Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2184/20.2T8VRL.G1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: DIVORCIO SEM CONSENTIMENTO
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
FUNDAMENTOS
SEPARAÇÃO DE FACTO
FACTOS SUPERVENIENTES
ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
PRINCÍPIO DA SUBSTANCIAÇÃO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :
I – Na petição inicial da acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge,  a A. alegou diversa factualidade que pretendeu reconduzir ao disposto na alínea d) do art. 1781 do CC, sendo que a par de outros factos, a A. alegou que desde determinada data ela e o R. não mantinham qualquer contacto pessoal, nem sequer epistolar, não mais havendo comunhão de leito, mesa e habitação entre eles, não tendo a A. qualquer intenção de restabelecer a comunhão de vida com o R..
II – Reapreciando a decisão da matéria de facto o Tribunal da Relação eliminou alguns dos factos provados, em consequência do que dispunha, apenas, dos referentes à separação de facto que se protelara no tempo no decurso da acção, até ao encerramento da discussão – sendo, então, já superior a um ano.
III - O tribunal poderá qualificar de modo diferente os factos provados, mas estará impedido de julgar o litígio com base numa causa de pedir não invocada - o princípio do dispositivo determina que haja coincidência entre a causa de pedir e a causa de julgar.
IV -  Por um lado, na sentença devem ser tomados em consideração os factos  que se produzam posteriormente à propositura da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão; por outro, o simples decurso de um período que falte para se completar um prazo sem o qual a acção não possa proceder, dispensará a invocação em articulado superveniente.
V - Que desde a data apontada na p.i. a A. e o R. não mantêm qualquer contacto pessoal, não mais havendo comunhão de leito, mesa e habitação entre eles e que a A. não tem qualquer intenção de restabelecer a comunhão de vida com o R., correspondem a factos que integravam a causa de pedir desenhada pela A. na sua p.i. - a constatação de que tal sucede “até à presente data”, por si só, não implicará alteração ou ampliação da causa de pedir.
VI -  A pretensão da A. era a de obtenção do divórcio, com fundamento nos factos que alegou; a diversa qualificação jurídica a que a Relação procedeu com base nos factos apurados para acolher a pretensão da A. não é suficiente para que se conclua que se trata de uma diferente causa de pedir.
Decisão Texto Integral:


Proc. nº 2184/20.2T8VRL.G1.S1


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

                                                           *

I - Em 17-11-2020 AA intentou a presente acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra BB.

Alegou a A., em resumo:

A A. e o R. casaram em .../.../1993, havendo nascido, na constância do matrimónio, dois filhos já maiores.

Desde o dia 10 de Outubro de 2020, que o R. se ausentou da casa de morada de família, tendo-se deslocado para o ..., onde estabeleceu residência, vinculando em definitivo a decisão da A. em dissolver a relação conjugal e, dessa forma, demarcando a ruptura entre o casal. No último ano de matrimónio, a A. não se tem sentido realizada com o vínculo matrimonial, sentindo-se negligenciada pelo R., desconfiando que este esteja a manter (novamente) uma relação extraconjugal, quebrando em definitivo o vínculo de confiança e fidelidade que os une.

Desde o passado dia 10 de Outubro de 2020 que A. e R. não mantêm qualquer contacto pessoal, nem sequer epistolar, não mais havendo comunhão de leito, mesa e habitação entre eles, não tendo a A. qualquer intenção de restabelecer a comunhão de vida com o R., o que preenche os requisitos impostos pela alínea d) do art. 1781º do Código Civil.

Pediu a A. que seja decretada a dissolução dos laços matrimoniais entre a A. e o R..

Na contestação que apresentou, entrada em juízo em 26-5-2021, aduziu o R., em resumo:

É verdade que em início de Outubro de 2020 o R. viajou para o ..., mas fê-lo por motivos da sua actividade profissional, tal como sucede todos os anos desde 2013, vivendo o R. ora ali, ora na casa de morada de família, tendo regressado a Portugal em início de Janeiro de 2021. A A. que bem sabia que a ausência do Réu se devia a motivos de trabalho, aproveitou-se dessa ausência para propor esta acção, não tendo qualquer fundamento a alegação de que o R. se encontrava no ... com uma relação extraconjugal; tendo a A. abandonado a residência conjugal no dia 2 de Janeiro de 2021, sabendo da data de regresso do Réu a 6 de Janeiro de 2021, residência aquela a que a A. não mais regressou.

Concluiu o R. que foi a A. quem infringiu os deveres conjugais de coabitação, cooperação e assistência e terminou pedindo a improcedência da acção.

O processo prosseguiu, vindo o Tribunal de 1ª instância a proferir sentença onde decidiu:

«Face ao expendido supra, decide-se julgar a ação procedente, por provada e, em consequência, decreta-se o divórcio entre a Autora AA e o Réu BB, declarando dissolvido o casamento celebrado entre ambos no dia .../.../1993».

O R. apelou, determinando a Relação de Guimarães no seu acórdão de 19-1-2023:

«Pelo exposto, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam em julgar improcedente o recurso, mantendo-se com fundamento diferente, a decisão que decretando o divórcio, declarou dissolvido o casamento celebrado entre a  Autora e o Réu no dia .../.../1993».

Interpôs, então, o R. recurso de revista, no qual formulou as seguintes conclusões:

I. Dita o art. 611.º, n.º 1 do CPC: “1 - Sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão”.

II. A autora, na petição inicial, alegou que “4. Desde o dia 10 de Outubro de 2020, o Réu ausentou-se da casa de morada de família, tendo-se deslocado para o ..., onde estabeleceu residência na morada já supra indicada. 5. Vinculando em definitivo a decisão da Autora em dissolver a relação conjugal e, dessa forma, demarcando a rutura entre o casal”.

III. Tais factos foram dados como não provados pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães.

IV. Neste sentido, da petição inicial da autora foi esvaziada, quanto ao único facto apto a traduzir o consagrado na alínea a), do art. 1781.º, e, portanto, não respalda da invocação de factos integradores de uma causa de pedir, a separação de facto por 1 (um) ano consecutivo.

V. Inexistindo factos que aludam à separação de facto, não pode o Venerando Tribunal da Relação, oficiosamente, alterar ou ampliar a causa de pedir, preenchendo-a com factos supervenientes, sob pena de violação do plasmado no art. 611.º, n.º 1 do CPC.

VI. Isto porque, se assim fosse, sairia violado o princípio do dispositivo e o princípio do pedido, consagrados nos art. 264.º, 265.º e 662.º do CPC, desvinculando-se o juiz, dessa forma, dos factos alegados pelas partes, favorecendo uma delas em deterioramento da outra».

A A. contra alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida, consoante fls. 111 e seguintes.

                                                           *

II – Sendo as conclusões da alegação de recurso, no seu confronto com a decisão recorrida, que delimitam o objecto da revista, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo, tendo em conta as conclusões apresentadas pelo recorrente, emergem como questões a considerar: se o Tribunal da Relação infringiu as normas que disciplinam o processo civil, considerando, na aplicação da lei substantiva, um período temporal de “separação de facto” decorrido depois de intentada a acção; se tal período temporal não poderia ser oficiosamente atendido pelo tribunal, sendo infringidas as regras referentes à estabilidade da causa de pedir.

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III - 1 - Os factos provados, tal como decorrem do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, são os seguintes:

a) A Autora e o Réu contraíram matrimónio católico, sem convenção antenupcial, no dia .../.../1993.

b) Na constância do matrimónio nasceram dois filhos, BB, nascido a .../.../1995 e CC, nascida a .../.../2001.

c) Depois do casamento, Autora e Réu residiram no Lugar ..., ..., freguesia ..., ..., assumindo essa residência como a casa de morada de família até 2019, data em que passaram a residir em ....

d) No dia 10 de Outubro de 2020 o Réu ausentou-se da casa de morada de família, em viagem de trabalho, para o ....

g) Desde 10 de Outubro de 2020 e até à presente data Autora e Réu não mantêm qualquer contacto pessoal.

h) Não mais havendo comunhão de leito, mesa e habitação entre a Autora e o Réu.

i) A Autora não tem qualquer intenção de restabelecer a comunhão de vida com o Réu.

                                                           *

III – 2 - O Tribunal de 1ª instância  considerara não provados os seguintes factos:

- O Réu estabeleceu residência no ... no dia 10 de Outubro de 2020;

- No último ano a Autora sente-se negligenciada pelo Réu que passa longos períodos de tempo sem pernoitar no leito conjugal, não explicando as suas ausências àquela.

A estes factos não provados o Tribunal da Relação, em resultado da impugnação da decisão da matéria de facto que o apelante/R. deduzira, aditou outros dois factos que excluiu da factualidade que a 1ª instância considerara provada:

«e) A Autora constatou então que o Réu mantinha novamente relacionamento de cariz sexual com outras mulheres no ....

f) O que vinculou em definitivo a decisão da Autora em dissolver a relação conjugal e, dessa forma, demarcou a rutura entre o casal».

                                                           *

IV – 1 - Na análise efectuada pelo Tribunal de 1ª instância encontrava-se reunido o condicionalismo que permitia “concluir pela rutura manifesta do casamento, porquanto deixou inequivocamente de existir a comunhão de vida própria de um casamento”, estando presentes os pressupostos previstos na “cláusula geral” da alínea d) do art.º 1781.º do CC. Isto porque, provando-se que no dia 10 de Outubro de 2020 o R. se ausentou da casa de morada de família, em viagem de trabalho, para o ..., a A. constatou que o Réu mantinha novamente relacionamento de cariz sexual com outras mulheres, o que a levou a tomar a decisão definitiva de dissolver a relação conjugal, demarcando, dessa forma, a ruptura entre o casal, não mantendo A. e R. desde aquela mencionada data qualquer contacto pessoal e não tendo a A. qualquer intenção de restabelecer a comunhão de vida com o R..

A Relação de Guimarães, consoante supra referido, retirou do elenco dos factos provados ter a A. constatado que o R. mantinha novamente relacionamento de cariz sexual com outras mulheres no ... e que tal tivesse vinculado em definitivo a decisão da A. em dissolver a relação conjugal, demarcando a ruptura entre o casal.

Considerou, todavia, que «os factos provados são demonstrativos da separação de facto entre os cônjuges desde 10 de outubro de 2020, que nos termos da al. a) do art. 1781º do Civil faz presumir a ruptura definitiva do casamento se se prolongar por um ano consecutivo.

Com efeito, o Réu ausentou-se da casa de morada de família, em viagem de trabalho, para o ... nessa data e desde então a Autora e Réu não mantêm qualquer contacto pessoal, não mais havendo comunhão de leito, mesa e habitação entre ambos. E a Autora não tem qualquer intenção de restabelecer a comunhão de vida com o Réu.

É certo que, como refere o recorrente, à data da propositura da acção, 17 de novembro de 2020, a separação de facto dos cônjuges verificava-se há pouco mais de um mês, mas prolongou-se e mantinha-se aquando da audiência de julgamento, que se realizou em 21de janeiro de 2022, sendo nesta data já superior a um ano».

Concluindo que sendo «o período de separação de facto entre os cônjuges à data da audiência já superior a um ano, é de manter, ao abrigo da al .a) do art. 1871º do C. Civil, a decisão que decretou o divórcio, o que determina, não obstante a alteração da decisão da matéria de facto, a improcedência do recurso».

Subordinado à epígrafe “Ruptura do Casamento”, dispõe o art. 1781 do CC que são fundamento de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges: a) a separação de facto por um ano consecutivo; b) a alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum; c) a ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano; d) quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento.

A nova lei adoptou claramente a ideia do divórcio-ruptura ao afirmar o princípio de que a dissolução do casamento pode fundar-se na ruptura definitiva do casamento e de que esta ruptura pode ser demonstrada através da prova de quaisquer factos que a demonstrem. A alínea d), supra transcrita, reconduz-se a uma cláusula geral dotada de flexibilidade que permitirá a abrangência de uma multiplicidade de hipóteses de facto que não foram objecto de tipificação pelo legislador. Caberá ao julgador aferir se as situações e comportamentos alegados e demonstrados no processo revelam a ruptura a que o preceito se reporta.

No caso dos autos, quando da propositura da acção, em 17-11-2020, a A. apontou para aquela alínea d) do art. 1781, alegando diversa factualidade que, no seu entender, preencheria a sua previsão. Assim, referiu que em 10 de Outubro de 2020, o R. se ausentara da casa de morada de família, tendo-se deslocado para o ..., ali estabelecendo residência, e que tal vinculara em definitivo a decisão da A. em dissolver a relação conjugal, dessa forma demarcando a ruptura entre o casal (artigos 4 e 5 da p.i., assinalados a negrito naquela peça). Acrescentando que no último ano de matrimónio a A. não se tem sentido realizada com o vínculo matrimonial, sentindo-se negligenciada pelo R., desconfiando que este esteja a manter (novamente) uma relação extraconjugal, quebrando em definitivo o vínculo de confiança e fidelidade que os une. Esclarecendo (novamente o assinalando a negrito) que desde aquele dia 10 de Outubro de 2020 a A. e R. não mantêm qualquer contacto pessoal, nem sequer epistolar, não mais havendo comunhão de leito, mesa e habitação entre eles, não tendo a A. qualquer intenção de restabelecer a comunhão de vida com o R..

Ao propor a acção de divórcio, a A. não fez qualquer referência à alínea a) do art. 1781. Diz-se, aqui, ser fundamento de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, «a separação de facto por um ano consecutivo», esclarecendo o art. 1782 que estaremos perante tal separação de facto «quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer».

Deste modo, a verificação da separação de facto implica a reunião de dois elementos: um elemento objectivo (o “corpus”) que traduz a ocorrência da ruptura da comunhão de vida característica da relação matrimonial, comunhão de vida que pressupõe a comunhão de leito, mesa e habitação, e um elemento subjectivo (o “animus”), traduzindo um «fenómeno psicológico, uma realidade interior, manifestada na intenção por parte de ambos os cônjuges ou de apenas um deles, de não restabelecer a vida em comum caracterizada pela comunhão na tripla componente referida» ([1]).

A dita separação de facto será fundamento do divórcio, traduzindo a ruptura do casamento, quando durar um ano consecutivo.

Ora, em 17-11-2020, quando a acção foi proposta, consoante foi alegado pela A. e se veio a apurar, somente em 10 de Outubro de 2020, pouco mais que um mês antes, o R. se ausentara para o ... – logo, a A. não iria aludir expressamente ao decurso de um ano consecutivo de separação e à previsão da alínea a) do art. 1781 do CC.

Daí e tendo, aliás, sido intentado já, em 19 de Outubro de 2020 ([2]), procedimento cautelar de arrolamento, que a A. tenha alegado diversa factualidade que pretendeu reconduzir ao disposto na alínea d) do art. 1781 do CC.

Diz-nos Amadeu Colaço que o cônjuge que pretenda interpor uma acção com este fundamento (da alínea d) do art. 1781) «terá de alegar e provar a existência de uma situação objectiva e passível de constatação, que revele uma situação de ruptura definitiva do casamento (a sua falência ou fracasso)» ([3]).

Segundo aquele autor, são elementos caracterizadores da “ruptura definitiva do casamento”, no âmbito desta alínea: 1 – tem de ser revelada por um ou mais factos; 2 – esses factos terão de ser outros que não os constantes das demais alíneas do referido artigo; 3 – tais factos terão de ser reveladores da ruptura do casamento; 4 – essa ruptura terá de mostrar-se definitiva (e não uma ruptura esporádica ou temporária); 5 – esta situação terá de consistir numa situação objectiva, passível de ser constatada, não resultando de um mero acto de vontade de um dos cônjuges; 6 – não depende da eventual culpa de qualquer dos cônjuges; não depende da verificação de qualquer prazo.

Rute Teixeira Pedro ([4]) salienta que não pode ler-se nesta alínea a consagração do divórcio unilateral a pedido, exigindo-se, também, «a demonstração da rutura do casamento através de factos externamente apreensíveis e que os mesmos apresentem uma gravidade equivalente à das constelações fácticas descritas nas als anteriores». Referindo que, designadamente, a separação de facto não poderá por si constituir fundamento bastante do divórcio se não se verificar o condicionalismo previsto na alínea a), podendo embora ser carreada para o processo «para conjuntamente com outros factos que lhes acrescentem significado, fundar um pedido à luz da alínea d)».

Como vimos, a par de outros factos, a A. alegou que desde 10 de Outubro de 2020 ela e o R. não mantinham qualquer contacto pessoal, nem sequer epistolar, não mais havendo comunhão de leito, mesa e habitação entre eles, não tendo a A. qualquer intenção de restabelecer a comunhão de vida com o R..

O Tribunal de 1ª instância, fundando-se na previsão da dita alínea d) do art. 1781, decretou o divórcio, considerando provado, não só, que em 10 de Outubro de 2020 o R. se ausentou da casa de morada de família, em viagem de trabalho, para o ..., não mantendo as partes, desde então, qualquer contacto pessoal e não havendo comunhão de leito, mesa e habitação entre elas, não tendo a A. qualquer intenção de restabelecer a comunhão de vida com o R., bem como que a Autora constatou então que o Réu mantinha novamente relacionamento de cariz sexual com outras mulheres no ..., o vinculou em definitivo a decisão da A. em dissolver a relação conjugal e, dessa forma, demarcou a rutura entre o casal.

Retirando estes últimos factos da matéria de facto provada, o Tribunal da Relação dispunha, apenas dos referentes à separação de facto que se protelara no tempo no decurso da acção, até ao encerramento da discussão – sendo, então, já superior a um ano.

A divergência do recorrente é de cariz essencialmente processual, não tendo propriamente a ver com ao negação do preenchimento, em termos substantivos (ainda que ao tempo do encerramento da discussão) dos requisitos previstos na alínea a) do art. 1781  do CC – o recorrente  entende que considerar o período de separação posterior à propositura da acção, leva à alteração dos factos alegados pela A. na petição inicial sendo infringidos o «princípio do dispositivo e o princípio do pedido, consagrados nos art. 263.º e 664.º do CPC, pois, se assim fosse, iria permitir uma alteração oficiosa da causa de pedir, em favor de uma parte e em nítido desfavor da outra».

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IV – 2 - Atento o disposto no art. 609 do CPC, o juiz está limitado pelos pedidos das partes e não pode deles extravasar; a decisão não pode pronunciar-se sobre mais do que foi pedido ou sobre coisa diversa da que foi pedida; não pode ultrapassar nem em quantidade nem em qualidade os limites do pedido formulado.

Dizia-nos, todavia, Alberto dos Reis ([5]) que não bastava que houvesse coincidência ou identidade entre o pedido e o julgado, sendo necessário, além disso, que houvesse identidade entre a causa de pedir e a causa de julgar, com a cautela de não confundir a causa de pedir com a qualificação ou enquadramento jurídico dado aos factos, e que nem sempre é fácil fazer a discriminação entre a causa de pedir e os motivos ou razões de que as partes se servem para sustentar a causa de pedir.

Dispunha o art. 664 do anterior CPC que, sem prejuízo do art. 264,  o juiz não estava sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, mas só podia servir-se dos factos articulados pelas partes.

As normas em causa constam, agora, embora com alterações, do art. 5 do CPC. Este artigo, fixando que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito,  determina que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, sendo, embora, ainda considerados pelo juiz os factos instrumentais que resultem da instrução da causa, os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da discussão da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar, bem como os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

Especificava, então, Alberto dos Reis ([6]) que sendo o juiz soberano na órbita estritamente jurídica, «é livre o tribunal na qualificação jurídica dos factos, contanto que não altere a causa de pedir».

Temos, pois, que o tribunal poderá qualificar de modo diferente os factos provados, mas estará impedido de julgar o litígio com base numa causa de pedir não invocada - o princípio do dispositivo ([7]) determina que haja coincidência entre a causa de pedir e a causa de julgar.

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IV – 3 - Por outro lado, o art. 611 do CPC dispõe que, sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais (nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir), deve a sentença tomar em consideração os factos (no que nos interessa os factos constitutivos) que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.

Na consideração dos referidos factos estaremos, assim, limitados pelas condições em que possa ser alterada a causa de pedir.

A propósito do preceito que constava do anterior Código, comentava Alberto dos Reis ([8]) haver que salvaguardar a causa de pedir sobre que assenta a acção. Concretizando: «Que o facto constitutivo se complete ou se produza na pendência da causa, está bem, contanto que esse facto faça nascer precisamente o direito invocado pelo autor, e não um direito diverso». E, mais adiante: «Assentemos nisto: O facto superveniente, de eficácia constitutiva, há-de conter-se na causa de pedir sobre que assenta a acção».

Face à nova lei processual, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre ([9]) defendem que perante o actual art. 588 (que dispõe sobre os articulados supervenientes)  «a ocorrência do facto constitutivo (igual ou diverso do invocado na petição inicial) deve ser alegada e provada em articulado superveniente; mas o simples decurso de um período que falte para se completar um prazo sem o qual a ação não possa proceder talvez dispense a invocação em articulado superveniente» (itálico nosso).

Esta perspectiva foi adoptada no acórdão do STJ de 23-2-2021 ([10]) no qual se expendeu:

«O art. 611.º, n.º 1, do CPC, permite, com algumas restrições, que na sentença sejam tomados em consideração factos que se produzam depois da propositura da ação. (…)

A atendibilidade do decurso do ano de separação de facto – iniciado em setembro de 2018 - neste estádio do processo, para efeitos do art. 1781.º, al. a), do CC, não envolve tão pouco, no caso dos autos, alteração ou ampliação da causa de pedir, à revelia das normas que regem a modificação objetiva da instância (arts. 264.º e 265.º, n.º 1, do CPC) - mas permitida pelo art. 588.º, do CPC -, porquanto se trata de facto alegado pela Autora desde a petição inicial, como elemento da causa de pedir da presente ação.

Sobre a referência temporal da falta do decurso do prazo de um ano consecutivo de separação de facto ao tempo da propositura da ação prevalece o princípio da atualidade da decisão consagrado no art. 611.º do CPC. Está em causa como que uma espécie de “utilidade superveniente da lide”.

(…)

Tendo a separação de facto o seu início em setembro de 2018 – e perdurado até hoje -, o prazo de um ano já havia decorrido aquando da realização da audiência de discussão e julgamento, a 18 de novembro de 2019. Deve, assim, admitir-se a completude de um prazo dilatório de direito substantivo, constitutivo do direito potestativo extintivo da Autora, depois de intentada a ação».

Entendimento concordante foi o manifestado no acórdão do STJ de 15-9-2022 ([11]) ali se referindo:

«…não se vê qualquer obstáculo a que, de acordo com o estatuído no artigo 611º do CPC, se considerem os factos supervenientes, ainda que constitutivos, que se produzam durante o decurso da acção, para que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão (no mesmo sentido o acórdão deste Supremo Tribunal de 23FEV2021 no proc. 3069/19.0T8VNG.P1.S1)».

Já no acórdão do STJ de 3-11-2005 ([12]) na aplicação do anterior CPC e da anterior legislação referente ao divórcio fora, também, ponderado:

«… não se objecte que o prazo legal de um ano de separação não se havia ainda completado na data da instauração da acção, quando sobre este marco de referência temporal tem prevalência o princípio da actualidade da decisão plasmado no artigo 663.º do Código de Processo Civil.

Precisar-se-á tão-somente que a atendibilidade do decurso do ano de separação de facto, iniciado em Janeiro de 2003, para efeitos da alínea b) do artigo 1781.º, não envolve no caso alteração da causa de pedir, à revelia das normas que regem a modificação objectiva da instância (artigos 272.º e 273.º do Código de Processo Civil).

Trata-se na realidade de um facto alegado pela autora desde a petição inicial, como elemento da causa de pedir complexa da presente acção, em veste de abandono do lar conjugal e de violação do dever de coabitação.

E nada impede o tribunal (artigo 664.º do Código de Processo Civil) de proceder agora a uma diferente qualificação do mesmo facto como separação de facto por um ano subsumível à citada alínea b) do artigo 1781.º» ([13]).

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IV – 4 - A causa de pedir é o acto ou facto jurídico, simples ou complexo, mas concreto donde emerge o direito que o autor pretende fazer valer; é o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida na acção (nº 4 do art. 581 do CPC). Ao autor cumpre indicar a causa de pedir, isto é, «alegar os factos constitutivos da situação jurídica que quer fazer valer ou negar (ou integrantes do facto cuja existência ou inexistência afirma)», sendo que externa  ao conceito de causa de pedir é a qualificação jurídica desse facto ([14]).

No acórdão do STJ de 18-9-2018 escreveu-se, a propósito do tema ([15]) que a causa de pedir se consubstancia «numa factualidade alegada como fundamento do efeito prático-jurídico pretendido, factualidade esta que não deve ser destituída de qualquer valoração jurídica, mas sim relevante no quadro das soluções de direito plausíveis a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC, independentemente da coloração jurídica dada pelo autor».

Considerou este STJ, no já aludido acórdão de 15-9-2022: «Não estando o tribunal vinculado às qualificações jurídicas efectuadas pelas partes, incumbindo-lhe antes proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas de modo a esgotar as possíveis qualificações dos factos alegados em função do efeito prático-jurídico pretendido, não basta uma mera qualificação jurídica dos factos alegados diferente da pretendida pelas partes para se concluir por causa de pedir diferente. Importa, no entanto, moderar essa liberdade de qualificação no sentido de não permitir uma convolação qualificativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação prescrito no art.º 609.º, n.º 1, do CPC e atentando mesmo contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa (…)

Nas acções em que a pretensão deduzida é o divórcio não se nos afigura curial configurar cada uma das situações elencadas no artigo 1781º do CCiv como correspondendo a distintas causas de pedir; pelo contrário, a causa de pedir é a mesma: o elenco de factos demonstrativos da ruptura do casamento por referência ao quadro jurídico de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge. Determinar, dentro desse quadro jurídico, qual é o que especificamente se adapta ao caso, ou se o mesmo não cabe nesse quadro jurídico, já é matéria de qualificação».

Acrescentando-se, ainda, naquele acórdão:

«Mas ainda que se entendesse que as diferentes alíneas do artigo 1781º do CCiv correspondessem a diferentes causas de pedir, não ocorreria no caso alteração da causa de pedir.

Com efeito, o Autor alegou circunstâncias factuais – saída de casa em função do mau relacionamento do casal, terminando a vida em comum e com intensão de a não reatar – que considerava evidenciarem, à data da propositura da acção, a ruptura definitiva do casamento em conformidade com a al. d) do artigo 1781º do CCiv. A consideração da reiteração da ausência de convivência durante o curso da acção é apenas complemento do que foi alegado como causa de pedir.

É que não há uma estanquicidade entre as alíneas a) e d) do artigo 1781º do CCiv. A separação de facto é uma circunstância objectiva da ruptura do casamento, mas só por si não evidencia a definitividade dessa ruptura. Essa definitividade pode resultar de dois modos: por ter perdurado por um ano consecutivo (al. a), ou, não tendo essa duração, pela verificação de outras circunstâncias factuais que objectivamente induzam a definitividade da recusa (al. d))».

No caso que nos ocupa, para além de outros factos, a A. alegara que desde 10 de Outubro de 2020 ela e o R. não mantinham qualquer contacto pessoal, nem sequer epistolar, não mais havendo comunhão de leito, mesa e habitação entre eles, não tendo a A. qualquer intenção de restabelecer a comunhão de vida com o R.. Veio a provar-se, efectivamente, que desde 10 de Outubro de 2020 e até à presente data A. e R. não mantêm qualquer contacto pessoal, não mais havendo comunhão de leito, mesa e habitação entre eles e que a A. não tem qualquer intenção de restabelecer a comunhão de vida com o R..

Aderindo ao entendimento expresso nos acórdãos que citámos, cremos que, atento o princípio da actualidade da decisão plasmado no nº 1 do art. 611 do CPC, deveria ser considerado na decisão sobre a matéria de facto e na posterior aplicação do direito o tempo supervenientemente decorrido desde a propositura da acção – a lei pretende que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.  Admite-se, pois, a possibilidade de ser complementado o prazo de direito substantivo de um ano com o tempo decorrido após a propositura da acção, com dispensa de invocação em articulado superveniente da manutenção da situação de facto alegada pela A. na p.i. ([16]). O complemento em causa não implica uma nova individualização, não correspondendo a uma alteração ou, mesmo, a uma ampliação da causa de pedir.

Que desde 10 de Outubro de 2020 a A. e o R. não mantêm qualquer contacto pessoal, não mais havendo comunhão de leito, mesa e habitação entre eles e que a A. não tem qualquer intenção de restabelecer a comunhão de vida com o R., correspondem a factos que integravam a causa de pedir desenhada pela A. na sua p.i.. A constatação de que tal sucede “até à presente data”, por si só, não implicará alteração ou ampliação da causa de pedir.

De qualquer modo, agora numa visão global, atentos os termos em que a acção foi proposta e foi julgada pela Relação, será que entre a causa de pedir e a causa de julgar inexiste coincidência?

Aceitando que se trata de matéria cujos limites não são fáceis de definir, na esteira dos acórdãos acima mencionados, entendemos que aquela coincidência se verifica.

A causa de pedir da presente acção é integrada pelas concretas circunstâncias de facto constitutivas da situação jurídica de que a A. pretendeu fazer emergir o seu direito a que fosse decretado o divórcio.

A decisão da Relação sustentou-se em parte desse conjunto de factos que a A. alegara e que ela reconduzira à alínea d) do art. 1781 do CC.

Todavia, como vimos, a qualificação jurídica dos factos é externa  ao conceito de causa de pedir, não estando, aliás, o tribunal vinculado às qualificações jurídicas realizadas pelas partes. A pretensão da A. era a de obtenção do divórcio, com fundamento nos factos alegados; ora, a diversa qualificação jurídica a que a Relação procedeu com base nos factos efectivamente apurados para acolher a pretensão da A. não é suficiente para que se conclua que se trata de uma diferente causa de pedir. Os factos que integram as situações descritas no art. 1781 do CC poderão corresponder a factos comuns a mais do que uma daquelas situações e as alíneas daquele artigo não delimitam situações estanques entre si.

Os factos alegados pela A., “complementados” consoante aludido, conduziram à constatação pelo tribunal da ruptura do casamento, ruptura em que a A. assentou o pedido de divórcio. Nesta perspectiva, entendemos que a causa de julgar não divergirá da causa de pedir.

Assim, é de manter a decisão recorrida.

                                                           *

V - Face ao exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

 Custas pelo recorrente.

                                                           *

Lisboa, 16 de Maio de 2023

Maria José Mouro (Relatora)                   
Amélia Alves Ribeiro
Graça Amaral



Sumário, art.o 663, n.o 7, do CPC.


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[1]              As palavras são de Rute Teixeira Pedro, em «Código Civil Anotado», vol. II, coordenação de Ana Prata, Almedina, 2017, pág. 685.
[2]              Conforme consta da própria petição.
[3]              Ver Amadeu Colaço, «Novo Regime do Divórcio», Almedina, págs.. 70-72.
[4] `            No «Código Civil Anotado» supra referido, págs.. 683-684.
[5]              Alberto dos Reis, «Código de Processo Civil Anotado», vol. V, págs.. 56-57.
[6]              Obra citada, vol. V, págs.. 92-94.
[7]              Princípio que se traduz, essencialmente, na liberdade de decisão sobre a instauração do processo, sobre a conformação do seu objecto e das partes na causa e sobre o termo do processo – Lebre de Freitas, «Introdução ao Processo Civil», Coimbra Editora, 3ª edição, págs.. 156-157.
[8]              Obra citada, vol. V, pág.. 84.
[9]              No «Código de Processo Civil Anotado», vol. II, Almedina, 3ª edição, pág.. 725.
[10]            Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt, proc. 3069/19.0T8VNG.P1.S1.
[11]            Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt, proc. 381/18.0T8ABT.E1.S1.
[12]            Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt, proc. 05B2266.
[13]            Numa diferente abordagem ver o antecedente acórdão do STJ, acórdão de 30-4-1997, publicado no BMJ nº 466, pág.. 472, considerando que o “complemento” do prazo da separação de facto, reflexo da demora processual, não integra a causa de pedir do divórcio.
[14]            Ver Lebre de Freitas, «Introdução ao Processo Civil», Coimbra Editora, 3ª edição, págs.. 65 e 71-72. Referindo, igualmente, que a doutrina mais recente tende a utilizar o conceito de fatispécie duma determinada norma substantiva, matizada com a ideia de que «o acontecimento da vida narrado pelo autor é susceptível de redução a um núcleo factual essencial, tipicamente previsto por uma ou mais normas materiais como causa do efeito pretendido» (pág.. 70).
[15]            Ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt, proc. 21852/15.4T8PRT.S1.
[16]            Admissão que se perspectiva, em termos pragmáticos, considerando a economia de processos e a salvaguarda dos interesse das partes (designadamente económicos e de resolução dos respectivos litígios) a mais adequada, embora com dificuldades que não se negam numa aplicação técnica mais formalista dos princípios processuais atinentes.