o de dela dispor como melhor lhe aprouver (Art. 1305 do C.C.).
Podem, porém, configurar-se situações em que o titular da coisa não tenha interesse algum em usá-la, não pretenda dela retirar as utilidades que o bem normalmente lhe podia proporcionar (o que até constitui uma faculdade inerente ao direito de propriedade) ou pura e simplesmente não usa a coisa.
Em situação como estas, se o titular se não aproveita das vantagens que o uso normal da coisa lhe proporcionaria, também não poderá falar-se de prejuízo ou dano decorrente da privação do uso, visto que, na circunstância, este não existe, e, não havendo dano não há, evidentemente que ressarci-lo.
Por isso, competindo ao lesado provar o dano ou prejuízo que quer ver ressarcido, não chega a prova da privação da coisa, pura e simplesmente, mostrando-se ainda necessário que o A. demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou alguma delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita da lesante.
E, tal exigência não se nos afigura exorbitante. Apresenta-se, tão só, na sequência lógica da realidade das coisas, como pressuposto mínimo da existência do dano e como índice seguro para que o tribunal possa arbitrar a indemnização pretendida com base na utilidade ou utilidades que o titular queria usufruir já que, de contrário, sendo a coisa adequada a proporcionar vários utilidades ou vantagens, teria de ser o tribunal a escolher aquela ou aquelas em que iria fundar a indemnização, o que contraria o princípio do pedido e poderia ser arbitrário.
Aliás, a prova de tal circunstancialismo de facto, em muitos casos concretos poderá advir de simples presunções naturais ou judiciais a retirar pelas instâncias da factualidade envolvente.»

 Fazendo uma resenha daquelas posições na jurisprudência e na doutrina e inclinando-se para a adopção da posição intermédia encontramos MARIA DA GRAÇA TRIGO, Dano de Privação de Uso de Veículo Automóvel, em Responsabilidade Civil, Temas Especiais, Universidade Católica, 2015, pg. 57, ss. Aí (a pg. 67) se deixa expresso o entendimento de que «a certeza e segurança do direito são adequadamente alcançadas através da via intermédia supra exposta: presunção da existência de danos concretos a partir da prova do uso regular da viatura».

Nesse conspecto, e volvendo ao caso concreto, não se nos afigura que tenha ficado demonstrada qualquer intencionalidade por parte do falecido NN ou das DD e GG, de retirar do imóvel as utilidades que este normalmente proporcionaria. Pelo contrário, aquiesceram a que o Autor desde JAN2014 venha explorando o prédio, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém (factos provados 31 a 38), atitude que mantiveram até ao momento em que o Autor manifestou a intenção de realizar a alegadamente prometida compra e venda. E nesse contexto circunstancial o facto de o prédio ter aptidão agrícola ou para pastorícia, sendo susceptível de gerar rendimento através de arrendamento, surge como uma mera potencialidade, não tendo a virtualidade de evidenciar uma intenção de efectiva concretização dessa eventualidade (que não foi sequer invocada). E o mesmo se diga quanto ao recebimento de um subsídio, no período de 2013 a 2016, para exploração no prédio de uma plantação de cerejeiras (facto provado 43), quer porque a continuidade do recebimento de tal subsídio não implica necessariamente a efectiva exploração do prédio (ele encontrava-se ocupado pelo Autor desde JAN2014), quer porque esse facto cessou em 2016, ressaltando apenas a atitude de aquiescência acima referida.

 Pelo que haverá de concluir por não ter sido feita prova do invocado dano de privação de uso e, consequentemente, pela improcedência da reconvenção nessa parte.


V – Decisão

Termos em que, concedendo parcialmente a revista, se revoga o acórdão recorrido na parte em que condenou o Autor a pagar indemnização pela privação do uso do prédio, absolvendo o Autor de tal pedido, confirmando-o no demais.

Custas, aqui e nas instâncias, na proporção de 4/5 para o Autor e 1/5 para a Ré.

Valor do recurso: o da causa (33.800,00 €).

                       

Lisboa, 16DEZ2021

Rijo Ferreira (relator)

Cura Mariano

Fernando Baptista