Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7/20.1FCOLH-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: HABEAS CORPUS
PRESSUPOSTOS
REEXAME DOS PRESSUPOSTOS DA PRISÃO PREVENTIVA
NOTIFICAÇÃO
REJEIÇÃO
Data do Acordão: 02/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Decisão Texto Integral:

I. – RELATÓRIO.

O requerente, AA, requer a libertação imediata da situação de privação de liberdade em que se encontra, por determinação judicial, na sequência da indiciação pela prática de

1. O Arguido foi detido no dia 12 de Outubro de 2020.

2. Foi presente a primeiro interrogatório judicial de arguido detido em 13 de Outubro de 2020.

3. Tendo, nessa data, sido decretada a sua prisão preventiva à ordem dos presentes autos.

4. Nos termos do art. 213º do CPP, a medida de coação de prisão preventiva, tem que ser revista oficiosamente pelo Juiz, obrigatoriamente, no prazo de três meses após a mesma ter sido decretada ou após o seu reexame.

5. Tal não aconteceu com o ora requerente.

6. Verificando os autos percebe-se que a medida de prisão preventiva decretada ao ora requerente já não é revista há mais de três meses.

7. Ou, pelo menos, tal revisão, a acontecer, não foi notificada ao Arguido, ora requerente.

 8. Tal falta de notificação ao Arguido no prazo de três meses viola o disposto no art. 213º do CPP,

9. O que acarreta que a prisão preventiva a que o Arguido se encontra, neste momento, sujeito, por não lhe ter sido notificado o seu reexame, é ilegal.

10. Pelo que, deverá o Arguido, de imediato, ser restituído à liberdade.

11. Assim, nos termos conjugados dos arts. 213º e 222º do CPP, o Arguido encontra-se em prisão ilegal, por a mesma se manter para além dos prazos fixados pela lei.

12. O prazo de prisão preventiva já se extinguiu, por não ter sido notificada a sua renovação.

13. A manutenção do Arguido em prisão preventiva até hoje, dia 05 de Fevereiro de 2021, viola o art. 213º do CPP, pelo que, deve o arguido ser posto imediatamente em liberdade, aguardando aí, a tramitação subsequente do processo, (…)”

§1.(a). – INFORMAÇÃO A QUE ALUDE O ARTIGO 223, nº 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL.

Veio o aludido arguido AA requerer Petição de Habeas Corpus por prisão ilegal.

Nos termos do disposto no art.° 223.°, nº 1, do Cód. Proc. Penal, informa-se o Exm°. Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça do seguinte:

- O arguido AA, tal como o arguido BB, foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva por despacho proferido em 13/10/2020, no âmbito de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, por indícios fortes da prática, como autor material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. c p. pelo art.° 21.°, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01 e existência de forte perigo de continuação da actividade criminosa, tendo a detenção sido efectuada no dia 11/10/2020, pelas 23h30 horas.

- O arguido BB requereu a sua audição para alteração de medida de coacção em 21/12/2020, tendo o mesmo sido ouvido a 11/01/2021 - vd. fls. 341 a 345.

- Finda tal audição, foi proferido despacho a determinar a manutenção de ambos os arguidos (AA e BB) à medida coactiva de prisão preventiva, tendo o arguido BB, bem como a defensora de ambos os arguidos - Dr.ª CC - sido notificados imediatamente de tal despacho, porquanto se encontravam presentes na diligência - cfr. fls. 342 a 345.

- O arguido AA foi notificado do despacho que determinou a manutenção da prisão preventiva em 12/01/2021, cfr. fls. 348 e 355.”

§1.(b). – QUESTÃO A RESOLVER.

A pretensão do arguido ficará solucionada, pensamos, com a apreciação da questão da reapreciação (trimestral) da medida de coacção imposta ao arguido, maxime, se para a perfeição do prescrito na legislação adrede basta a pronúncia do magistrado responsável de que a medida de coacção foi reapreciada. ou se se torna necessário que o arguido tome conhecimento – v. g. tenha sido notificado pessoalmente – que ocorreu a reapreciação (judicial) que mantém a medida de coacção.

§2. – FUNDAMENTAÇÃO.

§2.(A). – ELEMENTOS PERTINENTES PARA A APRECIAÇÃO DO CASO.

- No dia 13 de Outubro de 2020, foram presentes a primeiro interrogatório, os arguidos, BB e AA, e após a respectiva audição, foi proferido o despacho que a seguir queda transcrito. 

Valido as detenções dos arguidos, porquanto efectuadas em flagrante delito e terem sido apresentados para primeiro interrogatório judicial no prazo máximo de 48 horas - cfr. arts. 255.°, n° 1, al. a), 254.°, n° 1, al. a), 257.°, n.° 2 e 141.°, n° 1, todos do CPP      

DOS FACTOS INDICIADOS.

Depois de realizado o interrogatório dos arguidos e analisada toda a prova produzida até este momento nos presentes autos afigura-se-nos que os autos indiciam fortemente a prática pelos arguidos da seguinte factualidade imputada pelo Ministério Público: 

1. No dia 11 de Outubro de 2020, pelas 23:30 horas encontravam-se duas embarcações uma de porte maior, a fazer a entrega de fardos á embarcação de porte menor, em frente à barra da …. (nas coordenadas …. N e ….. W).

2. Nas circunstâncias supra referidas os arguidos AA e BB encontravam-se na embarcação de porte menor, embarcação do tipo ……., com a matrícula 10…..-PT, quando foram interceptados por militares do destacamento de controlo costeiro de …., transportando no interior da mesma 22 fardos de cannabis (haxixe - resina) e com o peso de 785,000,00 grama.

3. Os arguidos ao detectarem a presença dos militares ainda lançaram um número de fardos não concretamente apurado à água.

4. Foram ainda encontrados na posse dos arguidos:

- Um telemóvel da marca … da operadora ….;

- Um telemóvel da marca …. da operadora ….;

- Um GPS da marca ….. modelo …..

5. Os arguidos destinavam o referido produto estupefaciente para distribuir e vender o mesmo a outros indivíduos.

6. Os arguidos não estavam autorizados a deter, a ceder ou a vender produtos estupefacientes, designadamente cannabis (haxixe -resina).

7. Sabiam os arguidos que a substância que detinham na sua posse e supra descrita era produto estupefaciente, conhecendo bem a natureza, características do mesmo, quantidade, modo de acondicionamento, a sua proveniência ilícita e que a sua aquisição, venda, troca, transporte, distribuição ou cedência a qualquer título e, bem assim, detenção, nas ditas circunstâncias, não lhes era permitida.

8. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

9. O arguido BB reside com o seu pai em casa arrendada.

10. O agregado paga de renda o valor mensal de € 250,00.

11. O arguido exerce actividade profissional como pescador, auferindo um salário mensal médio de € 600,00.

12. O arguido AA reside com a sua companheira, duas enteadas de 12 e 9 anos e um filho do casal com um ano de idade.

13. O arguido exerce actividade profissional como pescador, auferindo um salário mensal situado entre os € 700,00 e os € 800,00.

14. A sua esposa encontra-se desempregada, beneficiando de subsídio de desemprego, de valor não concretamente apurado.

15. O agregado reside em casa arrendada, pagando de renda o valor mensal de €510,00.

MOTIVAÇÃO.

A matéria de facto tida por fortemente indiciada e ora descrita fundamenta-se nos seguintes elementos probatórios:

1. Auto de notícia fls. 154 e ss;

2. Auto de apreensão, fls. 160 a 162;

3. Auto de teste "Identa" fls. 164;

4. Relatório fotográfico, fls. 165 e ss;

5. Formulário TCD, fls. 167 e ss.;

6. Autos de detenção de fls. 174, e ss. e 190 e ss.

7. CRC dos arguidos, cfr. 60 e 63 e ss.

8. Declarações dos arguidos, quanto às suas condições pessoais.

Explicitando.

Os arguidos não prestaram declarações sobre os factos, não tendo, por conseguinte, esclarecido os factos ou apresentado a sua versão dos mesmos.

Ora, tendo em conta o teor do auto de notícia, resulta que os arguidos foram encontrados na embarcação, junto ao produto estupefaciente apreendido, e que tentaram atirar o mesmo para o mar quando se aperceberam da presença dos militares.

Os elementos factuais não deixam, por conseguinte, margem para dúvidas acerca da intervenção dos mesmos.

Por outro lado, o produto existente nas embarcações foi testado e identificado como correspondendo a haxixe, cfr. auto de fls. 164.

No que concerne às condições pessoais dos arguidos, valoiou o Tribunal as suas declarações, que considerou credíveis.

DA SUBSUNÇÃO JURÍDICA E DAS MEDIDAS DE COACÇÃO.

A matéria de facto supra descrita permite afirmar que se encontra fortemente indiciada a prática, pelos arguidos, de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo n° 1 do art. 21°, do Dec.-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à respectiva Tabela l-C.

De facto, não só o produto apreendido tinha como destino a sua entrada em território nacional, como a quantidade apreendida - 785kg - permite concluir que os arguidos visavam obter elevado lucro.

Feita a qualificação jurídica dos factos indiciados e as explicações tidas por pertinentes, cumpre agora determinar se aos arguidos deve ou não ser aplicada alguma medida de coacção mais grave que o termo de identidade e residência já prestado e, em caso afirmativo, qual.

Dispõe o art.º 204.° do Cód. Proc. Penal que "Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196°, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:

a) Fuga ou perigo de fuga;

b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou

c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas".

Estes requisitos ou condições gerais, também designados de pericula libertatis, são alternativos, bastando a existência de um deles para, conjuntamente com os especiais de cada medida, legitimar a aplicação desta.

Procurou-se, com a imposição destes requisitos, reduzir a ideia de "arbitrariedade" na aplicação das medidas de coacção, retirando das mesmas a ideia de "condenação prévia", em total defesa do corolário constitucional da presunção de inocência do arguido, previsto no art.° 32.°, n.° 2, da nossa Lei Fundamental.

No caso em análise entende-se verificados o requisito constante da alínea c) do referido normativo.

De facto, quanto ao perigo de fuga, ambos os arguidos são portugueses e encontram-se social, familiar e profissionalmente integrados, o que mitiga fortemente tal perigo.

De igual modo, os elementos essenciais probatórios mostram-se já obtidos, não sendo previsível que os arguidos possam perturbar o futuro andamento dos autos.

Porém, entende o Tribunal que existe perigo de continuação da actividade criminosa. De facto, resulta das regras da experiência e da normalidade da vida que a prática do crime em causa, pela facilidade que origina na obtenção de lucro, tendência a sua prática reiterada no tempo.

Assim, mostra-se verificada a alínea c) do art.° 204.° do Cód. Proc. Penal quanto a todos os arguidos.

*  - Chegados a este ponto, importa determinar qual a concreta medida de coacção a aplicar aos arguidos.

O crime de tráfico de estupefacientes imputado aos arguidos, p. e p. no art.° 21°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22/01, é punido com uma pena de prisão de 4 a 12 anos, permitindo assim a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.

Assim, tendo em conta a moldura penal do crime em causa, podem ser-lhes aplicadas quaisquer das medidas de coacção previstas no Cód. Proc. Penal, nos termos dos art.°s 196.° a 202.° daquele diploma.

Porém, o art.° 193.° do mesmo normativo, sob a epígrafe "Princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade", preconiza o seguinte:

"1 - As medidas de coacção e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.

2 - A prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção.

3 - Quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade nos termos do número anterior, deve ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares.

4 - A execução das medidas de coacção e de garantia patrimonial não deve prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requerer.

Tais princípios representam o desdobramento dogmático do princípio ínsito no n.° 2 do art.° 18.° da Constituição da República Portuguesa, como elementos de ponderação necessários na  efectivação da restrição de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagradas.

No caso em análise, ponderados tais princípios, há que levar em consideração que se trata de um descarregamento em território nacional de quantidade bastante considerável de produto estupefaciente, encontrando-se, por conseguinte, os factos revestidos de forte ilicitude e necessidades de prevenção.

Por conseguinte, a única medida de coacção que se considera proporcional aos factos em causa é a prisão preventiva.

De  facto, a elevada quantidade de produto estupefaciente apreendida, conjugada com a facilidade neste tipo de crimes e as expectáveis ligações dos arguidos a uma maior rede de distribuição de tal tipo de produto, motivam que apenas a medida coactiva mais gravosa possa eficazmente impedir que os mesmos prossigam na prática do crime que lhes é imputado.

DECISÃO

Face ao exposto, considera-se justo, adequando e proporcional aplicar aos arguidos, para além do Termo de identidade e residência já prestado nos presentes autos:

- Ao arguido BB, a medida coactiva de prisão preventiva, nos termos dos art.°s 191.°, 192.°, 193.°, 194.°, nº 1 e 2, 196.°, 202.°, nº 1, alínea a) e 204°, alínea c), todos do Código de Processo Penal; e

- Ao arguido AA, a medida coactiva de prisão preventiva, nos termos dos art.°s 191.°, 192.°, 193.°, 194.°, nº 1 e 2, 196.°, 202.°, nº 1, alínea a) e 204°, alínea e c), todos do Código de Processo Penal.”

- No dia 11 de Janeiro de 2021, após audição do arguido, BB (a seu pedido), foi proferido o sequente despacho (sic):

"Os arguidos BB e AA encontram-se presos preventivamente à ordem dos presentes autos desde 13 de Outubro de 2020 por fortes indícios da prática, cada um, de um crime de tráfico de estupefacientes.

Mostra-se respeitado o prazo máximo de prisão preventiva (cfr. art.° 215.°, n.°2, do Cód. Proc. Penal).

Prescreve o art.° 213.°, nº 1, al. a) que:

"1 - O juiz procede oficiosamente ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, decidindo se elas são de manter ou devem ser substituídas ou revogadas:

a) No prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último reexame".

O n.° 2 dispõe que: "Na decisão a que se refere o número anterior, ou sempre que necessário, o juiz verifica os fundamentos da elevação dos prazos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.os 2, 3 e 5 do artigo 215.° e no nº 3 do artigo 218.°".

Por sua vez, o nº 3 preconiza que "Sempre que necessário, o juiz ouve o Ministério Público e o arguido".

Face aos elementos constantes dos autos, entende-se ser desnecessária a audição dos arguidos, tendo em conta que os mesmos foram ouvidos aquando da aplicação da prisão preventiva. Tal entendimento é sufragado pelo Ac. do Tribunal Constitucional nº 96/99, de 10 de Fevereiro, publicado no DR, II Série, de 31 de Março do mesmo ano, segundo o qual "Não é inconstitucional a norma do nº 3 do art.° 213º do C. P. P. na medida em que prescinde da audiência do arguido quando não há alteração do condicionalismo fáctico que determinou a imposição da medida de coacção ao arguido que, na reapreciação, se mantém". No mesmo sentido, vd. Acórdão da Relação do Porto de 15/03/2000, in CJ, pág. 235, de 13/06/2001, proc. n° 110675, in www.dpsi.pt.

Na esteira da doutrina e da jurisprudência correntes, as medidas de coacção estão sujeitas à condição "rebus sic standibus", sempre temperada pela imutabilidade da decisão enquanto não sobreviverem circunstâncias fundamentais ou significativas que justifiquem uma "reformatio in pejus". Ou seja, a decisão judicial "é intocável e imodificável enquanto não sobrevierem motivos que justificam legalmente nova tomada de posição" (vide. Ac. da Relação do Porto de 16/10/1991, Proc. n.° 9120589).

Como tem sido decidido pela jurisprudência, de forma uniforme, a medida de coacção, designadamente a prisão preventiva, deve manter-se enquanto se mantiverem inalterados os pressupostos de facto e de direito que a motivaram (vd., a título de exemplo, Acórdãos da Relação de Coimbra de 08/01/1997, RMJ, 463/652 e da Relação de Lisboa de 21/05/1997, BMJ, 467/620).

Deste modo, enquanto não ocorrerem alterações significativas da situação existente à data em que foi decidido aplicar a prisão preventiva, não pode o Tribunal reformar essa decisão sob pena de, fazendo-o, provocar instabilidade jurídica decorrente de julgados contraditórios com inevitáveis reflexos negativos no prestígio dos Tribunais e nos valores da certeza ou da segurança jurídica que constituem os verdadeiros fundamentos do caso julgado (Ac. Relação do Porto de 03/02/1993, in CJ, XVIII, tomo I, pág. 248 e 249).

Ora, compulsados os autos - e não obstante o teor do requerimento apresentado pelo arguido BB, bem como das declarações por si prestadas sobre a alteração das suas condições pessoais, nomeadamente quanto ao estado de saúde do seu pai - não se verifica qualquer alteração dos pressupostos de facto ou de direito em que assentou a medida de prisão preventiva imposta aos arguidos, inexistindo, assim, qualquer atenuação das exigências cautelaras que determinaram a referida medida.

Na verdade, encontram-se ainda em curso as diligências investígatórias necessárias para a cabal realização de acusação, sendo que dos autos não constam quaisquer elementos passíveis de demonstrar uma alteração das circunstâncias que estiveram na origem da aplicação, aos arguidos, daquela medida de coacção.

Aliás, não obstante o requerido pelo arguido BB, a verdade é que o mesmo se limita a referir as dificuldades familiares em virtude da sua prisão preventiva, bem como o estado de saúde do seu pai -, não possui, por si só, relevância suficiente para permitir a alteração da medida de coacção, sobretudo quando analisado em contraposição a todos os indícios que estiveram na base da aplicação da prisão preventiva ao arguido.

Há que terem conta que o perigo de continuação da actividade criminosa reveste elevada intensidade, face à concreta conduta levada a efeito pelo arguido - participação no desembarque e transporte de 785 quilogramas de cannabis para território nacional.

Para além do mais, o arguido BB pretende que lhe seja alterada a medida para que o mesmo passe a frequentar a habitação onde já residia previamente aos factos, mantendo-se assim intocada toda a estrutura social e rede de contactos que culminaram no seu contributo para o desembarque do produto estupefaciente.

Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos art.°s 191º, 193º, 202°, nº 1, alínea a), 204° e 213°, nº 1, todos do Cód. Proc. Penal, mantenho a referida medida de coacção de prisão preventiva, relativamente aos arguidos BB e AA.”

- O despacho transcrito no item antecedente foi notificado ao arguido, no dia 12 de Janeiro de 2021, conforme consta da certidão inserta no processo. O arguido foi notificado de todo conteúdo do despacho “e continua a aguardar os ulteriores termos do processo em prisão preventiva” (sic).

§2.(b). - PRESSUPOSTOS EXIGÍVEIS PARA SOLVÊNCIA DA PROVIDÊNCIA DE HABEAS CORPUS.

A providência (excepcional) de habeas corpus – cfr. artigos 220º a 223º do Código de Processo Penal – é qualificada como um expediente jurídico-constitucional de reacção perante uma situação de evidente/ostensiva violação do direito que, a qualquer cidadão, é constitucionalmente reconhecido de não ser privado de acção e movimentação individual, fora dos casos em que a lei permite o decretamento de privação de liberdade (indiciação de acções penalmente puníveis nas situações previstas no artigo 202º do Código de Processo Penal ou após confirmação judicial, por sentença, de cometimento de crimes – previamente imputados a um individuo – por que o tribunal tenha imposto uma condenação em pena de prisão efectiva).

Por a medida de coacção de prisão preventiva se configurar como uma forma de asseguramento e normalização de um procedimento judicial que colide e alanceia a capacidade individual de acção e movimentação, liberta de qualquer constrangimento externo – v.g. por banda do Estado – a lei comina prazos máximos e inderrogáveis durante os quais um cidadão pode ser mantido na situação de prisão preventiva, antes de julgamento por uma indiciação/imputação jurídico-criminal – cfr. artigo 215º, nº 1 e 2 do Código de Processo Penal. 

A vulneração dos prazos legalmente estatuídos, possibilita aquele que se encontre privado de liberdade – detenção ou prisão – por razão, ou motivo, que se não quadre com o quadro legal estabelecido no ordenamento jurídico vigente pode pedir a apreciação da situação em que se encontra ao Supremo Tribunal de Justiça.

O instituto de habeas corpus configura-se, a um tempo, como um direito fundamental e uma garantia. O instituto mostra-se a um tempo um direito, na medida em que a lei, maxime a Constituição, o confirma como um valor e um estado subjectivo activo incrustado na constelação individual de direitos irremíveis do cidadão e que se fixa, directa e imediatamente, na esfera jurídica de qualquer cidadão no gozo pleno dos seus direitos cívicos, e ao mesmo tempo uma garantia na medida em que permite a qualquer cidadão reagir contra uma situação que repute abusiva e violadora de um direito – a liberdade de acção e de livre movimentação pessoal – inscrito como inderrogável no amplexo de direitos fundamentais do individuo. (Em outros ordenamentos jusprocessuais, caso do italiano, a forma de reacção contra a ilegalidade da aplicação de medidas de privação de liberdade consideradas desproporcionadas e inadequadas é efectuada através de um procedimento denominado «riesame», que tem o poder de avaliar a legitimidade e o mérito da medida coercitiva aplicada “senza essere vincolato né dagli eventualli motivi del recorso dell´imputato, né dalla motivazione del provvedimento che ha applicato la misura – art. 309, coma 9” [“sem estar vinculado, nem pela eventual fundamentação (motivos) do recurso do imputado, nem pela motivação da providência que aplicou a medida – artigo 309, nº 9] (tradução nossa) – cfr. Paolo Tonini, Manuale Breve de Diritto Processuale Penale, Giuffrè Editore, 2017, p. 344. De forma residual a reacção/impugnação contra a aplicação de medidas cautelares é efectuada através o «apello», ou seja um meio de impugnação residual relativamente ao «riesame» e que é utilizado em todos os casos em que não é aplicada «per la prima volta (ab initio)» uma medida coercitiva. Porém, desde 2013 que, por força da condenação da Itália pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por procedimentos adoptados com a expulsão de imigrantes, o Estado italiano vem providenciando pela adopção de legislação actuante e efectiva que permite actuar em casos de violação da liberdade da pessoa.)     

Legitimamente, e por direito, o pedido pode ser impulsionado por qualquer cidadão (“no gozo dos seus direitos políticos”) e deve ser apresentado à autoridade à ordem da qual o cidadão se encontra preso. (“A) O habeas corpus é uma garantia constitucional de proteção da liberdade física (liberdade de locomoção, de “ir e vir”, na expressiva formulação da lei brasileira), e não de quaisquer outros direitos fundamentais. O habeas corpus é um “direito-garantia”, um instrumento de protecção da liberdade, não um direito fundamental autónomo (“direito-direito”). O bem jurídico-constitucional que o habeas corpus visa proteger é o direito à liberdade, esse sim um direito fundamental estabelecido no art. 27.º da Constituição.

B) O habeas corpus é uma providência, independente do sistema de recursos penais. Uma providência urgente, conforme resulta da brevidade do prazo estipulado para a sua decisão.

Mas deverá qualificar-se como "extraordinária", no sentido que lhe era atribuído pelo DL n.º 35043, ou seja, como subsidiária dos recursos judiciais?

A autonomia do habeas corpus relativamente aos recursos dificilmente se coaduna com a sua subsidiariedade, entendida como exigindo o esgotamento dos recursos ordinários para que seja legítima a intervenção da providência. O habeas corpus deve servir para as situações mais graves, as mais carecidas de tutela urgente, ou seja, aquelas em que a privação da liberdade se mostrar claramente ilegal, sendo então o meio adequado, e não excecional, de fazer frente à ilegalidade.

A providência só pode ser entendida como “extraordinária” no sentido da sua singularidade relativamente aos recursos penais, pela sua exclusiva finalidade de meio de reação à privação ilegal da liberdade e pelo seu processamento específico, não como mecanismo supletivo ou subsidiário de tutela da liberdade.

C) A Constituição esboça uma definição das situações abrangidas pela garantia (“abuso de poder, por virtude de detenção ou prisão ilegal”). Constata-se, assim, que os pressupostos e a extensão da providência não são definidos com precisão, o mesmo sucedendo com a definição do tribunal competente, pelo que se impõe a intervenção do legislador ordinário para dar cumprimento ao preceito constitucional, para dar efetividade à garantia constitucional do habeas corpus, à semelhança do que aconteceu com as anteriores constituições portuguesas.

Mas como interpretar a expressão: “haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal”? Trata-se de dois requisitos ou de um só? Sendo dois, serão cumulativos?

Há quem sustente a falta de autonomia entre os dois requisitos enunciados, que seriam afinal um só: a ilegalidade da detenção ou da prisão; a expressão “por virtude”, subsequente a “abuso de poder”, demonstraria que o restante enunciado da frase seria a explicitação desse conceito de “abuso de poder”, não sendo este uma exigência suplementar relativamente à detenção ou prisão ilegal. Por outras palavras, sempre que haja detenção ou prisão ilegal estará verificado o condicionalismo de intervenção do habeas corpus.” – Cfr. Maia Costa, in Revista Julgar, 2016, ano 29, págs. 218-246. 

Como fundamento desta pretensão, de carácter excepcional, o peticionante pode convocar uma das sequentes situações: a) incompetência da entidade que ordenou ou efectuou a prisão; b) ter a prisão uma razão, ou substrato jurídico-factual, arredada do quadro legal estabelecido; e c) ser a prisão mantida para além do prazos que a lei determina e fixa ou que a decisão judicial haja determinado. “Cfr, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Fevereiro de 2007, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira, que se deixa transcrito, parte interessante.

A providência de habeas corpus tem, como resulta da lei, carácter excepcional.

Não já, no sentido de constituir expediente processual de ordem meramente residual, como outrora aqui vinha sendo entendida, antes, por se tratar de providência vocacionada a responder a situações de gravidade extrema ou excepcional, haja ou não ainda aberta a via dos recursos ordinários.

“E é precisamente por pretender reagir contra situações de excepcional gravidade que o habeas corpus tem de possuir uma celeridade que o torna de todo incompatível com um prévio esgotamento dos recursos ordinários”.

Porque assim, a petição de habeas corpus, em caso de prisão ilegal, tem os seus fundamentos taxativamente previstos no n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal: a) Ter sido [a prisão] efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; c) Manter-se para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial.

“Exemplos de situações abrangidas por estas disposições poderiam encontrar-se na prisão preventiva decretada por outrem que não um juiz; na prisão preventiva aplicada a um arguido suspeito da prática de crime negligente ou punível com pena de prisão inferior a três anos; na prisão preventiva que ultrapasse os prazos previstos no artigo 215.º do C.P.P.

Confrontamo-nos, pois, com situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade, ambulatória (...) a reposição da legalidade tem um carácter urgente”.

Mas a providência excepcional em causa, não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. Está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere – mais precisamente «nos oito dias subsequentes» ut art.º 223.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite».

Pois, não se esgotando no expediente de excepção os procedimentos processuais disponíveis contra a ilegalidade da prisão e correspondente ofensa ilegítima à liberdade individual, o lançar mão daquele só em casos contados deverá interferir com o normal regime dos recursos ordinários. Justamente, os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, por serem-no, impõem e permitem uma decisão tomada com imposta celeridade. Sob pena de, a não ser assim, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, porventura de sinal contrário, com a agravante, agora, de serem portadoras da chancela do Mais Alto Tribunal.

Exactamente por isso, a matéria de facto sobre que há-de assentar a decisão de habeas corpus tem forçosamente de ser certa, ou, pelo menos, estabilizada, sem prejuízo de o Supremo Tribunal de Justiça poder ordenar algumas diligências de última hora – art.º 223.º, n.º 4, b), do Código de Processo Penal – mas sempre sem poder substituir-se à instância de julgamento da matéria de facto, e apenas como complemento esclarecedor de eventuais lacunas de informação do quadro de facto porventura subsistentes, com vista à decisão, ou seja, na terminologia legal, cingidas a esclarecer «as condições de legalidade da prisão».

Como afirmou este mesmo Supremo Tribunal no seu acórdão de 16 de Dezembro de 2003, proferido no procedimento de habeas corpus n.º 4393/03-5, trata-se aqui de «um processo que não é um recurso mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (…)».

“(…) Pelo contrário, os recursos de agravo previstos no artigo 219.º do Código de Processo Penal podem ter outros fundamentos, sobretudo os relacionados com a inexistência de uma necessidade cautelar que torne indispensável a aplicação da medida de coacção; com a não adequação da medida à necessidade cautelar; com a desproporcionalidade da medida face ao perigo que se visa evitar. Pense-se, a título de exemplo, em situações em que não se verifique qualquer perigo de fuga do arguido, de perturbação da ordem ou tranquilidade pública ou de continuação da actividade criminosa; em casos em que a medida aplicada não é idónea a garantir a não ocorrência do perigo que se receia; ou ainda na aplicação de uma medida demasiado gravosa tendo em conta outras que deveriam ser preferidas por menos desvaliosas e igualmente eficazes ou tendo em conta a gravidade do delito cometido e a sanção que previsivelmente lhe será aplicada”.

A natureza sumária e expedita da decisão de habeas corpus, por outro lado, não permite que, quando o aspecto jurídico da questão se apresente altamente problemático, o Supremo se substitua de ânimo leve às instâncias, ou mesmo à sua própria eventual futura intervenção no caso, por via de recurso ordinário, e, sumariamente, ainda que de modo implícito, possa censurar aquelas por haverem levado a cabo alguma ilegalidade, que, como se viu, importa que seja grosseira. Até porque, permanecendo discutível e não consensual a solução jurídica a dar à questão, dificilmente se pode imputar, com adequado fundamento, à decisão impugnada, qualquer que ela seja – mas sempre emanada de uma instância judicial – numa apreciação pouco menos que perfunctória, o labéu de ilegalidade, grosseira ou não.”

Como se assinalou no acórdão supra citado – de 1 de Fevereiro de 2007, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira – o procedimento (providência) de habeas corpus não assume carácter ou natureza residual, antes se perfila como um procedimento autónomo e com identidade própria que pode coexistir com o recurso. A providência de habeas corpus não se destina a reagir contra uma decisão reputada injusta de aplicação de uma medida de privação de liberdade, rectius prisão preventiva, antes se destina a pôr cobro a uma situação de ilegalidade e abuso de poder por parte das autoridades. A providência de habeas corpus não se destina a corrigir ou reavaliar as decisões judiciais que dentro da legalidade apliquem a medida coactiva de prisão preventiva. Ela surge no universo do direito como meio de ilaquear um estado patológico decorrente de uma actuação contrária à lei e ao arrepio dos adequados e correctos modos de apreciação e avaliação de uma situação factual (em que uma medida de coacção como a prisão preventiva não pode ser aplicada).

“Por outro lado, a providência de habeas corpus, por alegada prisão ilegal, tem os seus fundamentos taxativamente previstos no n.º 2 do art. 222.º do CPP, perante situações de violação ostensiva da liberdade das pessoas, seja por incompetência da entidade que ordenou a prisão, seja por a lei não permitir a privação da liberdade com o fundamento invocado ou sem ter sido invocado fundamento algum, seja ainda por se mostrarem excedidos os prazos legais da sua duração.

São tais razões - e só elas – que justificam a celeridade e premência na apreciação extraordinária da situação de privação de liberdade com vista a aquilatar se houve abuso de poder ou violação grosseira da lei, na privação da liberdade, que imponha de imediato a reposição da legalidade.

A providência de habeas corpus, enquanto remédio de urgência perante ofensas graves à liberdade, que se traduzam em abuso de poder, ou por serem ofensas sem lei ou por serem grosseiramente contra a lei, não constitui no sistema nacional um recurso dos recursos e muito menos um recurso contra os recursos. (v.v.g. Ac. deste Supremo de 20-12-2006, proc. n.º 4705/06 - 3.ª)

Tal não significa que a providência deva ser concebida, como frequentemente o foi, como só podendo ser usada contra a ilegalidade da prisão quando não possa reagir-se contra essa situação de outro modo, designadamente por via dos recursos ordinários (v. Acórdão deste Supremo de 29-05-02, proc. n.º 2090/02- 3.ª Secção, onde se explana desenvolvidamente essa tese).

Aliás, resulta do artigo 219º nº 2 do CPP, que, mesmo em caso de recurso de decisão que aplicar, mantiver ou substituir medidas de coacção legalmente previstas, inexiste relação de dependência ou de caso julgado entre esse recurso e a providência de habeas corpus, independentemente dos respectivos fundamentos.

O habeas corpus não se destina a formular juízos de mérito sobre as decisões judiciais determinantes da privação de liberdade, ou a sindicar nulidades ou irregularidades nessas decisões – para isso servem os recursos ordinários - mas tão só a verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante (abuso de poder ou, erro grosseiro) enquadrável no disposto das três alíneas do nº 2 do artº 222º do CPP.” (Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7.06.2017, relatado pelo Conselheiro Pires da Graça, no processo de habeas corpus sob o nº 881/16.6JAPRT-X.S1.)

No mesmo eito segue o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 16-03.2015, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, em que a propósito da providência especial de habeas corpus se escreveu (sic): “A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita como garantia fundamental no artigo 31º da Constituição, tem tratamento processual nos artigos 220º e 222º do CPP. Estabelecem tais preceitos os fundamentos da providência, concretizando a injunção e a garantia constitucional.  

Nos termos do artigo 222º do CPP, que se refere aos casos de prisão ilegal, a ilegalidade da prisão que pode fundamentar a providência deve resultar da circunstância de i) a mesma ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; ii) ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou iii) se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 222º do CPP. A providência de habeas corpus não decide, assim, sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso das decisões tomadas numa tramitação processual em que foi determinada a prisão do requerente ou um sucedâneo dos recursos admissíveis Conforme se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de 2 de Fevereiro de 2005, “no âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe, porém, julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo), mas tem de se aceitar o efeito que os diversos actos produzam num determinado momento, retirando daí as consequências processuais que tiverem para os sujeitos implicados”.

Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira a uma determinada situação processual do requerente, se os actos de um determinado processo – valendo os efeitos que em cada momento ali se produzam e independentemente da discussão que aí possam suscitar, a decidir segundo o regime normal dos recursos – produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos da petição referidos no artigo 222º, nº 2 do CPP.

A providência em causa assume, assim, uma natureza excepcional, a ser utilizada quando falham as demais garantias defensivas do direito de liberdade, para estancar casos de detenção ou de prisão ilegais. Por isso, a mesma não pode ser utilizada para sobrestar outras irregularidades ou para conhecer da bondade de decisões judiciais que têm o recurso como sede própria para reapreciação.

Na verdade, a essência da providência em causa reside numa afronta clara, e indubitável, ao direito à liberdade. Deve ser demonstrado, sem qualquer margem para dúvida, que aquele que está preso não deve estar e que a sua prisão afronta o seu direito fundamental a estar livre. É exactamente nessa linha que se pronuncia Cláudia Santos, referindo, nesta senda que “confrontamo-nos, pois, com situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade, ambulatória (...) a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27.12.2019; Proc. nº 130/17.0JGLSB-Q.S1, relatado pelo Conselheiro Manuel Matos e no mesmo eito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07.05.2003, Proc. nº 03P1778, relatado pelo Conselheiro Pereira Madeira. [Cláudia Santos, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 10, Fascículo 2, p. 300]) Também Cavaleiro Ferreira avança que "o habeas corpus é a providência destinada a garantir a liberdade individual contra o abuso de autoridade" (Citado em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.04.2008, Proc. nº 08P1504, relatado pelo Conselheiro Rodrigues Costa. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 1986, p. 273)  

A providência excepcional em causa não se substitui, nem pode substituir-se, aos recursos ordinários, ou seja, não é, nem pode ser, meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. O habeas corpus está, assim, reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade, que, exactamente por serem ilegais, impõem, e permitem, uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida. (“Ora, o habeas corpus não é um modo de impugnação das decisões que aplicam medidas de coação. Pode, na modalidade do art. 222.º, atacar tanto situações de prisão preventiva (ou obrigação de permanência na habitação), como de cumprimento de pena (por excesso de prazo). E, na do art. 220.º, pode incidir sobre situações completamente alheias a um processo penal, como garantia que é contra qualquer situação de privação de liberdade não validada judicialmente.

O habeas corpus é uma garantia situada à margem do sistema de impugnações do processo penal e, como tal, deveria constar de diploma autónomo do Código de Processo Penal, que abrangesse a totalidade do regime do instituto, incluindo os “regimes especiais” que fossem necessários (como os de portadores de anomalia psíquica, previsto no art. 31.º da Lei de Saúde Mental), o que reforçaria a visibilidade e a legibilidade do mesmo e reforçaria o seu prestígio institucional.

Tal como está estruturado, o habeas corpus constitui um remédio contra a privação ilegal da liberdade. O que significa desde logo que o habeas corpus está exclusivamente direcionado para pôr termo à ilegalidade, quando constatada, restituindo o detido à liberdade.

Afastado do âmbito da providência fica, pois, o apuramento das responsabilidades dos autores das ilegalidades verificadas, a determinar em processo autónomo. Como igualmente lhe é alheia a reparação dos direitos dos lesados, a peticionar no foro próprio, conforme prevê o art. 225.º, n.º 1, a), do Código de Processo Penal. A finalidade do habeas corpus, enquanto garantia da liberdade individual, esgota-se na reposição da legalidade, ou seja, na libertação do detido, quando constatada uma detenção ilegal.

(…) O habeas corpus em virtude de prisão ilegal está previsto no art. 222.º do Código de Processo Penal. Estamos aqui perante situações em que a prisão foi decretada ou validada por um juiz, servindo, pois, a providência para "fiscalizar” uma decisão jurisdicional.

Numa primeira análise, não deixa de ser estranho que exista um mecanismo de controlo de decisões jurisdicionais fora do sistema de recursos penais. Na verdade, o modo de impugnação por excelência de decisões desse tipo é o recurso para um tribunal superior. O habeas corpus, para ter razão de ser, deverá ter uma função diferente da dos recursos, deverá servir como instrumento de proteção da liberdade quando os meios ordinários não servirem de base suficiente para essa proteção. Nesse sentido, e só ele, o habeas corpus é uma providência extraordinária.

Mas deverá o sujeito ter de esgotar os meios ordinários de impugnação para ter acesso ao habeas corpus? Já se abordou esta questão, pronunciando-nos pela negativa, em face do texto constitucional.

A posição afirmativa constituía, porém, a jurisprudência corrente do Supremo Tribunal de Justiça até ao início deste século. Mas essa orientação veio a ser abandonada a partir do acórdão de 3.7.2001 (cons. Armando Leandro), que decidiu precisamente que a admissibilidade de recurso da decisão, ou a sua pendência, não impede o habeas corpus, desde que verificados os respetivos pressupostos.

Esta posição veio a ser consagrada na lei, no n.º 2 do art. 219.º do Código de Processo Penal, pela Lei n.º 48/2007, de 29-862.

Na verdade, no habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade. No habeas corpus procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal.

De fora do âmbito da providência ficam todas as situações que são enquadráveis nas nulidades e noutros vícios processuais das decisões que decretaram a prisão, bem como na análise dos pressupostos materiais das medidas privativas da liberdade. Para essas situações estão reservados os recursos penais, como o do art. 219.º do Código de Processo Penal. O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, ou seja, num meio de acelerar a tramitação dos recursos penais, que dispõem de tramitação diferente, não esquecendo que o referido recurso do art. 219.º tem igualmente um prazo específico para decisão (30 dias). O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna aliás com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei.

Nesta perspetiva, não existe sobreposição ou “concorrência” entre a providência e o recurso penal. Cada um dos meios tem o seu objeto específico de impugnação.

Em síntese: desde que verificados os requisitos do habeas corpus (prisão ilegal por algum dos fundamentos previstos na lei), a providência é admissível, independentemente de ter sido interposto recurso ordinário da mesma decisão.

O prazo estabelecido para a decisão da providência é de 8 dias, conforme a própria Constituição, no n.º 3 do art 31.º, determina. Esse prazo é válido para qualquer das modalidades da providência. Contudo, para o caso da detenção ilegal, deve entender-se que só excecionalmente esse prazo deve ser esgotado.

Em qualquer caso o prazo é meramente ordenador, ou seja, não é atribuída qualquer consequência processual à infração do mesmo. Na verdade, a lei não contém nenhuma disposição idêntica ao citado art. 4.º do DL n.º 320/76, que determinava a libertação do preso caso a providência não fosse decidida no prazo. Por outro lado, a Constituição, já o vimos, não impõe essa solução, embora não a proscreva. Seria aliás essa a solução mais consentânea com o espírito garantístico da providência.

Por último, refira-se que, respeitando o sentido do texto constitucional, a Lei n.º 44/86, de 30-09, que regula o estado de sítio e o estado de emergência, assegura expressamente o direito de habeas corpus às pessoas detidas ou com residência fixa com fundamento em violação das normas de segurança em vigor após a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência (n.º 2, al. a) do art. 2.º). Ou seja, no nosso ordenamento jurídico, o habeas corpus não pode, em caso algum, ser suspenso.” – Cfr. Maia Costa, in Revista Julgar, Ano 2016, Ano 29, pags. 218-246.

Como afirmou este mesmo Supremo Tribunal no seu Acórdão de 16 de Dezembro de 2003, trata-se aqui de «um processo que não é um recurso, mas uma providência excepcional destinada a pôr um fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de toda a dúvida, da prisão e, não, a toda e qualquer ilegalidade, essa sim, possível objecto de recurso ordinário e ou extraordinário. Processo excepcional de habeas corpus este, que, pelas impostas celeridade e simplicidade que o caracterizam, mais não pode almejar, pois, que a aplicação da lei a circunstâncias de facto já tornadas seguras e indiscutíveis (…)».

A natureza sumária da decisão de habeas corpus, por outro lado, não se deve conjugar com a definição de questões susceptíveis de um tratamento dicotómico e em paridade de defensibilidade. É que, em tal hipótese e como se acentua em decisão deste Tribunal de 1 de Fevereiro de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça não se pode substituir, de ânimo leve, às instâncias, ou mesmo à sua própria eventual futura intervenção no caso, por via de recurso ordinário, e, sumariamente, ainda que de modo implícito, censurar aquelas por haverem levado a cabo alguma ilegalidade, que, como se viu, importa que seja grosseira. 

Até porque, permanecendo discutível, e não consensual, a solução jurídica a dar à questão, dificilmente se pode imputar, com adequado fundamento – ainda para mais numa apreciação pouco menos que perfunctória –, à decisão impugnada, qualquer que ela seja – mas sempre emanada de uma instância judicial –, o labéu de ilegalidade, grosseira ou não.” (Disponível em www.dgsi.pt.)

Assoalhados com o que vem sendo uma posição jurisprudencial constante e uniforme, apreciar-se-á o caso em tela de juízo.

§2.ii). – O CASO SOB APRECIAÇÃO.

O arguido/requerente faze apoiar a sua pretensão no facto de não ter sido notificado da decisão que reexaminou os pressupostos da medida de coacção que lhe haviam sido imposta por decisão judicial de 13 de Outubro de 2020.

Para além de uma interjeição de incredibilidade pensamos que nada mais restará constar que (i) o arguido foi notificado, no dia 12 de Janeiro de 2021, do despacho que procedeu ao reexame dos pressupostos da medida de coacção que lhe havia sido imposta no dia 13 de Outubro de 2020; (ii) que a notificação foi efectuado em dia antecedente aquele em que se perfazia o prazo de três (3) meses para o reexame dos pressupostos da medida de coacção de prisão preventiva.

A pretensão do arguido revela-se manifestamente improcedente, por contrastar com acto processual que lhe foi pessoalmente notificado. O arguido foi pessoalmente notificado do despacho que, tendo reapreciado os pressupostos de que dependia a medida de coacção de prisão preventiva, em momento anterior aquele em que se perfazia o prazo e ainda assim não se conteve em formular uma pretensão que sabia ser manifestamente ilegal e violadora de regras processuais de lealdade e confiança para com o sistema de justiça.

Pelo comportamento que assumiu é passível de ser sancionado nos termos do nº 6 do artigo 223º do Código de Processo Penal numa quantia de 15 (quinze) unidades de conta.

§3. – DECISÃO.

Na defluência do que vem exposto, acordam os juízes que compõem este colectivo, na 3ª secção criminal, do Supremo Tribunal Justiça. Em:

- Indeferir o pedido de habeas corpus formulado pelo requerente, AA, por manifestamente improcedente;

- Condenar o requerente nas custas, fixando a taxa de justiça em 5 (cinco) Uc´s;

- Condenar o requerente em 15 (quinze) Uc´s, por haver feito uma manifesta e abusiva utilização do procedimento (excepcional) de habeas corpus


Lisboa, 10 de Fevereiro de 2021


Gabriel Martim Catarino (relator)

Maria Conceição Gomes

António Pires da Graça – Presidente da secção

 

(Declaração nos termos do artigo 15º-A da Lei nº 2072020, de 1 de Maio: O acórdão tem a concordância da Exma. Senhora Juíza Conselheira Adjunta, Dr.ª Maria da Conceição Gomes, não assinando, por o julgamento, em conferência, haver sido realizado por meios de comunicação à distância.)