Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2900/08.0TVLSB.L2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: CONTRATO DE MANDATO
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
PROCURAÇÃO
PRESTAÇÃO DE CONTAS
ABUSO DO DIREITO
MATÉRIA DE FACTO
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 09/08/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / REPRESENTAÇÃO / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / MANDATO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ) / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA..
Doutrina:
- C. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 1980, 435.
- P. PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, 2007, 740.
- RODRIGUES BASTOS, Das Relações Jurídicas, III, 1968, 188.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 262.º, N.º1, 334.º, 1157.º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 615.º, N.º1, AL. D), 674.º, N.º3, 682.º, N.º3.
Sumário :
I - A afirmação, no acórdão recorrido, da inexistência de qualquer obrigação do recorrido para com os recorrentes contempla uma pronúncia, de sentido negativo, sobre o mandato sem representação.

II - Também não deixa de haver pronúncia sobre o abuso do direito, quando se afirma, no acórdão recorrido, não se ter provado que o recorrido tivesse tido uma atuação pautada pela prossecução dos interesses dos recorrentes, praticando atos de gestão/administração do seu património.

III - Os factos, que compreendem realidades diferentes e diversas, não conflituam entre si.

IV - A distinção entre o mandato e a procuração é clara, pois enquanto aquele constitui um contrato de prestação de serviços destinado à prática de atos jurídicos, independentemente da representação, a procuração é um negócio jurídico através do qual se conferem poderes de representação, não carecendo da coexistência do mandato.

V - Não se verificando qualquer relação jurídica entre as partes, designadamente de mandato, não há obrigação de prestar contas.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I – RELATÓRIO

AA e mulher, BB, CC e mulher, DD, instaurou, em 29 de maio de 2002, no então 4.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, contra EE, advogado, ação declarativa, sob a forma de processo especial, pedindo que o Réu fosse obrigado a prestar-lhe contas e condenado a pagar-lhes o saldo que eventualmente vier a ser apurado.

Para tanto, alegaram, em síntese, que o R., no exercício da sua atividade profissional, assessorou o procurador dos AA., primitivamente constituído, nas negociações com vista à venda de um seu prédio urbano, e em quem substabeleceu, não lhes entregando os valores recebidos, nem justificando os encargos suportados.

Contestou o R. por exceção e por impugnação, alegando fundamentalmente ter agido como advogado dos AA., e concluiu pela improcedência da ação.

Responderam os AA., pronunciando-se pela improcedência da matéria de exceção.

Por sentença de 6 de setembro de 2004, foi declarado estar o R. obrigado a prestar contas aos AA.

Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de maio de 2006, tal sentença foi revogada, sendo o R. absolvido do pedido e os AA. e R. condenados como litigantes de má fé.

Na sequência de recurso interposto por ambas as partes, e por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de março de 2007, aquele acórdão foi anulado, a fim de ser ampliada e, posteriormente, apreciada e valorada a matéria de facto, nos termos referidos no acórdão.

Organizada a base instrutória e habilitados os herdeiros do R., entretanto falecido, realizou-se a audiência de discussão e julgamento e, em 31 de julho de 2014, foi proferida sentença, absolvendo o R. do pedido e condenando os AA. e o R., respetivamente, na multa de 10 UC e 5 UC, como litigantes de má fé.

Por efeito do recurso interposto pelos AA., o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1 de dezembro de 2015 confirmou essa sentença, exceto quanto à condenação dos AA. como litigantes de má fé, absolvendo-os.

Inconformados, os Autores recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formularam essencialmente as conclusões:

a) O acórdão do Supremo definiu o regime jurídico aplicável.

b) No acórdão recorrido não foram objeto de decisão duas questões suscitadas nas conclusões recursivas, o mandato sem representação implícito e consentimento tácito e, bem assim, o abuso do direito, verificando-se a nulidade, por omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, alínea d), ex vi do art. 674.º, n.º 1, alínea c), do CPC).

c) Mostra-se contraditório dar-se como provado o que consta na alínea L) do provado e na alínea P), pois, se tais dívidas não fossem pagas, então resulta que o interesse de FF pertencia aos AA. e não ao procurador.

d) É contraditória a matéria provada na alínea O), quando resulta dos factos descritos em L), F) e I), em conexão com a prova documental, que sacou outros cheques em pagamentos a credores hipotecários e aos inquilinos.

e) Deve ser ampliada a matéria de facto de modo a aditar-se a factualidade de que não foram pagas as dívidas a dois credores dos Recorrentes e respetivos montantes, atenta a relevância para a demonstração da não verificação da condição suspensiva aposta no contrato-promessa.

f) Deve ampliar-se a matéria de facto da alínea B), de modo a reproduzir a totalidade do teor da procuração de fls. 124 a 127.

g) Com a outorga da procuração, estabeleceu-se um mandato com representação entre os Recorrentes e o procurador.

h) A condição suspensiva do contrato-promessa não foi cumprida, ficando por pagar duas dívidas relacionadas com o imóvel a dois credores, que executaram os Recorrentes.

i) Por isso, o contrato-promessa não produziu efeitos (art. 270.º do CC).

j) Logo, o procurador, ao mandatar o R. para a gestão, fê-lo na qualidade de procurador dos Recorrentes.

k) A relação estabelecida entre o procurador dos Recorrentes e o R. sempre configuraria um mandato sem representação implícito e um consentimento tácito.

l) O mandato coloca o mandatário na posição de administrador de bens alheios e na obrigação de prestar contas – arts. 1157.º e 1161.º, alínea d), do CC.

m) A invocada tese da falta de interesse dos Recorrentes no prédio deve ser declarada ilegítima por força do princípio do abuso do direito, consagrado no art. 334.º do CC.

n) Foram violados, por erro de interpretação e/ou aplicação, o disposto conjugadamente nos arts. 1157.º, 1161, alínea d), 1165.º, 1178.º, n.º 1, 1180.º, 270.º, 217.º, n.º 1, 334.º, todos do CC, 615.º, n.º 1, alínea d), e 941.º do CPC.

Com o provimento do recurso, os Recorrentes pretendem a revogação do acórdão recorrido, com as legais consequências.

Contra-alegou o R., no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de abril de 2016, concluiu-se não se verificar a arguida nulidade do acórdão.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, para além da nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, está em discussão, essencialmente, a contradição na matéria de facto, a sua ampliação e ainda a relação de mandato e os seus efeitos, em particular na prestação de contas.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:

1. Foram os AA. comproprietários entre si do prédio urbano sito na Avenida Almirante Reis n.º …, em Lisboa.

2. Por procuração irrevogável, passada em 23/09/1988, os AA. constituíram seu procurador FF, conferindo-lhe poderes para prometer vender, no todo ou em parte, o prédio identificado, podendo negociar consigo mesmo “usando em seu benefício os poderes conferidos, pelo que esta procuração é irrevogável (…)”, dar ordens de despejo e mover as respetivas ações em tribunal, podendo ainda “o referido procurador substabelecer os poderes conferidos, uma ou mais vezes, no todo ou em parte, e sempre que tenha de recorrer a juízo, substabelecer em advogado ou solicitador”. (B)

3. O mencionado FF contratou o R., o qual no exercício da sua atividade profissional de advogado lhe prestou assistência e aconselhamento jurídicos, assessorando.

4. Em 2/7/1990, foi celebrado contrato-promessa de compra e venda do dito prédio, em que intervieram FF, como procurador dos AA., e a Associação para o Desenvolvimento do IST, como promitente-compradora, pelo preço de 220 000 000$00, livre de ónus e encargos e totalmente devoluto.

5. Declararam que, no ato, foi paga a importância de 50 000 000$00, do qual o promitente-vendedor deu quitação.

6. O prédio identificado encontrava-se onerado por três hipotecas, duas a favor do BANCO GG e outra a favor de HH, encontrando-se penhorado no âmbito de duas execuções intentadas pelos mencionados credores. (F)

7. O prédio encontrava-se todo ocupado por inquilinos habitacionais e comerciais.

8. Por escritura de 28 de junho de 1993, os AA., representados por FF, venderam à II o prédio por 220 000 000$00, tendo o 1.º outorgante declarado que já recebeu, em nome dos seus representados, o preço de 220 000 000$00 e todos declarado que os encargos que incidiam sobre o prédio se encontram pagos e os respetivos cancelamentos assegurados.

9. Foram pagos: 1. Ao BANCO GG: 18 000 000$00 e 28 000 000$00; 2. A HH, 12 000 000$00; 3. À inquilina da cave esquerda, por desocupação do arrendado, 25 000 000$00; 4. À viúva do inquilino da cave direita, 13 000 000$00; 5. À inquilina do rés-do-chão esquerdo, 13 000 000$00; 6. A JJ, 5 000 000$00; 7. À sublocatária do 1.º andar, 12 000 000$00; 8. Aos sucessores do inquilino do 2.º direito, 23 000 000$00; 9. À inquilina do 3.º esquerdo, 3 500 000$00; 10. À inquilina do 3.º direito, 7 500 000$00. (I)

10. No dia 17/5/1990, FF substabeleceu, no Instituto …, os poderes conferidos pelos AA., a 23/9/1988, quanto à venda e promessa de venda do prédio, podendo este contratar consigo mesmo, usando em seu benefício os referidos poderes, sendo o substabelecimento irrevogável, “em conformidade com a natureza também irrevogável da procuração já identificada”.

11. Os AA., como promitentes-vendedores, e FF, como promitente-comprador subscreveram o documento denominado “contrato-promessa de compra e venda”, de fls. 121 a 123, onde consta, além do mais, “(…) 2.º - os primeiros contratantes prometem vender ao segundo contratante e este promete comprar o referido prédio pelo preço total de esc. 53.878.888$00. Ou seja, pelo valor correspondente à totalidade das dívidas validamente garantidas por hipotecas que oneram o mesmo imóvel, bem como toda e qualquer outra dívida que se encontre sobre o referido prédio. (…) 4º - A venda é prometida com a condição do promitente comprador ficar com o encargo de liquidar todas as dívidas que se encontrem pendentes e registadas, bem como ainda de toda e qualquer responsabilidade a quaisquer entidades quer estatais quer particulares garantidas ou a garantir pelo referido imóvel. 5º Mercê deste contrato, e como sua condição suspensiva, os promitentes vendedores ficam obrigados a conferir imediatamente procuração ao promitente comprador, dando-lhe poderes para vender o dito imóvel, incluindo os necessários para fazer consigo próprio, irrevogavelmente, por ser no interesse do procurador, podendo este desde já fazer uso de todos os poderes nos termos que lhe forem concedidos. 6º - A escritura definitiva será outorgada logo que for possível na data, e ainda a favor de quem o mesmo segundo outorgante o julgar conveniente. 7º Juntamente com o presente contrato é feita uma procuração com poderes irrevogáveis para que o promitente comprador possa atuar como se nós próprios fossemos. Mais ainda é passada uma procuração ao Dr. EE, advogado e legal representante do promitente comprador, com escritório em Lisboa, procuração essa com os poderes forenses e os poderes especiais para nos representar junto ao Tribunal em todas as ações pendentes que a partir desta data passam a ser da inteira responsabilidade do promitente comprador (…)”. (K)

12. A solicitação de FF e no âmbito da contratação referida em 3, para concretização do interesse daquele no acordo expresso em 11 e 16, o R. interveio nas negociações com vista à venda do prédio, arranjando por intermédio de um mediador imobiliário (com contrato escrito subscrito por FF) um interessado na compra, a Associação para o Desenvolvimento do Instituto …, procedendo neste mesmo contexto ao pagamento das dívidas hipotecárias referidas em 6 e negociando com os inquilinos referidos em 7, com vista à desocupação do imóvel para a sua entrega, livre de pessoas e bens, à II. (L)

13. No acordo escrito de fls. 190 a 195, a que se alude em 4, ficou a constar, sob a cláusula 14.ª: “Todas as quantias, pagas no âmbito deste contrato, serão tituladas por cheques emitidos à ordem do Dr. EE, advogado, com escritório à Rua …, …-1.º andar, em Lisboa, que lhe serão entregues a fim de garantir a sua boa gestão, com vista à total desoneração do prédio, nos termos deste contrato.”

14. Dos cheques sacados pela II sobre conta bancária da sua titularidade e que foram entregues a título de sinal e reforço deste e que perfazem o valor do preço de 220 000 00$00, foram passados a favor do R. todos, com ressalva para dois, datados de 22/7/1991 e de 18/2/1991, respetivamente nos valores de 15 000 000$00 e 18 000 000$00.

15. O R. sacou sobre conta sua um cheque, no valor de 5 000 000$00, a favor de Agência Predial KK. Lda., que era arrendatária comercial da cave esquerda do prédio, para pagamento do valor acordado nos termos de documento escrito de rescisão de contrato de arrendamento, datado de 4/6/1991 e subscrito pelos gerentes da sociedade e por FF, este como representante dos AA. (O)

16. No momento da subscrição pelos AA. do documento referido em 12, os AA. tinham-se desinteressado do imóvel, que não pretendiam manter na sua propriedade, e bem assim do preço pelo qual FF o viesse a vender, não pretendendo receber qualquer valor desse preço que ultrapassasse o valor das dívidas garantidas por hipoteca incidente sobre o imóvel e outras dívidas, encargos e responsabilidades que desconhecessem e viessem a recair sobre aquele mesmo imóvel, conquanto fossem por este liquidadas todas essas dívidas. (P)

17. Na 9.ª Vara Cível de Lisboa, 2.ª Secção, correu termos, sob o n.º 518/1999, ação especial de prestação de contas, em que foram autores os ora AA. e em que foi réu FF, tendo este contestado, sendo mandatário deste, o ora R., tendo a petição inicial e a contestação o teor que consta da certidão de fls. 273 a 309.

18. No âmbito dessa ação, foi proferida decisão em 1.ª instância nos termos que constam a fls. 305 e 309, a qual foi objeto de recurso de apelação interposto pelo Réu, tendo sido pelos Autores interposto recurso de agravo da decisão que indeferiu o pedido de intervenção principal do ora R., sendo proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou improcedente o agravo e procedente a apelação, determinando que os autos seguissem os termos subsequentes do processo comum; subsequente foi proferida sentença pela 1.ª instância, que julgou improcedente a ação e absolveu o réu do pedido, sentença que foi confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, transitado em julgado em 12/1/2005 (fls. 600 a 637).

19.  Em 23/9/1988, no Consulado de Portugal em Nogent-sur-Marne, perante o vice-cônsul, compareceram os AA., declarando por meio do escrito constante de fls. 916 e 917, que “constituem seu bastante procurador Dr. EE, advogado com escritório em Lisboa, Rua … nº …, 1º, a quem conferem plenos poderes forenses gerais em direito permitidos”.


*****


2.2. Delimitada a matéria de facto, retificada e expurgada de redundâncias, interessa então conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente das questões relativas à nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, da contradição na matéria de facto, da sua ampliação e, substantivamente, da relação de mandato e dos seus efeitos, e em particular da prestação de contas.

Os Recorrentes arguiram a nulidade do acórdão recorrido, nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil (CPC), por omissão de pronúncia, com o fundamento de que, tendo alegado a caracterização da relação do procurador dos Recorrentes com o Réu como mandato sem representação implícito e consentimento tácito e o abuso do direito, não foram objeto de decisão explícita.

No âmbito dos seus poderes de cognição, a Relação está obrigada a conhecer do objeto da apelação, delimitado pelas respetivas conclusões, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

No acórdão recorrido, especificou-se, designadamente, que “não se provou que o (…) Réu tenha assumido perante os Autores, direta ou indiretamente, qualquer obrigação, nem que a sua atuação se tivesse pautado pela prossecução do interesse dos Autores, praticando atos de gestão/administração do património dos Autores” (fls. 2782).

Não obstante a omissão de referência expressa à figura concreta do mandato sem representação, a afirmação, no acórdão recorrido, da inexistência de qualquer obrigação do Recorrido para com os Recorrentes contempla uma pronúncia, de sentido negativo, sobre o mandato sem representação. Perante a falta de uma relação jurídica, evidentemente que se está a negar a existência de qualquer mandato, independentemente da sua modalidade.

Por outro lado, para além do Recorrido não ter invocado qualquer direito, o que impossibilitaria o abuso do direito, também não deixa de haver pronúncia, quando se afirma, no acórdão recorrido, não se ter provado que o Recorrido tivesse tido uma atuação pautada pela prossecução dos interesses dos Recorrentes, praticando atos de gestão/administração do seu património. Desta forma, implícita, houve também pronúncia sobre a alegada questão do abuso do direito.

Acresce ainda que tais questões estavam, em grande parte, dependentes da modificação da decisão relativa à matéria de facto, a qual fora impugnada, circunstância que não se verificou, salvo a “alteração introduzida na redação da alínea L) (12) dos factos provados” (fls. 2781).

Nestas circunstâncias, não havendo omissão de pronúncia sobre tais questões, não padece o acórdão recorrido da nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.

Assim, manifestamente, improcede a arguição da nulidade do acórdão.

2.3. Os Recorrentes alegaram, também, a contradição na matéria de facto, nomeadamente entre a especificada em 12 e 16, bem como entre a referida em 15 e 12, 6, 9 e os documentos de fls. 2331, 2332, 2254 a 2255, 2124 a 2126, 1149 a 1159 e 1183 e 1184.

Confrontando os factos especificados em 12 e 16, não existe qualquer contradição. Com efeito, a materialidade, sendo embora diversa, é compatível. Enquanto no primeiro são referidas as condições de intervenção do Recorrido em variados atos, na relação com FF, no segundo, descrevem-se factos definidores da relação entre os Recorrentes e o mesmo FF. Compreendendo realidades diferentes, não conflituam entre si, o que exclui qualquer oposição direta.

Por outro lado, também não se verifica contradição entre a matéria especificada em 15, por um lado, e a matéria constante de 12, 6 e 9, por outro. Na verdade, não existe incompatibilidade entre tais conjuntos de factos, compreendendo realidades diversas que não chocam em confronto entre si.

Naturalmente, nesta sede, os documentos identificados pelos Recorrentes não relevam, na aferição da alegada contradição, porquanto tal representaria uma intolerável usurpação da competência material das instâncias, em termos de decisão sobre a matéria de facto, sendo certo que, por regra, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, apenas conhece de matéria de direito, não podendo a matéria de facto ser alterada, por sua iniciativa, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do art. 674.º do CPC.

Nestas condições, improcede a alegada contradição da matéria de facto.

2.4. Os Recorrentes alegaram ainda a necessidade de ampliação da matéria de facto, nos termos do art. 682.º, n.º 3, do CPC, nomeadamente de que “não foram pagas as dívidas a dois credores dos Recorrentes (…), JJ e LL”, bem como, quanto ao facto referido em 2, a reprodução do documento de fls. 124 a 127.

Relativamente ao primeiro facto, não tem relevância, no âmbito da presente ação, nomeadamente quando na mesma não se provou qualquer relação jurídica entre o Recorrido e os Recorrentes. A questão da condição suspensiva, que o facto poderia consubstanciar, tinha eventual interesse entre os contraentes do contrato-promessa de compra e venda, referido em 11, sem prejuízo dos efeitos do contrato de compra e venda, entretanto, celebrado. De qualquer modo, sendo o Recorrido terceiro no contrato, é irrelevante o seu incumprimento do contrato-promessa, em particular quanto à alegada condição suspensiva.

Foram, aliás, os próprios Recorrentes que, na resposta à contestação, afirmaram tal irrelevância, ao alegarem que “o contrato-promessa nunca poderia ter sido trazido à colação com reta intenção” (fls. 174).

Por sua vez, o facto descrito sob o n.º 2 corresponde à alegação dos próprios Recorrentes, constante do artigo 2.º da petição inicial, e à reprodução parcial da declaração constante da procuração de fls. 124/127, não se justificando, por isso, qualquer ampliação do seu teor.

Aliás, por determinação do Supremo, teve já lugar a ampliação da matéria de facto que se teve por necessário, nomeadamente para a justa decisão da causa.

Nestes termos, por falta de fundamento legal, não se justifica a ampliação da matéria de facto.

2.5. Resolvidas as questões de natureza processual, importa agora decidir das questões substantivas, suscitadas na revista, de modo a resolver a questão principal, se o Recorrido está, ou não, obrigado a prestar contas aos Recorrentes.

Estes, para o efeito, invocaram um mandato sem representação implícito e um consentimento tácito, resultante de uma relação jurídica estabelecida entre FF e o Recorrido, para além de que a afirmação da falta de interesse dos Recorrentes no prédio e no preço é ilegítima, por força do princípio do abuso do direito.

Por sua vez, o Recorrido, para afastar a obrigação da prestação de contas, alega que foi apenas advogado de FF, não tendo qualquer relação jurídica com os Recorrentes.

Desenhadas as posições das partes, o que dizer, na aplicação do direito aos factos provados na ação.

Da materialidade de facto emergente da prova, não se surpreende a existência de qualquer relação jurídica entre os Recorrentes e o Recorrido que obrigasse este a praticar atos jurídicos por conta daqueles, nomeadamente quanto à venda do prédio urbano identificado nos autos. Na verdade, não se encontram declarações recíprocas que permitam concluir que o Recorrido se vinculou, contratualmente, a praticar atos jurídicos, tendo por objeto o referido prédio urbano, por conta dos Recorrentes, e partindo da noção de mandato consagrada no art. 1157.º do Código Civil (CC).

De resto, os Recorrentes fundamentaram a relação jurídica do mandato num alegado substabelecimento (artigo 5.º da petição inicial), que não ficou demonstrado.

A relação jurídica estabelecida entre os Recorrentes e o Recorrido, que os autos ilustram (19), é a da procuração, através da qual os primeiros conferiram ao último poderes representativos (art. 262.º, n.º 1, do CC), como resulta, de forma expressa, da correspondente declaração negocial, nomeadamente quando são conferidos “plenos poderes forenses gerais em direito permitidos” (fls. 916/917).

A distinção entre o mandato e a procuração é clara, pois enquanto aquele constitui um contrato de prestação de serviços destinado à prática de atos jurídicos, independentemente da representação, a procuração é um negócio jurídico através do qual se conferem poderes de representação, não carecendo da coexistência do mandato. Por isso, no comércio jurídico, tanto pode ocorrer o mandato com representação ou sem representação, como também a procuração com mandato ou sem mandato.

No caso vertente, nomeadamente entre os Recorrentes e o Recorrido, apenas existe um caso de procuração, sem qualquer mandato.

A simples outorga da procuração não legitima a obrigação de prestar contas, como quem administra um património alheio, porquanto o procurador se limita a representar a pessoa que lhe outorga tal instrumento de representação.

É certo que o Recorrido, para além da representação, desempenhou ainda outras funções, como os autos mostram, mas tais funções inserem-se, exclusivamente, na relação jurídica estabelecida entre FF, promitente-comprador do prédio e procurador dos Recorrentes, e estes, promitentes-vendedores.

Esta relação jurídica, porque alheia ao Recorrido, não implica para este qualquer obrigação, designadamente de prestar contas, ao contrário do que sustentam os Recorrentes. Podendo haver um mandato sem representação entre FF e o Recorrido, como alegam os Recorrentes, tal situação, quando muito, apenas podia obrigar o Recorrido a prestar contas a FF.

De resto, não se pode esquecer que, quando foi outorgada a procuração irrevogável a favor de FF, em 23 de setembro de 1988, foi também celebrado, para além da constituição de uma procuração forense a favor do Recorrido, o contrato-promessa de compra e venda do prédio, pelo preço de 53 878 888$00, correspondente à totalidade das dívidas garantidas pelo prédio, bem como qualquer outra dívida que tivesse por origem o prédio.

Neste contexto, FF ficou com poderes para negociar o prédio, em seu benefício, com a contrapartida de pagar a dívida conhecida, no valor de 53 878 888$00, ou qualquer outra dívida com origem no prédio.

Na prática, equivaleu a um contrato de “compra e venda”, ainda que sem a outorga de escritura que a validasse formalmente. Nesta circunstância, os Recorrentes perderam, manifestamente, o interesse próprio que corresponde ao de um proprietário.

Por outro lado, com a compra e venda do prédio, realizada por escritura pública de 28 de junho de 1993, o contrato-promessa de compra e venda, antes celebrado entre os Recorrentes e FF (11), deixou de relevar, designadamente, no que respeita aos poderes próprios dos primitivos proprietários do prédio.

Evidentemente que, estabelecendo o contrato-promessa obrigações que vão além da promessa da celebração do contrato prometido de compra e venda, tais obrigações podem permanecer válidas, nomeadamente entre os seus outorgantes, o que não é o caso do Recorrido. Por isso, quanto a este, que é terceiro, tais obrigações não podem justificar a obrigação de prestar contas.

Pertencendo o interesse sobre o prédio a FF, não têm os Recorrentes legitimidade substantiva para exigir do Recorrido a prestação de contas, sendo certo que, fundamentando-se a alegação no mandato, este nem sequer ficou demonstrado, como antes se referiu.

Ao contrário do alegado pelos Recorrentes, não há também qualquer abuso do direito, tal como é definido, em termos objetivos, no art. 334.º do CC., quando se afirma a falta do seu interesse no prédio e no preço.

Com efeito, levando em consideração todo o contexto que rodeou, nomeadamente, a outorga do contrato-promessa de compra e venda (fls. 121 a 123) e da procuração irrevogável passada em 23 de setembro de 1988, não se depara uma situação suscetível de representar um caso de excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito.

Desde logo, não se surpreende qualquer exercício de direito subjetivo tendo por efeito paralisar a prestação de contas. Por outro lado, também não se observa a violação, e muito menos gritante, do princípio da boa fé, assim como a ofensa grave dos bons costumes, isto é, das regras dominantes da moral social de uma determinada época e meio, do conjunto das regras éticas aceites pelas pessoas honestas, corretas e de boa fama (RODRIGUES BASTOS, Das Relações Jurídicas, III, 1968, pág. 188, C. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 1980, pág. 435, e P. PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, 2007, pág. 740).

Não se verificando, pois, qualquer relação jurídica entre os Recorrentes e o Recorrido que justifique a prestação de contas, não podia a ação ter sido julgada senão como improcedente, tal como decidiram as instâncias.

A esta conclusão não obsta, pelo seu teor, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de março de 2007, proferido nos autos, que decidiu anular o acórdão recorrido a fim de ser ampliada e, posteriormente, apreciada e valorada a matéria de facto nos termos referidos (fls. 930 a 939).

Nestes termos, irrelevando as conclusões, não merece provimento o recurso interposto.

    

2.6. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 

I. A afirmação, no acórdão recorrido, da inexistência de qualquer obrigação do recorrido para com os recorrentes contempla uma pronúncia, de sentido negativo, sobre o mandato sem representação.

II. Também não deixa de haver pronúncia sobre o abuso do direito, quando se afirma, no acórdão recorrido, não se ter provado que o recorrido tivesse tido uma atuação pautada pela prossecução dos interesses dos recorrentes, praticando atos de gestão/administração do seu património.

III. Os factos, que compreendem realidades diferentes e diveras, não conflituam entre si.

IV. A distinção entre o mandato e a procuração é clara, pois enquanto aquele constitui um contrato de prestação de serviços destinado à prática de atos jurídicos, independentemente da representação, a procuração é um negócio jurídico através do qual se conferem poderes de representação, não carecendo da coexistência do mandato.

V. Não se verificando qualquer relação jurídica entre as partes, designadamente de mandato, não há obrigação de prestar contas.

2.7. Os Recorrentes, ao ficarem vencidos por decaimento, são responsáveis pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Negar a revista.

2) Condenar os Recorrentes (Autores) no pagamento das custas.



Lisboa, 8 de setembro de 2016


Olindo Geraldes (Relator)


Maria dos Prazeres Beleza


Salazar Casanova