Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
796/08.1TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
CESSÃO DE EXPLORAÇÃO
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
ESCRITURA PÚBLICA
DOCUMENTO PARTICULAR
REVISTA EXCEPCIONAL
REVISTA EXCECIONAL
RELEVÂNCIA JURÍDICA
OBJECTO DO RECURSO
OBJETO DO RECURSO
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / ABUSO DE DIREITO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / REVISTA EXCEPCIONAL ( REVISTA EXCECIONAL ).
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 315 e 316.
- Baptista Machado, “Tutela da confiança e venire contra factum proprium”, Obra Dispersa, Vol. I, 392 e ss. e 415 e ss..
- Baptista Machado, Ob. Cit., 394, 415 e 416.
- C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed. (por Pinto Monteiro e P. Mota Pinto), 435 e ss..
- Calvão da Silva, RLJ 132-268 e ss..
- Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, 734 e ss..
- Heinrich Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, 531 e 532.
- Joana de Vasconcelos, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 496.
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo IV, 309 e ss..
- Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 68 e ss. e 115 e ss.;
- Vaz Serra, Abuso do direito, BMJ 85-253.
“Superação judicial da invalidade formal no negócio jurídico”, em Estudos em Homenagem à Prof. Doutora Isabel de Magalhães Collaço, Vol. II, 335 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 542.º N.º 2, 672.º, N.º 1, ALS. A) E C), N.º 3,
CÓDIGO DO NOTARIADO: - ARTIGO 80.º, N.º 2, AL. M).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 23.03.2006, CJ STJ XIV, 1, 150.
-DE 26.05.2009, DE 08.06.2010, DE 01.07.2010, DE 29.11.2011, DE 28.02.2012, DE 18.12.2012 E DE 04.06.2013, TODOS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Tendo um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial sido celebrado por escrito particular (sendo na altura exigível escritura pública), mas tendo sido executado durante mais de 17 anos, sem nunca ter sido posta em causa a sua validade, a invocação da nulidade por vício de forma, decorrido esse período de tempo, colide intoleravelmente com a boa fé e os bons costumes, defraudando as legítimas expectativas e a confiança da cessionária, fundadas em tal situação.

II - Nestas circunstâncias, a invocação da nulidade formal, não tendo outro propósito que não seja o de a cedente se libertar de um vínculo que se tornou para si desvantajoso, traduz inaceitável venire contra factum proprium, abuso do direito que torna inoperante aquele vício formal.

III - Tendo o recurso sido admitido como revista excepcional, com fundamento no art. 672.º, n.º 1, a), do CPC, pela relevância jurídica da referida questão – se os efeitos da nulidade por vício de forma podem ser paralisados pela invocação do abuso do direito –, só esta questão, assim qualificada e delimitada pela Formação (art. 672.º, n.º 3, do CPC), constitui objecto do recurso.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

AA, LDA propôs esta acção, com processo comum na forma ordinária, contra HOSPITAL ..., E.P.E.

Pediu a condenação do réu:

a) a reconhecer que se mantém em vigor o contrato de cessão ou concessão do ajuizado estabelecimento comercial, sendo o réu cedente ou concedente e a autora cessionária ou concessionária;

b) a reconhecer que ele, réu, incumpriu o dito contrato e se mantém em situação de incumprimento;

c) a cumprir integralmente o mesmo contrato;

d) a restituir em definitivo à autora o mesmo estabelecimento que lhe está concessionado, para a legítima exploração da Cantina/Bar, o seu local e todos os bens que o compõem e que do mesmo espaço retirou;

e) a restituir em definitivo à autora todos os bens móveis afectos ao mesmo estabelecimento e que à autora pertencem em propriedade e que ele também do mesmo espaço retirou;

f) a repor no estado em que se encontrava em 29.02.2008 toda a estrutura física deste estabelecimento, que ele réu destruiu, com as suas ligações e estruturas eléctricas, de água e de gás, aberturas, divisões de espaço, pavimentos, revestimentos, pinturas, materiais componentes e cobertura;

g) ou a suportar o real custo dessa reposição que vier a ser liquidado;

h) a repor à autora todos os bens, equipamentos e utensílios perdidos ou desaparecidos;

i) ou a pagar à autora o respectivo valor, que for liquidado;

j) a reparar todos os bens, equipamentos e utensílios daquele estabelecimento que foram danificados;

k) ou a suportar todo o custo dessa reparação, que vier a ser liquidado;

I) a pagar à autora, a quantia de € 1.005.723,00, como indemnização pelos danos já liquidados, acrescida de juros moratórios desde a citação e até total pagamento;

m) a pagar à autora, como indemnização pelos demais danos materiais, sejam danos emergentes sejam lucros cessantes, e imateriais, o que vier a ser, entretanto, liquidado ou que vier a ser liquidado em execução de sentença, sempre acrescida de juros moratórios desde a citação e até total pagamento.

Como fundamento, alegou que vem, há vários anos, explorando um estabelecimento de cantina/bar, sito nas instalações do hospital gerido pelo R., mediante renda paga mensalmente. Em 1 de Março de 2008, o Réu impediu os trabalhadores da Autora de acederem à referida cantina/bar e nos dias seguintes, os representantes e enviados daquele, forçaram a entrada por arrombamento da porta do mencionado estabelecimento, começando a retirar daí móveis, equipamentos, matérias-primas, produtos alimentares da autora e dinheiro, assim como documentação, levando tudo para local então desconhecido. A Autora instaurou procedimento cautelar de restituição provisória de posse, que foi decretada, mas, aquando da respectiva execução, a cantina/bar estava totalmente reduzida a escombros, sem tectos, chão ou parte das paredes, e com um amontoado de entulho no seu interior, verificando-se igualmente que todos os bens e equipamentos que a integravam dela haviam sido retirados e amontoados de qualquer maneira noutro local do hospital. Parte dos bens, equipamentos e utensílios foram encontrados na zona de armazenamento da cantina/bar, outra parte foi encontrada numa garagem sita também no hospital e outra, ainda, não foi encontrada, nem apareceu. Por via da actuação do réu sofreu, e continua a sofrer, diversos danos, na estrutura física do estabelecimento, em bens, equipamentos, utensílios e produtos consumíveis do estabelecimento, e com encargos com o pessoal afecto ao mesmo, bem como danos do próprio negócio e lucros cessantes.

O Réu contestou, alegando que por diversas vezes comunicou à autora a necessidade de proceder à desocupação do aludido estabelecimento, com vista à realização de obras de reestruturação, de carácter estrutural, integradas na empreitada geral de renovação e ampliação das suas instalações, tendo dado prévio e expresso conhecimento à autora do que iria fazer no dia 1 de Março de 2008, e de que deveria retirar do estabelecimento todos os equipamentos e produtos até às 18 horas do dia 4 desse mesmo mês, disponibilizando o R. os meios necessários ao transporte e armazenamento temporário dos equipamentos e dos produtos não perecíveis. Não tendo a autora feito comparecer no local qualquer representante ou funcionário, decidiu proceder à abertura da porta de entrada do estabelecimento, selando a porta do respectivo escritório, sendo então efectuado o inventário de todos os equipamentos e bens encontrados naquele local, procedendo de seguida à retirada dos bens e equipamentos para fora do estabelecimento, a fim de o mesmo ficar devoluto, os quais foram transportados para a garagem das suas instalações, onde foram acondicionados e guardados, ficando ao inteiro dispor da Autora para serem levantados, com excepção dos produtos perecíveis, que foram doados a uma instituição de solidariedade social. O R. procurou uma solução negociada para a desocupação da cantina/bar e, tendo-se frustrado, uma vez que em Março de 2008 não era possível adiar mais o início da intervenção, porquanto tal implicaria a paralisação de todas as obras em curso, com gravosas consequências operacionais e financeiras, o Réu recorreu para salvaguarda do interesse público à acção directa, desocupando nessa data o estabelecimento. A autora não dispõe de qualquer título que legitime a exploração do mencionado estabelecimento comercial, dado que o vem fazendo com base em mero acordo verbal não reduzido a escrito, conforme legalmente exigido, e sempre o Réu considerou resolvido, desde dia 1 de Março de 2008, tal acordo verbal.

Em reconvenção, pediu que seja declarada a nulidade, por vício de forma, do aludido contrato de cessão de exploração do ajuizado estabelecimento comercial, com todas as legais consequências, ou, quando assim se não entenda, que seja declarado resolvido, desde 1 de Março de 2008, o referido contrato.

Pediu ainda a condenação da Autora a restituir-lhe o espaço físico onde estava instalado o ajuizado estabelecimento comercial e a pagar-lhe a quantia de € 650.000,00, a título de indemnização pelos danos já liquidados decorrentes da paralisação das obras de construção civil, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a notificação até integral pagamento e nos montantes que vierem a ser liquidados, também acrescidos de juros de mora.

A Autora apresentou réplica, respondendo à matéria de excepção e de reconvenção, e sustentando o abuso de direito por parte do Réu ao invocar a nulidade do contrato por vício formal.

O réu treplicou, pugnando pela improcedência do abuso de direito suscitada pela autora.

Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença com este dispositivo:

"Pelo exposto julga-se parcialmente procedente a presente acção em consequência do que se condena o réu:

a) a reconhecer que se mantém em vigor o contrato de cessão de exploração do ajuizado estabelecimento comercial, sendo o réu cedente e a autora cessionária;

b) a restituir em definitivo à autora o mesmo estabelecimento, para a legítima exploração da cantina/bar, o seu local e todos os bens que o compõem e que do mesmo espaço retirou;

c) a repor no estado em que se encontrava em 29 de Fevereiro de 2008 toda a estrutura física deste estabelecimento, com as suas ligações e estruturas eléctricas, de água e de gás, aberturas, divisões de espaço, pavimentos, revestimentos, pinturas, materiais componentes e cobertura;

d) a pagar à autora a quantia já líquida no montante de € 10.520,00 (dez mil quinhentos e vinte euros ), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento;

e) a pagar a importância que se vier a apurar em incidente de liquidação referente aos danos em bens, equipamentos e utensílios do estabelecimento, encargos com o pessoal afecto ao estabelecimento e danos próprios do negócio e lucros cessantes.

Outrossim decide julgar-se improcedente o pedido reconvencional absolvendo a autora dos pedidos contra si formulados".

Discordando desta decisão, o réu interpôs recurso de apelação, que a Relação julgou improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Ainda inconformado, veio o réu interpor recurso de revista excepcional, nos termos do art. 672º, nº 1, a) e c), do CPC, que foi admitida.

No recurso apresentou as seguintes conclusões:

1. a 19. (admissibilidade da revista excepcional)

§. Da nulidade do acórdão recorrido

20. Nas conclusões com que findou as alegações de recurso de apelação - sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso -, o Recorrente, a dado passo, suscitou a seguinte questão a propósito da invocada nulidade, por vício de forma, do ajuizado contrato:

IIXC. Como decorre do preceituado no art. 286º do CC, a nulidade é invocável a todo o tempo e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal, pelo que poderia (e deveria) o douto Tribunal a quo ter declarado a nulidade do contrato em apreço, por preterição de forma legal, com as consequências previstas no art. 289º do CC.

XCI. Contudo, pese embora ter esse poder-dever que não sofre qualquer contestação quer doutrinária, quer jurisprudencial, o Tribunal a quo não emitiu tal juízo de invalidade contratual, conduta omissiva essa que resulta claramente violadora do disposto no citado art. 286º e que, portanto, não se pode aceitar.

21. Acontece que, compulsado o acórdão recorrido, verificamos que o Tribunal da Relação não atentou minimamente nesta questão suscitada pelo Recorrente, tendo-a ignorado por completo, sendo que esta é uma verdadeira questão que cumpre ao Tribunal solucionar. Mais, estamos perante uma questão cuja decisão não se revela prejudicada pela solução que tenha sido dada a outra questão que haja sido apreciada.

22. Assim sendo, o acórdão recorrido padece de nulidade por omissão de pronúncia, na justa medida em que os Exmos. Senhores Juízes Desembargadores deixaram de pronunciar-se sobre uma questão que deviam apreciar, o que se invoca para todos os legais efeitos, nos termos do disposto nos arts. 615.°, n.ºs 1, al. d), e 4 ex vi art. 666.°, n.º 1, e 674.°, n.º 1, al. c), todos do CPC.

§. Da interpretação e aplicação do Direito ao caso concreto - a violação de lei substantiva

23. No acórdão recorrido são inteiramente sufragadas as posições assumidas pelo Mmo. Juiz de 1.ª Instância relativamente às diversas questões jurídicas em causa nestes autos.

24. Ora, salvo o devido respeito, afigura-se que no acórdão recorrido foram interpretadas e aplicadas erradamente diversas normas jurídicas. Ademais, naquele mesmo aresto foram desconsideradas, não tendo sido aplicadas, normas jurídicas que se afiguram relevantes e essenciais para a boa decisão da causa.

25. É pacífico que entre as partes foi celebrado um contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, tendo por base um mero acordo verbal que nunca foi reduzido a escrito.

26. Ora, o contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial esteve sujeito a escritura pública, nos termos da al. m) do n.º 2 do art. 80.° do Código do Notariado - na redacção do DL n.º 40/96, de 7 de Maio -, até 1/05/2000, data da entrada em vigor do DL n.º 64-A/2000, de 22 de Abril, que reduziu a exigência da forma desse tipo de contratos a documento escrito.

27. Tal forma constitui um requisito ad substantiam, cuja preterição gera a nulidade do contrato, como flui do disposto no art. 220.° do CC. Deste modo, tendo o ajuizado contrato sido celebrado por mero acordo verbal, o mesmo enferma de nulidade por vício de forma e, por isso, é insusceptível de produzir quaisquer efeitos jurídicos.

28. Como decorre do preceituado no art. 286.° do CC, a nulidade é invocável a todo o tempo e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal. Assim, poderia (e deveria) o Tribunal - desde logo, o de 1.ª Instância, mas também, atenta a inércia daquele, a própria Relação - ter declarado a nulidade do contrato em apreço, por preterição de forma legal, com as consequências previstas no art. 289.º do CC.

29. Pese embora ter esse poder-dever que não sofre qualquer contestação seja doutrinária, seja jurisprudencial, quer o Tribunal de 1.ª Instância, quer a Relação não emitiram tal juízo de invalidade contratual. Tal conduta omissiva resulta clara e inexoravelmente violadora do disposto no citado art. 286.°, o que expressamente se invoca para os legais efeitos.

30. Quer o Tribunal de 1.ª Instância, quer a Relação consideraram que a arguição daquela nulidade formal feita pelo ora Recorrente configura abuso do direito, nos termos do art. 334.° do CC, na modalidade de venire contra factum proprium.

31. Mais uma vez, sempre salvo o devido respeito, não andaram bem quer o Tribunal de 1.ª Instância, quer a Relação, pois não se apurou qualquer facto de que se pudesse concluir que a conduta do Recorrente assumisse uma manifesta e intolerável má fé, nomeadamente que tivesse dado causa à omissão da outorga da escritura pública ou de documento escrito, de forma a ocorrer o mencionado instituto de abuso do direito a obstar à nulidade do contrato.

32. Acresce que existem elementos nos autos que afastam em absoluto o juízo de censura que recaiu sobre o comportamento do Recorrido consubstanciado na invocação da mencionada nulidade contratual, os quais foram até agora absolutamente ignorados, a saber:

(i) O DOC. 21 junto com a P.I. do apenso A (fls. 63-64) e mencionado no artigo 36. da P.I. desta acção [carta do recorrente para a Recorrida (entregue em 10/10/2007)]:

"4 - Quando, em finais de 2008 estiver concluído o novo pavilhão de consultas externas, poderá ser-lhe disponibilizada, em substituição, e desde que com a devida cobertura jurídica, uma área nova para funcionamento da Cantina-Bar."

(ii) O DOC. 23 junto com a P.I. do apenso A (fls. 68-70) e mencionado no artigo 36. da P.I. desta acção [carta da Recorrida para o Recorrente (datada de 11/10/2007)]:

"Estamos de acordo que, quanto à solução definitiva e até mesmo quanto à provisória deva ser dada a devida cobertura jurídica, por forma a que não se verifique a actual situação de indefinição contratual.»

"Em nome da certeza, da segurança e da transparência é pois crucial que os nossos acordos sejam objecto de contratualização juridicamente adequada."

(iii) O DOC. 32 junto com a Oposição do Apenso A (fls. 394-395) e mencionado no artigo 134 da Contestação/Reconvenção [carta de "BB, Lda." (primitiva concessionária) para o Recorrente (datada de 25/08/1999)]:

"Há cerca de dezoito meses, foi esta sociedade defrontada com o concurso público n.º 1/98-D, para a concessão e exploração da Cafetaria/Bar, instalada nesse Hospital.

(...) verifica-se que nenhuma decisão foi tomada, no âmbito daquele concurso, ou à margem dele, que possa ter atribuído a alguém, com carácter formal e estável, a exploração da cantina.

E assim, vem a signatária assegurando a dita exploração, fazendo-o, ao que julga, em termos precários. (...)

Com efeito, colocada, a todo o tempo, perante a possibilidade da cessação efectiva do contrato de exploração, (...).

Nestas circunstâncias, e numa tentativa justa, razoável e equilibrada, para ambas as partes, de ultrapassar aqueles problemas, vimos propor-lhes a celebração de um novo contrato, por ajuste directo... "

(iv) O DOC. 33 junto com a Oposição do Apenso A (fls. 396-398) e mencionado no artigo 136 da Contestação/Reconvenção [parecer jurídico (datado de 23/09/1999)]: «… não nos parece, no entanto, possível fazer um ajuste directo..."

(v) O DOC. 34 junto com a Oposição do Apenso A (fls. 399) e mencionado no artigo 138 da Contestação/Reconvenção [carta de "BB, Lda." (primitiva concessionária) para o Recorrente (datada de 22/05/2001):

"Na hipótese de ser entendido que o proposto contrato não é, legalmente, susceptível de ajuste directo, propomos, em tal caso, que nos seja atribuído o direito de preferência na adjudicação..."

(vi) O DOC. 35 junto com a Oposição do Apenso A (fls. 400-402) e mencionado no artigo 140 da Contestação/Reconvenção [parecer jurídico (datado de 31/05/2001)]:

"No que respeita ao ajuste directo, é opinião da signatária que tal não é possível. (...)

Deste modo, (...), julga-se ser de abrir concurso para o serviço em questão. (...) Quanto à possibilidade do critério de preferência em caso de concurso, os critérios são indicados nos documentos que servem de base ao procedimento.

A ser incluído, será apenas um critério de desempate..."

33. Não se consegue pois descortinar onde, como e em que medida é que o Recorrente incorreu em abuso do direito, tanto mais que é inegável que a Recorrida sempre foi conhecedora da invalidade formal do contrato e sempre esteve consciente de que explorava o dito estabelecimento comercial de forma absolutamente precária e por mera tolerância do Recorrente, assim como sempre teve consciência do risco de ver declarado nulo aquele contrato.

34. Mais, nunca e fosse por que forma fosse, o Recorrente fez crer à Recorrida que tal declaração de nulidade nunca viesse a ocorrer (aliás, nem estava em posição de o poder fazer, atenta a sua natureza de entidade pública e, portanto, sujeita às regras legais disciplinadoras da contratação pública); ou seja, o Recorrente não adoptou qualquer conduta susceptível de criar na Recorrida a convicção de que a invocação daquela nulidade não seria nunca efectuada - e, portanto, não se pode dizer que a Recorrida tenha delineado a sua actividade em função de qualquer conduta do Recorrente naquele sentido -, pelo que, ao fazer essa invocação, o Recorrente não incorreu num venire contra factum proprium.

35. Nesta parametria, não ocorrendo a situação de abuso do direito prevista no art. 334.° do CC, a invocação da nulidade do ajuizado contrato, por vício de forma, feita pelo Recorrente é legítima e plenamente eficaz.

36. Ao ter decidido de forma diferente, o acórdão recorrido interpretou e aplicou erradamente o citado art. 334.°, o qual resulta assim manifestamente violado.

37. Sendo nulo o contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial em apreço, por inobservância da forma legal, opera-se o efeito retroactivo decorrente dessa nulidade, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (art. 289.°, n.° 1, do CC).

38. Pelo que, in casu, a Recorrida está obrigada a restituir ao Recorrente o estabelecimento comercial de cantina/bar, ou seja, a Recorrida está obrigada a restituir ao Recorrente, desde logo, o respectivo espaço físico, cuja posse lhe foi provisoriamente restituída. Outrossim, a Recorrida está ainda obrigada a restituir ao Recorrente todos os bens e equipamentos integrantes desse estabelecimento e que, nessa medida, são propriedade do Recorrente, cuja posse lhe foi também provisoriamente restituída.

39. Consequentemente, devem naufragar os pedidos da Recorrida no sentido quer de lhe ser restituído o dito estabelecimento comercial, para a legítima exploração da cantina/bar, o seu local e todos os bens que o compõem, quer de ser reposto no estado em que se encontrava em 29 de Fevereiro de 2008 toda a estrutura física deste estabelecimento, com as suas ligações e estruturas eléctricas, de água e de gás, aberturas, divisões de espaço, pavimentos, revestimentos, pinturas, materiais componentes e cobertura.

40. Relativamente ao pedido de reposição no estado em que se encontrava em 29 de Fevereiro de 2008 de toda a estrutura física do estabelecimento de cantina/bar, com as suas ligações e estruturas eléctricas, de água e de gás, aberturas, divisões de espaço, pavimentos, revestimentos, pinturas, materiais componentes e cobertura, a Relação, à semelhança do que o Tribunal de 1.ª Instância já havia feito, desconsiderou o facto de o Recorrente - em cumprimento do ordenado a final no âmbito da providência cautelar de restituição provisória de posse, isto é, após a dedução de Oposição pelo Recorrente e a realização da respectiva audiência final - ter reconstruído integralmente o espaço físico da cantina/bar, respeitando as áreas e o pé-direito anteriormente existentes, apetrechando-a com todos os bens e equipamentos (inteiramente novos) necessários ao seu normal funcionamento [vide relatório pericial de fls. 1611 a 1626 e, concretamente, as respostas ao quesito 10.° da autora e aos quesitos 9.°, 10.° e 11.° do Réu; vide ainda os esclarecimentos adicionais prestados pelos peritos e constantes de fls. 1884 a 1889 dos autos e, concretamente, os referentes à "Questão IV" e à "Questão VII" do ponto "2. Resposta ao quesito 10.° da Autora"], obra essa que foi concluída em 9 de Dezembro de 2008.

41. Tal factualidade foi comunicada pelo Recorrente ao Tribunal de 1.ª Instância, no âmbito do Apenso A, por meio de requerimento apresentado em 10 de Dezembro de 2008 (cfr. fls. 732 a 736).

Mais, como flui do documento junto a esse mesmo requerimento, o Mandatário da Recorrente comunicou ao Ilustre Mandatârio da Recorrida, em 9 de Dezembro de 2008, que "as obras se encontram totalmente terminadas e a cantina devidamente montada, pelo que a sua cliente poderá entrar na posse da mesma a partir das 8 (oito) horas do dia 10 do corrente mês, (...). As chaves do estabelecimento encontram-se na secção de "Instalação e Equipamento", onde o cliente de V.ª Ex.ª as poderá levantar partir daquela hora. Todo o material que não foi utilizado por ter sido substituído por equipamentos novo, encontra-se à disposição do cliente de V.ª Ex.ª, podendo ser levantado de imediato na garagem do hospital."

A Recorrida respondeu a tal comunicação do Recorrente por meio do requerimento apresentado em 22 de Dezembro de 2008 (cfr. fls. 738-739 do Apenso A), no qual afirma que "não aceita «entrar de imediato na posse da cantina/bar» nas condições atrabiliárias, e ainda não confirmadas por qualquer forma, que o RDO. almeja".

42. A este propósito, salvo o devido respeito, discorda-se da posição assumida no acórdão recorrido, preconizando que esta factualidade só poderia ser tida em consideração neste processo se o Recorrente a tivesse oportunamente carreado para os autos por via da apresentação de um articulado superveniente, pelo que, não o tendo o Recorrente feito, está proscrita ao Tribunal a possibilidade de a ela atender.

43. Porquanto, desde logo, importa ter presente que "a selecção da matéria de facto, realizada no saneamento, é meramente instrumental ou provisória, estando sujeita às alterações que vierem a justificar-se, em obediência ao princípio da verdade material, que é um dos princípios basilares do processo civil e que prevalece em relação à tramitação (ordenadora) estabelecida" (acórdão do STA de 13/09/2007 (processo n.° 0475/06), disponível em www.dgsi.pt).

Nessa esteira, há que chamar à colação diversas normas do CPC que apontam em sentido diverso do assumido no acórdão recorrido e que, salvo melhor opinião, impunham e impõem que se considere e referenciada factualidade:

- Artigo 264.°, n.º 2 (vide actual art. 5.°, n.º 2, al. c)): (…)

- Artigo 514.º, n. ° 2 (actual art. 412.º, n.° 2): (…)

- Artigo 663.°, n.ºs 1 e 2 (actual art. 611.°, n.ºs 1 e 2): (…)

44. No seio destas normas, sobressai uma que, pela sua particular relevância, deveria ter sido tida em devida conta pela Relação e não o foi: aludimos à norma do art. 514.°, n.º 2 (actual art. 412.°, n.º 2), do CPC. Efectivamente, estando a factualidade em apreço demonstrada no Apenso A, estamos perante factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, os quais, para além de não carecerem de alegação, têm de ser considerados pelo tribunal na decisão do caso sub judice.

Acresce que a consideração daquela factualidade, ao abrigo das normas legais ora transcritas, em nada colide com o disposto no actual art. 364.°, n.º 4, do CPC, pois não está a atender-se nem ao julgamento da matéria de facto, nem à decisão final proferida no Apenso A para efeitos do julgamento da acção principal.

45. Assim, sem nunca prescindir quanto à nulidade do ajuizado contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, afigura-se que, neste concreto âmbito, o acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 264.°, n.º 2 (actual art. 5.°, n.º 2, al. c)), 514.°, n.º 2 (actual art. 412.°, n.º 2) e 663.°, n.ºs 1 e 2 (actual art. 611.°, n.ºs 1 e 2), todos do CPC.

46. Sendo nulo, como efectivamente é, o ajuizado contrato celebrado entre as partes, não pode a Recorrida pretender ser indemnizada pelos prejuízos patrimoniais (danos emergentes e lucros cessantes) que alega ter sofrido como decorrência directa do alegado incumprimento contratual que imputa ao Recorrente, uma vez que tal pressuporia a validade do contrato.

47. Assim, nesse concreto enquadramento e em abstracto, à Recorrida apenas seria lícito peticionar o direito a ser indemnizada por responsabilidade civil pré-contratual, em função do interesse contratual negativo ou dano de confiança, isto é, do prejuízo que não teria se não tivesse celebrado o contrato. No entanto, no caso concreto, a Recorrida optou por seguir na senda da manutenção do referenciado contrato, estribando toda a sua linha argumentativa na pressuposta existência de um contrato plenamente válido e eficaz, não tendo pois peticionado qualquer indemnização com base no interesse contratual negativo.

Deste modo, não restam quaisquer dúvidas de que estão votados ao insucesso os pedidos indemnizatórios deduzidos pela Recorrida (vide, neste sentido e entre outros, o acórdão do TRL de 29/04/1993 (processo n.° 0068332), disponível em www.dgsi.pt).

48. Tendo decidido como decidiu a este propósito, dando provimento na sua quase totalidade aos pedidos indemnizatórios formulados pela Recorrida, a Relação interpretou e aplicou incorrectamente o disposto nos arts. 798.°, 1031.°, al. b), 1034.°, n.º 2 e 1037.°, n.º 1, todos do CC, normas estas que resultaram pois violadas.

49. Ainda a propósito dos alegados prejuízos patrimoniais que a Recorrida alega ter sofrido, importa salientar a factualidade descrita nos pontos 73.° a 81.°, inclusive, dos factos provados, da qual flui com meridiana clareza quer o manifesto interesse público que esteve na génese das obras de remodelação, ampliação e requalificação do Hospital ..., quer a lisura e correcção que sempre pautaram a actuação do Recorrente para com a Recorrida.

50. Neste enquadramento, a actuação do Recorrente, consubstanciada no recurso à acção directa, afigura-se manifestamente justificada e lícita, na justa medida em que estão preenchidos in totum os requisitos para tal estatuídos no art. 336.° do CC.

51. Desta forma - sempre sem prescindir quanto à nulidade do ajuizado contrato e à consequente inatendibilidade da pretensão da Recorrida de ser indemnizada pelos prejuízos patrimoniais que alega ter sofrido -, a Relação, não tendo considerado justificada a actuação do Recorrente com recurso à acção directa, interpretou e aplicou incorrectamente o art. 336.° do CC, norma esta que resulta pois violada.

52. Na justa medida em que o referenciado contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial é nulo, por vício de forma, a Recorrida não dispunha, como não dispõe, de qualquer título que legitime aquela exploração, como ela bem sabe e sempre soube, pelo que a Recorrida vinha explorando o citado estabelecimento de cantina e bar de forma meramente precária e por mera tolerância do Recorrente.

53. Por isso, afigura-se ilegítimo o recurso à providência cautelar de restituição provisória de posse por parte da Recorrida, tendo esta, com essa sua actuação e na justa medida em que violou deveres jurídicos gerais, incorrido no disposto no art. 483.°, n.º 1, do CC, com a consequente obrigação de indemnizar o Recorrente por todos os prejuízos daí decorrentes.

54. Tal indemnização deve ser determinada nos termos do disposto nos arts. 562.° e seguintes do CC, a qual, atentos os elementos constantes dos autos e a factualidade considerada provada, deve ser, desde já, fixada em montante nunca inferior a € 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil euros).

55. Ao ter mantido a decisão de 1.ª Instância, nesta matéria, o acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 483.°, n.º 1, e 562.° e seguintes do CC.

56. Prevenindo a hipótese de não proceder o pedido reconvencional de declaração de nulidade, por vício de forma, do ajuizado contrato, o Recorrente peticionou subsidiariamente que fosse declarado resolvido, desde 1 de Março de 2008, esse mesmo contrato.

57. Como decidido no acórdão da TRC de 17/04/2012 (processo n.° 221/09.0TBCDN.C1), disponível em www.dgsi.pt, a declaração resolutória "não está sujeita a forma especial, ainda que o contrato a cuja resolução se dirige o esteja e, por isso, pode ser mesmo meramente tácita (art. 217.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil). A declaração negocial da qual resulta a resolução do contrato pode ser expressa, afirmando a parte peremptoriamente que pretende a resolução; mas pode também ser meramente tácita, o que ocorrerá com a declaração na qual a parte que a emite não afirma claramente que tem a intenção de extinguir o contrato, mas de que se deduza que é esse o seu propósito."

58. Sendo assim, o facto de o Recorrente ter devolvido à Recorrida o valor da renda da cantina/bar referente ao mês de Março de 2008, com a menção de ter sido indevidamente paga, configura uma declaração resolutória tácita - um declaratário normal, colocado na posição da Recorrida, deduziria desse comportamento do Recorrente a intenção de resolver o ajuizado contrato (cfr. art. 236.°, n.º 1, do CC; como referem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 223), "o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante" - plenamente eficaz, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 432.° e seguintes do CC, com todas as legais consequências, maxime devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (art. 289.°, n.º 1, aplicável ex vi art. 433.°, ambos do CC).

59. Nesta medida, no acórdão recorrido foram interpretados e aplicados incorrectamente os arts. 217.°, 236.°, n.º 1 e 432.° e seguintes do CC, os quais se mostram pois violados.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente, deve ser revogado o douto acórdão recorrido e substituído por outro que contemple as conclusões acima aduzidas, com todas as legais consequências.

A recorrida contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso e pedindo que o recorrente seja condenado como litigante de má fé, "porque os fundamentos usados para a admissibilidade (do recurso) foram falseados".

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

O Recorrente invoca a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia;

Discute-se também, no essencial, tal como foi definida no Acórdão da Formação (fls. 3103), a questão de saber se os efeitos da nulidade por vício de forma podem ser paralisados através da invocação do abuso do direito.

Por fim, cumpre apreciar se, como foi invocado nas contra-alegações, existe litigância de má fé do Recorrente.

III.

Vêm provados os seguintes factos:

1º- O réu é titular de um estabelecimento comercial dito de «cantina-bar», sito no Hospital ... no Porto, cantina instalada com o propósito de servir refeições e prestar serviços de bar (alínea A) da matéria de facto assente).

2º- A entidade antecessora do réu, através de contrato escrito, que se mostra junto a fls. 21 a 25 do apenso A, deu de exploração à então sociedade «BB, Lda.» o dito estabelecimento pelo prazo de seis anos e um mês, com termo em 31 de Dezembro de 1996 (al. B) da matéria de facto assente).

3º- A autora vem explorando, como sucessora da primitiva concessionária, o mesmo estabelecimento de cantina-bar, sempre por referência à pessoa do Sr. AA, já sócio-gerente da sociedade «BB, Lda.», na qual já detinha uma quota de capital de 95%, depois dissolvida, a que se seguiu a autora, da qual também é sócio-gerente com uma quota de 95% do capital social (alínea C) da matéria de facto assente).

4º- A concessionária sempre pagou mensalmente o preço da concessão (alínea D) da matéria de facto assente).

5º- O réu devolveu à autora o pagamento da última renda referente ao mês de Março de 2008 (alínea E) da matéria de facto assente).

6º- Na exploração da cantina-bar, a autora servia refeições diárias, quer a pessoal de serviço interno, incluindo aos membros da própria administração hospitalar, quer a diversos outros utentes externos que àquele Hospital se deslocam e que acompanham aqueles, quer mesmo aos inúmeros alunos da faculdade de medicina que ali funciona (alínea F) da matéria de facto assente).

7º- O dito estabelecimento estava em pleno funcionamento e apresentava-se em bom estado (alínea G) da matéria de facto assente).

8º- Levou o réu a cabo diversas obras no Hospital ... que incluíram a construção de sete novos pisos sobre o edifício do Hospital já existente (alínea H) da matéria de facto assente).

9º- No dia 28/02/2008, o réu fez entregar em mão à autora, uma carta em que invocava que «está em causa a segurança de pessoas e bens» e informava que «no próximo sábado, dia 01/03/2008, este Hospital irá tomar posse das instalações da cantina-bar a fim de dar início imediato às obras» e de que à autora seria «facilitada a retirada do equipamento e dos produtos que lhe pertencem desde que seja concretizado até às 18 horas do dia 04/03/2008», invocando, ainda, na carta, que as obras «são de inegável interesse público» (alínea I) da matéria de facto assente).

10º- No dia 1 de Março de 2008, a partir das 00:00 horas, por deliberação do Conselho de Administração do réu, foram iniciados os trabalhos de isolamento e encerramento do estabelecimento de cantina-bar, com a colocação de taipais de madeira no espaço exterior circundante ao mesmo, a fim de impedir o respectivo acesso por parte de funcionários e clientes, trabalho esse que ficou concluído durante a madrugada daquele dia 1 de Março (alínea J) da matéria de facto assente).

11º- Durante a execução de tal trabalho, não esteve no local qualquer legal representante e/ou funcionário da autora (alínea L) da matéria de facto assente).

12º- No dia 4 de Março seguinte, a partir das 18h25m, em cumprimento de Deliberação do Conselho de Administração do réu, procedeu-se à abertura da porta de entrada e das respectivas grades interiores do estabelecimento, sem a presença de qualquer legal representante e/ou funcionário da autora, tendo-se fotografado e filmado todo o local e respectivo recheio, selados e acondicionados os documentos, máquinas registadoras e valores ali existentes e selada a porta do escritório do estabelecimento com poliuretano, após o que foi feito o inventário de todos os equipamentos e bens encontrados naquele local (alínea M) da matéria de facto assente).

13º- De seguida, iniciou-se a retirada dos equipamentos e bens para fora do estabelecimento, os quais foram transportados para a garagem das instalações do réu, onde foram acondicionados e guardados, à excepção dos bens perecíveis, que foram doados à instituição de solidariedade designada «Casa do Gaiato» (alínea N) da matéria de facto assente).

14º- A autora requereu providência cautelar de restituição provisória de posse no Tribunal Administrativo do Porto que, por despacho de 23/05/2008, se considerou absolutamente incompetente para a questão (alínea O) da matéria de facto assente).

15º- A autora requereu, então, procedimento cautelar de restituição provisória de posse nos Juízos Cíveis do Porto, tendo a providência sido decretada, inicialmente e, posteriormente, após oposição, sido reduzida, tudo conforme consta do apenso a este processo, designado pela letra A (alínea P) da matéria de facto assente).

16º- Em 2 de Julho de 2008, aquando do cumprimento da ordem de restituição provisória da posse, o espaço que constituía o estabelecimento da cantina-bar, estava totalmente reduzido a escombros, sem tectos, chão ou parte das paredes e com um amontoado de entulho no seu interior, daí tendo sido retirados todos os equipamentos que o integravam, com prévio arrancamento dos que eram fixos, inclusive, toda a estrutura de madeira e espelhos que o forrava e decorava, móveis, utensílios, produtos alimentares e bebidas, caixas registadoras, bem como equipamentos, móveis e utensílios dos diversos serviços de apoio, tais como lavabos, sanitas, vestiários e mobiliário de armazenamento (alínea Q) da matéria de facto assente).

17º- Após o que se refere em 12°, o réu procedeu ao corte dos fornecimentos de energia eléctrica e de água ao local do estabelecimento e arrancou e retirou os respectivos contadores, cabos e canalizações (alínea R) da matéria de facto assente).

18º- Aquando da restituição provisória de posse, a autora reconduziu para o espaço que havia sido do estabelecimento, todos os bens, equipamentos e utensílios que se encontravam armazenados na garagem (alínea S) da matéria de facto assente).

19º- O equipamento, em sentido geral de bens móveis, equipamentos vários e utensílios diversos, que constituiu o estabelecimento era o constante do Anexo II ao primitivo contrato que, pelas suas naturais utilizações e obsolescências, foi sendo substituído por bens de muito melhor qualidade, que a autora adquiriu (alínea T) da matéria de facto assente).

20º- Na exploração da cantina-bar a autora tinha 24 trabalhadores, entretanto reduzidos a 23, por uma das trabalhadoras ter terminado o seu contrato em meados de Março de 2008 (resposta ao facto controvertido n° 1).

21º- Na cantina-bar eram servidas, em média, entre 500 a 600 refeições diárias (resposta ao facto controvertido n° 2).

22º- As obras que o réu decidiu efectuar, referidas em 8º, foram obras de alteração da estrutura exterior do edifício do Hospital ..., com aumento de pisos em determinada zona (resposta ao facto controvertido n° 3).

23º- No plano de obras, o réu, por sua exclusiva iniciativa, decidiu incluir também o espaço por cima do referido estabelecimento objecto da cessão (resposta ao facto controvertido n° 4).

24º- O réu estabeleceu contactos com a autora, indagando da possibilidade de dentro do estabelecimento proceder, também, a obras (resposta ao facto controvertido n° 5).

25º- Sugerindo-lhe a possibilidade de a autora transferir provisoriamente as instalações do estabelecimento para outro local, inicialmente em contentores que o réu disponibilizaria, durante o período das obras, que estimava em 3 meses, com a promessa de regresso ao local, após as obras (resposta ao facto controvertido n° 6).

26º- Posteriormente, o réu informou que pretendia aquele mesmo espaço para outro fim e a futura transferência do estabelecimento para outro lugar dentro do Hospital, mas nunca antes do ano 2010 (resposta ao facto controvertido n° 7).

27º- E pretendendo que as eventuais obras do hipotético outro espaço fossem da conta da autora (resposta ao facto controvertido n° 8).

28º- A autora mostrou-se disponível para negociar esta alternativa (resposta ao facto controvertido n° 9).

29º- A autora pediu um estudo da situação, a partir do qual obteve orçamento para a sua execução, que entregou ao réu (resposta ao facto controvertido n° 10).

30º- Seguiram-se negociações entre as partes, desde Novembro de 2006, até Janeiro de 2008 (resposta ao facto controvertido n° 11).

31º- A invocação de que estava em causa a segurança de pessoas e bens, referida em 9º, foi feita, pela primeira vez, nessa carta de 28/02/2008 (resposta ao facto controvertido n° 12).

32º- Em 28.02.2008, tal como a obra estava a ser desenvolvida, não havia perigo de segurança de pessoas e/ou bens (resposta ao facto controvertido n° 13).

33º- Após o que se refere em 10°, o réu fez deslocar para a zona um conjunto de «seguranças», como tal identificados, que impediam o acesso, fosse por quem fosse, opondo-se a que os trabalhadores entrassem no estabelecimento ou aí buscassem fosse que objecto fosse (resposta ao facto controvertido n° 14).

34º- De entre os bens retirados do estabelecimento na altura referida em 13°, estava documentação da sociedade, incluindo documentos oficiais, escrita social, carimbos, papéis timbrados, valores vários e dinheiro, no montante de cerca de cinco mil euros (resposta ao facto controvertido n° 15).

35º- Durante todo o período de tempo que mediou entre os dias 1 e 4 de Março de 2008, nunca compareceu naquele local, nem nas instalações do réu, qualquer legal representante da autora (resposta ao facto controvertido n° 16).

36º- O réu comunicou à autora que os bens e equipamentos retirados do estabelecimento, bem como o recheio do escritório, estavam ao seu dispor, para serem levantados e retirados (resposta ao facto controvertido n° 17).

37º- Parte dos bens referidos em 13°, nunca foi encontrada (resposta ao facto controvertido n° 18).

38º- O que se refere em 18° foi feito com carros e pessoal que, para o efeito, a autora contratou e pagou, no valor de € 480,00 (resposta ao facto controvertido n° 19).

39º- Tendo ainda a autora pago, no acto da restituição provisória de posse, a quantia de € 1440,00, por assistência técnica à mesma e € 600,00 para a reportagem fotográfica, destinada a fixar a situação encontrada (resposta ao facto controvertido n° 20).

40º- A autora rejeitou a devolução da renda a que se refere em 5º (resposta ao facto controvertido n° 21).

41º- Aquando da restituição provisória de posse, a autora teve de proceder à vedação do espaço por meios provisórios, a fim de evitar o seu devassamento ao nível do piso em que o estabelecimento estava instalado (resposta ao facto controvertido n° 22).

42º- O réu procedeu a uma construção nova, com rompimento vertical dos pisos para uso por elevadores, na zona onde funcionava a cozinha, ocupando parcialmente o respectivo espaço (resposta ao facto controvertido n° 23).

43º- O réu removeu as ligações de gás, que eram alimentadas por botijas que se encontram no exterior (resposta ao facto controvertido n° 24).

44º- E arrancou e retirou toda a instalação de ar condicionado (resposta ao facto controvertido n° 25).

45º- A reposição do espaço do estabelecimento tal como se encontrava antes da ocupação pelo réu terá um custo concretamente não apurado (resposta ao facto controvertido n° 26).

46º- Para além dos bens referidos em 19°, a autora acrescentou muitos outros bens (resposta ao facto controvertido n° 27).

47º- Parte dos bens, equipamentos e utensílios que o réu retirou do estabelecimento, foram encontrados danificados (resposta ao facto controvertido n° 28).

48º- E parte estarão mesmo inutilizados (resposta ao facto controvertido n° 29).

49º- Esses bens danificados e inutilizados têm um valor concretamente não apurado (resposta ao facto controvertido n° 30).

50º- Estão desaparecidos bens de valor concretamente não apurado (resposta ao facto controvertido n° 31).

51º- O volume de compras de produtos alimentares (comidas e bebidas) e produtos de limpeza, de higiene, de embalagem e de plásticos, pela autora, atingiu um total de € 190.579,92, no ano de 2007 (resposta ao facto controvertido n° 32).

52º- As compras mensais da autora representam uma média de € 15.881,66 (resposta ao facto controvertido n° 33).

53º- No estabelecimento existiam, então, o equivalente a, pelo menos, uma semana de compras quanto a produtos frescos e três semanas a um mês de compras no que se refere a bebidas, enlatados e outros produtos (resposta ao facto controvertido n° 34),

54º- Em consequência dos factos relatados, a autora deixou de pagar os salários aos seus trabalhadores (resposta ao facto controvertido n° 35).

55º- No final de Março de 2008, a autora encaminhou os seus trabalhadores para a Segurança Social, a fim de requererem subsídio temporário de desemprego (resposta ao facto controvertido n° 36).

56º- Vinte deles suspenderam os seus contratos de trabalho e começaram a receber o subsídio de desemprego em Abril de 2008 (resposta ao facto controvertido n° 37).

57º- Os encargos salariais que a autora suportava eram no montante bruto mensal de € 18.761,75, acrescidos de 23,75% de encargos para a Segurança Social, no valor também mensal de € 4455,92 (resposta ao facto controvertido n° 38).

58º- Na exploração da cantina-bar, a autora, nos anos de 2005, 2006 e 2007, teve um volume de vendas médio de cerca de € 50.957,08 mensais (resposta ao facto controvertido n° 39).

59º- A autora facturou em 2005, € 662.074,11, em 2006, € 583.891,93 e em 2007, € 588.488,72 (resposta ao facto controvertido n° 40).

60º- A facturação de 2005 é a que reflecte um ano normal, pois as de 2006 e 2007 já se encontram afectadas pela perda de diversos serviços de catering que a autora fazia a diversos sectores do Hospital, a congressos neste realizados ou à Faculdade de Medicina, perda essa decorrente da não admissão de mais pessoal por incerteza gerada pelo réu nas já citadas negociações (resposta ao facto controvertido n° 41).

61º- Com a paralisação forçada pelas circunstâncias descritas, a autora ficou totalmente impedida de continuar o seu normal giro comercial, desde 29/02/2008 (resposta ao facto controvertido n° 42).

62º- À data da propositura da acção mantinha-se a situação referida em 61° (resposta ao facto controvertido n° 43).

63º- Mesmo com o negócio parado, a autora, no ano de 2008, teve de suportar custos relativos a amortizações corpóreas, leasing de viaturas, contrato de serviços de segurança, contabilista, contratos e assinaturas de serviços de telecomunicações, seguros diversos, serviço de caixa postal e encargos bancários com financiamento e seus juros, situação que se manteve nos anos subsequentes com excepção dos encargos com amortizações e contrato de serviços de segurança (resposta ao facto controvertido n° 44).

64º- No ano de 2008, a autora contabilizou amortizações referentes a imobilizações corpóreas no montante de € 10.168,16 (resposta ao facto controvertido n° 45).

65º- De leasing de viatura de serviço, com um valor residual de € 19.024,94, a autora pagou, de rendas, de Março até Julho de 2008, € 4800,90 (resposta ao facto controvertido n° 46).

66º- E despendeu já o valor de € 192,18 em pagamentos à empresa de segurança «S...», relativa ao sistema de alarme do estabelecimento (resposta ao facto controvertido n° 47).

67º- Está a pagar a avença mensal do seu contabilista, a qual, até ao presente, se expressa por € 1681,90 (resposta ao facto controvertido n° 48).

68º- Continua a pagar as assinaturas, tanto de telefone fixo à PT, como de telefones móveis à ..., com o que já despendeu € 1293,48 (resposta ao facto controvertido n° 49).

69º- E ainda mantém as suas responsabilidades por apólices de seguros que tem contratadas na sua actividade, no valor anual de € 1550,53 (resposta ao facto controvertido n° 50).

70º- Dada a impossibilidade de acesso ao seu estabelecimento, teve de subscrever um serviço de caixa postal, o que lhe custou já € 54,45 (resposta ao facto controvertido n° 51).

71º- Para fazer face a todos estes custos, viu-se obrigada, em 10 de Abril seguinte, a solicitar um financiamento bancário, sob a forma de abertura de crédito por conta corrente, no «Banco ..., SA», que lho deferiu por seis meses e pelo montante de € 75.000,00, com TAE, no primeiro período, de 7,362%, no que, incluindo comissões, selo e demais encargos, até ao presente, já a autora despendeu a quantia de € 692,06 (resposta ao facto controvertido n° 52).

72º- Em 2005, o negócio da autora gerou resultados operacionais de € 47.132,84 (resposta ao facto controvertido n° 53).

73º- A obra de ampliação e remodelação da ala sul nascente do Hospital, insere-se no quadro do Plano Estratégico e de Investimentos do Hospital, aprovado pela Administração Regional de Saúde do Norte, pela Direcção-Geral de Instalações e Equipamentos de Saúde e pelo Secretário de Estado de Saúde, por despacho de 4 de Maio de 2006 (resposta ao facto controvertido n° 57).

74º- A referida obra compreende a ampliação e beneficiação de toda a ala do edifício onde se localizava o estabelecimento de cantina-bar, bem como a intervenção/reforço nos pilares situados na área daquele estabelecimento e nas respectivas fundações (resposta ao facto controvertido n° 58).

75º- Reforço esse absolutamente necessário para suportar a ampliação efectuada nos pisos superiores àquele (resposta ao facto controvertido n° 59).

76º- O que implicava o encerramento e desmantelamento do estabelecimento comercial em apreço (resposta ao facto controvertido n° 60).

77º- Foi previamente comunicado à autora que a realização das obras referidas em 74° implicava o encerramento do estabelecimento comercial em apreço (resposta ao facto controvertido n° 61).

78º- O não cumprimento do prazo de execução da obra implica a perda total do financiamento atribuído para a empreitada no quadro de financiamento comunitário Saúde do Programa Operacional da Região Norte, no valor atribuído de € 5.764.288,75, que corresponde a 66,65% do valor da empreitada (resposta ao facto controvertido n° 67).

79º- Foram feitas propostas à autora no sentido de lhe vir a ser concedido outro espaço nas instalações do Hospital para a continuação da respectiva actividade mas que não tiveram seguimento (resposta ao facto controvertido n° 68).

80º- O réu, por várias vezes, comunicou à autora a necessidade de desocupação daquele estabelecimento comercial (resposta ao facto controvertido n° 72).

81º- As obras de remodelação, ampliação e requalificação do Hospital ... visam prestar mais e melhores serviços de saúde à população e vão de encontro ao interesse comum de milhares e milhares de pessoas (resposta ao facto controvertido n° 73).

IV.

1. O Recorrente invoca a nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, no termos do art. 615º, nº 1, al. d), do CPC, por não ter declarado a nulidade do contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, por preterição da forma legal.

Não tem razão, como parece evidente.

Na fundamentação do acórdão afirma-se expressamente que, à data da celebração do aludido contrato, vigorava o art. 80º, nº 2, al. m), do Cód. do Notariado, que exigia a celebração por escritura pública. Mas a declaração de nulidade desse contrato visada pelo concedente, tendo em conta o circunstancialismo provado, deve ser neutralizada pela aplicação do abuso do direito. Assim, em tais circunstâncias, o Tribunal, ao invés de declarar a nulidade, deve "paralisá-la, considerando que o exercício do direito ofende, no caso concreto, manifesta, clamorosa e intoleravelmente, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico e social do direito".

Já se vê, assim, que não houve omissão de pronúncia sobre a invocada nulidade por vício de forma: a invalidade formal foi reconhecida, entendendo-se, porém, que a mesma deveria ser paralisada e que, por isso, o contrato não deveria ser tratado como tal (inválido), não se retirando daí os efeitos correspondentes, por se estar perante uma situação de abuso do direito.

A situação não é, pois, de vício formal do acórdão recorrido; quando muito, tratar-se-ia de erro de julgamento, questão que a seguir será apreciada.

2. Sustenta o Recorrente que a Relação não decidiu bem, ao considerar que a arguição da nulidade formal configura um abuso do direito, afirmando que não se apurou qualquer facto de que se possa concluir que a sua conduta assumiu uma manifesta e intolerável má fé, nomeadamente que tivesse dado causa à omissão da outorga da escritura pública.

Na fundamentação do acórdão recorrido, a esse respeito, afirmou-se o seguinte:

"Em face de tal factualidade, entendeu o Mmo. Juiz que, não obstante o ajuizado contrato de cessão exploração de estabelecimento comercial se encontrar actualmente sujeito à forma escrita, nos termos do art.º 111.º, n.º 3, do R.A.U., na redação introduzida pelo Dec. Lei n° 64-A/2000, de 22.04, que alterou o regime até então vigente que impunha a outorga de escritura pública, a invocação de tal nulidade pelo recorrente deve ser neutralizada pela aplicação da cláusula geral do abuso de direito, consagrada no art.º 334.º do CCivil. Não cabe dúvida que o contrato enferma de nulidade por vício de forma, até porque à época da sua celebração entre a antecessora do Recorrente e a sociedade «BB, Lda.» vigorava o art. 80°, n° 2 al. m) do Código do Notariado, que exigia a celebração por escritura pública. Mas a declaração de nulidade desse contrato visada pelo concedente (configura um abuso do direito), por estarem verificados os pressupostos do venire contra factum proprium, quando a anterior conduta daquele, sem alegação de alguma vez ter exigido a celebração do contrato em observância da forma legal, durante quase dezoito anos, se traduziu em receber as rendas sem questionar a validade formal do contrato. A posição acolhida é de sufragar aqui, tendo já sido sufragada por Ac. desta Relação e Secção de 23/10/2012 (Rel. Des. Cecília Agante, Processo 437/10.7TVPRT.P2, www.dgsi.pt) Aí se entendeu, numa hipótese com afinidade com a presente, de contrato de arrendamento comercial, e baseado na doutrina de Vaz Serra, in B.M.J. 85, pág. 305, Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, vol. I, pág. 204) e Baptista Machado, (“Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, pág. 394), que o não exercício prolongado do direito de invocar a nulidade pode estar na base da situação de confiança, tornando-se relevante se os elementos circundantes permitirem a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que o titular do direito não mais o exercerá. “É esse investimento de confiança que justifica que o beneficiário não seja desamparado, sob pena de sofrer danos dificilmente reparáveis ou compensáveis”.

O exercício do direito ao decretamento da nulidade em tais circunstâncias excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, devendo o Tribunal, ao invés de declarar a nulidade, paralisá-la, considerando que o exercício do direito ofende, no caso concreto, manifesta, clamorosa e intoleravelmente, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico e social do direito.

Ora, no caso vertente, vindo o recorrente e seu antecessor, à data do esbulho, a receber desde há 17 anos e 9 meses as rendas mensais pagas pela A. e sua antecessora, sem alguma vez ter posto em crise a validade jurídica do título que legitimava a ocupação e fruição do estabelecimento em apreço, a manutenção pacífica do contrato e do recebimento de rendas por um período tão dilatado é susceptível de criar no outro contraente a convicção de que as relações contratuais assim vão subsistir, não obstante a inobservância da forma legal do negócio. A frustração de tal expectativa invocando o vício formal genético, para satisfação de interesses estranhos àqueles que ditaram a exigência legal de forma, põe em causa a boa fé negocial e a tutela da confiança. Ocorrendo, como ocorre, abuso de direito, tudo se passa como se tal vício não existisse, com a consequente manutenção da relação contratual e inexistência da obrigação de restituir o estabelecimento de cantina/bar".

Afigura-se-nos que se decidiu bem, reflectindo o entendimento que pode considerar-se francamente predominante, quer da doutrina[2] quer da jurisprudência deste Tribunal[3].

Como se sintetiza no Acórdão do STJ de 28.02.2012, "trata-se de reconhecer a admissibilidade da invocação (do abuso do direito) desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso do direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo".

Importa começar por sublinhar o circunstancialismo provado relevante para esta questão:

O contrato celebrado entre as partes, apesar de não formalizado por escritura pública, como era então exigido – mas tendo inicialmente sido reduzido a escrito (facto 2), contrariamente ao alegado pela Recorrente –, foi normalmente executado e cumprido durante substancial lapso de tempo – mais de dezassete anos.

Ao longo desse período, a Recorrida sempre foi considerada como cessionária da exploração do estabelecimento pelo Recorrente, que dela recebeu as correspondentes rendas.

O estabelecimento estava em pleno funcionamento e em bom estado, servindo cerca de 500 a 600 refeições diárias, tendo ao seu serviço 24 trabalhadores.

No referido período, a Recorrida adquiriu para o estabelecimento muitos bens de equipamento, alguns deles, de muito melhor qualidade, para substituir os que estavam obsoletos.

De Novembro de 2006 a Janeiro de 2008 e por virtude das obras que se iriam realizar, decorreram, entre o Recorrente e a Recorrida, negociações para a transferência das instalações do estabelecimento para outro espaço dentro do Hospital.

Dispõe o art. 334º do CC que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Para ocorrer o abuso do direito exige-se que haja um excesso manifesto no seu exercício, que ele se exerça com "clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante"[4].

Trata-se, pois, de casos em que "o exercício do direito subjectivo conduz a um resultado clamorosamente divergente do fim para que a lei o concebeu e dos interesses jurídica e socialmente aceitáveis"[5].

As pessoas, no exercício de direitos e deveres, devem assumir um comportamento correcto e leal, não defraudando a confiança e as legítimas expectativas dos outros.

Na invocada modalidade de venire contra factum proprium, o abuso do direito exige sempre "uma situação de confiança – uma conduta de alguém que possa ser entendida como posição vinculante em relação à situação futura – e o investimento na confiança pela contraparte e boa fé desta"[6].

No caso, tendo o contrato sido executado por tão longo período de tempo, a invocação da nulidade formal do mesmo só pode ter o propósito de o réu se libertar de um vínculo que, na perspectiva do seu interesse, se tornou indesejável e inconveniente.

Todavia, nesse circunstancialismo, essa pretensão colide manifesta e intoleravelmente com a boa fé e os bons costumes, contrariando e defraudando as legítimas expectativas e a confiança da autora fundada na referida situação. A invocação do vício formal, decorridos mais de 17 anos de cumprimento do contrato, não constitui mais do que mero pretexto, inteiramente desajustado e desatempado, para pôr fim ao contrato.

Note-se que não estão já verdadeiramente em causa as razões que subjazem às exigências legais de forma: a liberdade e ponderação na contratação, a comprovação do conteúdo do contrato e a publicidade do acto para o seu conhecimento por terceiros.

Como parece evidente, com a referida execução do contrato ficou plenamente assegurada a ponderação das partes e a determinação do conteúdo do contrato, sendo certo que, no caso, não se discutem nem foram postos em causa interesses de terceiros.

Por outro lado, essa execução do contrato é susceptível de objectivamente ter criado a convicção fundada de que se tratava de uma situação perfeitamente consolidada, assente numa relação estável e reciprocamente vinculante. O réu, ao longo daquele período de execução do contrato, nunca pôs em causa a validade deste e criou naturalmente na autora a confiança, justificada, de que o mesmo continuaria a ser cumprido.

Nestas circunstâncias, a invocação da nulidade formal, ditada apenas pelo interesse do Recorrente em se desvincular do contrato, constitui autêntico venire contra factum proprium.

O caso reúne, com efeito, todos os pressupostos para tal necessários[7], como decorre do que foi dito.

Verifica-se, na verdade, uma situação de confiança: a conduta do réu, objectivamente considerada, sem nunca pôr em causa a validade formal do contrato, era adequada a criar a convicção e a expectativa de que continuaria a cumpri-lo.

Por outro lado, a autora investiu nessa confiança, pressupondo a estabilidade da relação contratual, mantendo o estabelecimento em bom estado e em pleno funcionamento, adquirindo bens de equipamento, para além de substituir os que se encontravam obsoletos por outros de muito melhor qualidade. A declaração de nulidade do contrato provocar-lhe-ia, assim, danos vultuosos de muito difícil remoção.

Por fim, existe boa fé da autora: tendo o contrato sido executado normalmente e sem quaisquer dificuldades durante tão largo período de tempo, ela confiou na situação criada, como confiaria uma pessoa normal e razoável, colocada na sua posição.

Pode, pois, dizer-se que a autora confiou legítima e justificadamente na situação criada, de cumprimento contratual durante substancial lapso de tempo; confiança que seria frustrada pelo "venire contra" do réu, ao invocar a nulidade formal de modo "incoerente" com o seu comportamento anterior e apenas para se "libertar de um vínculo que entretanto se tornou para si desvantajoso", o que se traduziria numa injustiça causadora de enormes danos para a autora[8].

Essa pretensão do réu é inaceitável e deve ser rejeitada.

A Recorrente defende, contudo, que existem nos autos elementos que afastam em absoluto o juízo de censura que recaiu sobre o comportamento consubstanciado na invocação da nulidade contratual.

Esses elementos seriam constituídos pelos documentos juntos aos autos e referenciados nos articulados, indicados na concl. 32ª.

Tais elementos, no entanto, não retiram relevo ao que se afirmou resultar da factualidade efectivamente provada.

De todo o modo, será de referir que os primeiros documentos, para além de outros do mesmo período, se inserem no âmbito das negociações que decorreram entre as partes e que tiveram por objecto, a pretexto da realização das obras levadas a cabo pelo Recorrente, a transferência das instalações do estabelecimento para outro espaço dentro do Hospital; negociações que, como se disse, decorreram desde Novembro de 2006 a Janeiro de 2008, mas que não tiveram seguimento.

Como parece evidente, esses documentos não contrariam, de modo nenhum, o que acima se afirmou sobre a postura das partes ao longo do período de cumprimento do contrato.

Deles decorre, com efeito, da parte do réu a intenção de disponibilizar outro espaço para a instalação do estabelecimento, o que tem implícito e pressupõe obviamente a manutenção deste e da relação contratual; e a vontade de ambas as partes de que fosse dada a devida cobertura jurídica à solução que fosse encontrada.

Assim, essas negociações, em vez de afastarem, como o Recorrente pretende, o juízo de censura sobre a invocação da nulidade formal, apenas contribuem para acentuar esse juízo de reprovação, uma vez que a atitude do réu não contraria, antes confirma, a anterior postura de cumprimento do contrato, contrária à invalidade formal deste.

Constituíram no fundo, objectivamente, mais um "sinal certo e seguro de que era intenção do réu cumprir o contrato"[9].

As negociações, como se disse, não foram concluídas com êxito e o que, ao invés, se passou foi o censurável esbulho perpetrado pelo réu das instalações ocupadas pela autora, como ficou sobejamente provado: o encerramento do estabelecimento e o isolamento do espaço exterior circundante, a retirada de todos os bens e equipamentos que ali se encontravam e a destruição das instalações (factos 10, 13 e 16).

Os restantes documentos denotam a preocupação da então primitiva cessionária em formalizar o contrato de cessão de exploração do estabelecimento, aparentemente sem a correspondente adesão do réu, apesar de, mais tarde, no âmbito das aludidas negociações, este ter chegado a propor essa formalização por ajuste directo (cfr. fls. 2003 a 2005)

De qualquer forma, trata-se de documentos mais antigos (1999 e 2001), não tendo ficado inteiramente demonstrado o condicionalismo em que foram emitidos, sendo certo que nenhum deles sugere ou indicia o propósito do réu de pôr em causa o contrato por razões formais.

Em suma, todos estes elementos invocados pelo Recorrente não afastam a conclusão a que acima se chegou sobre a existência de abuso do direito, que torna inoperante a invocação da nulidade formal.

3. O Recorrente suscita no recurso outras questões:

- Efeitos derivados da nulidade formal (questão que estaria de qualquer modo prejudicada);

- Consideração de factos resultantes de documentos para efeitos do art. 663º do CPC (actual art. 611º);

- Improcedência do pedido de indemnização pelos prejuízos patrimoniais decorrentes do incumprimento contratual;

- Preenchimento dos requisitos da acção directa (art. 336º do CC);

- Indemnização a favor do Recorrente (por ilegitimidade do recurso à providência cautelar de restituição provisória da posse);

- Resolução do contrato (pedida a título subsidiário).

Todavia, estas questões extravasam o âmbito em que foi admitida excepcionalmente a revista.

Como acima se salientou, o recurso foi recebido nos termos do art. 672º nº 1 al. a) do CPC, atendendo à relevância jurídica da questão que atrás se apreciou: saber se os efeitos da nulidade por vício de forma poderiam ser paralisados pela invocação do abuso do direito.

Foi esta questão, assim delimitada pela Formação, que passou a constituir objecto desta revista[10].

Ora, mantendo-se a decisão da Relação quanto a tal questão (conforme com a proferida na 1ª instância), excederia esse objecto da revista, excepcional, a apreciação de qualquer das demais questões invocadas pelo Recorrente.

Não se conhece, por isso, do objecto do recurso nesta parte.

4. A Recorrida pediu, a final, que o Recorrente seja condenado como litigante de má fé, porquanto "os fundamentos usados para a «admissibilidade», se bem que não como objecto do recurso, foram falseados".

Pretenderá referir-se à invocada contradição de acórdãos, como fundamento de admissibilidade da revista excepcional (art. 672º nº 1 al. c) do CPC).

Ora, este fundamento de admissibilidade do recurso não chegou a ser apreciado, dado o relevo atribuído, para esse efeito, ao primeiro fundamento invocado – a relevância jurídica da questão acima referida.

A contradição alegada não assumiu assim qualquer utilidade para o fim pretendido.

Importa referir, de qualquer modo, que, como tem sido reconhecido e decorre expressamente do art. 542º nº 2 do CPC, esta norma exige que qualquer das condutas aí previstas, que concretizam a litigância de má fé, seja levada a cabo com dolo ou negligência grave.

No caso, porém, não se descortina que a conduta do Recorrente seja subsumível em qualquer dessas situações, sendo certo que, como parece manifesto, não foi falseado o fundamento de admissibilidade do recurso; tanto que o recorrente juntou, como teria sempre de juntar, cópia do "acórdão-fundamento".

É certo que se poderá entender que não existe contradição relevante entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento: apesar de as decisões serem divergentes, esta divergência tem na base a apreciação em cada um deles de uma realidade factual essencialmente distinta, que levou a concluir também diferentemente sobre a existência do abuso do direito.

Todavia, a menor atenção e exigência postas na aferição do aludido pressuposto de admissibilidade do recurso, podendo revelar uma correspondente menor prudência do Recorrente, não podem confundir-se com dolo ou negligência grave, como é exigido legalmente.

Assim e por não se ter por demonstrado também esse imprescindível elemento subjectivo, esta questão tem de improceder.

V.

Em face do exposto, decide-se negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.

                                                    Lisboa, 9 de Julho de 2015

Pinto de Almeida (Relator)

Júlio Gomes

Nuno Cameira

____________
[1] Proc. nº 796/08.1TVPRT.P1.S1
F. Pinto de Almeida (79)
Cons. Júlio Gomes; Cons. Nuno Cameira
[2] Assim, designadamente, C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed. (por Pinto Monteiro e P. Mota Pinto), 435 e segs; Baptista Machado, Tutela da confiança e venire contra factum proprium, Obra Dispersa, Vol. I, 392 e segs e 415 e segs; Heinrich Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, 531 e 532; Calvão da Silva, RLJ 132-268 e segs; Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 68 e segs e 115 e segs; também em Superação judicial da invalidade formal no negócio jurídico, em Estudos em Homenagem à Prof. Doutora Isabel de Magalhães Collaço, Vol. II, 335 e segs; Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo IV, 309 e segs; Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, 734 e segs; Joana de Vasconcelos, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 496.
[3] Cfr, de entre os mais recentes, os Acórdãos de 26.05.2009, de 08.06.2010, de 01.07.2010, de 29.11.2011, de 28.02.2012, de 18.12.2012 e de 04.06.2013, todos em www.dgsi.pt.
[4] Vaz Serra, Abuso do direito, BMJ 85-253.
[5] Acórdão do STJ de 23.03.2006, CJ STJ XIV, 1, 150.
[6] Citado Acórdão de 28.02.2012.
[7] Cfr. Baptista Machado, Ob. Cit., 394, 415 e 416.
[8] Cfr. Calvão da Silva, Ob. Cit., 271 e 272.
[9] Cfr. o citado Acórdão deste Tribunal de 29.11.2011.
[10] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 315 e 316.