Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
28320/18.0T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: PAULA SÁ FERNANDES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
CADUCIDADE DO DIREITO DE AÇÃO
CONTAGEM DE PRAZO
Data do Acordão: 05/19/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Não tendo havido ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, não pode o Supremo Tribunal de Justiça conhecer da eliminação de tal facto, atento ao disposto n.º 4 do artigo 662.ºdo CPC.
II. Dado que a ré/seguradora não logrou provar, como lhe competia - art.º 342.º, n.º 2 do Código Civil - que havia formalmente comunicado a alta clínica ao sinistrado, através do respetivo boletim emitido pelo médico assistente, nele fazendo constar a informação que a lei exige, não se iniciou sequer o prazo de caducidade do direito de ação, não ocorrendo assim a invocada exceção caducidade do direito de ação do sinistrado.
Decisão Texto Integral:



Processo n.º 28320/18.0T8LSB.L1.S1

Recurso de Revista


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça  



I. Relatório

AA, praticante desportivo profissional de futebol, ao serviço de Os Belenenses – Sociedade Desportiva de Futebol, SAD, requereu a abertura da fase contenciosa do processo especial emergente de acidente de trabalho, contra:

Caravela – Companhia de Seguros, S.A., pedindo:
a) O pagamento da quantia de € 61.178,40, a título de indemnização pela situação de 232 dias de Incapacidade Temporária Absoluta (ITA); e
b) O pagamento da quantia de € 8.016,48, a título de indemnização pela situação de 152 dias de Incapacidade Temporária Parcial (ITP).

O Tribunal de 1ª instância proferiu despacho saneador-sentença, onde julgou procedente a exceção de caducidade do direito de ação invocada pela Ré na sua contestação, com a fundamentação de que cura clínica e comunicação da alta são situações diferentes, sendo que desde a comunicação da alta - quer a mesma tenha sido bem ou mal decidida - decorreu mais do que o prazo de um ano para o sinistrado interpor a ação, tendo absolvido a R. de todos os pedidos formulados pelo sinistrado.

Inconformado, o Sinistrado interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, requerendo a substituição da sentença por acórdão que considerasse improcedente a exceção de caducidade e que ordenasse a baixa dos autos à primeira instância para os seus ulteriores termos.   

O Tribunal da Relação proferiu acórdão em que decidiu como questão prévia, e no uso dos poderes oficiosos de conformação da matéria de facto, que o que se discutia nos autos era a data da alta, pelo que, atendendo ao afirmado pelas partes, bem como ao teor dos documentos clínicos constantes dos autos, nomeadamente ao teor do auto de conciliação e ao chamado boletim de alta, decidiu: eliminar dos factos provados o facto sob o n.º 6; e julgou a apelação procedente, considerando improcedente a exceção de caducidade do direito de ação.

Inconformada, a Ré/Seguradora interpôs recurso de revista para este Tribunal, com as seguintes Conclusões:

I. A Relação proferiu uma decisão, com influência sobre o julgamento da matéria de facto feito pela 1.ª instância, que consistiu na eliminação de um meio de prova que não tinha sido posto em causa por nenhuma das partes. Com efeito,

II. O documento de fls. 47v.º não viu a sua veracidade posta em causa por qualquer das partes, nem a veracidade da assinatura que do mesmo consta. Bem pelo contrário,

III. A autoria dessa assinatura foi confirmada pelo sinistrado.

IV. O documento de fls. 47v.º faz prova plena, de acordo com o disposto no art.º 376.º do Código Civil, das declarações atribuídas ao seu autor. Designadamente,

V. Faz prova da seguinte declaração, nele exarada: “Sou conhecedor da atribuição de alta curado sem desvalorização a 4/12/2017 do meu processo clínico decorrente do acidente de trabalho acima identificado”, bem como da data em que teve conhecimento da alta. Assim sendo,

VI. É de considerar inequivocamente provado que, em 4/12/2017, o sinistrado declarou ter tido conhecimento de lhe ter sido atribuída alta pelos serviços médicos que acompanharam a respetiva recuperação, em situação de curado sem desvalorização. Por tal motivo,

VII. A Mesmo.ª Juiz da 1.ª instância não podia senão considerar aquela a data da alta. É de concluir,

VIII. Pelos motivos alegados nas conclusões antecedentes, que estava vedado aos Venerandos Desembargadores alterarem o julgamento da matéria de facto, no sentido da elisão do ponto 6. da matéria de facto provada, pelo motivo invocado (ilegibilidade). Pelo exposto,
IX. É de concluir, ainda que a decisão dos Venerandos Desembargadores da Relação de Lisboa padece de erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, por ter violado normas sobre a força probatória dos documentos particulares, designadamente, os artigos 374.º e 376.º do Código Civil;

X. As formalidades da emissão do boletim de alta constam da do n.º 2 do art.º 35.º da LAT, mas as formalidades da comunicação da alta clínica aos atletas profissionais constam do n.º 2 do art.º 8.º da Lei n.º 27/2011, de 16 de junho;

XI. De acordo com esta última disposição legal, o sinistrado, ao receber o boletim de alta, deve declarar que tomou conhecimento do respetivo conteúdo, assinando dois exemplares do mesmo, que entrega à entidade empregadora;

XII. Esta declaração, que consta nos autos, está corporizada no documento de fls. 47v.º. Pelo exposto,

XIII. É de concluir que o boletim de alta clínica foi efetivamente entregue ao sinistrado, que assinou a declaração prevista no n.º 2 do art.º 8.º da Lei n.º 27/2011, citada, e que essa entrega ocorreu na mesma data em que tal declaração foi assinada;

XIV. O douto saneador-sentença, de resto, fez consignar tal matéria no facto não controvertido 6, que não foi posto em causa pelo sinistrado em sede de recurso de apelação;

XV. A alta clínica, conforme descrita no n.º 3 do art.º 35.º da LAT, é conceito correspondente ao de «cura clínica» constante da al. f) do art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de abril, que regulamentou a anterior LAT;

XVI. A fixação da alta clínica, e respetiva comunicação ao sinistrado, é ato de extrema relevância para o exercício de um conjunto de direitos por parte deste, entre os quais se conta o de instauração de ação judicial para a efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho;

XVII. É ao médico assistente do sinistrado que incumbe emitir o boletim de alta, de acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 35.º da LAT, só podendo o tribunal fazê-lo quando essa formalidade não tiver ocorrido. Pelo exposto,
XVIII. Tendo o médico assistente do sinistrado emitido boletim de alta, que entregou ao mesmo na data da declaração de fls. 47v.º, é de concluir pela irrelevância da fixação de outra data de alta pelo exame médico a que se refere o relatório de 16-02-2019,

XIX. Conclusão esta que, de resto, já tinha sido vertida no douto saneador-sentença.

Termos em que, e nos mais de Direito aplicáveis, e sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve a revista em evidência ser julgada procedente por provada, e o douto acórdão recorrido revogado e substituído por outro que, conhecendo em substituição das questões suscitadas na antecedente apelação, confirme a exceção de caducidade do direito de interposição da ação por parte do sinistrado, absolvendo a ora recorrente de todos os pedidos formulados pelo mesmo.

O sinistrado contra-alegou, alegando que o Supremo Tribunal de Justiça não pode conhecer da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal da Relação e pugnou pela manutenção do decidido pelo acórdão do Tribunal da Relação.

A Exma. SRª Procuradora-Geral Adjunta, junto deste Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se no sentido de considerar que: o recurso merecia provimento, na parte em que a recorrente reclama da eliminação do facto provado sob o n.º 6, porquanto considerou que tal eliminação ocorreu com violação de prova vinculada; o recurso não merece provimento relativamente à invocada exceção de caducidade do direito de ação, porquanto não foram cumpridas as formalidades legais de comunicação da alta clínica ao sinistrado.

Notificado o Parecer do Ministério Público às partes, não houve qualquer resposta.

II. Fundamentação

As questões suscitadas nas conclusões do recurso de revista, que delimitam o seu objeto, são as seguintes: 1ª saber se o Tribunal da Relação podia ter eliminado o facto provado sob o n.º 6 da factualidade provada; 2ª saber se o direito de ação do sinistrado já havia caducado quando este interpôs a ação.

Fundamentos de facto

Foram considerados provados os seguintes factos:
1. Em 22/08/2017 o autor sofreu um acidente no exercício das suas funções de atleta de alta competição, ao serviço da entidade empregadora “Belenenses - Sociedade Desportiva de Futebol, SAD”.
2. O evento referido em 1. consistiu em ter o autor sofrido entorse do joelho direito, daí lhe resultando as lesões descritas no relatório médico.
3. Na data referida em 1. o autor auferia a retribuição anual global ilíquida de € 137.500,00.
4. Na data referida em 1. “Belenenses - Sociedade Desportiva de Futebol, SAD” tinha transferido para a ré a responsabilidade emergente de acidente de trabalho por via de contrato de seguro, abrangendo a retribuição global anual ilíquida referida em 3.
5. Na sequência do evento referido em 1., a ré prestou ao autor tratamento e, após períodos de incapacidade temporária, no dia 4/12/2017 atribuiu-lhe alta, com a menção de «curado sem desvalorização».
6. Eliminado (o teor do facto que foi eliminado pelo Tribunal da Relação era o seguinte: O A. recebeu e assinou o Boletim de alta referido no ponto anterior conforme doc. de fls. 47 verso)
7. O autor efetuou participação de acidente de trabalho em tribunal no dia 18/12/2018.
8. Em exame singular realizado em 16/02/2019 considerou-se como data de consolidação das lesões o dia 13/12/2018.

Fundamentos de direito
1ª questão - saber se o Tribunal da Relação podia ter eliminado o facto provado sob o n.º 6 da factualidade provada.
 A Recorrente Seguradora considera que ao eliminar o facto provado sob o n.º 6, o Tribunal da Relação terá violado prova vinculada, permitindo assim a reapreciação de tal eliminação por parte deste Supremo Tribunal de Justiça, em sede de revista.

Vejamos

O artigo 662.º do CPC, no seu n.º 1 dispõe:
A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.  

O n.º 4 do mesmo artigo, dispõe:
Das decisões da Relação previstas nos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Contudo, nos termos do n.º 3 do art.º 674. do CPC: O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.
É esta violação que a Ré veio invocar.
A Recorrente alega que o Tribunal da Relação violou as normas constantes dos artigos 374.º e 376.º do Código Civil.
Dispõe o art.º 374.º, n.º 1 do Código Civil: A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando esta declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras.  
O n.º 1 do art.º 376.º do mesmo Código dispõe: O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.

Impõe-se, no entanto, fazer uma súmula do ocorrido:

-Em 13 de Janeiro de 2020, a Sr.ª Desembargadora/Relatora, proferiu despacho com o seguinte teor: Compulsados os autos constato que todos os documentos juntos com a denominação “Boletim de Alta” se revelam não assinados.
A folhas 47 verso consta um documento ilegível (documento que parece ter sido valorado pela primeira instância, atento ponto de facto n.º 6 exarado na sentença).
Convido, pois, as partes a pronunciarem-se.

- A Ré/Seguradora pronunciou-se, informando:
a) que os documentos constantes do processo clínico identificados como “Boletins de Alta” são gerados por aplicação informática, razão pela qual não estão assinados;
b) o Boletim de Alta de 04-12-2017 foi entregue ao sinistrado e por este assinado;
c) Pode o documento ser consultado no processo clínico, do qual consta uma “fotocópia um pouco mais legível”.

O Sinistrado, também, se pronunciou, afirmando:
a) o documento de fls. 47 verso está quase totalmente ilegível, em que o sinistrado pouco mais vislumbra do que a sua própria assinatura;
b) foi o único documento que assinou;
c) tal ocorreu nas instalações da sua Entidade Empregadora, não estando na presença de qualquer médico;
 d) nada mais lhe foi entregue, comunicado ou explicado;
e) não obstante a ilegibilidade do documento, constata-se que o mesmo não cumpre os requisitos e formalismos previstos no art.º 35.º, n.º 2 da LAT.   
O Tribunal da Relação considerou que o documento em causa era ilegível e que, como tal, não tinha força probatória, eliminando o facto que resultou como provado com base no mesmo (facto n.º6).
Na verdade, o Tribunal da Relação concluiu, e bem, que o tribunal de primeira instância, em face da posição das partes no litígio e da documentação constante dos autos, não podia ter dado tal facto como assente. Constam, efetivamente, dos autos vários Boletins de Alta, sendo que só um deles está assinado, e do pouco que é possível ler do mesmo, não se podem extrair as consequências previstas nos artigos 374.º e 376.º do Código Civil.
Se é certo que o n.º 1 do art.º 376.º do Código Civil dispõe que um documento particular cuja autoria seja reconhecida (…), faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, certo é também que o n.º 3 do mesmo artigo dispõe: Se o documento contiver normas marginais, palavras entrelinhadas, rasuras, emendas, ou outros vícios externos, sem a devida ressalva, cabe ao julgador fixar livremente a medida em que esses vícios excluem ou reduzem a força probatória do documento.
No caso, o Tribunal da Relação convidou as partes a pronunciarem-se sobre o facto de existirem vários Boletins de Alta não assinados, bem como o facto de o único que estaria assinado, ser ilegível.
As partes pronunciaram-se e o Tribunal da Relação acabou por concluir pela ilegibilidade do mesmo, e que tal vício lhe excluía a força probatória. Nesta medida, o julgador fixou livremente a medida em que tal vício externo, excluiu a força probatória do documento. Agiu, assim, dentro dos poderes oficiosos de que dispunha, ao abrigo do artigo 662.º, n.º 1 do CPC, segundo o qual, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Assim sendo, não tendo havido ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, não pode este Supremo Tribunal de Justiça conhecer da eliminação de tal facto, atento ao n.º4 do  artigo 662.ºdo CPC. Não obstante, sempre se dirá que o documento em causa é efetivamente ilegível, pelo que se afigura adequada a decisão do Tribunal da Relação de lhe retirar carácter probatório.

A 2ª questão – saber se o direito de ação do sinistrado já havia caducado quando este interpôs a ação

Importa começar por saber qual o momento efetivamente relevante a partir do qual se conta o prazo de caducidade para efeito do exercício do direito de ação, atenta a factualidade provada.

Vejamos.

Segundo a lei geral, e nos termos do art.º 329.º do Código Civil: O prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder ser legalmente exercido, sendo que o n.º 1 do art.º 331.º do mesmo Código, determina: Só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do ato a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo.

Em matéria específica dos acidentes de trabalho, dispõe o n.º 1 do art.º 179.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro – Lei dos Acidentes de trabalho e doenças profissionais, vulgarmente referida como LAT, sob a epígrafe,

Caducidade e Prescrição:

1 - O direito de ação respeitante às prestações fixadas na presente lei caduca no prazo de um ano a contar da data da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado ou, se do evento resultar a morte, a contar desta.

Sobre os Boletins de exame e alta, dispõe o n.º 2 do art.º 35.º da LAT:

2 - No final do tratamento do sinistrado, quer por este se encontrar curado ou em condições de trabalhar quer por qualquer outro motivo, o médico assistente emite um boletim de alta clínica, em que declare a causa da cessação do tratamento e o grau de incapacidade permanente ou temporária, bem como as razões justificativas das suas conclusões.

Por sua vez, o n.º 3 do mesmo artigo, esclarece:

3 - Entende-se por alta clínica a situação em que a lesão desapareceu totalmente ou se apresenta como insuscetível de modificação com terapêutica adequada.

O n.º 4 dispõe, ainda, que: O boletim de exame é emitido em triplicado e o de alta em duplicado.

Todavia, uma vez que o Sinistrado é futebolista profissional, impõe-se ter presente o regime relativo à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho dos praticantes desportivos profissionais, constante da Lei n.º 27/2011, de 16 de Junho.

Dispõe o artigo 8.º da referida lei, sob a epígrafe, Boletins de exame e alta:

1 - No caso previsto no n.º 1 do artigo anterior, a entidade empregadora, através do respetivo departamento médico, é responsável pelo cumprimento das obrigações constantes do artigo 35.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, designadamente garantindo a entrega ao sinistrado dos boletins de exame e de alta clínica.

2 - O sinistrado, ao receber o boletim de alta, deve declarar que tomou conhecimento do respetivo conteúdo, assinando dois exemplares do mesmo, que entrega à entidade empregadora.

3 - A entidade empregadora deve entregar um dos exemplares do boletim de alta, assinado pelo sinistrado, à entidade seguradora, nos termos previstos no n.º 3 do artigo anterior, e remeter o outro à federação desportiva da modalidade praticada pelo sinistrado.

4 - No caso de o sinistrado se recusar a assinar o boletim de alta nos termos previstos no n.º 2, o clube informa de imediato a federação, não sendo permitida a inscrição do sinistrado em qualquer competição oficial enquanto permanecer essa recusa.

Da conjugação dos dispositivos citados, retira-se o seguinte:

Estamos perante uma situação de alta clínica quando a lesão desapareceu totalmente ou se apresenta como insuscetível de modificação com terapêutica adequada.

Quando o sinistrado está curado, ou em condições de trabalhar, cabe ao médico emitir um boletim de alta clínica.

Nesse boletim de alta clínica deverá ser declarada a causa de cessação do tratamento, o grau de incapacidade permanente ou temporária, bem como as razões justificativas das suas conclusões;

O boletim de alta tem de ser emitido em duplicado e entregue ao sinistrado;

O sinistrado, ao receber o boletim de alta, deve declarar que tomou conhecimento do respetivo conteúdo, assinando dois exemplares do mesmo, que entrega à entidade empregadora;

A entidade empregadora deve entregar um dos exemplares do boletim de alta, assinado pelo sinistrado, à entidade seguradora, nos termos previstos no n.º 3 do artigo anterior, e remeter o outro à federação desportiva da modalidade praticada pelo sinistrado.

São assim estes os requisitos formais e substanciais da alta clínica.

Por um lado, o sinistrado tem de estar curado, ou não o estando, a sua situação clínica tem de estar estabilizada, já não sendo suscetível de melhorar com tratamento ou qualquer outra intervenção (requisito substancial).

Por outro, o médico tem de emitir o boletim da alta clínica, fazendo referência ao estado de saúde do sinistrado, se está curado com ou sem desvalorização, a causa de cessação do tratamento, o grau de incapacidade (no caso de a mesma persistir), bem como as razões justificativas das suas conclusões; e esse boletim, com todas essas indicações tem de se ser entregue em duplicado ao sinistrado, que tem de o assinar e declarar que tomou conhecimento de tudo o que consta do referido boletim.

Começando pela questão substancial, sendo, como se referiu, a alta clínica a situação em que a lesão desapareceu totalmente ou se apresenta como insuscetível de modificação com terapêutica adequada, temos de concluir, face à factualidade dada como provada, que só em 13 de Dezembro de 2018, é que o sinistrado, na sequência da intervenção cirúrgica a que foi submetido, viu as suas lesões ficarem consolidadas.

Só nessa altura, deverá o médico assistente concluir pela cura clínica e, em conformidade, atribuir alta clínica ao sinistrado. A este propósito veja-se jurisprudência já antiga, mas ainda de referência: Acórdão do STJ de 1 de Fevereiro de 1995, proferido na revista n.º 004128: A cura clínica prevista na lei correspondente ao desaparecimento total das lesões ou á sua insusceptibilidade de modificação com terapêutica adequada.  Existe distinção entre "alta" do sinistrado e a sua "cura clínica", sendo só a partir desta que se inicia o prazo de caducidade.  

O artigo 175.º da LAT, sob a epígrafe, Formulários Obrigatórios, prevê que os boletins de exame e de alta podem ser impressos por meios informáticos, mas têm de obedecer aos modelos aprovados oficialmente, sendo que o não cumprimento do disposto na lei, equivale à falta de tais documentos.  E, o n.º 2 do art.º 35.º da atual LAT é taxativo ao afirmar que o médico assistente deverá emitir o respetivo Boletim de alta clínica, do qual terá de constar: a causa da cessação do tratamento; o grau de incapacidade permanente ou temporária; bem como as razões justificativas das suas conclusões.
Assim, não só as lesões do sinistrado têm de se encontrar consolidadas, no sentido de a situação clínica do sinistrado já não ser suscetível de alteração com terapêutica - cura clínica – mas também a cura tem de ser formalmente comunicada ao sinistrado, em boletim próprio, com a comunicação de todos os fundamentos pelos quais o médico assistente concluiu por determinada incapacidade ou pela cura, apresentando justificação para as conclusões a que chegou – alta clínica.

Por sua vez, o sinistrado tem de assinar o referido boletim, a atestar que tomou conhecimento de tudo o que lhe era comunicado naquele boletim – art.º 8.º, n.º 2 da Lei n.º 27/2011, de 16 de Junho – Regime jurídico relativo à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho dos praticantes desportivos profissionais.  Só quando tal ocorrer, é que se considera que a alta foi formalmente comunicada ao sinistrado, começando nesse momento, a correr o respetivo prazo de caducidade de 1 ano.

Assim, sem que tenha ocorrido a emissão do referido Boletim de Alta, ou no caso de ter sido emitido, mas não cumprir os requisitos legais previstos no art.º 35.º, n.º 2, ou ainda, sem que a comunicação tenha sido formalmente efetuada ao sinistrado, não começa a contar o prazo de caducidade de um ano previsto no art.179.º da LAT.

Sobre esta matéria, este Supremo Tribunal de Justiça já teve várias oportunidades de se pronunciar. Só para referir alguns acórdãos dos mais recentes, veja-se, por exemplo, o que se afirmou no acórdão de 22-02-2017, proferido no Proc. n.º 2325/15.1T8OAZ.P1. S1:

De acordo com o n.º 1, do art.º 32.º, da LAT/97 (Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro), a caducidade do direito de ação ocorre se a ação não for intentada com observância da triplicidade cumulativa que daí decorre: não ter sido proposta no prazo de um ano; a contar da data da alta clínica; alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado.
Tendo a Sinistrada participado o acidente, cabia ao Tribunal proceder à realização das diligências necessárias para apurar a data da “alta clínica”, através da realização da respetiva perícia médica, porque só através desta poderão ser descritas as doenças ou lesões que forem encontradas à Sinistrada, a sintomatologia apresentada e a sua relação com o acidente alegado, bem como emitida a correspondente declaração médica sobre se as lesões se mostram curadas ou se apresentam como insuscetíveis de modificação com terapêutica adequada.
A falta da alta clínica – mesmo em situações em que não haja incapacidade ou lesões – impede qualquer juízo jurídico valorativo sobre tal matéria, pelo que, não estando fixada a data da “alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado” não pode ter início a contagem do referido prazo legal de caducidade do direito de acção estatuído na primeira parte do nº 1, do art. 32.º, da LAT/97.”
Também no acórdão de 10 de Julho de 2013, proferido no Processo n.º 941/08.7TTGMR.P1.S1, foi afirmado:
Resulta dos conjugados artigos 32.º, n.º 1, da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, 32.º, ns.º 2 a 4, e 63.º, do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, que o direito de acção respeitante às prestações fixadas naquela lei caduca no prazo de um ano a contar da alta clínica formalmente comunicada ao sinistrado, mediante entrega de duplicado do boletim de alta, de modelo aprovado oficialmente.”

Os acórdãos que citámos foram proferidos ao abrigo da anterior LAT, impõe-se, porém, referir que os atuais artigos 35.º e 179.º da LAT, não constituem um regime jurídico diferente daquele que estava previsto no art.º 32.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (antiga LAT) e do art.º 32.º da Lei n.º 143/99, de 30 de Abril (que regulamentava a LAT, comummente conhecida como Regulamento da LAT – RLAT). Na verdade, da leitura atenta dos normativos dos diferentes diplomas, é possível constatar que o art.º 32.º da Lei n.º 143/99, foi transposto para o atual artigo 35.º da LAT e que o art.º 32.º da Lei n.º 100/97, corresponde ao art.º 179.º da atual LAT.

Importa, ainda, ter presente que no caso dos autos não estamos perante um qualquer sinistrado, mas sim perante um praticante desportivo profissional, sendo que na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 43/XI, que esteve na origem do atual regime jurídico da reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho de desportista profissional constante da Lei n.º 27/2011, de 16 de Junho, (e que revogou a Lei n.º 8/2003, de 12 de Maio), (disponível no sítio da Assembleia da República)  pode mesmo ler-se: Acresce que se torna ainda necessário regular a formalização da alta clínica, porquanto as omissões do cumprimento dos procedimentos legais nesta matéria têm permitido que sejam intentadas ações emergentes de acidentes de trabalho vários anos volvidos sobre a ocorrência dos mesmos, numa fase em que já é difícil o estabelecimento de um nexo de causalidade entre as sequelas que apresentam e as lesões sofridas e, quase sempre, apenas no final da carreira dos praticantes desportivos profissionais.

Daí a existência do art.º 8.º no atual regime jurídico de reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho dos praticantes desportivos profissionais, que não existia no anterior regime jurídico, previsto na Lei n.º 8/2003, de 12 de Maio, e que determinava a aplicação subsidiária da LAT, a tudo o que não estivesse especialmente regulado naquela lei.

Constata-se assim, que houve uma especial preocupação do legislador com a questão da formalização da alta quando estão em causa sinistros ocorridos com desportistas profissionais, precisamente pelo tipo de implicações que isso pode ter, quer para a vida dos sinistrados, cuja carreira é geralmente mais curta, quer para os custos que as entidades seguradoras podem vir a ter que suportar, para maiores desenvolvimentos, veja-se Joana Carneiro in “Acidentes de Trabalho dos Jogadores de Futebol – Algumas considerações”, in Questões Laborais, Vol.20, n.º 42 (2013), págs. 438 a 459.

Daí que, nos termos do mesmo artigo 8.º, o sinistrado tenha que assinar uma declaração em como recebeu o referido boletim de alta, sendo que caso o sinistrado se recuse a fazê-lo, a entidade empregadora informa a respetiva federação, ficando o sinistrado impossibilitado de se inscrever em qualquer competição oficial, enquanto permanecer tal recusa (n.º 4 do art.º 8.º).

Do exposto, fica bem patente o quão importante é o cumprimento de todos os formalismos relativamente ao que tem de constar do boletim da alta e à forma como o mesmo tem de ser comunicado ao sinistrado. Se tais formalidades não forem observadas, não estaremos perante uma alta clínica formalmente comunicada, pelo que, enquanto a mesma não ocorrer no respeito integral da lei, o prazo de caducidade não começa a correr.

Assim, não tendo a Ré logrado provar, como lhe competia - art.º 342.º, n.º 2 do Código Civil - que havia formalmente comunicado a alta clínica ao sinistrado, através do respetivo boletim emitido pelo médico assistente, fazendo constar do mesmo a informação que a lei exige, não se iniciou sequer o prazo de caducidade do direito de ação, pelo que, não ocorreu a caducidade do direito de ação do sinistrado.

Deste modo o acórdão recorrido não merece censura, devendo improceder o recurso da Ré e consequentemente, os autos baixarem ao tribunal da 1ª instância, para que o pedido do sinistrado seja objeto de apreciação  

III. Decisão

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso de revista, e confirmar o acórdão recorrido, devendo os autos baixarem ao tribunal da 1ª instância, para que o pedido do sinistrado seja objeto de apreciação.  

Custas pela Ré

STJ, 19 de maio de 2021.

Maria Paula Sá Fernandes (Relatora)

Júlio Gomes

Chambel Mourisco

A relatora declara que, nos termos do art.15.º-A do DL n. 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1 de maio, o presente acórdão tem voto de conformidade dos Adjuntos.