Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2177/13.6TVLSB.L1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: TÉCNICO OFICIAL DE CONTAS
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
Data do Acordão: 02/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS - ADMINISTRAÇÃO E FISCALIZAÇÃO / DEVER DE APRESENTAÇÃO DE CONTAS DO EXERCÍCIO ANUAL.
DIREITO TRIBUTÁRIO - RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA / RESPONSABILIDADE DOS MEMBROS DE CORPOS SOCIAIS / RESPONSABILIDADE DOS TÉCNICOS OFICIAIS DE CONTAS.
DIREITO DOS SEGUROS - SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL.
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / FALTA DE CUMPRIMENTO IMPUTÁVEL AO DEVEDOR / PRESUNÇÃO DE CULPA.
Doutrina:
- Maria Madalena Afra Rosa, A Responsabilidade Penal do Revisor Oficial de Contas e do Técnico Oficial de Contas no Contexto Empresarial, ed. U. Católica, 2014, 9.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 799.º, N.º1.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGO 65.º.
CÓDIGO DEONTOLÓGICO DOS TÉCNICOS OFICIAIS DE CONTAS: - ARTIGO 5.º, N.º1.
DECRETO-LEI N.º 452/99, DE 5-11: - ARTIGO 52.º, N.º4.
ESTATUTO DA ORDEM DOS TÉCNICOS OFICIAIS DE CONTAS: – ARTIGOS 3.º, 5.º, 6.º, 52.º, N.º 1.
IMPOSTO SOBRE O VALOR ACRESCENTADO (IVA), TRIBUTAÇÃO CUJO REGIME LEGAL CONSTA DO DECRETO-LEI N.º 394-B/84, SUCESSIVAMENTE ACTUALIZADO PELOS DECRETOS-LEI N.ºS 102/2008, DE 20 DE JUNHO, 290/92, DE 28 DE DEZEMBRO, E PELA LEI N.º 36/2016, DE 21 DE NOVEMBRO, E, NAS RELAÇÕES INTERCOMUNITÁRIAS COM A ESPANHA, CUMPRE ATENTAR NAS DIRECTIVAS, DO CONSELHO, 2008/8/CE, DE 12 DE FEVEREIRO DE 2008 (QUE ALTEROU A DIRECTIVA 2006/112/10/CE DE 28.11.2006) E 2008/9/CE, DE 12 DE FEVEREIRO DE 2008.
LEI TRIBUTÁRIA (DECRETO-LEI N.º 398/98, DE 17 DE DEZEMBRO): - ARTIGO 24.º (COM AS ALTERAÇÕES DAS LEIS 30-G/2000 DE 29 DE DEZEMBRO E 60-A/2005, DE 30 DE DEZEMBRO).
REGIME JURÍDICO DOS TÉCNICOS OFICIAIS DE CONTAS DECRETO-LEI N.º 310/2009 DE 26 DE OUTUBRO, QUE, ALTERANDO O DECRETO-LEI N.º 452/99 DE 5 DE NOVEMBRO, CRIOU A ORDEM DOS TÉCNICOS OFICIAIS DE CONTAS E APROVOU O CÓDIGO DEONTOLÓGICO DOS T.O.C..
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 21/02/2008, PROCESSO N.º 08B271.
-DE 9/10/2008, PROCESSO N.º 08B2089.
-DE 21/07/2011, PROCESSO N.º 1065/06.7TPESP.P1.S1.
Sumário :
1) O regime jurídico – funcional dos Técnicos Oficiais de Contas consta actualmente do Decreto-Lei n.º 310/2009 de 26 de Outubro, que, alterando o Decreto-Lei n.º 452/99 de 5 de Novembro, criou a Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas e aprovou o Código Deontológico dos TOC.

2) As respectivas funções surgem elencadas no artigo 6.º daquele diploma, destacando-se a organização, planificação, coordenação e execução da contabilidade das entidades que a devam ter organizada, assumindo a responsabilidade por a mesma se apresentar regular “maxime” em termos contabilísticos e fiscais.

3) Por serem responsáveis por todos os actos praticados no exercício de funções devem subscrever um seguro de responsabilidade civil (conjugação dos artigos 5.º n.º 1 do Código Deontológico e 52.º n.º 1 do EOTOC).

4) Nas áreas referidas em 2 também exercem consultadoria devendo ainda subscrever em conjunto com os legais representantes das entidades que controlam declarações fiscais e elementos de demonstração financeira.

5) A Lei Tributária (Decreto-Lei n.º 398/98. De 17 de Dezembro) no artigo 24.º n.ºs 1 e 3 (com as alterações das Leis 30-G/2000 de 29 de Dezembro e 60-A/2005, de 30 de Dezembro) responsabiliza os TOC pelas dívidas tributárias se tiverem violado deveres de assunção de responsabilidade nas áreas contabilística ou fiscal.

6) A doutrina do preceito aplica-se à relação entre o TOC e a entidade cuja contabilidade e deveres fiscais controla ou para a qual trabalha.

7) O conteúdo funcional dos TOC abrange o pedido de reembolso do IVA, designadamente se sempre o formulou com o acordo, e por determinação do respectivo credor, perante o qual também está vinculado ao dever de informação.

8) Caso tenha deixado de o formular por negligência, e por isso dê origem à caducidade do direito, é contratualmente responsável.

9) Daí que o respectivo seguro deva cobrir esse dano por se encontrarem presentes os requisitos da responsabilidade contratual.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

A “AA, Limitada” e “BB, SA”, intentaram acção, com processo comum contra “SEGURO CC, SA”.

Pediram a condenação da Ré a pagar-lhes:

- à A. “AA” a quantia de Euros 50.000;

- à A. “BB” a quantia de Euros 35.338,83;

acrescidas de custas de procuradoria e de todas as restantes despesas legais.

Alegaram, em síntese, que são sociedades comerciais com sede em Portugal, revendendo a empresas sediadas em Espanha compostos de policloreto de vinil, por elas adquiridos, também em Espanha, à sociedade “DD S.A.”, operações sujeitas a IVA, facturado às AA, e por elas pago.

Alegam ainda que, de acordo com as normas comunitárias têm direito ao reembolso do IVA, mediante pedido a apresentar às autoridades tributárias espanholas, que se inicia no trimestre seguinte àquele em que ocorreu o pagamento e termina a 30 de Setembro do ano seguinte; que ambas decidiram usar desta faculdade, o que era função dos seus TOCs, intervenientes nos autos, desde sempre exercidas por eles sem qualquer problema; que, no ano de 2010 a 1º A. tinha direito ao reembolso de IVA, relativo ao 4º Trimestre de 2010 no valor de € 181.748,80, incumbindo à Dr. EE a apresentação desse requerimento junto da AT Espanhola, o que esta, por lapso, não fez, nem informou a sua entidade patronal da necessidade de apresentação, ou a alertou para a existência de prazo para o efeito, só se apercebendo dessa situação quando, ao receber o deferimento dos pedidos de reembolso do 3º trimestre de 2010 e do l° de 2011, verificou a sua omissão; que a referida TOC intentou o pedido em Janeiro de 2012, recusado por extemporaneidade por aquela Autoridade Tributária.

Alega a 2º A. que tinha direito ao reembolso de IVA no 3º trimestre de 2010, no montante de € 5.570,31 e no 4º trimestre no montante de € 29.768,52 e que o seu TOC Dr. FF igualmente não apresentou esse pedido à AT Espanhola, igualmente nada tendo informado a sua entidade patronal, pelo que verificada essa omissão, em Janeiro de 2012, foi este indeferido, por extemporaneidade, por aquela Autoridade Espanhola.

Por último, alegam que o comportamento dos referidos TOCs constitui violação dos seus deveres deontológicos, pelo que se constituíram na obrigação de indemnizar as AA., transferida essa responsabilidade para a R.; que, participado o sinistro, recusou o seu ressarcimento, por entender que as condutas não se integravam nas funções cometidas aos TOCs.

*

A Ré contestou por excepção, alegando a existência de litisconsórcio necessário entre a seguradora e os TOC devedores principais.

Alegou, ainda, que os actos praticados pelos TOC estão excluídos do âmbito da cobertura do seguro, uma vez que a elaboração e entrega do pedido de reembolso do IVA não é uma obrigação dos TOC, (não requerendo sequer a intervenção de qualquer TOC), sendo uma faculdade cometida aos seus órgãos de gestão, não tendo sido comunicado aos TOC a necessidade de requerer este reembolso.

Mais alegou que as AA. não comprovam que teriam direito ao reembolso de IVA e que, em todo o caso, os factos alegados poderiam consubstanciar um acto doloso dos TOC pelo que nunca se enquadrariam nas coberturas da apólice; que desconhece se estes TOC têm a sua inscrição em vigor, condição essencial para poder ser accionado o seguro, que e a inexistência de contrato escrito de prestação de serviços, determina a sua nulidade.

Deduziu ainda o pedido de intervenção principal provocada de EE e FF, por serem os TOC alegadamente responsáveis pela contabilidade das AA. e beneficiários do seguro.

Respondendo, as AA. alegaram que podem demandar directamente a seguradora, uma vez que se trata de seguro obrigatório de responsabilidade civil para o exercício da actividade dos TOC; que os referidos TOC estão ligados por contrato de trabalho que não depende de forma escrita e que a R. bem sabe que os TOC têm a sua inscrição em vigor, razão pela qual pediu a sua condenação em multa e indemnização como litigante de má fé.

A intervenção principal provocada (de EE e FF) foi admitida, contestando os chamados, invocando a incompetência em razão da matéria e do território, alegando ser competente o Tribunal de Trabalho de …, mais reconhecendo que, por lapso, não procederam à entrega das referidas declarações, devendo a R. seguradora proceder ao pagamento deste montante, deduzido do valor da franquia.

Foi indeferida a excepção de incompetência material suscitada.

A final foi proferida a sentença absolvendo os Réus do pedido e não condenando a Ré Seguradora como litigante de má fé.

As Autoras apelaram para a Relação de … que, dando provimento à apelação condenou a Ré “SEGURO CC, SA” a pagar à Autora “AA, Limitada” a quantia de € 50.000,00 e à Autora “BB, SA”, a quantia de € 35.338,83, “acrescidos de juros legais”.

A Ré pede revista.

E assim conclui, no essencial, a sua alegação:

I. A questão objecto do presente recurso, que também já foi objecto de discussão em sede de 1ª instância bem como na Apelação, reside em saber se a elaboração do pedido de reembolso de IVA à Autoridade Tributária estrangeira, se inclui nos deveres e funções legalmente atribuídas aos Técnicos Oficiais de Contas.

II.     Em suma, e em sede de 1ª instância, entendeu-se que o pedido de reembolso de IVA é uma faculdade conferida ao contribuinte, no âmbito comunitário, cuja execução não obriga nem à intervenção de um TOC, nem se enquadra nos seus deveres legais, tratando-se, por esse motivo, de uma faculdade conferida ao contribuinte, ou seja, ao sujeito passivo de imposto.

III. A Relação de …, em sede de apelação, sustentou a sua argumentação tendo por base os conceitos de "planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade", previstos na al. a) do n° 1 do artigo 6º do DL 452/99, de 5/11, os quais, sendo funções dos Técnicos Oficiais de Contas enquanto interlocutores privilegiados junto da administração fiscal, sempre requererão uma interpretação extensiva neles se incluindo as funções de consultadoria como-seja a função de informação sobre o direito de requerer o reembolso de IVA. A ora recorrente concorda com este entendimento nada tendo a acrescentar no que a esta matéria respeita.

IV. Já no que respeita à elaboração do pedido de reembolso à AT. entendeu o Tribunal da Relação que, por maioria de razão, também tal função se encontra abrangida nas funções legais do TOC, principalmente nas situações em que, como é o caso, já existem orientações por parte das empresas (enquanto entidades patronais desses TOC) no sentido de serem apresentados tais pedidos.

V. Nos termos em que se encontra provado nos autos e que, naturalmente não se coloca em causa pelas presentes alegações de recurso de revista, estão em causa a análise e respectivo enquadramento de duas funções atribuídas aos TOC (EE e FF) que não foram devidamente enquadradas pela Relação de … nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 6º do DL 310/2009, de 26/10, aplicável à data dos factos.

VI.    Tais funções são: (i) a que recai sobre o TOC de informar o sujeito passivo de imposto do seu direito de requerer o reembolso de IVA; (ii) a que recaí sobre estes TOC em concreto, nomeadamente sobre a TOC EE e sobre o TOC FF, de elaborarem tais pedidos de reembolso junto da AT espanhola na sequência das instruções que lhe haviam sido dadas pelas suas entidades patronais, no caso, as autoras “AA, Lda.” e “BB, S.A.”, funções essas que os mesmos acataram para si e que, nessa medida, têm vindo a cumprir desde 2005.

VII. Pese embora a Relação, para análise e respectivo enquadramento das funções dos Técnicos Oficiais de Contas no exercício da sua profissão, se tenha socorrido do disposto no artigo 6º do DL 452/99, de 5/11, que aprovou o Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, à data da prática dos actos, a legislação aplicável já não era, o DL 452/99, de 5/11, mas antes a versão dada pelo DL 310/2009, de 26/10 que veio aprovar o então Estatuto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, actualmente denominada por Ordem dos Contabilistas Certificados.

VIII. O Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas, na redacção dada pelo DL 310/2009, de 26/10, define no seu preâmbulo os Técnicos Oficiais de Contas como os "interlocutores privilegiados da administração pública" (artigo 3°), impondo às "entidades sujeitas aos impostos sobre o rendimento que possuam ou devam possuir contabilidade organizada" a obrigação de disporem de um técnico oficial de contas, o qual, por sua vez, fica adstrito ao dever de assumir a responsabilidade pela regularidade técnica contabilística e fiscal das entidades para as quais prestem os seus serviços em cumprimento das boas regras contabilísticas e fiscais.

IX.    Resulta, assim, de tal artigo 6º, que compete aos técnicos oficiais de contas proceder ao desempenho das seguintes funções: a) Planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade das entidades sujeitas aos impostos sobre o rendimento que possuam ou devam possuir contabilidade regularmente organizada; b) assumir a responsabilidade pela regularidade técnica, nas áreas contabilística e fiscal; e c) assinar, conjuntamente com o representante legal das entidades referidas na alínea a), as respectivas declarações fiscais, as demonstrações financeiras e seus anexos, fazendo prova da sua qualidade.

X. Tem sido entendido pela jurisprudência que apenas se incluem nos deveres legais dos TOC, razão de subscrição do contrato de seguro, aqueles de natureza publicista, estando deles afastados todos os que não assumem esta qualidade, como os pagamentos de impostos.

XI. Os Tribunais Superiores têm interpretado esta função de execução da contabilidade de forma lata entendendo que «não é apenas (...) "só tudo o que tem a ver com organização e arquivo de documentos contabilísticos e fiscais, classificação de documentos e seu lançamento nos respectivos livros contabilísticos e no sistema informático e apuramento de impostos a pagar", mas também, sem dúvida projectar e estabelecer medidas que não só assegurem que as entidades sujeitas aos impostos sobre o rendimento cumpram as suas obrigações em matéria de execução da contabilidade e nas suas relações com a Administração Fiscal, como sejam simultaneamente convergentes com a melhor satisfação dos interesses dessas entidades.».

XII.  A questão do enquadramento no âmbito das funções do TOC da incumbência de aconselhar os seus clientes das opções legais de que dispõem, nomeadamente, dos regimes mais favoráveis ou mesmo das opções de isenções não deixa, no entendimento da ora recorrente, qualquer margem para dúvidas.

XIII. Assim, e no que ao caso em apreço concerne, tendo por base a factualidade dada por provada nestes autos, entende a recorrente que no âmbito das funções dos TOC legalmente definidas se inclui aquela que no artigo 11° das presentes alegações de recurso configurou sob o ponto (i), ou seja, constitui função dos TOC a de informar o sujeito passivo de imposto. no caso, as autoras “AA, Lda.” e “BB, S.A.”, do seu direito de requerer o reembolso de IVA.

XIV. Porém, o mesmo já não se poderá dizer quanto à função que a ora recorrente configurou no ponto (ii) do artigo 11° das presentes alegações de recurso, no caso, a função que os TOC EE e FF assumiram, para si, de elaborarem tais pedidos de reembolso junto da AT espanhola na sequência das instruções que lhe haviam sido prestadas pelas suas entidades patronais ora recorridas, funções essas que os mesmos terão vindo a cumprir desde 2005.

XV. Se é certo que a função sobre o direito de requerer o reembolso do IVA sempre se enquadraria no âmbito das funções de consultadoria legalmente definidas dos TOC, o mesmo não se poderá dizer da elaboração do respectivo requerimento de pedido de reembolso, na medida em que tal função ~a de elaborar o pedido de reembolso perante a AT- foi assumida a título particular pelos TOCs EE e FF perante as suas entidades patronais, no caso, as autoras AA, Lda. e BB, S.A. para as quais aqueles TOC (e não outros) prestavam os seus serviços.

XVI. Porém, o facto de alguns técnicos oficiais de contas assumirem para si tal encargo ou função, na sequência das instruções que lhes são prestadas pelas suas entidades patronais, nâo faz com que tais encargos assumam natureza legal mesmo que tenham vindo a cumprir com tal função de forma regular e reiterada por um longo período de tempo como parece ser o caso dos autos.

XVII. Na verdade, e tendo por base o entendimento vertido na sentença proferida pelo tribunal de 1ª instância, o direito de peticionar o reembolso de IVA é uma faculdade/benefício que é concedido aos sujeitos passivos, no âmbito comunitário, cuja execução não obriga à intervenção de um TOC, nem se enquadra nos deveres legais dos TOC, podendo tal pedido ser efectuado pelo contribuinte ou seu representante sendo a decisão de solicitar ou não o reembolso uma decisão do contribuinte, no caso, uma decisão financeira das firmas em apreço, as autoras.

XVIII. Sendo que, "o facto de os intervenientes, desempenharem estas funções em concreto, porque para tal incumbidos pela sua entidade patronal (...), não transforma estes actos legalmente cometidos aos TOC, mas apenas em actos que lhes foram cometidos e que por estes, no exercício das suas funções (que não exclusivamente de TOCS) eram desempenhadas e que, neste caso em concreto, o não foram" - cfr. sentença proferida no âmbito dos presentes autos pelo tribunal de 1ª instância que, se reitera, e para a qual se remete.

XIX. Melhor não dirá a recorrente e melhor também não o disse a Relação de …, já que, da análise do acórdão agora posto em crise não consta nenhum fundamento, seja ele de natureza legal ou factual, que leve recorrente a considerar ou a equacionar que a elaboração do pedido de reembolso de IVA é uma função legalmente atribuída aos técnicos oficiais de contas no exercício da sua actividade.

XX. Se de acordo com o entendimento da Relação se tem por assente que o pedido de reembolso de IVA é, de facto, uma faculdade conferida ao contribuinte

XXI. Ao TOC incumbe, no bom exercício da sua profissão, informar e aconselhar o contribuinte sobre o regime fiscal mais favorável (de onde se inclui o aconselhamento e informação sobre o direito de pedir o reembolso).

XXII. Não entende a ora recorrente o argumento da Relação de … quando refere que "por maioria de razão se terá de entender, abrangida nas funções legais do TOC, a elaboração desses pedidos à AT”.

XXIII. Sendo certo que, a ser admitida a posição da Relação, tal implicaria o reconhecimento de que a mera assunção da obrigação, por exemplo, do pagamento de um imposto por parte de um TOC poderia ser reconduzível à ampliação das funções legais que lhe incumbem.

XXIV. Por outro lado, da análise do teor do mencionando artigo 6º do DL 310/2009, de 16/10 não consta qualquer menção ao pedido de reembolso de IVA como sendo uma função dos técnicos oficiais de contas não sendo possível aí inserir, nem com recurso a uma interpretação extensiva, tal incumbência que, tendo por base o entendimento da Relação, sempre resultaria na necessária descaracterização de tal preceito legal.

XXV. Por tudo quanto se encontra exposto, entende a ora recorrente que o objectivo da Relação de …, mais do que interpretar e aplicar justificadamente as normas legais ao caso em apreço, foi o de inserir, a todo o custo e sem fundamentação plausível, a omissão praticada pelos TOC’s EE e FF no âmbito do contrato de seguro sobre cuja natureza nem tão pouco se pronuncia.

XXVI. Outra conclusão não pode ser retirada que não a de que a omissão praticada pelos TOC relativamente ao pedido de reembolso de IVA junto da AT, não é susceptível de ser enquadrada nos deveres/funções legalmente atribuídas aos técnicos oficiais de contas no exercício da sua profissão.

XXVII. Errando, deste modo, a Relação de … errou desde logo na aplicação do DL em vigor à data da prática dos factos tendo considerado o diploma legal na versão dada pelo DL 452/99, de 05/11, quando já se encontrava em vigor o DL 310/2009, de 26/10;

XXVIII. E errou ainda na interpretação e aplicação do artigo 6º do mencionado DL 310/2009, de 26/10, sobre o qual fez uma interpretação que, por ser demasiado extensiva, teve por consequência a descaracterização da natureza publicista de tal artigo onde fez incluir como sendo funções legais de todos os TOC aquelas cujo cumprimento apenas foi assumido por alguns, no caso pelos TOC EE e FF.

XXIX. Ora, destinando-se o contrato de seguro celebrado entre a ora recorrente e a então denominada Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas apenas ao ressarcimento de danos causados no âmbito dos deveres legais dos técnicos oficiais de contas no exercício da sua profissão,

XXX. Não sendo possível enquadrar no âmbito de tais deveres legais o pedido de reembolso de IVA, não poderá concluir-se senão pela absolvição da recorrente do pedido nos termos em que foi decidido pelo tribunal de 1ª instância motivo pelo qual não tem outra hipótese que não a de pugnar peia revogação do acórdão proferido e, bem assim, pela manutenção da decisão proferida em primeiro lugar que se reitera.

As recorridas contra alegaram pedindo a manutenção do julgado.

As instâncias deram por assente a seguinte matéria de facto:

1- As AA. “AA” e “BB” são sociedades comerciais portuguesas com sede em território nacional.

2. As A.A. revendem a empresas sediadas em Espanha compostos de policloreto de vinil (pvc), por elas adquiridos, também em Espanha, à sociedade "DD, S.A.," com sede e fábrica em ... (...).

3. Estas operações comerciais estão sujeitas ao pagamento de IVA, o qual é facturado pela “DD” às A.A. e por estas pago.

4. As AA. para efeitos de reembolso do IVA pago, têm de apresentar o referido requerimento à Agência Tributária Espanhola (AT).

5. O prazo de apresentação daquele pedido de reembolso inicia-se no trimestre imediato àquele em que o IVA foi pago e termina no dia de 30 de Setembro do ano seguinte.

6. As A.A. decidiram que deveriam usar da faculdade legal de obter o referido reembolso, apresentando o respectivo pedido às autoridades espanholas, facto que era do conhecimento dos seus Técnicos Oficiais de Contas (TOC).

7. As funções de TOC da 1ª A. “AA, Lda.” são exercidas pela Dra. EE;

8. A Drª EE, encontra-se ao serviço da sociedade desde 1990, exercendo as suas funções, em regime de contrato de trabalho subordinado, por tempo indeterminado, desde 1993.

9- A Drª EE, exerce funções como Chefe de Divisão de Contabilidade da “AA”, competindo-lhe:

"-Responder pela escrituração contabilístico-fiscal da empresa.

-Elaborar as contas mensais e anuais da empresa e consolidadas.

-Processar e validar as declarações fiscais e impostos a pagar;

-Acompanhar a execução financeira dos programas de  investimento e de formação enquadrados em sistemas de financiamentos e incentivos externos;

-Assegurar a manutenção do cadastro de imobilizado - imobilizações em curso, reintegrações e abates.

-Elaborar os documentos e relatórios necessários às auditorias e revisão legal das contas.

-Implementar as acções correctivas e preventivas no âmbito da função de Chefe de Divisão de Contabilidade;

-Identificar as necessidades de formação na área da sua responsabilidade.

-Identificar situações de potencial emergência e acidente."

10- Da descrição das suas funções resulta ainda que tem autoridade para "Certificar os lançamentos e procedimentos contabilístico-físcais:

Elaborar e certificar as declarações fiscais.

Gerir os recursos afectos à função de Chefe de Divisão e Contabilidade."

11-Na sua ausência as suas funções são assumidas pelo Director Administrativo e Financeiro ou pelo Chefe de Divisão Financeira.

12. As funções de TOC da 2ª A. “BB, S.A.” são exercidas pelo Dr. FF.

 13. O Dr FF, encontra-se ao serviço da sociedade desde 1991, exercendo as suas funções, em regime de contrato de trabalho subordinado, por tempo indeterminado, desde 1995.

14- O Dr. FF tem a categoria de Chefe Administrativo e de Contabilidade da “BB”, resultando da descrição das suas funções que lhe compete:

"-Executar a contabilidade geral, analítica e fiscal da “BB”;

-Estabelecer o relacionamento com os auditores fiscais e outras entidades financeiras ou privadas;

-Participar na elaboração do orçamento anual e assegurar o controlo orçamental e de tesouraria;

-Assegurar de um modo racional a disponibilização dos recursos financeiros e a sua utilização mais adequada;

-Assegurar a realização do controle de custos e proveitos;

-Emitir ordens de pagamento e faz o processamento de transferências bancárias via internet;

-Assegurar os procedimentos administrativos de controlo/autorização de facturas e cheques para pagamento;

-Coordenar as actividades relativas aos recursos humanos e secretariado;

-Assegurar a manutenção e actualização dos ficheiros de pessoal;

-Efectuar o expediente diário da BB, analisando toda a correspondência, seleccionando-a e distribuindo-a pelos vários serviços da empresa;

-Executar os procedimentos administrativos relativos ao expediente de pessoal (faltas,  licença,  férias,  baixas,  trabalho  suplementar,  etc.) e  enviar para o processamento salarial em …;

-Efectuar o controlo de stocks do bar. Por vezes existe a necessidade de deslocação ao Banco e Hipermercado;

-efectuar a adequada segregação dos resíduos gerados nas suas actividades;

-Identificar as necessidades de formação e treino."

15- Na sua ausência, os assuntos relativos a contabilidade e finanças são exercidos pelo Director Financeiro da “AA”.

16.    Quer a Dra. EE quer o Dr. FF encontram-se inscritos na Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas (OTOC), sendo titulares da respectiva cédula profissional, a da primeira com o n.° 11.780 e a do segundo com o n.° 17.931, tendo a sua inscrição em vigor, quer à data, quer actualmente.

17.    Nas funções atribuídas pelas AA. aos Drs. EE e FF incluem-se as de solicitar à AT Espanhola, o reembolso do IVA referente às operações comerciais realizadas pelas firmas AA., incluindo o de apresentar à Agência Tributária espanhola o respectivo requerimento, em tempo útil.

18.    Ambos têm vindo, desde pelo menos 2005, regularmente, a cumprir essa obrigação, sendo os respectivos requerimentos por eles apresentados dentro do prazo legal e processando-se o reembolso às AA. do respectivo imposto por parte das autoridades fiscais espanholas.

19.    Em função do valor das compras efectuadas e das facturas pagas à “DD” no quarto trimestre de 2010, a “AA” tinha direito a um reembolso de IVA pela AT Espanhola, no valor de Euros 181.748,80.

20.    Por instrução da A. “AA”, cabia à Dra. EE assegurar que o respectivo requerimento era apresentado à autoridade espanhola até 30 de Setembro de 2011.

21. A Dra. EE não apresentou esse pedido à Agência Tributária espanhola dentro desse prazo, sabendo que era decisão da “AA” que esse reembolso fosse pedido.

22- Nem de qualquer forma informou a sua entidade patronal da necessidade de o apresentar ou sequer alertou para a existência do prazo que deveria ser respeitado.

23- Em Janeiro de 2012, ao receber a comunicação da AT espanhola que deferia os pedidos de reembolso referentes ao 3o trimestre de 2010 e ao Io trimestre de 2011 - por ela apresentados, em tempo útil - a Drª EE, verificou que havia, por lapso, omitido a apresentação do pedido em relação ao 4º trimestre de 2010.

 24-A Drª EE apresentou então o referido pedido em Janeiro de 2012, tendo sido recusado pela AT Espanhola, com fundamento em extemporaneidade.

25- Por este motivo, a “AA” não foi reembolsada da quantia relativa ao IVA do citado quarto trimestre de 2010, no valor de Euros 181.748,80.

26- Em função do valor das compras efectuadas e pagas à “DD” em relação aos terceiro e quarto trimestres de 2010, a “BB” tinha direito a um reembolso de IVA no valor de Euros 5.570,31 e Euros 29.768,52, respectivamente.

27- Por instrução da 2ª A., cabia ao Dr. FF, apresentar o respectivo requerimento para reembolso de IVA à Agência Tributária espanhola até 30 de Setembro de 2011.

28.    No entanto, o Dr. FF não apresentou esse pedido à Agência Tributária espanhola dentro desse prazo.

29.    Nem de qualquer forma informou a sua entidade patronal dessa necessidade ou sequer alertou para a existência desse prazo, quando sabia que era decisão da “BB” que esse reembolso fosse requerido.

30.    Tal pedido apenas foi apresentado pelo Dr. FF em Novembro de 2011.

 31.   Este pedido foi indeferido pela AT Espanhola com fundamento em extemporaneidade, não tendo a “BB” sido reembolsada da quantia de IVA, no valor de Euros 5.570,31 e Euros 29.768,52, respectivamente.

32.    As A.A. reclamaram junto da Agência Tributária espanhola da decisão de indeferimento, sendo, a reclamação indeferida, com fundamento na extemporaneidade do pedido formulado.

33.    Os referidos TOC das A.A. sempre se mantiveram em efectividade de funções desde a sua inscrição na CTOC e sempre figuraram nas listas por esta e depois pela OTOC enviadas à AVS.

34. Por cartas datadas de 30/04/2012, remetidas aos Drs. EE e FF TOC, as AA. informaram-nos que os consideravam responsáveis pelo prejuízo que cada uma delas sofreu.

35- Em 27/03/2004, foi celebrado entre a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, na qualidade de tomador de seguro, e a “SEGURO HH S.A.”, actual “SEGURO CC S.A.”, um Contrato de Seguro de Responsabilidade Civil Profissional e titulado pela apólice 50/014324.

36- O referido seguro, assumindo a natureza de contrato de seguro colectivo, tem como segurados todos os técnicos oficiais de contas com inscrição em vigor na Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas.

 37- Esta apólice cobria um capital máximo por sinistro e por ano de € 50.000,00 por aderente e com uma franquia de 10% do valor da indemnização no mínimo de €49,88.

38- Nos termos do ponto 2 das "Condições particulares destas apólices, sob a epígrafe "SEGURADO", considera-se como tal o "Técnico Oficial de Contas, inscrito na Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, cuja obrigação de subscrição deste seguro se encontra estabelecida pelo n° 4 do art° 52 do ECTOC."

39- Nos termos do ponto 3 das "Condições particulares" desta apólice, sob a epígrafe "Âmbito de Cobertura", estabelece-se que "Para além do que se expressa nas Condições Gerais da Apólice, o âmbito de cobertura da mesma, compreende:

“As indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao Segurado, em consequência de danos patrimoniais causados a Clientes e ou Terceiros, desde que resultem de actos ou omissões cometidos durante o exercício da actividade de Técnico Oficial de Contas.

As indemnizações legalmente exigíveis ao Segurado, decorrentes do pagamento de Coimas, Fianças, Taxas Administrativas e Juros Compensatórios ou de Mora (de natureza não penal), aplicados aos seus Clientes em consequência de erro profissional do Segurado.

Danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causados a Clientes ou a Terceiros, na qualidade de proprietário ou arrendatário do imóvel ou fracção onde o segurado exerce a sua profissão, bem como os causados por objectos que integrem as citadas instalações."

40- Nos termos do ponto 4 das "Condições particulares" desta apólice, sob a epígrafe "EXCLUSÕES", estabelece-se que:

"Para além das exclusões referidas nas Condições Gerais, fica ainda excluída a responsabilidade:

Emergentes de actos dolosos do segurado, que constituam violação da legislação em vigor."

41- Nos termos do art° 2 das Condições Gerais deste seguro, sob a epígrafe "Objecto do contrato"

"1. O presente contrato tem por objecto a garantia da responsabilidade civil que, ao abrigo da legislação aplicável seja imputável ao segurado, na qualidade ou no exercício da actividade expressamente referidas nas respectivas Condições Especiais e/ou Particulares."

42- Nos termos do disposto no art° 3º das Condições Gerais deste seguro, sob a epígrafe "Garantia do contrato";

“O presente contrato garante, de harmonia com o estipulado nas presentes Condições Gerais e nas Condições Particulares e/ou Especiais Aplicáveis ao pagamento das indemnizações emergentes da responsabilidade civil que legalmente sejam exigíveis ao segurado, pelos danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causadas a terceiros por eventos fortuitos, imprevisíveis e independentes da sua vontade ou de pessoas por quem seja civilmente responsável e, quando tais eventos resultem de actividade ou qualidade expressa e taxativamente enumeradas nas condições particulares ou especiais."

43- Nos termos do disposto no art° 4º das Condições Gerais deste seguro, sob a epígrafe "Exclusões Absolutas":

"Ficam sempre excluídos da garantia deste contrato os seguintes danos:

a) Decorrentes de actos ou omissões dolosos do Tomador de seguro, do Segurado ou de pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis."

 44.   Em 1 de Junho de 2012, a Drª. EE participou o sinistro à R.

45.    Por carta de 11 de Fevereiro de 2013 a R. “SEGURO CC” comunicou à Dra. EE que não se apurara a existência de qualquer acto ou omissão susceptível de gerar responsabilidade civil profissional pelo que não podia dar seguimento à pretensão apresentada.

46.    Em 28 de Maio de 2012, o Dr. FF participou o sinistro à R.

47.    Por carta de 11 de Fevereiro de 2013 a R. SEGURO CC comunicou ao Dr. FF que da análise do processo não se havia apurado a existência de qualquer ato ou omissão susceptível de gerar responsabilidade civil profissional, pelo que não podia dar seguimento à pretensão apresentada.

 48.   Posteriormente, em 11/09/2013, a R. esclareceu que entendia que a entrega do requerimento de reembolso do IVA não se integrava nas funções legalmente atribuídas aos TOC.

49.    No seguimento da reclamação apresentada à R. Seguradora, os referidos Drª EE e FF, foram solicitados pela sociedade “GG” que presta serviços de peritagem à R., em 12 de Setembro de 2012, para fornecerem todos os documentos que consideravam relevantes para comprovar a veracidade da situação de facto descrita na participação.

50.    As AA. forneceram todos os elementos solicitados pelos referidos peritos.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo.

1- Técnicos Oficiais de Contas (TOC).

2- Conteúdo funcional obrigatório dos TOC.

3- Seguro de responsabilidade civil.

4- Conclusões.

*

1- Técnicos Oficiais de Contas (TOC).

1-1- O regime jurídico – funcional dos Técnicos Oficiais de Contas (que adiante designaremos por TOC) consta do Decreto-Lei n.º 310/2009, de 26 de Outubro, que alterou o diploma anterior (Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de Novembro, que aprovara o Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas) criando a Ordem dos Técnicos de Contas e aprovando o Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas.

O artigo 5.º do diploma em apreço dispõe serem “técnicos oficiais de contas os profissionais, nacionais ou de qualquer outro Estado membro da União Europeia, inscritos na Ordem (…)” sendo-lhes atribuído, em exclusividade, o uso desse título profissional, bem como o exercício das respectivas funções”.

O artigo 6.º do mesmo Decreto-Lei elenca as funções dos TOC nestes termos:

“Funções

1- São atribuídas aos técnicos oficiais de contas as seguintes funções:

a) Planificar, organizar e coordenar a execução da contabilidade das entidades que possuam, ou que devam possuir, contabilidade regularmente organizada segundo os planos de contas oficialmente aplicáveis ou o sistema de normalização contabilística, conforme o caso, respeitando as normas legais, os princípios contabilísticos vigentes e as orientações das entidades com competências em matéria de normalização contabilística;

b) Assumir a responsabilidade pela regularidade técnica, nas áreas contabilística e fiscal, das entidades referidas na alínea anterior;

c) Assinar, conjuntamente com o representante legal das entidades referidas na alínea a), as respectivas demonstrações financeiras e declarações fiscais, fazendo prova da sua qualidade, nos termos e condições definidos pela Ordem, sem prejuízo da competência e das responsabilidades cometidas pela lei comercial e fiscal aos respectivos órgãos;

d) Com base nos elementos disponibilizados pelos contribuintes por cuja contabilidade sejam responsáveis, assumir a responsabilidade pela supervisão dos actos declarativos para a segurança social e para efeitos fiscais relacionados com o processamento de salários.

2 - Compete ainda aos técnicos oficiais de contas:

a) Exercer funções de consultoria nas áreas da contabilidade, da fiscalidade e da segurança social;

b) Intervir, em representação dos sujeitos passivos por cujas contabilidades sejam responsáveis, na fase graciosa do procedimento tributário, no âmbito de questões relacionadas com as suas competências específicas;

c) Desempenhar quaisquer outras funções definidas por lei adequadas ao exercício das respectivas funções, designadamente as de perito nomeado pelos tribunais ou por outras entidades públicas ou privadas.

3 - Entende-se por regularidade técnica, nos termos da alínea b) do n.º 1, a execução da contabilidade, nos termos das disposições previstas nos normativos aplicáveis, tendo por suporte os documentos e as informações fornecidos pelo órgão de gestão ou pelo empresário, e as decisões do profissional no âmbito contabilístico, com vista à obtenção de uma imagem fiel e verdadeira da realidade patrimonial da empresa, bem como o envio para as entidades públicas competentes, pelos meios legalmente definidos, da informação contabilística e fiscal definida na legislação em vigor.

4 - As funções de perito referidas na alínea c) do n.º 2 compreendem, para além do alcance definido pelo tribunal no âmbito de peritagens judiciais, a avaliação da conformidade da execução contabilística com as normas e directrizes legalmente aplicáveis, bem como do nível de representação, pela informação contabilista, da realidade patrimonial que lhe subjaz.”

Por sua vez o n.º 1 do artigo 5.º do Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas responsabiliza-os “por todos os actos que pratique(m) no exercício das suas funções, incluindo os seus colaboradores”, sendo que o n.º 4 do artigo 52.º do Decreto-Lei n.º 452/99 (já com a alteração atràs referida) lhes impõe a subscrição de “um seguro de responsabilidade civil e profissional de valor nunca inferior a 50.000,00 euros.

Do citado artigo 6.º podemos destacar de entre as funções dos TOC a organização, planificação, coordenação e execução da contabilidade das entidades que a tenham, ou devam ter, organizada, assumindo a responsabilidade por a mesma se apresentar regular, sobretudo com cumprimento das normas contabilísticas e fiscais.

Outrossim, destaca-se o dever de assumirem a responsabilidade pela supervisão das declarações para a segurança social, e para efeitos fiscais, conectadas com o processamento de salários.

Finalmente, enfatiza-se o exercício de funções de consultadoria naquelas áreas devendo até subscreverem, em conjunto com os representantes legais das entidades referidas, todas as declarações fiscais e elementos de demonstração financeira.

Mas se lançarmos mão do n.º 1 do artigo 3.º do Estatuto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas verificamos a importância destes profissionais já que “as entidades sujeitas aos impostos sobre o rendimento que possuam ou devam possuir contabilidade regularmente organizada, segundo os planos de contas oficialmente aplicáveis são obrigadas a dispor de técnico oficial de contas” sendo que este tem a responsabilidade de verificar, controlar e cumprir as regras contabilísticas e respectiva consonância com as fiscais.

No caso que vimos apreciando está em causa o reembolso do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA), tributação cujo regime legal consta do Decreto-Lei n.º 394-B/84, sucessivamente actualizado pelos Decretos-Lei n.ºs 102/2008, de 20 de Junho, 290/92, de 28 de Dezembro, e pela Lei n.º 36/2016, de 21 de Novembro, e, nas relações intercomunitárias com a Espanha, cumpre atentar nas Directivas, do Conselho, 2008/8/CE, de 12 de Fevereiro de 2008 (que alterou a Directiva 2006/112/10/CE de 28.11.2006) e 2008/9/CE, de 12 de Fevereiro de 2008.

Ficou assente, que os Técnicos Oficiais de Contas (da 1.ª Autora, a Dr.ª EE; e da 2.ª Autora, o Dr. FF) estavam ambos, também, vinculados, por contratos de trabalho subordinado, às demandantes, sendo ambos, e respectivamente, Chefes de Divisão e Contabilidade e Chefe de Contabilidade e Administrativo.

Estavam inscritos na Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas.

Para além das funções /atribuições próprias dos TOC, e que acima se referiram por apelo ao regime legal, foram encarregados pelas respectivas entidades patronais de formularem o pedido de reembolso do IVA pago pelos negócios realizados em Espanha.

E o certo é que, “desde pelo menos 2005”, deram cumprimento a essa obrigação, apresentando os pedidos de reembolso às autoridades fiscais do vizinho País comunitário.

Só que, e relativamente às quantias a reembolsar pelos pagamentos do quarto trimestre de 2010, não o fizeram em tempo, razão pela qual as operações foram recusadas, por extemporâneas.

Daí que, e numa primeira abordagem, se lance mão do disposto no artigo 24.º, n.ºs 1 e 3 da Lei Geral Tributária (Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, actualmente com as alterações das Leis n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro e n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro) a dispôr que:

“1 Os directores, administradores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas colectivas e entes fiscalmente equiparados são  subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si: (…) b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento- 3- A responsabilidade prevista neste artigo aplica-se aos técnicos oficiais de contas, desde que se demonstre a violação dos deveres de assunção da responsabilidade pela regularização técnica nas áreas contabilística e fiscal ou de assinatura de declarações fiscais, demonstrações financeiras e seus anexos.”

Numa perfunctória abordagem parece que este preceito se limita a reger as relações entre os gestores das pessoas colectivas, os TOC e o Fisco.

Porém, numa interpretação mais abrangente, não podemos deixar de considerar que releva, nos seus precisos termos, para responsabilizar essas entidades perante a entidade que gerem, ou que servem, e que são lesadas com a sua actuação menos diligente, por ao arrepio das suas obrigações legais ou meramente funcionais.

Assim, não poderá deixar de conjugar-se o n.º 2 do preceito que vimos analisando com o acima citado artigo 5.º n.º 1 do Código Deontológico dos Técnicos Oficiais de Contas.

2- Conteúdo funcional obrigatório dos TOC.

Para além do que acima se referiu, e que nada mais será do que a introdução a este segmento, cumpre que nos debrucemos sobre se o conteúdo funcional dos TOC abrange o pedido de reembolso do IVA.

E a resposta – ao menos no caso vertente e perante a matéria de facto elencada – não deixará de ser afirmativa.

Tal resulta do já transcrito artigo 6.º do Estatuto da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas a acentuar que é precípua função dos TOC responsabilizar-se pela regularidade técnica, nas áreas contabilística e fiscal, das pessoas – singulares ou colectivas – que assiste sujeitas a tributação ou que devam ter contabilidade regularmente organizada.

Como se diz no Acórdão do STJ de 21 de Fevereiro de 2008 – 08B271 – “temos pois que um TOC - «interlocutor privilegiado com a administração fiscal» (…) planifica, organiza e coordena a execução da contabilidade das entidades sujeitas aos impostos sobre o rendimento que possuam ou devam possuir contabilidade regularmente organizada, podendo também exercer funções de consultadoria nas áreas da respectiva formação. Quer dizer: um TOC pode limitar-se a exercer aquelas funções de planificação, organização e coordenação sem exercer também funções de consultadoria. Mas também pode exercer essas funções”.

As expressões planificar, organizar e coordenar, devem ser lidas como estabelecer um plano (um “iter” ou caminho) programar e, finalmente, dirigir uma estratégia conjunta para melhor alcançar uma finalidade.

Refere a Mestre Maria Madalena Afra Rosa (in “A Responsabilidade Penal do Revisor Oficial de Contas e do Técnico Oficial de Contas no Contexto Empresarial”, ed. U. Católica, 2014, p. 9) que o TOC poderá, “em conjunto” com o representante legal de uma sociedade (artigo 65.º do Código das Sociedades Comerciais) “assumir a responsabilidade” pela regularidade técnica nas áreas contabilística e fiscal, traduzindo-se “numa perspectiva material na execução da contabilidade nos termos das disposições previstas nos normativos aplicáveis tendo por suporte os documentos e as informações fornecidas pelo órgão de gestão ou pelo empresário, e as decisões do profissional no âmbito contabilístico, com vista à obtenção de uma imagem fiel e verdadeira da realidade patrimonial da empresa, assim como, do ponto de vista formal, «no envio para entidades públicas competentes, pelos meios legalmente definidos, da informação contabilística e fiscal definida na legislação em vigor”.

E mais adiante:

“Nas relações do técnico oficial de contas com as entidades a que preste serviços, tem o primeiro um dever de actuar com consciência e diligência, abstendo-se de proceder de forma a que ponha em causa os segundos …”.

São, em suma, para além das primeiras funções de interesse público, (ressaltando a “isenção e independência técnica” – artigo 4.º do Código Deontológico) obrigações, escrúpulo, responsabilidade e rigor para com a entidade que serve, e, no caso de existir um vínculo funcional, ainda a urbanidade e lealdade.

O pedido de reembolso de IVA é uma opção do contribuinte.

E o certo é que as recorridas o vinham fazendo “desde pelo menos 2005” através dos TOC.

Se a estes cumpria informar a situação fiscal pendente e, consequentemente, o direito das recorridas ao respectivo reembolso, também lhes cumpria, como vinham fazendo, e lhes fora determinado, requerer o mesmo.

Não desconheciam esse dever, tanto mais que (insiste-se) praticaram os actos, embora extemporaneamente,

E não ilidiram a presunção de culpa do n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil sendo que a responsabilidade contratual resultaria do vínculo de trabalho que tinham para com as Autoras.

São assim responsáveis pelo reembolso das quantias que as demandantes tinham direito.

3- Seguro de responsabilidade civil.

Verificámos que o pedido de reembolso do IVA era, não só, um dever legal dos TOC, como um dever funcional.

Ora, o seguro de responsabilidade civil, outorgado pela então Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas (hoje Ordem dos TOC) e a recorrente (que sucedeu à “SEGURO HH SA”) cobre os sinistros elencados nos n.ºs 39 ("Para além do que se expressa nas Condições Gerais da Apólice, o âmbito de cobertura da mesma, compreende:

“As indemnizações que legalmente sejam exigíveis ao Segurado, em consequência de danos patrimoniais causados a Clientes e ou Terceiros, desde que resultem de actos ou omissões cometidos durante o exercício da actividade de Técnico Oficial de Contas.

As indemnizações legalmente exigíveis ao Segurado, decorrentes do pagamento de Coimas, Fianças, Taxas Administrativas e Juros Compensatórios ou de Mora (de natureza não penal), aplicados aos seus Clientes em consequência de erro profissional do Segurado.

Danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causados a Clientes ou a Terceiros, na qualidade de proprietário ou arrendatário do imóvel ou fracção onde o segurado exerce a sua profissão, bem como os causados por objectos que integrem as citadas instalações." ; 41 ("1. O presente contrato tem por objecto a garantia da responsabilidade civil que, ao abrigo da legislação aplicável seja imputável ao segurado, na qualidade ou no exercício da actividade expressamente referidas nas respectivas Condições Especiais e/ou Particulares." ; e 42 (“O presente contrato garante, de harmonia com o estipulado nas presentes Condições Gerais e nas Condições Particulares e/ou Especiais Aplicáveis ao pagamento das indemnizações emergentes da responsabilidade civil que legalmente sejam exigíveis ao segurado, pelos danos patrimoniais e/ou não patrimoniais, decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causadas a terceiros por eventos fortuitos, imprevisíveis e independentes da sua vontade ou de pessoas por quem seja civilmente responsável e, quando tais eventos resultem de actividade ou qualidade expressa e taxativamente enumeradas nas condições particulares ou especiais.". assim a reproduzindo o ponto 3 das “condições particulares” da apólice, sendo que não se perfila nenhuma situação de “exclusão absoluta” (n.º 43 dos factos provados).

Estão, outrossim, presentes os pressupostos da obrigação de indemnizar: facto ilícito, (traduzido por omissão de conduta devida); culpa (nexo de imputação subjectiva do facto ao agente, sempre, aliás,como se disse, presumida); dano causado às Autoras (não recebimento das quantias a que tinham direito); e nexo de causalidade.

É que, nos situamos no âmbito da responsabilidade contratual, como, obviamente, se diz no Acórdão do STJ de 9.Out.2008 – 08B2089.

Assim, e na linha do aresto recorrido (que, aliás, na prática, quase se limitou a transcrever o Acórdão do STJ de 21 de Julho de 2011 – 1065/06.7TPESP.P1.S1), é de manter a deliberação posta em crise.

4- Conclusões.

Pode concluir-se que:

a) O regime jurídico – funcional dos Técnicos Oficiais de Contas consta actualmente do Decreto-Lei n.º 310/2009 de 26 de Outubro, que, alterando o Decreto-Lei n.º 452/99 de 5 de Novembro, criou a Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas e aprovou o Código Deontológico dos TOC.

b) As respectivas funções surgem elencadas no artigo 6.º daquele diploma, destacando-se a organização, planificação, coordenação e execução da contabilidade das entidades que a devam ter organizada, assumindo a responsabilidade por a mesma se apresentar regular “maxime” em termos contabilísticos e fiscais.

c) Por serem responsáveis por todos os actos praticados no exercício de funções devem subscrever um seguro de responsabilidade civil (conjugação dos artigos 5.º n.º 1 do Código Deontológico e 52.º n.º 1 do EOTOC).

d) Nas áreas referidas em b) também exercem consultadoria devendo ainda subscrever em conjunto com os legais representantes das entidades que controlam declarações fiscais e elementos de demonstração financeira.

e) A Lei Tributária (Decreto-Lei n.º 398/98. De 17 de Dezembro) no artigo 24.º n.ºs 1 e 3 (com as alterações das Leis 30-G/2000 de 29 de Dezembro e 60-A/2005, de 30 de Dezembro) responsabiliza os TOC pelas dívidas tributárias se tiverem violado deveres de assunção de responsabilidade nas áreas contabilística ou fiscal.

f) A doutrina do preceito aplica-se à relação entre o TOC e a entidade cuja contabilidade e deveres fiscais controla ou para a qual trabalha.

g) O conteúdo funcional dos TOC abrange o pedido de reembolso do IVA, designadamente se sempre o formulou com o acordo, ou por ordem, do respectivo credor, perante o qual está ainda vinculado ao dever de informação.

h) Caso tenha deixado de o formular por negligência e, por isso, dê origem à caducidade do direito é contratualmente responsável.

i) Daí que o respectivo seguro deva cobrir esse dano por se encontrarem presentes os requisitos da responsabilidade contratual.

Nos termos expostos acordam negar a revista.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 14 de fevereiro de 2017

Sebastião Póvoas – Relator

Paulo de Sá

Garcia Calejo