Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1431/20.5T8FAR.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA
CULPA DO LESADO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANOS PATRIMONIAIS
CONDUTOR
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. Ao analisar o nexo de causalidade, o Supremo Tribunal de Justiça está estritamente vinculado ao que decidiram as instâncias sobre a sua componente naturalística relativa aos factos e respectiva valoração probatória nos termos do disposto no art.º 674.º, n.º 3 e 682.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.

II. Não é uma evidência que, em abstracto, mais um ocupante seja causa adequada à projecção para fora do veículo eléctrico de transporte de passageiros no golf de algum dos seus ocupantes.

Decisão Texto Integral:
*


Acordam na 2ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

A aqui recorrente, AA, instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra SEGURADORAS UNIDAS, S.A., actual GENERALI - Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia global de 1.105.892,03€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação até integral pagamento com fundamento em ter sido projectada de um veículo de transporte no golfe, conduzido por um funcionário do Empreendimento Turístico ..., de que resultaram os danos que concretizou e quantificou, imputando à conduta do condutor do veículo segurado na ré, a culpa exclusiva na produção do acidente.

Por sentença proferida pelo Juiz ... do Juízo Central Cível ... do Tribunal Judicial da Comarca de Faro veio a acção a ser julgada parcialmente procedente e, em consequência condenada a ré a pagar à autora:

a)    a quantia de €4.193,48, a título de dano patrimonial, na vertente das despesas médicas, medicamentosas e de transportes, acrescida de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar da data da citação até integral pagamento;

b)    a quantia de €1.950,00, a título de dano patrimonial, na vertente de auxílio prestado por terceiro, acrescida de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar da data da citação até integral pagamento;

c)   a quantia que vier a ser liquidada, em sede de incidente de liquidação em execução de sentença, a título de dano patrimonial, na vertente de perda salariais, com o limite de €191.332,60;

d)    a quantia de €58.500,00, a título de dano patrimonial, na vertente de dano biológico, acrescida de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar do dia seguinte ao da prolação da sentença até integral pagamento;

e)   a quantia que vier a ser liquidada, em sede de incidente de liquidação em execução de sentença, a título de dano patrimonial futuro, na vertente de despesas com revisão da prótese e tratamentos que venha a necessitar, com o limite de €19.500,00;

f)   a quantia de €35.750,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar do dia seguinte ao da prolação da sentença até integral pagamento, absolvendo a ré do demais peticionado.

    Em recurso de apelação interposto pela autora o Tribunal da Relação de Évora, por acórdão proferido em 27 de Outubro de 2022 veio aquela decisão a ser revogada na parte em que considerou a autora parcialmente responsável, devendo a Seguradora, indemnizar a Autora, pela totalidade dos danos causados, tal como se mostram reconhecidos na sentença, condenando a Ré a pagar à autora:

a)  a quantia de €6.451,50, a título de dano patrimonial, na vertente das despesas médicas, medicamentosas e de transportes, acrescida de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar da data da citação até integral pagamento;

b)  a quantia de €3.000,00 a título de dano patrimonial, na vertente de auxílio prestado por terceiro, acrescida de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar da data da citação até integral pagamento;

c)  a quantia que vier a ser liquidada, em sede de incidente de liquidação em execução de sentença, a título de dano patrimonial, na vertente de perda salariais, com o limite de €294.357,86;

d) a quantia de €90.000,00, a título de dano patrimonial, na vertente de dano biológico, acrescida de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar do dia seguinte ao da prolação da sentença até integral pagamento;

e)  a quantia que vier a ser liquidada, em sede de incidente de liquidação em execução de sentença, a título de dano patrimonial futuro, na vertente de despesas com revisão da prótese e tratamentos que venha a necessitar, com o limite de €30.000,00;

f) a quantia de €55.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora, à taxa de juros civis, a contar do dia seguinte ao da prolação da sentença até integral pagamento, mantendo, no mais a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

   A ré pede revista deste acórdão com a apresentação de alegações que terminam com a seguintes conclusões:

1.  O veículo que transportou a autora era um veículo elétrico, modelo Club Car, o qual possuía um banco contínuo e dois encostos, com lotação para duas pessoas, o condutor (à esquerda) e um passageiro, não possuindo cintos de segurança.

2. No interior do veículo existia um quadro com regras de segurança redigidas em inglês, das quais se destaca a capacidade de ocupação, o aviso para a queda de passageiros e gravidade das lesões que pode causar, os cuidados a ter nas manobras a realizar e a não circulação em estradas públicas/via pública.

3. Ao lado do condutor e sentou-se a testemunha BB e pouco depois a autora sentou-se ao seu lado direito, a fim de serem transportados até ao primeiro buraco do campo de golfe.

4. Alguns metros após ter arrancado, o condutor fez uma flexão para o lado esquerdo, de modo a contornar a rotunda existente no percurso que dava acesso ao campo de golfe.

5. Em consequência desta flexão a autora e BB foram projetados para fora do veículo, em sentido oposto em relação ao sentido da marcha.

6. Logo apos, o condutor arrancou de forma repentina, acelerando e imprimindo velocidade ao veículo. (facto aditado no douto Acórdão recorrido)

7. Da matéria dada como provada, e no que concerne à forma como o acidente ocorreu e suas consequências, mormente os danos sofridos pela autora, conclui-se, contrariamente ao decidido pelo douto Tribunal recorrido que o comportamento da autora foi adequado e causal á produção desses mesmos danos.

8. Refere o douto tribunal recorrido, subscreve integralmente a fundamentação efetuada pelo tribunal a quo na parte em que afirmou entre outros que: Independentemente das versões contrárias apresentadas, uma coisa resulta como certa: nem o condutor foi obrigado a transportar os clientes (embora, atento as suas funções, se afigure normal que não contrariasse a vontade dos clientes do resort de luxo e que se dirigiam para o campo de golfe), nem a autora foi obrigada a entrar no veículo e ser transportada (esse transporte para o campo de golfe era apenas do interesse desta e do outro passageiro).

Outra coisa também parece indiscutível: independentemente de quem leu ou conhecia as regras de segurança afixadas no veículo de forma visível (fls.431/431vº), era notório que o espaço existente e os dois encostos apenas permitia que fossem transportados dois passageiros, o condutor e outra pessoa.

A que acresce o facto do veículo não possui cintos de segurança, o que aumenta o perigo de queda dos ocupantes, mesmo em condições normais (dois ocupantes), quanto mais com excesso de lotação (três passageiros).

Até a própria autora, apesar de afirmar que havia espaço suficiente no veículo (para os três adultos), acabou por afirmar que o veículo serve dois passageiros (condutor e passageiro), o que é incontornável, por mais voltas que se queira dar.

Assim, da conjugação destes meios de prova, ficou a convicção que, quer o condutor aceitou transportar duas pessoas, quando apenas podia transportar uma, quer a autora e o acompanhante aceitaram ser transportados, em conjunto com o condutor, quando o veículo apenas podia transportar um deles.

9. A autora sabia perfeitamente que o veículo apenas e tão só podia transportar 2 pessoas, e nele já estavam o condutor e o seu amigo, mas mesmo assim, aceitou o risco de ela mesmo também ser transportada, facto que originou que o veículo tivesse excesso de lotação.

10. O facto do veículo circular com excesso de lotação, o risco de circulação aumenta substancialmente.

11. O excesso de lotação, não poderá deixar de ser contributivo para a produção no sinistro, mormente a projeção da autora.

12. A velocidade máxima de circulação do veículo era entre os 19 Km/hora e os 24 Km/hora.

13. A projeção da autora para fora do veículo ocorreu alguns metros após ter arrancado, pelo que, tratando-se de um veículo elétrico, que circula a baixa velocidade como é que é possível que o mesmo circulasse a uma velocidade tal, que levasse a ocorrência do sinistro?

14. A autora não foi obrigada a entrar no veículo e ser transportada.

15. A própria recorrida referiu que sabia perfeitamente que o veículo apenas podia transportar duas pessoas, mas mesmo assim aceitou o risco de ser transportada naquelas circunstâncias, facto aliás mais notório ainda, por se tratar de uma golfista com experiência, ou seja, conhecedora melhor de que ninguém das características daquele tipo de veículo.

16. Se a autora não tivesse aceitado ser transportada naquelas circunstâncias, bem sabendo que o veículo apenas podia transportar duas pessoas, o acidente não teria ocorrido e a autora não teria sofrido qualquer dano.

17. O comportamento da autora foi por isso culposo e causal do acidente, e bem assim, da produção dos danos sofridos pela autora.

18. Não poderá a ora recorrente concordar com a decisão plasmada no douto acórdão recorrido no sentido de afirmar que o acidente se ficou a dever única e exclusivamente á conduta contravencional do condutor do veículo seguro na ora recorrente.

19. Assim, face ao supra exposto, pugna a ora recorrente pela repartição de culpas fixada na proporção de 65% para o condutor e de 35% para a recorrida.

20.  Violou o douto Acórdão recorrido o artigo 54ºnº 3 do Código da Estrada e artigos 483º e 570 º do Código Civil.

Termos que deve ser modificada o douto Acórdão, revogando-se aquele, substituindo- por outro cujo sentido mereça as contemplações contidas no objeto deste recurso.

 

A autora em suporte da decisão recorrida apresentou contra-alegações que encerram com as seguintes conclusões:

a) A..A Recorrente procura reverter uma decisão que se revela fundamentada com toda a clareza e escalpelizada quanto à questão do nexo de causalidade e adequação, não merecendo qualquer censura.

b) Decisão, a qual assentou, ademais, em factualidade modificada, fixada de forma definitiva ao nível da segunda instância.

c)  Factualidade modificada que a Recorrente reproduz de forma incorrecta nos pontos 7, 8 e 9 das suas alegações e 4 a 6 das suas conclusões, quer quanto à sua sequência cronológica, quer quanto ao conteúdo do facto provado 9.

d) Factualidade que urge repor correctamente:

“…

3 – No dia 05.04.2017, por volta das 08H00m, a autora e BB dirigiram-se à receção do Clube de Golfe do Empreendimento Turístico ..., pertencente à sociedade V..., S.A., sito na Avenida ..., ..., freguesia ....

4 – Onde reservaram um tee-time no campo de golfe de 18 buracos daquele Clube de Golfe, incluindo um veículo de golfe.

5 – Foi-lhes fornecido um veículo elétrico, modelo Club Car, com a matrícula JE.........., o qual possuía um banco contínuo e dois encostos, com lotação para duas pessoas, o condutor (à esquerda) e um passageiro, não possuindo cintos de segurança.

6 – No interior do veículo existia um quadro com regras de segurança redigidas em inglês, das quais se destaca a capacidade de ocupação, o aviso para a queda de passageiros e gravidade das lesões que pode causar, os cuidados a ter nas manobras a realizar e a não circulação em estradas públicas/via pública.

7– Um funcionário de ... acondicionou os sacos de golfe da autora e de BB no veículo de golfe, que se encontrava estacionado junto da receção do Clube de Golfe de ....

8 – De seguida ocupou o veículo, BB sentou-se ao seu lado esquerdo e pouco depois a autora sentou-se ao seu lado direito, a fim de serem transportados até ao primeiro buraco do campo de golfe.

8 – A (aditado) – Logo após, o condutor arrancou de forma repentina, acelerando e imprimindo velocidade ao veículo.

9 (modificado) – Alguns metros após ter arrancado, o condutor fez uma flexão apertada (sublinhado nosso) para o lado esquerdo, de modo a contornar a rotunda existente no percurso que dava acesso ao campo de golfe.

10 – Em consequência desta flexão a autora e BB foram projectados para fora do veículo, em sentido oposto em relação ao sentido da marcha.”

e)  Da factualidade modificada passou a resultar de forma inequívoca que a projecção da Recorrida e do Senhor BB surge associada ao facto de o condutor ter arrancado de forma súbita e repentina, acelerando e imprimindo velocidade ao veículo, descrevendo, alguns metros depois de ter arrancado, uma curva apertada para o lado esquerdo.

f) Só a velocidade imprimida e a manobra apertada à esquerda, desadequadas para o veículo e local, poderiam ter a força centrífuga necessária a projetar ambos os passageiros do veículo!

g) Da factualidade dada como provada não resulta qualquer elemento que pudesse permitir a conclusão de o facto de o veículo circular com três pessoas em vez de duas tivesse aumentado um qualquer risco.

h) Sendo certo que no assento corrido couberam, sentadas, as três pessoas em questão.

i) Não existindo no manual do proprietário qualquer limite de peso para o transporte dos passageiros.

j)  A Recorrente estriba-se em constantes, isto é, no transporte de 3 pessoas em vez de duas e na velocidade máxima de circulação do veículo eléctrico, alheando-se das variáveis, ou seja, da dinâmica concreta do acidente, do arranque, da velocidade/aceleração e da flexão.

k) A questão da velocidade, deve ser vista em função da manobra de arranque e de flexão e não em termos de velocidade absoluta ou máxima do veículo.

l) Arrumada e bem a questão da matéria de facto, o douto acórdão recorrido aplicou correctamente o artigo 563º do Código Civil que consagra a doutrina da causalidade adequada, conforme se reproduz infra:

m) Uma vez que não existe “… qualquer base factual comprovativa de que a circunstância de a Autora fazer a viagem juntamente com o condutor e outro passageiro, num veículo com lotação de dois lugares, mas no qual, aparentemente sem constrangimentos para a segurança da condução, se acomodaram três pessoas, tivesse concorrido para a produção dos danos que sofreu, não se pode afirmar de acordo com a teoria da causalidade adequada que a entrada voluntária da Autora no carro, já com a lotação preenchida, tivesse atuado como condição da produção do evento danos.

A verdade é que a sua atuação sempre deixaria de ser considerada como causa adequada do acidente quando para a sua produção concorreram decisivamente as circunstâncias que podem qualificar-se como anormais ou extraordinárias, decorrentes da atuação do condutor do veículo, essa sim, determinante do acidente.

De facto, quando se aprecia o comportamento do condutor do veículo, que trabalhava no Club Car do Resort de ..., conhecendo as características do veículo desde 2006, e que, ainda assim, não apenas aceitou transportar mais um passageiro, como ainda arrancou de forma repentina, acelerando e imprimindo velocidade ao veículo, e alguns metros depois, efetuou uma manobra apertada de flexão à esquerda, tudo ao arrepio do que consta bem salientado nas regras de segurança específicas deste tipo de veículo, que comandam que não se efetue um arranque repentino porque enquanto o pedal do acelerador está premido o veículo acelera até à velocidade máxima, e também que se façam as curvas lentamente e sem brusquidão para não haver risco de capotamento, vemos que apenas a este comportamento é atribuível a ocorrência do evento danoso.

n) Perante este quadro, cremos efetivamente ser possível concluir que foi o condutor do buggy, que tinha a direção efetiva do veículo, e só ele, que mediante a realização das indicadas manobras deu causa ao acidente; sem tal conduta ilícita e culposa a autora não teria sofrido quaisquer danos, porque ia a ser transportada no assento do veículo junto com o outro passageiro, sem que se tenha demonstrado que esse facto da lesada tenha contribuído para qualquer uma daquelas manobras do condutor.”

o) Sendo ainda certo que é a conduta do condutor que se encontra numa relação mais estreita com o resultado danoso, pelo que é a ele que deve ser imposta a responsabilidade pela ocorrência do mesmo.

p) No que diz respeito à violação do artº 54º, nº 3 do Código da Estrada, o responsável pela contra-ordenação é sempre o condutor do veículo, o qual tem o domínio efectivo do veículo e está obrigado a tomar todas as precauções para a segurança da circulação, não devendo, consequentemente, conduzir em circunstâncias que diminuam a segurança da circulação, para os utentes da via ou para as pessoas que transporte, como fez o condutor do buggy.

q) Condutor que, além do mais, violou com a sua conduta o artigo 24º, nº 1 do Código da Estrada, porquanto não adequou a velocidade à situação concreta.

r)  A posição adoptada no douto Acórdão recorrido é pacíficamente secundada ao nível da Jurisprudência.

s) O douto Acórdão recorrido aplicou correctamente o artigo 563º do Código Civil e artigos 24º e 54º, nº 3 do Código da Estrada, funcionando ainda a presunção do artigo 503º, nº 3 do Código Civil.

t)  Não se verifica qualquer violação dos artigos 54º, nº 3 do Código da Estrada, bem como dos artigos 483º e 570º do Código Civil.

u) Nos termos expostos, não restará outra alternativa a este Supremo Tribunal do que confirmar a douta decisão recorrida do Tribunal da Relação de Évora, concluindo que o acidente se ficou “a dever única e exclusivamente à conduta contravencional do condutor do veículo segurado na Recorrente que, sabendo que transportava mais um passageiro, que não podia arrancar bruscamente e fazer manobras repentinas, não regulou a velocidade a que seguia nem no arranque, nem especialmente quando efectuou a flexão apertada à esquerda, que motivou a projecção dos ocupantes do veículo.”

v) Devendo esta ser integralmente mantida, condenando a Recorrente a indemnizar a Recorrida pela totalidade (100%) dos danos causados e reconhecidos pela sentença proferida em primeira instância.

Nestes termos se requer a V. Exas. Se dignem declarar  o presente   recurso improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.


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I.2 – Questão prévia da admissibilidade do recurso

A presente revista tem por objecto um acórdão da Relação que revogou a decisão de 1.ª instância que conheceu do mérito da causa numa acção com valor de 1 105 992,03€, pelo que a revista é admissível por força do disposto no art.º 671º, nº 1 do Código de Processo Civil.


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I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:

1. O comportamento da autora causando a sobrelotação do veículo foi culposo e causal do acidente e da produção dos danos por ela sofridos ?


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I.4 - Os factos

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1. A autora nasceu no dia .../.../1956 e é consultora para planos de pensões e de complementos de reforma de empresas, trabalhando por conta própria para diversas empresas e respectivos funcionários.

2. No dia 02.04.2017 a autora viajou até ... para passar uma semana de férias de golfe no Algarve, com avião de regresso marcado para o dia 10.04.2017.

3. No dia 05.04.2017, por volta das 08h00m, a autora e BB dirigiram-se à receção do Clube de Golfe do Empreendimento Turístico ..., pertencente à sociedade V..., S.A, sito na Avenida ..., ..., freguesia ....

4. Onde reservaram um tee-time no campo de golfe de 18 buracos daquele Clube de Golfe, incluindo um veículo de golfe.

5. Foi-lhes fornecido um veículo eléctrico, modelo Club Car, com a matrícula JE.........., o qual possuía um banco contínuo e dois encostos, com lotação para duas pessoas, o condutor (à esquerda) e um passageiro, não possuindo cintos de segurança.

6. No interior do veículo existia um quadro com regras de segurança redigidas em inglês, das quais se destaca a capacidade de ocupação, o aviso para a queda de passageiros e gravidade das lesões que pode causar, os cuidados a ter nas manobras a realizar e a não circulação em estradas públicas/via pública.

7. Um funcionário de ... acondicionou os sacos de golfe da autora e de BB no veículo de golfe, que se encontrava estacionado junto da recepção do Clube de Golfe de ....

8. De seguida ocupou o veículo, BB sentou-se ao seu lado esquerdo e pouco depois a autora sentou-se ao seu lado direito, a fim de serem transportados até ao primeiro buraco do campo de golfe.

9. Alguns metros após ter arrancado o veículo, o condutor fez uma flexão para o lado esquerdo, de modo a contornar a rotunda existente no percurso que dava acesso ao campo de golfe.

10. Em consequência desta flexão a autora e BB foram projectados para fora do veículo, em sentido oposto em relação ao sentido da marcha.

11. Na sequência da projecção a autora caiu no piso asfáltico da Avenida ..., ficou ali imobilizada, com dores, sem ter perdido os sentidos.

12. Sofrendo fratura trocantérico diafisária do fémur direito.

13. Foi assistida no local, em primeiros socorros, pelo INEM e depois transportada ao Hospital ..., onde ficou internada.

14. Foi submetida, nesse mesmo dia, pelas 22h00m, a intervenção cirúrgica, com anestesia geral, com encavilhamento cervico diafisário por via aberta complementado com cerclage.

15. Desde a queda até à anestesia geral administrada a autora sofreu dores.

16. Foi-lhe administrada uma transfusão de sangue, devido a anemia pós-operatória.

17. Após a operação foi medicada contra a dor e teve alta hospitalar em 13.04.2017, com indicação de efectuar marcha com apoio de 2 canadianas e de consulta após 1 semana.

18.  Regressou à Alemanha em 15.04.2017 e foi seguida até final de Maio de 2017 no Centro de Ortopedia Médica, onde lhe foi diagnosticado desalinhamento rotacional após osteossíntese e descolamento do trocanter menor, com prognóstico de processo de cura prolongado.

19. Por prescrição médica realizou 30 sessões de fisioterapia entre Abril e Outubro de 2017 e 20 sessões de drenagem linfática ou massagem.

20. Em 19.04.2017 começou a ser seguida na clínica ..., mantendo observação regular, onde foi diagnosticado desvio rotacional e alongamento do membro, sendo proposta revisão cirúrgica.

21. A qual foi efectuada em 22.07.2017, com redução aberta e nova osteossíntese com placa e cerclage auxiliar e cavilha cefalo medular, com extração de material anteriormente aplicado.

22.  O que implicou osteotomia do fémur direito para realinhamento do mesmo.

23.  Desde a data do acidente até esta intervenção cirúrgica deslocou-se com ajuda de 2 canadianas e com dor moderada.

24. Iniciou fisioterapia, ginástica de reabilitação e drenagem linfática manual após a cirurgia, o que perdurou até Setembro de 2017.

25. Iniciou marcha com carga total em 03.08.2017 e retomou o trabalho em 22.08.2017.

26. Em Fevereiro de 2018 teria calo ósseo de boa consistência e foi recomendado retirar material de osteossíntese 12 a 18 meses após cirurgia.

27. Como sequelas do acidente, foram, em Fevereiro de 2018, diagnosticadas à autora perturbação da marcha/claudicação, alongamento da perna direita em cerca de 6mm, não cicatrização do trocanter menor e alterações na articulação da anca direita.

28. Entre 06.09.2017 e meados de Janeiro de 2019 utilizou as canadianas de forma intermitente e quando se deslocava sem este apoio tinha de medicar-se contra a dor.

29.  Em 16.01.2019 submeteu-se a intervenção cirúrgica no ..., onde lhe foram removidas a haste intramedular, a placa auxiliar e a cerclage.

30. Manteve internamento até 20.01.2019 e voltou a sofrer dores e dificuldades em andar e estar sentada, com quadro clínico insidioso e progressivo com dor e limitação funcional da mobilidade da anca direita com caracter moderado inicialmente e agravamento progressivo.

31. Tinha dificuldade em conduzir e tomou medicação para alívio da dor, nomeadamente analgésicos opioides.

32.  Foi internada no ..., em 07.08.2019, com diagnóstico de coxartrose pós-traumática e submetida a intervenção cirúrgica para colocação de uma prótese total da anca direita.

33. Teve alta do internamento em 14.08.2019, sem complicações intra ou pós-operatórias.

34. Sofreu angústia antes da intervenção cirúrgica e no período pós-operatório.

35.  Iniciou fisioterapia quando internada e continuou, após alta, em clínica de reabilitação, em regime diário, entre 23.08.2019 e 19.09.2019 e depois desta data com frequência semanal reduzida.

36.  Em finais de 2019 foi estimado um grau de invalidez pelo Professor Dr. CC em 30%.

37.  Teve processo de adaptação à artroplastia total da anca.

38. Antes do acidente era pessoa saudável, activa e alegre, não tomava medicação, não tinha limitações físicas ou restrições de mobilidade.

39.  Praticava ténis, golfe e esqui, o que deixou de fazer como antes.

40.  A autora teve sofrimento, nervosismo, insónias e medo de não vir a recuperar a sua vida normal.

41.  Sentindo-se inferiorizada e com perda de auto-estima.

42. A actividade sexual era e é para a autora importante, daí retirando grande equilíbrio emocional e psicológico e alegria de viver.

43. Continua a sentir dores na coxa e anca, na abertura máxima das coxas e em movimentos de rotação.

44.  A mobilidade da anca direita actual ficou reduzida e afecta a actividade sexual da autora.

45. Até Dezembro de 2020 a autora frequentou tratamentos de fisioterapia e drenagem linfática manual.

46.  Em virtude do internamento e cirurgia a autora não utilizou o bilhete de avião de regresso a ....

47. E teve de adquirir bilhete de avião para regresso no dia 15.04.2017, pelo qual pagou €407,85.

48.  Em táxis do aeroporto ... até casa pagou €70,00 e de casa até ao aeroporto €65,00 para levantar o seu carro com ajuda de outra pessoa.

49.  Em viagens de táxi para assistir a consultas de médico ortopedista ou sessões de fisioterapia e regresso a casa, nos dias 19.4.2017 e 09.05.2017, pagou €26,00, €30,00, €16,00 e 16,00.

50. A autora celebrou contrato de seguro de saúde junto da HUK-Coburg Krankenversicherung AG, com o n.º300/60..., nos termos do qual esta se obrigou a reembolsar as despesas médicas, hospitalares, medicamentosas, de tratamentos realizados e de transportes e meios auxiliares (cf. doc. de fls.458/463).

51. A empresa Huk Coburg Ag reembolsou a autora AA de parte dessas despesas hospitalares, de internamento, medicamentos, exames, tratamentos, consultas médicas, transporte, fisioterapia, quiroprática, imunoterapia, material de implante, bloco operatório, relacionadas com o tratamento das lesões sofridas pela autora, num total de € 27.287,54.

52. Dessas despesas não reembolsadas a autora pagou um total de €5.820,60 e com transportes pagou €630,85.

53. A autora pagou com a elaboração dos relatórios de avaliação de dano corporal e de incapacidade em direito do trabalho as quantias de €750,00 e de €400,00.

54.  E pagou pelos serviços de interprete aquando da sua observação pelo perito médico legal Dr. DD a quantia de €147,60 e a quantia de €361,62 pela tradução dos relatórios para a língua alemã.

55.  Após internamentos e durante o tempo de recuperação em que permaneceu em casa a autora esteve dependente da ajuda da irmã e de uma amiga para a execução das tarefas domésticas e do dia-a-dia, como fazer compras, vestir, alimentar e tratar da sua higiene.

56.  A autora pagou à irmã a quantia de €500,00 por cada semana em que esta a auxiliou, no total de 6 semanas.

57.  No ano de 2016 a autora apresentou um rendimento anual ilíquido da actividade de €174.261,00, no ano de 2017 de €103.806,00, no ano de 2018 de €213.454,00 e no ano de 2019 de €153.024,00.

58. A autora imprimiu esforço para manter a actividade profissional, trabalhando com dores e com limitação funcional progressiva com agravamento gradual e implicação na mobilidade.

59. Levando a reduzir ou deixar determinadas actividades profissionais durante o período de incapacidade temporária parcial.

60. Realizando inúmeros contactos telefónicos, porque impossibilitada de se deslocar, com frequência, às instalações dos clientes.

61.  A autora empregou mais uma pessoa para colaborar na actividade em Setembro de 2018 e outra em Janeiro de 2019, dando-lhes formação durante várias semanas.

62. A actividade da autora na área de consultadoria e mediação cobre toda a área geográfica da Alemanha.

63. Desde o início que todos os clientes são em exclusivo angariados pela autora.

64.  A consultadoria e mediação de planos de reforma complementares implica longos prazos de preparação junto dos potenciais clientes até culminar na celebração de um contrato de mediação e a implementação de planos de reforma numa determinada empresa.

65.  Atendendo a esta especialidade a autora investe tempo na angariação de novos clientes e o tempo remanescente na assistência e manutenção da carteira de clientes existentes.

66. No âmbito da actividade de aquisição de novos clientes, a autora organizava e realizava sessões e seminários de informação nas instalações dos potenciais clientes.

67.  A autora deixou de organizar e realizar eventos para angariação de clientela, uma vez que tinha dificuldades nas deslocações e sentia-se desmotivada.

68.  O que levou a que deixasse de celebrar negócios com novos clientes e outros com clientes já existentes.

69. A autora apresenta as seguintes alterações:

(A) Postura, deslocamentos e transferências: Dificuldade da marcha prolongada e sedestação prolongada;

(B) Sexualidade e procriação: Dificuldade de ordem posicional nomeadamente por limitação da abdução da coxa direita;

(C) Fenómenos dolorosos: Dor residual da anca e coxa direita de carácter mecânico e na região sacro coccígeo;

(0) Outras queixas a nível funcional: Dificuldade na mobilização da anca direita.

70. A nível situacional, apresenta:

(1) Atos da vida diária: dificuldade a sair do carro e no vestuário nomeadamente nos agachamentos;

(2) Atos da vida pessoal, social e familiar: perturbações de ordem pessoal e familiar relacionáveis com dificuldades do foro sexual;

(3) Vida profissional ou de formação: dificuldade em estar sentada prolongada com necessidade de aumento de posturas.

71. A autora é destra e apresenta marcha claudicante, sem recurso a ajudas técnicas.

72. Apresenta, como sequelas:

(a) Membro inferior direito: cicatrizes operatórias da face externa da anca com 32 cm, outra mais anterior com 13 cm e distal da face externa com 6 cm e outra distal com 3 cm; dismetria aparente de 1,5 cm sem amiotrofia com ligeira dismorfia pericicatricial deprimida; limitação da mobilidade da anca direita com flexão 90° a 100°; rotações de 20° a 30° e adução normal e abdução de 20 a 30°.

73. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável no dia 07.10.2019.

74. O Período de Défice Funcional Temporário Total foi fixado em 163 (cento e sessenta e três) dias (períodos de internamento e/ou repouso absoluto entre os dias 05.04.2017 a 29.07.2017, de 16.01.2019 a 31.01.2019 e 06.08.2019 a 05.09.2019.

75.  O Período de Défice Funcional Temporário Parcial foi fixado em 753 (setecentos e cinquenta e três) dias (entre os dias 30.07.2017 a 15.01.2019, de 01.02.2019 a 05.08.2019 e de 06.09.2019 a 07.10.2019).

76.  O período de Repercussão Temporária na Actividade Profissional Total foi fixado num período de 235 (duzentos e trinta e cinco) dias (entre os dias 05.04.2017 e 22.08.2017, de 16.01.2019 a 16.02.2019 e de 06.08.2019 a 07.10.2019).

77. O período de Repercussão Temporária na Actividade Profissional Parcial foi fixado num período de 681 (seiscentos e oitenta e um) dias (entre os dias 23.08.2017 e 15.01.2019 e de 17.02.2019 a 05.08.2019).

78. O quantum doloris foi fixado no grau 5/7.

79.  O Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica foi fixado em 13 pontos, acrescido de dano futuro.

80.  Na Repercussão Permanente da Actividade Profissional foi considerado que as sequelas são compatíveis com o exercício da actividade habitual mas implicam esforços suplementares.

81.  O Dano Estético Permanente foi fixado no grau 4/7.

82.  A Repercussão Permanente nas Actividades Desportivas e de Lazer foi fixada no grau 5/7.

83. A Repercussão Permanente na Actividade Sexual foi fixada no grau 3/7.

84. É perspectivada a existência de dano futuro, considerando o agravamento das sequelas que constitui uma previsão fisiopatologicamente certa e segura, com potencial revisão de artroplastia total da anca.

85. É considerada a necessidade de ajudas técnicas permanentes, designadamente ajudas medicamentosas (analgésicos) e tratamentos médicos regulares (fisioterapia regular e periódica - 20 sessões por ano).

86. Por carta dirigida à ré, datada de 22.05.2018, a autora reclamou o ressarcimento dos prejuízos causados com o acidente (cf. doc. de fls.119).

87. Por e-mail, datado de 28.06.2018, a ré respondeu propondo assunção da responsabilidade na medida de 50% (cf. doc. de fls.140vº).

88. A autora não aceitou esta proposta.

89. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo encontrava-se transferida para a ré através da apólice n.º ...50, sendo o tomador do seguro e proprietário do veículo a sociedade comercial denominada V..., S.A. (cf. doc. de fls.31/32vº)».

Foram considerados não provados os seguintes factos:

a) O condutor do veículo de golfe convidou a autora a subir no veículo;

b)O condutor do veículo de golfe alertou a autora que o veículo tinha como lotação máxima duas pessoas;

c)  O condutor do veículo arrancou, de imediato e de forma abrupta, imprimindo-lhe velocidade, mal a autora e acompanhante tinham subido e sentado;

d)A autora foi projectada na sequência da manobra de arranque;

e)  A autora teve consulta médica em 06.09.2017 e teve período de internamento entre 16 e 20.01.2019;

f)  A autora sofre dores na região dorsal, no joelho e pé do membro inferior esquerdo, por

g)Defesa e sobrecarga do membro colateral;

h) Devido à não cicatrização óssea (parcial) do trocânter major e minor do membro inferior direito, sofre de redução da força muscular na anca direita;

i) Desde a data do acidente a autora deixou de ter vida sexual devido às dores que sente na zona da anca e coxa que tornam impossível o contacto sexual.


*

II - Fundamentação

1. A sobrelotação do veículo como causa do acidente e da produção dos danos

Em discussão no presente recurso encontra-se exclusivamente a questão de apurar se o comportamento da autora de entrar no veículo que a transportou aumentando o número de ocupantes que estava previsto serem por ele transportados foi causa concorrente adequada do acidente e dos danos que aquele provocou.

O tribunal de 1.ª instância considerou que, “se a autora não tivesse aceitado ser transportada naquelas circunstâncias, bem sabendo que o veículo apenas podia transportar duas pessoas, o acidente não teria ocorrido”.

Por sua vez o tribunal recorrido, após ter introduzido algumas alterações na matéria de facto provada – que como referiu vem perspectivada de forma entrelaçada com a determinação de qual o comportamento que foi causal do acidente: se só a autuação do condutor, ou se também a da autora - concluiu que diversamente, nos seguintes termos:

(…)No caso vertente, a questão que o recurso convoca, é pois, a de saber se aquela comprovada conduta da autora pode ou não, no concreto circunstancialismo de facto em apreço, considerar-se como sendo, ainda que parcialmente, causal do acidente e imputável à mesma.

Para o efeito, importa ainda ter presente o artigo 563.º do CC que, sob a epígrafe “nexo de causalidade”, dispõe que “a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.

As partes dissentem quanto à medida em que tais danos são exclusivamente de imputar à conduta do condutor do veículo ou foram também causados pela conduta da lesada, ou seja, em que medida foi a actuação desta foi também causa do resultado.

(…) Revertendo estas considerações ao caso em presença, verificamos que da factualidade provada apenas consta que, sendo a lotação do veículo de duas pessoas, o condutor (à esquerda) e um passageiro, no caso, para além deles, sentou-se ainda do lado direito deste, a autora. Nada mais consta na matéria de facto que respalde a influência da sobrelotação do veículo na ocorrência do evento.

(…) Revertendo estas considerações para a concreta situação ajuizada não há qualquer base factual comprovativa de que a circunstância de a Autora fazer a viagem juntamente com o condutor e outro passageiro, num veículo com lotação de dois lugares, mas no qual, aparentemente sem constrangimentos para a segurança da condução, se acomodaram três pessoas, tivesse concorrido para a produção dos danos que sofreu.

      Ao invés, tendo presente a acima referida teoria da adequação, ainda que a entrada voluntária da Autora no carro, já com a lotação preenchida, tivesse actuado como condição da produção do evento danos, a verdade é que a sua actuação sempre deixaria de ser considerada como causa adequada do acidente quando para a sua produção concorreram decisivamente as circunstâncias que podem qualificar-se como anormais ou extraordinárias, decorrentes da actuação do condutor do veículo, essa sim, determinante do acidente.

      De facto, quando se aprecia o comportamento do condutor do veículo, que trabalhava no Club Car do Resort de ..., conhecendo as características do veículo desde 2006, e que, ainda assim, não apenas aceitou transportar mais um passageiro, como ainda arrancou de forma repentina, acelerando e imprimindo velocidade ao veículo, e alguns metros depois, efectuou uma manobra apertada de flexão à esquerda, tudo ao arrepio do que consta bem salientado nas regras de segurança específicas deste tipo de veículo, que comandam que não se efectue um arranque repentino porque enquanto o pedal do acelerador está premido o veículo acelera até à velocidade máxima, e também que se façam as curvas lentamente e sem brusquidão para não haver risco de capotamento, vemos que apenas a este comportamento é atribuível a ocorrência do evento danoso.

      Perante este quadro, cremos efectivamente ser possível concluir que foi o condutor do buggy, que tinha a direcção efectiva do veículo, e só ele, que mediante a realização das indicadas manobras deu causa ao acidente; sem tal conduta ilícita e culposa a autora não teria sofrido quaisquer danos, porque ia a ser transportada no assento do veículo junto com o outro passageiro, sem que se tenha demonstrado que esse facto da lesada tenha contribuído para qualquer uma daquelas manobras do condutor. Conforme bem notou a Apelante, “no que diz respeito à violação do artigo 54º, nº 3 do Código da Estrada, o responsável pela contra-ordenação sempre é o condutor do veículo, o qual tem o domínio efectivo do veículo e está obrigado a tomar todas as precauções para a segurança da circulação, não devendo, consequentemente, conduzir em circunstâncias que diminuam a segurança da circulação, para os utentes da via ou para as pessoas que transporte”, como fez este condutor.

Para além deste preceito atinente à lotação do veículo e, a nosso ver, mais determinantemente neste caso, estabelece ainda o artigo 24.° do Código da Estrada que “O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.

    A questão que se coloca no presente recurso de revista é a de saber se os danos sofridos pela autora com o acidente descrito nos autos devem ser exclusivamente imputados ao condutor do veículo, ou foram também causados pela conduta da lesada, com vista à aplicação do disposto no o art. 570.º, n.º 1, do Código Civil  que determina que “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.

Não há dúvida ter existido por parte da autora uma conduta violadora do disposto no art.º 54.º, n.º 3, do Código da Estrada “É proibido o transporte de pessoas em número que exceda a lotação do veículo ou de modo a comprometer a sua segurança ou a segurança da condução” quando esta aceitou ser transportada num veículo que já tinha o número máximo de ocupantes, como ela efectivamente sabia. Mas a aplicação do disposto no art.º 570.º do código civil, como tem vindo a ser entendido de forma que diríamos unânime pelo Supremo Tribunal de Justiça, exige não só que a conduta do lesado seja subjectivamente censurável em termos de culpa, como aqui acontece, mas que essa actuação culposa tenha sido uma das causas do dano, no sentido indicado por Antunes Varela in “Das Obrigações em Geral”, volume I, Almedina, Coimbra, 4ª edição, I, p.824: “a expressão “culpa” do lesado inserida no preceito assume um sentido impróprio pois não pressupõe facto ilícito e danoso (relativamente a outro), querendo abarcar as situações em que o acto do lesado tenha sido concausa do dano, ainda que não tenha natureza ilícita ou corresponda à violação de um dever, mas que traduza um comportamento censurável

No caso sub judice importaria necessariamente que essa conduta contra-ordenacional possa ser tida como causal do acidente, mesmo na medida proposta pela recorrente de 35% para a autora recorrida e 65% para o condutor do veículo.

Ao analisar o nexo de causalidade, o Supremo Tribunal de Justiça está estritamente vinculado ao que decidiram as instâncias sobre a sua componente naturalística relativa aos factos e respectiva valoração probatória – factos que revelam a dinâmica do acidente como condição dos resultados por eles provocados-, como resulta da conjugação do disposto no art.º 674.º, n.º 3 e 682.º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil. Apenas a determinação da sua vertente normativa, isto é, definir se no plano abstracto aqueles factos podem ser tidos como causa adequada daqueles resultados pode ser objecto de revista.

Os factos mais relevantes para determinar, de acordo com a matéria de facto provada a causa do acidente e dos danos sofridos pela A. são:

5 - Foi-lhes fornecido um veículo eléctrico, modelo Club Car, com a matrícula JE .........., o qual possuía um banco contínuo e dois encostos, com lotação para duas pessoas, o condutor (à esquerda) e um passageiro, não possuindo cintos de segurança.

6 - No interior do veículo existia um quadro com regras de segurança redigidas em inglês, das quais se destaca a capacidade de ocupação, o aviso para a queda de passageiros e gravidade das lesões que pode causar, os cuidados a ter nas manobras a realizar e a não circulação em estradas públicas/via pública.

7 - Um funcionário de ... acondicionou os sacos de golfe da autora e de BB no veículo de golfe, que se encontrava estacionado junto da recepção do Clube de Golfe de ....

8 - De seguida ocupou o veículo, BB sentou-se ao seu lado esquerdo e pouco depois a autora sentou-se ao seu lado direito, a fim de serem transportados até ao primeiro buraco do campo de golfe.

8-A- Logo após o condutor arrancou de forma repentina, acelerando e imprimindo velocidade ao veículo.

9 - Alguns metros após ter arrancado, o condutor fez uma flexão apertada para o lado esquerdo, de modo a contornar a rotunda existente no percurso que dava acesso ao campo de golfe

10 - Em consequência desta flexão a autora e BB foram projectados para fora do veículo, em sentido oposto em relação ao sentido da marcha.

     Da análise destes factos só pode concluir-se o que concluiu o tribunal recorrido: que a única causa adequada do acidente foi ter sido efectuada uma flexão apertada para o lado esquerdo, logo após o arranque do veículo de forma repentina, acelerando e imprimindo velocidade ao veículo.

     Aquilo que a recorrente alega como se fosse um facto notório – ter sido a sobrelotação do veículo uma causa concorrente do acidente não tem qualquer suporte na matéria de facto. Não é uma evidência que, em abstracto, mais um ocupante seja causa adequada à projecção para fora do veículo dos passageiros. Nada se provou sobre não caberem os passageiros no banco, não se terem apoiado bem, etc.

     O que não invalida que nas situações em que a sobrelotação produza uma alteração significativa da massa total em movimento – veículo + carga + ocupantes – e da sua distribuição no todo, cause significativa alteração do centro gravitacional, e, num veículo aberto, com banco contínuo e dois encostos, não possuindo cintos de segurança, possa ser causa de projecção para fora do veículo, sobretudo quando em movimento descreve uma trajectória circular em que a um tempo actuam as forças centrifugas, centrípetas e de atrito. Mas não temos qualquer dado sobre esses diversos factores que poderiam ter concorrido para a produção dos danos para além da aceleração do veículo e a descrição da curva para a esquerda com a projecção dos ocupantes.

     A falta de elementos para poder afirmar que a sobrelotação foi causa adequada da projecção da autora para fora do veículo, estende-se também a que seja causa adequada dos danos que essa projecção veio a produzir na autora.

O acórdão recorrido não enferma do erro de julgamento que lhe vinha apontado, o que determina a sua confirmação.


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III – Deliberação


Pelo exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


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Lisboa, 27 de Abril de 2023

Ana Paula Lobo (Relatora)

Afonso Henrique Cabral Ferreira

Isabel Maria Manso Salgado