Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4301/16.8T8VIS.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: NEGÓCIO JURÍDICO
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
CONTRATO DE EMPREITADA
OBRIGAÇÕES DE MEIOS E DE RESULTADO
INDEMNIZAÇÃO
SEGURADORA
SUB-ROGAÇÃO
PRAZO DE CADUCIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 06/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / COMPRA E VENDA /EMPREITADA.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., p. 342;
- Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, 2ª ed., p. 332;
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 2ª ed., p. 223 e 227;
- Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª ed., p. 87 e 88;
- João Cura Mariano, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 3ª ed., p. 49 e 50;
- José Manuel Vilalonga, Compra e Venda e Empreitada, contributo para a distinção entre os dois contratos, ROA, Ano 57, I, p. 187, 198-200, 206 e ss.;
- Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 2º volume, 1979, p. 585 e 586;
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, III, 5ª ed., p. 504 e 505;
- Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 2ª ed., p. 336 e 337;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, anotação aos artigos 874.º, 1207.º
- Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos, 2000, p. 310 e 311.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 874.º E 1207.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA DE 27-12-2018, IN DR, I SÉRIE, DE 07-12-2018.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


- DE 24-04-2012, RELATOR ARLINDO OLIVEIRA, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I - Resultando do contexto do negócio estabelecido entre as partes contratantes que o que estava subjacente ao fornecimento e montagem de equipamento de atmosfera controlada era proporcionar todo um sistema com tal finalidade nas instalações industriais de uma delas, está-se perante uma obrigação de resultado que deve ser qualificada como de empreitada, e não perante um contrato de compra e venda com obrigação acessória de instalação do equipamento fornecido.

II – Tratando-se, como se trata, do exercício do direito de sub-rogação por parte da seguradora que indemnizou a sua segurada, a dona da obra, pelo prejuízo decorrente de anomalia de funcionamento do sistema que foi montado, não estamos perante matéria excluída da disponibilidade das partes.

III - Deste modo, a caducidade do direito de reembolso que a seguradora veio exigir contra a empreiteira não é de conhecimento oficioso.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA, S.A. demandou, pela Secção Cível da Instância Central de Viseu e em autos de ação declarativa com processo na forma comum, BB, S.p.A., peticionando a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 138.503,85, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.

Alegou para o efeito, em síntese, que celebrou com a sociedade CC, Lda. um contrato de seguro destinado a cobrir danos nas instalações industriais da segurada e nas frutas aí conservadas.

A Ré contratara com esta segurada da Autora o fornecimento e montagem de um sistema de conservação em atmosfera controlada das câmaras frigoríficas que a segurada possui nessas instalações.

Ocorre que, devido a funcionamento anómalo desse sistema, sofreram as instalações e a fruta que aí se encontrava armazenada os estragos que a Autora descreve.

Em consequência disso, em cumprimento do contrato de seguro, a Autora teve que indemnizar a sua segurada no montante global de € 138.503,85.

Ficou assim a Autora sub-rogada nos direitos da segurada, de sorte que lhe asiste o direito de receber da responsável pelo sinistro, e que é a Ré, o montante que pagou, acrescido dos juros de mora.

                                                           +

Contestou a Ré.

No que ainda interessa ao caso, impugnou parte da factualidade alegada pela Autora e concluiu pela improcedência da ação.

                                                           +

Seguindo o processo os seus devidos termos, veio, a final, a ser proferida sentença (Juízo Central Cível de Viseu-Juiz 1) que, em procedência da ação, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 138.504,85, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

                                                           +

Inconformada com o assim decidido, apelou a Ré.

Fê-lo sem êxito, pois que a Relação de Coimbra, usando embora fundamentação diversa, confirmou a sentença.

                                                           +

Mantendo-se irresignada, pede a Ré revista.

                                                           +

Da respetiva alegação extrai a Recorrente as seguintes conclusões:

1ª - Surgem as presentes alegações no âmbito do recurso do Acórdão proferido nos autos, nos termos do qual se julgou improcedente a apelação interposta pela ora Recorrente, confirmando a sentença recorrida, ainda que com fundamentação diversa e, consequentemente, condenando a Apelante no pagamento da quantia € 138.504,85, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, e com a qual se não pode conformar.

2ª - Nos presentes autos, a Recorrida, sub-rogada nos direitos da sua segurada CC, demandou a Recorrente alegando que o sistema de conservação em atmosfera controlada por esta fornecido provocara, por funcionamento anómalo, uma depressão súbita e acentuada dentro das câmaras de conservação que originou danos valorados em 146.161,35€, que indemnizou nos termos contratualmente fixados em 138.503,85€, sendo que a Recorrente confirmou a encomenda mas declinou qualquer responsabilidade no acidente ocorrido, por o mesmo não resultar de qualquer atuação sua ou que lhe seja imputável.

4ª - Enquanto o Tribunal de 1ª instância condena a Recorrente no pedido, fundamentando a sua decisão no cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda, o Tribunal da Relação de Coimbra ainda que confirme a decisão da 1ª instância, fá-lo alicerçando-se no cumprimento defeituoso não do contrato de compra e venda mas do contrato de empreitada, posição de que a Recorrente discorda no que respeita à qualificação jurídica do contrato celebrado entre a CC e a BB, sendo esta a vexata quaestio do presente recurso.

5ª - A qualificação jurídica operada pelo douto Tribunal da Relação de Coimbra é, no entendimento da Recorrente, desajustada à realidade contratual estabelecida entre as partes nele intervenientes, impondo-se a sua requalificação como contrato de compra e venda e, consequente, aplicação do regime legal a esta inerente, sendo que a problemática em discussão leva-nos, em primeira linha, para a análise dos contrato de compra e venda e de empreitada e delimitadas que estejam estas duas realidades contratuais, pelo menos dentro do possível, impõe-se interpretar a vontade das partes, nos termos legalmente definidos, para definir a relação jurídica efetivamente existente.

6ª - Tratando-se a compra e venda e a empreitada de negócios tipificados na lei, haverá que atender, desde logo, às noções legais plasmadas no código civil, sendo que, no que respeita ao primeiro, estabelece o artigo 874º do CC que a «Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço», donde se infere que o seu objeto essencial reside na transmissão de um direito, de propriedade ou de outra natureza, sendo o efeito translativo que decididamente o caracteriza.

7ª - A constituição da obrigação de entrega do bem (objeto mediato) e de pagamento do respetivo preço que surge para cada uma das partes emerge precisamente da transferência do direito que se dá por mero efeito do contrato, sendo, pois, este negócio o veículo das trocas de produtos mediante com contrapartida monetária.

8ª - Por seu turno, o contrato de empreitada é uma espécie autónoma dos contratos de prestação de serviço, que se caracterizam pela circunstância de uma das partes proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição (Cf. art.ºs 1154º e 1155º), sendo que o que o particulariza é o facto do resultado a que se obriga uma das partes em relação à outra ser o de realização de uma obra, assim o definindo o legislador no artigo 1207º do CC, devendo consubstanciar «uma alteração física de coisa corpórea».

9ª - Em suma, para o empreiteiro advém uma prestação de resultado que se consubstancia na realização e uma obra e para o dono de obra uma obrigação de pagamento do preço que corresponderá à ao valor da obra, sendo os fatores chave da empreitada a prestação do trabalho e a “novidade” acrescentada que esta traz a alguma coisa.

10ª - A este propósito chama-se à colação os Professores Pires de Lima e Antunes Varela que referem, a propósito da empreitada que «Por realização de uma obra deve entender-se não a construção e criação, como a reparação, a modificação ou demolição de uma coisa. Do que não pode prescindir-se é de um resultado material, por ser esse o sentido usual, normal, do vocábulo obra (…), e a propósito da compra e venda que «Tendo por objeto essencial a transmissão de um direito (seja propriedade, seja de outra natureza) que, para ser transferido, necessita de existir previamente como tal, na titularidade do vendedor, a compra e venda não se confunde com o contrato de empreitada, que tem por objeto fundamental a realização de uma obra (art. 1207º» - Pires de Lima e Antunes Varela.

11ª - Já muita tinta fez correr a distinção entre contrato de compra e venda e contrato de empreitada, sobretudo quando alguém se obriga a realizar certa obra e assegura igualmente o fornecimento das matérias necessárias à sua execução, sendo bastante elucidativo o raciocínio plasmado no Acórdão do STJ, datado de 20.10.2003, que num esforço, bem conseguido, resume em breves linhas os critérios distintivos de cada um dos contratos e, consequentemente, orientadores da análise do interprete/julgador, que passamos a enunciar: «a) prevalência da obrigação de dare, ou da obrigação de facere, tratando-se naquele caso de compra e venda e neste de empreitada;

b) na empreitada, ao invés da venda, a prestação dos materiais constitui um simples meio para a produção da obra, e o trabalho o escopo essencial do negócio;

c) além disso, na empreitada o bem produzido representa um quid novi relativamente» à produção originária do empreiteiro, implicando a introdução nesta de modificações substanciais concernentes à forma, à medida, à qualidade do objecto fornecido».

12ª - Transpondo estes ensinamentos para o caso concreto que nos ocupa, entende a Recorrente que não há como configurar o contrato celebrado como de empreitada, já que se está perante contrato bilateral em que aquela se dispôs a fornecer e montar um sistema de atmosfera controlada e a segurada da Recorrida se obrigou a pagar o respetivo preço, não criando aquela nenhuma coisa nova, autónoma dos equipamentos que forneceu, que essa sim, se existisse, seria suscetível de enquadrar o conceito de obra.

13ª - O que a segurada da Recorrida adquiriu foi um sistema de atmosfera controlada, tendo a Recorrente entregue nas suas instalações a maquinaria e componentes integrantes daquele sistema, limitando-se a pô-los a funcionar o que pouco ou nada difere da máquina de lavar adquirida numa superfície comercial com entrega e montagem ao domicílio, que necessita obviamente de ser instalada no imóvel, o que poderá implicar, dependendo do local e espaço onde aquela é colocada, uma extensão de canalização de água e/ou escoamento, puxada de eletricidade, instalação de uma nova tomada ou de um novo sifão.

14ª - A Recorrente não fabricou equipamentos especialmente adaptados ao armazém da segurada da Recorrida, nem tal a Recorrida refere, pois, o equipamento fornecido e montado pela Recorrente mais não é do que um produto do seu comércio sem qualquer particularidade, apresentou a sua proposta comercial para o fornecimento com montagem do sistema de atmosfera controlada, a pedido da segurada da Recorrida, que o aceitou nos precisos termos, conforme resulta do contrato de fls.97v a 103.

15ª - Não há nenhuma factualidade no processo que foque qualquer alteração do processo produtivo da Recorrente, ou seja, qualquer modificação relevante ou adaptação considerável dos equipamentos e/ou componentes fornecidos à segurada da Recorrida, os quais foram inclusive propostos pela Recorrente e estão identificados quer no contrato, quer na fatura através do seu modelo e número de série, pelo que fácil se torna de ver que, segundo as regras da experiência comum, se tratam de equipamentos que esta produz periódica e profissionalmente.

16ª - É, por conseguinte, evidente que o processo produtivo "não integra o objeto principal do contrato" e que o que a segurada da Recorrida pretendia era obter a propriedade do sistema de atmosfera controlada para que a fruta, negócio a que se dedicava, pudesse conservar-se, razão porque a citação de Romano Martinez invocada no acórdão recorrido não tem aplicação no caso dos autos, não vislumbrando a Recorrente como retirou o douto Tribunal recorrido a conclusão de que a situação dos presentes autos é idêntica ou, no mínimo análoga, à contemplada na análise do Prof. Romano Martinez, quando faz depender a natureza da empreitada de “uma montagem que carece de determinada preparação técnica”.

17ª - Baseia-se o tribunal a quo para tanto em dois argumentos: (i) as máquinas não estavam prontas para ser instaladas por um técnico qualquer e (ii) instalação/montagem de um sistema “altamente sofisticado”, questionando a Recorrente, para avaliar da justeza do raciocínio elaborado, se for adquirido um modelo híper sofisticado (de uma máquina de lavar ou de um sistema de atmosfera controlada), o contrato celebrada pode ser catalogado como contrato de empreitada.

18ª - Entende a Recorrente que não já que a modernidade ou sofisticação de um equipamento não tem qualquer interferência com a dificuldade/complexidade ou facilidade/simplicidade da sua montagem, pelo que, salvo o devido respeito, deste facto retirar que os equipamentos e contratos obtidos não podem ser montados por outros técnicos é francamente exagerado.

19ª - É certo que não podemos pretender que um técnico de área completamente distinta, como o gás ou os telefones, consiga montar o equipamento em causa, seria a mesma coisa que pedir a um economista que elaborasse uma petição inicial, agora que um técnico habituado a lidar na área das câmaras frigoríficas não consiga realizar a ligação não encontra na factualidade provada qualquer sustento.

20ª -A execução da Recorrente no que a esta particularidade respeita visava apenas a ligação do equipamento e, tanto assim é, que o contrato exclui expressamente a realização de trabalhos de construção civil e afins, ligação de cabos elétricos à casa das máquinas, movimentação de material e localização dos equipamentos, não tendo sequer que assumir a realização por técnicos próprios, podendo perfeitamente tal tarefa ser assegurada por técnicos locais disponíveis.

21ª - Igualmente não aceita a Recorrente a ideia aflorada no acórdão em análise de que por a montagem ser essencial à funcionalidade do sistema tal desencadeia automaticamente a existência de um contrato de empreitada, já que, a ser assim, in extremis não haverá qualquer margem para a aplicação do contrato de compra e venda, sempre que a aquisição de um bem exija montagem, pois, sem ela o bem nunca funcionará.

22ª - Acresce que o citado autor, mesmo no enquadramento em referência, faz uma reserva de extrema importância, e que, por isso, se transcreve: «Mas será, em última análise, a vontade real dos contraentes que, sobrepondo-se a todos os critérios de distinção, vai determinar o tipo de contrato e o seu regime», o que vai ao encontro da tese defendida pelo Dr. José Manuel Vilalongas de que a dificuldade na destrinça destas duas figuras jurídicas reside apenas nos casos em que as partes não estão de acordo quanto à qualificação jurídica da situação de facto.

23ª - Admitindo que a ligação dos equipamentos acarreta uma coisa distinta da adquirida, no que não se concede e apenas por hipótese de raciocínio se equaciona, a verdade é que a montagem, porque não é o objeto principal do contrato e não tem relevância própria e independente do fornecimento, não tem também um preço parcial atribuído, sendo vista sempre como uma parte acessória da compra e venda, que inclusive poderá nem ser contratada.

24ª - Em suma, os elementos trabalho e resultado são demasiado desproporcionados em valor em relação ao preço e custo do material, o que manifestamente afasta a intenção das partes em celebrar um contrato de empreitada.

25ª - Se atentarmos ao critério da especificação, ao critério do valor e aos critério do carácter acessório ou principal dos materiais e da atividade, todos eles avançados pela doutrina e jurisprudência, impõe-se concluir que os mesmos indiciam claramente que, na questão em discussão, estamos perante um contrato de compra e venda e não perante um contrato de empreitada.

26ª - Em resumo, da análise ponderada da relação estabelecida entre a Recorrente e a segurada da Recorrida, resulta claramente que (i) a obrigação de entrega do sistema de atmosfera controlada e a transferência da sua propriedade prevalece sobre o trabalho de montagem, em qualquer um dos critérios enunciados, (ii) o escopo do contrato não é a realização do trabalho de instalação, sendo "os materiais" entregues o verdadeiro fim do contrato (aquisição do sistema de atmosfera controlada) e não um meio para atingir o resultado obra e (iii) a instalação do sistema nada acrescenta à produção inicial, as máquinas/equipamentos são precisamente os mesmos que foram entregues, não introduzindo a montagem qualquer modificação e muito menos uma modificação substancial da forma, medida ou qualidade das máquinas/equipamentos.

27ª - Assim sendo, estamos perante um contrato de compra e venda com obrigação acessória de montagem, ao qual devem ser aplicadas as regras integradoras deste tipo contratual, vertidas nos artigos 874º e segs. do C.C. e, em concreto, as relacionadas com o cumprimento defeituoso prescritas nos artigos 916º e 917º do cc.

28" - Também o elemento subjetivo aponta para a qualificação do contrato como compra e venda, inexistindo elementos que apontem no sentido de classificação diferente, sendo que, apesar da divergência doutrinal e jurisprudencial sobre a distinção entre os dois contratos em determinadas situações fácticas, os autores e Tribunais estão em pleno consenso relativamente à preponderância do elemento subjetivo da vontade das partes para o surgimento e resolução desta problemática.

29ª - Esclarece o Dr. José Manuel Vilalonga que «se resultar, de forma inequívoca, da vontade das partes a intenção de celebrar um ou outro tipo contratual, nenhuma dúvida surgirá» e também o Prof. Romano Martinez manifestando a primazia do elemento subjetivo escreve, como já se fez notar supra, que «(…) será, em última análise, a vontade real dos contraentes que, sobrepondo-se a todos os critérios de distinção, vai determinar o tipo de contrato e o seu regime».

30ª - A questão suscitada remete-nos, pois, para a fixação do sentido e alcance juridicamente relevantes da declaração negocial e do contrato, tarefa sujeita, como se sabe, a regras específicas que não são mais do que critérios interpretativos dirigidos ao juiz e às partes contratantes, sendo que, nesta tarefa o intérprete terá necessariamente de socorrer-se de um conjunto de elementos que ganham especial e primordial relevância na busca do sentido das declarações: “a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos "[10] bem como “os termos do negócio, os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento), a finalidade prosseguida, etc.”.

31ª - O sentido interpretativo de qualquer cláusula contratual há-de colher-se no regime constante dos artigos 236º a 239º do CC, que define as regras da interpretação das declarações negociais, aí se determinando o recurso a critérios objetivos que conferem à declaração o sentido que “um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário” dela retiraria, ainda que temperados por critérios subjetivos, sempre e quando o destinatário os conheça.

32ª - O acordo das partes envolvidas no contrato sobre qualificação jurídica da situação de facto é no caso sub judice um dado adquirido, pois, a Recorrida sempre o configurou como contrato de compra e venda e foi como tal que o exteriorizou na petição inicial, o que em abonado da verdade mais não é do que a forma como sempre o encarou desde o pedido até à entrega e instalação.

33ª - Em momento algum foram estabelecidas ou projeta das entre as partes quaisquer normas tendentes à realização de uma obra, não há fiscalização, não há vistoria, não há assinatura de autos, não há pagamentos dependentes dos trabalhos realizados, não ficando a aquisição da propriedade do sistema de atmosfera controlada dependente da sua instalação já que a segurada da Recorrida quando procedeu à transferência parcial do preço, fê-lo porque comprou o sistema de atmosfera controlada e para receber o equipamento.

34ª - Na verdade, sobre a montagem só mesmo a expressão é mencionada, sendo que o que a segurada da Recorrida pediu e encomendou foi um sistema de atmosfera controlada e o que a Recorrente forneceu foi um sistema de atmosfera controlada, que como grande parte dos equipamentos elétricos e eletrónicos carece de instalação/montagem.

35ª - Um homem médio colocado na posição das partes jamais retiraria do contrato que a Recorrente se obrigara à realização de uma obra e que segurada da Recorrida pretendia pagar o preço pela execução de uma obra, as partes nunca configuraram na sua mente um contrato de empreitada, a instalação, como se deixou dito, é por elas entendida como pouco significante perante o custo do equipamento, o que manifestamente afasta a intenção das partes em celebrar tal contrato.

36ª - Tendo a questão sido levantada no Acórdão recorrido, impunha-se que fosse resolvida de forma diferente, seguindo os ensinamentos unânimes da doutrina e jurisprudência no que toca ao primado da vontade das partes.

37ª - Sendo de qualificar o contrato em discussão como contrato de compra e venda com obrigação acessória de montagem, como defendido supra, resta agora aplicar ao caso concreto o regime jurídico deste tipo contratual, sendo que, nos termos do disposto no citado regime legal, «Há venda de coisa defeituosa sempre que no contrato de compra e venda, tendo por objecto a transmissão da propriedade de uma coisa, a coisa vendida sofrer dos vícios ou carecer das qualidades abrangida no art. 913º do Código Civil (…)»

38ª - Na execução do contrato de compra e venda o vendedor está obrigado a entregar ao comprador a coisa vendida, isenta de “defeitos intrínsecos inerentes ao seu estado material” e de desconformidades com o contrato ou com a função que dela se espera (Cf. artigos 406º, n.º 1, 879º, alíneas b), e 913º a contrario do CC, sendo certo que o vício ou defeito tem de existir no momento da entrega, ainda que se manifeste ou revele no prazo máximo de 8 dias, se estivermos perante compra e venda comercial, ou de 6 meses, caso falemos de compra e venda civil.

39ª - Ora, sendo a existência do defeito à data da venda um facto constitutivo do direito indemnizatório da autora, aqui Recorrida, cumpria-lhe alegá-lo e prova-lo no processo (Cf. 342º, n.º 1 do CC), o que não fez, e não podendo a Recorrida beneficiar de nenhuma presunção legal de existência do defeito ao tempo da entrega, por não ser aplicável nem o regime do 921º do CC, nem o DL 67/2003 respeitante à venda de bens de consumo, caberia à Recorrida a prova do defeito do sistema de atmosfera controlada e ainda a da sua anterioridade ou contemporaneidade com a celebração do contrato.

40ª - Dissecando a matéria fáctica provada resulta que ainda que a “depressão súbita e acentuada ocorrida no interior das câmaras de conservação de maçã” seja enquadrável na noção de defeito legalmente consagrada, no que não se concede, sempre faltaria a demonstrar a sua verificação à data da compra e venda, sendo a presunção de culpa consagrada no artigo 799º do CC inoperante para este efeito, uma vez que para que esta pudesse funcionar necessário se tornaria provar o facto ilícito violador do contrato celebrado, o que não aconteceu.

41ª - Ainda que tivesse sido possível à Recorrida demonstrar esta realidade, não conseguiria ultrapassar o prazo de caducidade legal e contratualmente definido de 8 dias, ou mesmo de 6 meses se assim viesse a ser entendido, dado que o fornecimento do sistema de atmosfera controlada ocorreu no mês de setembro de 2011 e o acidente teve lugar em 11.02.2014 (matéria de facto 9. e 29.), estando o direito de ação caducado à data da sua entrada, facto que é de conhecimento oficioso e que, por isso, o douto Tribunal sempre podia e poderá conhecer.

42ª - Tudo para concluir que, perante o quadro fáctico dado como provado pelo Tribunal a quo, impunha-se solução distinta da adotada e que julgasse a ação totalmente improcedente, absolvendo a Recorrente do pedido contra si deduzido.

43ª - Porque esta matéria é fértil em soluções doutrinais e jurisprudências, no primado dos princípios impõe-se, ainda, uma breve referência à solução do «contrato misto consubstanciado na ligação de dois contratos, sem perda da sua individualidade, ligação vinculada por certo nexo.»

44ª - Tal acarretaria a vigência simultânea de dois contratos, um contrato de compra e venda concretizado no fornecimento do sistema de atmosfera controlada, e um contrato de prestação de serviços para a instalação propriamente dita daquele sistema que não uma empreitada, porque os elementos que a caracterizam obra (trabalho) e autonomia são desajustados face ao peso da obrigação de “dare”.

45ª - Preservando a individualidade ínsita a cada um deles, na situação que nos ocupa teríamos que reconduzindo-se o vício ou defeito a alguma componente do sistema de atmosfera controlada o regime aplicável seria o da compra e venda, estando a ação condenada ao insucesso pela falta da alegação e prova da contemporaneidade do defeito à celebração do contrato, pelos motivos já expostos, ficando em falta a solução preconizada para as situações em que o defeito resulta do cumprimento defeituoso do contrato de montagem.

46ª - Ora, a responsabilidade contratual derivada desta atividade teria obrigatoriamente que advir de uma incorreta instalação dos equipamentos que compõem o sistema, pois, após a sua montagem a obrigação da Recorrente fica cumprida pelo que, seguindo este raciocínio a Recorrida teria de alegar e provar factos que configurassem uma instalação do sistema por parte da Recorrente sem respeito pela legis artis, o que não sucedeu.

47ª - E em abono da verdade, mesmo que a Recorrida os tivesse alegado, decorridos aproximadamente dois anos e meio sobre a instalação e funcionamento do sistema e seus equipamentos em plenas condições, não haveria regra da experiência comum que atestasse tal nexo de causalidade pelo que, do exposto, verifica-se que também sob esta perspetiva a ação teria de improceder, por não ter a Recorrida feito prova de factualidade subsumível no conceito de má instalação, suscetível de gerar responsabilidade contratual.

48ª - Relativamente ao regime da empreitada defendido no acórdão recorrido e para o caso de este vir a ser confirmado, no que não se concede, ainda assim impõe-se decisão diversa porque sub-rogando-se a Recorrida nos direitos da sua segurada, o prazo de dois anos a contar da entrega da obra para o exercício do direito de ação contra o empreiteiro por vício ou defeito terminara em setembro de 2013, dando a ação entrada em já no ano de 2016, facto que é de conhecimento oficioso e alegável a todo tempo.

49~ - Violou, assim, a douta sentença recorrida os artigos 342º, 350º, 799º, 874º, 879º, 913º, 916º, 917º, 1207º, 1220º e 1224º todos do Código Civil.

                                                           +

A parte contrária contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

                                                           +

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

São questões a conhecer:

- Qualificação do contrato, com as respetivas consequências;

- Caducidade do direito acionado pela Autora.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes, como tal descritos no acórdão recorrido (após as modificações que fez operar):

1. A A. é uma companhia de seguros, e, no exercício da sua atividade, celebrou com a sociedade CC II – PRODUÇÃO, LDA. com domicílio em ..., dois contratos de seguro, a saber: - O contrato de seguro titulado pela Apólice nº …, do ramo Seguro PME, destinado a cobrir danos (em edifícios, existências e mobiliário e equipamentos) nas instalações industriais da CC; e - O contrato de seguro titulado pela Apólice ..., do ramo Seguro de Avaria de Máquinas, destinado a cobrir avarias em máquinas nas instalações da CC – 1º a 4º PI.

2. A Segurada da A. CC é detentora de um edifício destinado ao armazenamento e conservação de fruta - maçã – 5º PI.

3. Trata-se de um pavilhão industrial, construído em 2011, realizado em estrutura metálica e com revestimento de paredes e cobertura em chapa metálica – 6º PI.

4. Este armazém é dotado de 24 câmaras frigoríficas, com atmosfera controlada para conservação das diversas variedades de maçã, dispostas em 2 corredores (12 câmaras em cada), sendo que os próprios corredores são também refrigerados e utilizados para armazenagem de fruta que não em atmosfera controlada – 7~PI.

5. O fornecimento e montagem das câmaras realizadas em painéis isotérmicos, bem como todo o equipamento de frio, ficou a cargo da empresa portuguesa DD, Lda. – 8º PI.

6. O fornecimento e montagem do equipamento do sistema de conservação em atmosfera controlada foi realizado pela R. BB – 9º PI.

7. Este sistema de atmosfera controlada, fornecido pela R. BB, assegura a manutenção, no interior das câmaras, dos teores desejados de O2 e CO2 – 10º PI.

8. Esta unidade aspira o ar do interior da câmara, forçando-o a passar por um leito de carvão ativado, que retém parcialmente, por absorção, o CO2 que o ar tem, e volta a introduzir o ar com teor de CO2 ajustado no interior da câmara – 11º PI.

9. 12. No dia 11 de Fevereiro de 2014, cerca das 10.00 horas, ocorreu, de modo inesperado, o desabamento do teto do corredor refrigerado de acesso às câmaras 13 a 24 – 12º PI.

10. Pelo menos um sócio da CC, e um funcionário da empresa, quando procediam à descarga de adubo na área de armazém não refrigerada, subitamente escutaram um estrondo proveniente da zona das câmaras frigoríficas – 13º PI.

11. Deslocando-se ao local, verificaram que tinha ocorrido a queda parcial do teto do corredor, e também a fratura do teto da câmara 24 – 14º PI.

12. A CC contactou a já referida DD, tendo os técnicos da empresa verificado que não havia qualquer vestígio ou sinal de anomalia com a montagem das câmaras e seus painéis que pudesse ter provocado o acidente, nem mesmo com o sistema de frio – 15º PI.

13. Segundo os técnicos da DD, apenas uma situação de forte vácuo no interior da câmara 24 (com origem no equipamento do sistema de atmosfera controlada), e possivelmente em outras câmaras, poderia ter causado o acidente, a como que implosão do teto da câmara 24, e o deslocamento das paredes desta e das câmaras vizinhas, fazendo com que o teto do corredor que lhes dá acesso perdesse apoio e acabasse por ruir parcialmente – 16º a 19º PI.

14. Perante esta conclusão, o Segurado da A. participou a ocorrência à R. BB, solicitando a presença de técnicos da empresa, com vista à verificação do equipamento vendido e instalado, e à determinação das causas do acidente – 20º PI.

15. Os técnicos da R. estiveram nas instalações da Segurada da A. nos dias 13 e 14 de fevereiro de 2014, e procederam à reparação das unidades de atmosfera controlada, tendo para o efeito, substituído uma válvula e tubagem no interior de uma máquina fornecida e instalada pela BB, sem nada cobrar à segurada da A., não tendo o representante legal da segurada ficado na altura ciente das causas da avaria, que não lhe foram detalhadas - 21º a 26º PI.

16. No âmbito dos contratos de seguro a que acima se fez referência, a CC participou o sinistro à A. AA, que nomeou a empresa de peritagens EE para averiguar os prejuízos e as causas do acidente participado – 27º e 28º PI.

17. O acidente teve origem numa depressão súbita e acentuada ocorrida no interior das câmaras de conservação de maçã, provocando danos estruturais nas paredes e tetos das câmaras.

A causa do acidente foi determinada como sendo uma “depressão súbita e acentuada ocorrida no interior das câmaras de conservação de maçã, por funcionamento anómalo do sistema de atmosfera controlada, provocando danos estruturais nas paredes e tetos das câmaras” – 30º PI.

18. eliminado

19. eliminado

20. Na sequência do acidente, ocorreu a ruína parcial do teto do corredor 2, e a irreparável deformação, com abertura de brecha, no teto da câmara 24, obrigando à substituição de cerca de 200 m2 de painel – 34º a 36º PI.

21. Também as paredes laterais (divisórias entre câmaras) e frontais das câmaras 17, 19, 20, 21 e 22 sofreram graves deformações (empenos, vincos, pequena brecha etc.), que obrigaram à substituição de cerca de 210 m2 do mesmo painel – 37º PI.

22. A reparação destes danos nas câmaras, devidamente suportados e avaliados pelos peritos nomeados pela A., ascendeu a Euros 103.150 -  38º PI.

23. A Segurada da A. CC sofreu igualmente danos na fruta que se encontrava armazenada nas câmaras frigoríficas no momento do acidente – 39º PI.

24. Parte das maçãs contidas e conservadas nas câmaras e corredor que foram afetados, sofreram perdas irreparáveis nas suas características por força da súbita quebra da sua conservação em frio, ou em atmosfera controlada, nas seguintes quantidades (perdidas ou suscetíveis de aproveitamento): - Câmaras 20 e 22: Maçã Golden, 12.700 kgs de perda total (podridão); Maçã Bravo, 24.467 Kgs para a Indústria de concentrados - Corredor 2: 116.270 kgs de maçã golden para a Indústria de concentrados; e 21.322 kgs de maçã golden para a Indústria de maçã desidratada – 40º e 41º PI.

25. Tendo por base o preço de compra ao produtor, foram apurados os seguintes valores para a maçã danificada: - Maçã Golden deteriorada: 150.292, a 0.308€ o kg, no total de 46.289,78 €; - Maçã Bravo: 24.467, a 0.514 € o kg, no total de 12.576,04€ - 42º PI.

26. Foi possível efetuar o aproveitamento industrial da maçã deteriorada, tendo sido obtido o valor total de 21.024,79 Euros – 43º PI.

27. Os custos de transporte da mercadoria deteriorada ascenderam a 5.170,32 Euros – 44º PI.

28. A A. AA, no âmbito dos contratos de seguro celebrados com a CC, procedeu, em Setembro de 2014, ao pagamento à sua Segurada dos seguintes valores: - Apólice Ramo PME – danos na fruta deteriorada, 43.011,35 €, (58.865,82 - 21.024,79 + 5.170,32), quantia a que foi deduzida a franquia contratual de 2.500 Euros, totalizando o pagamento efetuado pela AA: Euros 40.511,35; - Apólice Ramo Avaria de Máquinas – danos no armazém, 103.150,00 €, quantia a que foi deduzida a franquia contratual de 5.157,50 Euros, totalizando o pagamento efetuado pela AA: Euros 97.992,50, Ascendendo o valor total pago pela AA à sua Segurada CC a 138.503,85€ - 45º a 50º PI.

29. O fornecimento da R. à empresa CC do sistema de atmosfera controlada para vinte e quatro (24) câmaras frigoríficas foi efetuado em Setembro de 2011, ficando a montagem e respetiva supervisão técnica a cargo da Ré – 35º e 36º cont.

30. O sistema de atmosfera controlada é extremamente sofisticado e permite o armazenamento de frutas e vegetais durante um período de tempo 2 a 4 vezes mais superior ao normal, sem o uso de qualquer agente químico, uma vez que o nível de oxigénio é reduzido e o de CO2 aumentado, fazendo parte deste sistema uma série de componentes – 37º e 38º cont.

31. Não obstante a automação do sistema, tem periodicamente de ser realizada a leitura de concentração de oxigénio e CO2 pro forma, a caso seja necessário, efetuar a correção da concentração de gases, carecendo de verificação e manutenção - 52º a 54º cont.

32. Nunca a R., nos anos subsequentes a ter vendido o sistema de atmosfera controlado, ou seja em 2012 e 2013, recebeu qualquer pedido anual de manutenção do equipamento, nomeadamente para a substituição de uma válvula – 57º e 58º cont. 33. Ocorreu uma falha de energia nas instalações das CC, desde as 16h00 do dia 9 até pelo menos ao dia 10 de Fevereiro de 2014, que foi detetada pelos técnicos da R. durante a sua visita, por registo no software do sistema – 61º e 62º cont. 

33. É recomendável a manutenção do equipamento que não é automático.

Não consta do contrato qualquer obrigação contratual de a ré assegurar a manutenção do equipamento, sendo, portanto, da responsabilidade do adquirente do equipamento essa manutenção.

Até à data do acidente não se tinha procedido a qualquer acção de manutenção do equipamento.

Foram havidos como não provados os factos seguintes:

a) Os técnicos da R. procederam apenas à substituição de uma válvula – 44º cont.

b) eliminado

c) A falha de energia ocorreu até às 10h00 do dia 11 de Fevereiro de 2014, e afetou o equipamento instalado pela R. – 61º cont.

d) A avaria ocorreu imediatamente a seguir ao relançamento do sistema de atmosfera controlado – 63º cont.

De direito

Tal como diz a Recorrente algures na sua alegação, o ponto fulcral da discussão trazida a este Tribunal é a qualificação jurídica do contrato celebrado entre a CC e a BB: compra e venda (com obrigação acessória de instalação do equipamento) ou empreitada? Esta realmente “a vexata quaestio do presente recurso” (sic, conclusão 4ª).

Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou outro direito, mediante um preço (art. 874.º do CCivil). Diz a propósito (e se dúvidas houvesse, que não há) José Manuel Vilalonga (Compra e Venda e Empreitada, contributo para a distinção entre os dois contratos, Revista da Ordem dos Advogados, ano 57, I, p. 187) que “O fim principalmente visado pelo comprador é a aquisição de um direito sobre determinada coisa que, em princípio, já existe na esfera jurídica do vendedor. Na perspectiva do vendedor, a finalidade primordial da celebração do contrato é o recebimento do preço, que consiste na expressão do valor da coisa em dinheiro”.

Empreitada é o contrato (de prestação de serviços) pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço (art. 1207.º do CCivil). Diz o citado autor (ob. cit., pp. 189 e 190) - e também se dúvida alguma houvesse, que não há - que “Sendo [a empreitada] uma modalidade do contrato de prestação de serviços, o objecto da obrigação principal que emerge da celebração do contrato para um dos contraentes (empreiteiro) é uma prestação de resultado (a realização de uma obra). O outro contraente (dono da obra) obriga-se a pagar àquele um preço, que mais não é do que a expressão pecuniária do valor da obra realizada. A obra a realizar é o fim primordialmente visado pelo dono da obra. O recebimento do preço é, por seu turno, o fim visado pelo empreiteiro”.

Assim, do contrato de empreitada nasce uma obrigação de prestação de facto (obrigação de resultado), que é a obra. Do contrato de compra e venda resulta a transferência da propriedade de uma coisa ou de outro direito.

Essencial para que haja empreitada é que o contrato tenha por objeto a realização de uma obra. Subjacente ao contrato de empreitada tem que estar um resultado material, consistente na realização de certa obra. Dizem Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, II, anotação ao artigo 874.º) que “Tendo por objecto essencial a transmissão de um direito (seja de propriedade, seja de outra natureza), que, para ser transferido, necessita de existir previamente como tal, na titularidade do vendedor, a compra e venda não se confunde com o contrato de empreitada, que tem por objecto essencial a realização de uma obra (…). Mesmo que os materiais da obra sejam fornecidos, no todo ou na sua maior parte, pelo empreiteiro (…), a nota essencial da empreitada é sempre dada pela realização de uma obra, que sendo um acto in fieri se não confunde nunca com um direito implantado ou a inserir na esfera jurídica do alienante.”

Pese embora aquelas apontadas definições legais e este último contributo doutrinário, é certo que, integrando o negócio o fornecimento de materiais e a prestação de serviços, casos há em que a destrinça entre um contrato de compra e venda e um contrato de empreitada não é tarefa fácil, além de que não será de excluir aí o concurso mais ou menos autónomo das duas figuras num mesmo complexo negocial (união ou adjunção de contratos) ou a presença de um contrato misto.

Vejamos algumas perspetivas doutrinárias (entre várias outras, algumas das quais indicadas por José Manuel Vilalonga, ob. cit., pp. 198 a 200) sobre tal destrinça.

Escreveu Rubino (citado por Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., Volume II, anotação ao artigo 1207.º) que “não é possível pré-ordenar critérios gerais taxativos; uma boa margem deve ser deixada à prudente apreciação do juiz. Com esta reserva, pode considerar-se como melhor, mas não como exclusivo, o critério segundo o qual há empreitada, se o fornecimento dos materiais é um simples meio para a feitura da obra, e o trabalho constitui o fim do contrato. Pelo contrário, há venda, se o trabalho é simplesmente um meio para obter a transformação da matéria”.

Menezes Leitão (Direito das Obrigações, III, 5ª ed., pp. 504 e 505) escreve, a propósito, que “[de] acordo com a formulação mais comum o contrato será de empreitada quando as partes tiveram fundamentalmente em conta o resultado do trabalho a prestar pelo empreiteiro, sendo de compra e venda sempre que o primeiro plano seja dado antes aos materiais fornecidos, para cuja transmissão o trabalho funciona apenas como um meio. O critério seria assim o da prevalência do trabalho ou dos materiais ou o facto de a prestação de serviço ter ou não carácter instrumental relativamente à produção do bem. Decisivo parece ser, no entanto, a avaliação económica da operação, por forma a averiguar se o preço aparece como o correspectivo da alienação do bem (considerado como produto acabado) ou visa antes o pagamento do serviço de produção do bem.”

João Cura Mariano (Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 3ª ed., pp. 49 e 50) aduz o seguinte, reportando-se às situações em que simultaneamente se acorda o fornecimento de uma coisa e a sua instalação ou adaptação: “Se os trabalhos de adaptação ou instalação têm uma relevância insignificante, a obrigação de os realizar deve ser encarada como um mero dever acessório da prestação principal, sem dimensão suficiente para afastar a qualificação do contrato como contrato de compra e venda ou a aplicação do regime deste tipo contratual. Mas, se esses trabalhos já assumirem uma dimensão de algum relevo, então o contrato deve ser encarado como um contrato misto, na modalidade de contrato combinado, em que uma das partes se obriga a duas prestações que integram dois tipos contratuais diferentes - o de compra e venda e o de empreitada - contra uma prestação unitária da contraparte - o pagamento do preço. Nestes casos, utilizando a faculdade concedida pela melhor doutrina de que não existem soluções rígidas na definição do regime dos contratos mistos, vigora a regra prevista o art.º 239.º do C.C., para a integração dos negócios jurídicos, em tudo aquilo que não foi expressamente previsto pelas partes. Assim, o regime aplicável deve ser procurado na vontade hipotética das partes, se tivessem previsto o ponto omisso. Essa procura da vontade hipotética deve ser efectuada de modo a que, perante a realidade e os valores dominantes se procure reconstruir a vontade das partes, num juízo de razoabilidade. Na maior parte das situações, este juízo, sem que isto procure ser uma regra infalível, conclui pela aplicação a cada uma das prestações do vendedor/empreiteiro do regime do contrato típico que preenchem (teoria da combinação). E nas zonas contratuais que não pertencem exclusivamente a um dos modelos pressentes, como ocorrerá na prestação unitária do comprador/dono da obra, normalmente aplica-se o regime previsto para o contrato típico onde se insere a prestação que se revele dominante (teoria da absorção). Na hipótese de ambas as prestações assumirem igual importância, deve o julgador, nessas zonas neutras, adoptar a disciplina que concretamente se revele mais razoável, tendo em atenção os interesses plasmados no figurino contratual.”

José Manuel Vilalonga (ob. cit., pp. 206 e seguintes), reportando-se aos contratos de fornecimento com obrigação de montagem (que exemplifica com os casos de fornecimento e instalação de elevadores ou de aparelhos de ar condicionado), é de entendimento que naquelas hipóteses em que um contraente aliena determinada coisa que tem uma utilidade própria, uma função especial ou específica (independente da função própria da coisa na qual vai ser incorporada) e, concomitantemente, se obriga a instalá-la, “as partes terão, em princípio, encarado desde o início a operação como compreendendo dois contratos”, um de compra e venda e outro de empreitada. O autor vê nesta situação uma união de contratos.

Pedro Romano Martinez (Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 2ª ed., pp. 336 e 337) expende que se do bem “só se pode retirar utilidade depois de ter sido montado, e se essa montagem carece de uma determinada preparação técnica, não se pode qualificar o contrato como de compra e venda; é o que se passa, designadamente, no exemplo do fornecimento e instalação de elevadores. Sendo a prestação de montagem, apesar de acessória, indispensável para o uso do bem, o contrato, por via de regra, será de empreitada. (…) [O] contrato pelo qual alguém se obriga a realizar certa obra é, em princípio, uma empreitada, e o fornecimento pelo empreiteiro das matérias necessárias á sua execução não vai, por via de regra, alterar a natureza do contrato. Deve, então, qualificar-se como de empreitada o contrato em que o subministro de material constitui um meio para a realização da obra. Em contrapartida, enquadra-se na noção de compra e venda o contrato mediante o qual alguém se obriga a fornecer um bem fabricado em série ou por encomenda com base em amostra ou catálogo, desde que não haja que proceder a adaptações consideráveis.”.

Pacífico, entretanto, é o entendimento de que acima de quaisquer elementos objetivos, o elemento fundamental a considerar para a destrinça entre os contratos em causa é sempre constituído pela vontade dos contraentes. A qualificação jurídica do negócio há de resultar, em larga medida, do que tiver sido pretendido pelas partes, que não terão deixado, em qualquer caso, de configurar na sua mente um dos dois contratos em causa e o seu regime (assim, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e loc. cit.; Pedro Romano Martinez, ob. cit., p. 337; João Cura Mariano, ob. cit., pp. 45 e 46; José Manuel Vilalonga, ob. cit., pp. 200, 201, 210 e 211).

Isto posto:

Pegando precisamente neste último tópico, debalde se procurará na petição inicial apresentada pela ora Recorrida alegação alguma tendente a significar qualquer vontade específica das partes outorgantes (CC e BB) no contrato aqui em discussão. Ainda assim, resulta objetivamente da petição inicial que a Autora entendia que houve uma compra e venda do equipamento de controlo da atmosfera (artigo 20º) mas também que houve uma vinculação da vendedora a instalar ou montar esse equipamento em edifício da compradora que era destinado ao armazenamento da fruta (artigos 9º e 33º). Esta realidade está, de resto, retratada no ponto 14. dos factos provados.

Mas o que é importante é que está provado que a ora Recorrente forneceu e montou tal equipamento (factos dos pontos 6 e 14). A própria Recorrente reafirma no presente recurso que “É pacífico que a Recorrente forneceu os equipamentos e que assegurou a sua montagem, como resulta à evidência do contrato e fatura juntos aos autos” e que ficou a seu cargo a “supervisão técnica” dessa montagem.

Deverá tal factualidade, associada aos termos do escrito que corporiza o contrato celebrado (trata-se do escrito de fls. 82 a 86, composto pela “confirmação da encomenda” e pelas condições gerais do contrato) e da fatura que foi emitida, ser vista como dando sustentação a um contrato de empreitada?

O acórdão recorrido concluiu pela afirmativa.

A Recorrente defende o contrário. Entende que do que se tratou foi unicamente de uma compra e venda com obrigação acessória de montagem.

Cremos que a razão está do lado do acórdão recorrido.

Lê-se, a propósito, do acórdão recorrido:

«(…) verifica-se que a autora – que fundamentou a responsabilidade da ré na depressão súbita e inesperada que ocorreu no interior das câmaras de conservação, por funcionamento anómalo do sistema de atmosfera controlada, que provocou a queda do tecto do corredor e danos no tecto e na câmara 24 e danos na fruta armazenada - não qualificou expressamente, o contrato celebrado entre a CC, sua segurada e a ré BB, embora se tenha reportado à “ verificação do equipamento vendido” (art. 20 da petição).

Todavia, cremos que o contrato não pode deixar de ser qualificado de empreitada.

Na verdade, não houve um mero contrato de compra e venda de máquinas com a obrigação acessória de montagem. O que houve foi a instalação de “sistema de atmosfera controlada” para câmaras frigoríficas (composto por máquinas). É o que, aliás, resulta do contrato de fls. 97 v. a 103 e do relatório junto pela ré a fls. 228 e segs. Não se tratou apenas de vender máquinas que estavam prontas para serem instaladas por um técnico qualquer. Tratou-se de instalar/montar um sistema “ extremamente sofisticado” com vários componentes (30), sob a supervisão técnica da ré (29).

A propósito, escreve Romano Martinez, in Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos …, 2000, a págs 310 e 311 “… no Direito português, o contrato pelo qual alguém se obriga a realizar certa obra é, em princípio, uma empreitada, e o fornecimento pelo empreiteiro das matérias necessárias à sua execução não vai, por via de regra, alterar a natureza do contrato. Deve, então, qualificar-se como de empreitada o contrato em que o subministro de material constitui um meio para a realização da obra. Em contrapartida, enquadra-se na noção de compra e venda o contrato mediante o qual alguém se obriga a fornecer um bem fabricado em série ou por encomenda com base em amostra ou catálogo, desde que não haja que proceder a adaptações consideráveis”. A págs 309 e 310 pode ler-se: “Na realidade, se do bem em causa só se pode retirar utilidade depois de ter sido montado, e se essa montagem carece de determinada preparação técnica, não se pode qualificar o contrato como de compra e venda.” (passagens citadas no Ac. R.C. de 24.4.2012, Arlindo Oliveira, em www.dgsi.pt).

Pode ler-se ainda – com interesse para o caso - no acórdão do STJ de 20.10.2009, Sebastião Póvoas, em www.dgsi.pt: “Não se tratando de aquisição sem mais de uma máquina – ou suas componentes para refrigerar, antes se tratando de contratar toda uma obra, consistente na instalação de um equipamento em local pré-afectado e na sua entrega pronto a laborar assim desempenhando as funções a que se destinava, perfila-se um obra material inserível na disciplina do artigo 1207.º do Código Civil.”»

Concordamos com esta análise do acórdão recorrido.

Vejamos:

Dos factos provados e da devida interpretação (art.s 236.º, n.º 1 e 238.º, n.º 1 do CCivil) da declaração negocial inserta na “confirmação de encomenda” emitida pela ora Recorrente (conjugada com as condições gerais do contrato), resulta que o interesse e o propósito subjacentes ao fornecimento e montagem do equipamento em causa era proporcionar à CC um sistema (“extremamente sofisticado” e do qual faziam parte “uma série de componentes”, como adianta a Ré na sua contestação) de atmosfera controlada nas respetivas instalações.

Temos como patente, como aliás está subjacente à transcrita passagem do acórdão recorrido, que as partes tiveram fundamentalmente em vista o resultado de toda uma atividade a desenvolver pela Ré (a que podemos chamar implementação de um sistema de atmosfera controlada), e não propriamente o ato de alienar e adquirir, respetivamente, a propriedade do equipamento necessário e adequado a uma tal finalidade.

Um declaratário normal, colocado na posição da CC, era assim que consideraria a proposta (rectius, a confirmação da encomenda) que foi apresentada pela ora Recorrente e aceite pela contraparte.

Do mesmo passo que um declaratário normal colocado na posição da ora Recorrente consideraria a aceitação dos termos da encomenda como tendo subjacente o interesse em ver implementado no local uma obra final e globalmente funcional.

Inclusivamente, a circunstância do acidente ter ocorrido cerca de três anos após a montagem do sistema e de, mesmo assim, a CC ter solicitado a presença de técnicos da Ré com vista à verificação do equipamento instalado e à determinação das causas do acidente, e a circunstância da Ré ter imediatamente (verdadeiramente, num ápice) disponibilizado os seus técnicos (que, segundo se colhe dos autos, tiveram que se deslocar para o efeito desde ...), significa que as partes contratantes não encaravam a relação negocial que travaram como uma comum compra e venda seguida de uma como que trivial colocação do equipamento em funcionamento (como sugere a Recorrente).

Pelo contrário, o que tudo isso significa, pelo menos dentro do que será normal, é que as partes contratantes percecionavam o sinistro como conotado com um resultado funcional da montagem e com a possível existência de um defeito que importava corrigir na instalação.

Acresce dizer que o facto da Ré não ter cobrado nada à contraparte não deixa de ser bastante eloquente, julgamos nós, quanto à bondade desta conclusão.

Deste modo, afigura-se, exatamente como se concluiu no acórdão recorrido, que estava em causa na contratação estabelecida entre a CC e a ora Recorrente um resultado material (da prestação) a desenvolver (e que foi realmente desenvolvida) pela ora Recorrente. E isto resolve-se para todos os efeitos numa relação contratual de empreitada, conquanto dependente do fornecimento concomitante do equipamento técnico necessário para tal realização material.

Daqui que não podemos concordar com a Recorrente quando defende o contrário, aí onde afirma algures na sua alegação que “o que está em causa é apenas e tão só a ligação do sistema” e que se limitou a pôr o sistema a funcionar. É aliás um pouco estranho este posicionamento da Recorrente, na medida em que transparece dos autos que a montagem levou o seu tempo a ser feita, tanto que até ficou previsto o pagamento de 20% do preço “a meio da montagem”.

E, diferentemente do que pretende a Recorrente, o caso vertente tem bastante similitude com o contrato de fornecimento e instalação de elevadores (hipótese relativamente à qual a jurisprudência tem entendido tratar-se de uma empreitada), por isso que em ambas as situações se exige a devida preparação técnica (de novo: nas próprias palavras da Ré, no caso vertente tratava-se do fornecimento e montagem de um sistema extremamente sofisticado e que demandava supervisão técnica) e em ambas as situações a prestação do trabalho «ganha uma relevância “extra”» (sic).

Julgamos que, no essencial, são de ter em conta no caso em apreço as supra descritas diretrizes de Pedro Romano Martinez. E assim, podemos dizer que do equipamento (sistema) fornecido pela Ré só se poderia retirar utilidade depois de ter sido montado. Montagem esta que carecia de uma adequada preparação técnica e de que se incumbiu a Ré. É quanto basta para se qualificar o contrato em discussão como de empreitada e não como de compra e venda com obrigação acessória de instalação do material.

Na realidade, e repetindo, o fim subjacente não era a simples transmissão da propriedade do equipamento em si mesmo, caso em que teria sido concluído um contrato de compra e venda, nem a sua singela ligação ou instalação, mas sim a implementação prática ou material de um sistema de atmosfera controlada.

Sendo a prestação da montagem do equipamento - mesmo que possa eventualmente ser havida como acessória - indispensável para o uso do sistema, o contrato deverá, ao invés, ser tido como de empreitada. Neste caso, o fornecimento do equipamento constituiu o substrato, conquanto sine qua non, para a realização da obra em que se traduziu a montagem do sistema no pavilhão industrial da CC.

Admitindo que este ponto de vista possa ser, porventura, discutível (reconhecemos que nesta matéria há pouco espaço para certezas, como aliás não deixa de reconhecer a própria Recorrente), então diremos que, ainda assim, e a nosso ver, não se poderá subscrever o ponto de vista da Recorrente.

Efetivamente, nesta alternativa ter-se-ia que ver no caso uma situação ou de união de contratos ou de contrato misto, e em qualquer dos casos impor-se-ia encarar a situação à luz das regras do contrato de empreitada.

Almeida Costa (Direito das Obrigações, 9ª ed., p. 342), reportando-se à união de contratos, refere que “trata-se de dois ou mais contratos entre si ligados de alguma maneira, todavia sem prejuízo da individualidade própria que subsiste.”. Galvão Telles (Direito das Obrigações, 7ª ed., pp. 87 e 88) esclarece que na união de contratos “os contratos mantêm-se diferenciados, conservando a sua individualidade: cumulam-se, não se fundem”. Mais esclarece que uma das espécies da união de contratos é a união com dependência: “Neste caso a ligação dos contratos é mais estreita porque se estabelece entre eles laço de dependência. Os contratos são também distintos mas não autónomos. As partes querem-nos como conjunto económico, que envolve nexo funcional. A dependência pode aliás ser bilateral ou unilateral, consoante é recíproca ou não. Um contrato só será válido se o restante o for; e, desaparecido este, aquele desaparecerá também. Mas em tudo o mais aplicam-se a cada contrato as suas regras próprias”.

Nesta perspetiva de união de contratos, diríamos então que estamos perante dois contratos cumulados - um de compra e venda, outro de empreitada - mas a que haveria que aplicar ao caso, por estarem em causa os efeitos jurídicos de uma deficiência ocorrida no seio da montagem que foi realizada (v. pontos 15 e 17 dos factos provados), o regime legal da empreitada.

De acordo com Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, I, 2ª ed., pp. 223 e 227) “Diz-se misto o contrato no qual se reúnem elementos de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei” (…). No contrato misto (…) há a fusão num só negócio elementos contratuais distintos que, além de perderem a sua autonomia no esquema negocial unitário, fazem simultaneamente parte do conteúdo deste.” Também numa hipótese que tal se nos afigura que a aplicação ao caso do regime da empreitada seria a solução mais razoável, tendo em conta que se antolha que o negócio teve subjacente um interesse centrado na implementação de todo um sistema, e não propriamente uma compra e venda do equipamento fornecido. Como nos diz Almeida Costa (ob. cit., p. 341), reportando-se precisamente à figura do contrato misto, à míngua da possibilidade de recurso a analogia com situações reguladas na lei “importará encontrar, no quadro da situação concreta, a disciplina mais razoável, partindo das valorações e interesses envolvidos, da função económico-social do negócio, da vontade real e hipotética das partes, subordinada à boa fé (cfr. art.239.º [do Código Civil]).”

Apurado pois que se está perante um caso subsumível às normas legais da empreitada, é certo que a ora Recorrente é responsável pelo prejuízo aqui em discussão. Prejuízo esse que foi reparado pela Autora junto da sua segurada, o que confere à Autora o direito (sub-rogatório) que veio exercer. Tudo exatamente com se decidiu no acórdão recorrido.

Ora, os factos provados revelam que na obra realizada pela Recorrente se manifestou um defeito, consistente no funcionamento anómalo do sistema de atmosfera controlada, tendo sido necessário proceder à reparação das unidades desse sistema. Estamos assim perante a verificação objetiva de um defeito de funcionamento da obra implementada, potenciador do dever de indemnização nos termos gerais (art.s 798.º e 1223.º do CCivil), neste caso por violação do chamado interesse contratual positivo (a indemnização do dano positivo destina-se a colocar o lesado na situação em que se encontraria se o contrato fosse exatamente cumprido, e é disso que aqui se trata).

Revelando-se a presença de anomalia de funcionamento da obra, presume-se a culpa do empreiteiro na sua realização, nos termos gerais da responsabilidade contratual (art. 799.º do CCivil). E assim, competia à Ré alegar e provar, para afastar a sua responsabilidade, que as deficiências funcionais surgidas no sistema não derivavam de culpa sua, nomeadamente por serem imputáveis à própria contraparte.

Sobre esta temática da culpa do empreiteiro escreve Cura Mariano (ob. cit., pp. 79 a 82), e tal não pode deixar de ser subscrito: “Quando não se mostre excluída a relevância da culpa do empreiteiro na realização da obra com defeitos, esta presume-se, como sucede nos casos de responsabilidade contratual por cumprimento defeituoso (art. 799º, nº 1, do C.C.). O legislador entendeu que, nas situações de incumprimento, abrangendo expressamente o cumprimento defeituoso, ao credor basta demonstrar a materialidade do incumprimento, cabendo ao devedor provar a ausência do nexo de imputação à sua pessoa desse incumprimento (…). Assim, ao dono da obra bastará provar a existência do defeito, presumindo-se a culpa do empreiteiro, o qual, para afastar a sua responsabilidade terá de demonstrar que o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua. Este ónus de prova não se satisfaz com a simples demonstração que o empreiteiro, na realização da obra, agiu diligentemente, ficando o tribunal na ignorância de qual a causa e de quem merece ser censurado pela verificação do defeito apontado pelo dono da obra. Nesta situação, continua a funcionar a presunção de que o devedor da prestação é o culpado. O empreiteiro tem que provar a causa do defeito, a qual lhe deve ser completamente estranha, o que bem se compreende pelo domínio que este necessariamente teve do processo executivo da prestação. (…). No âmbito da responsabilidade do empreiteiro por defeitos da obra, têm sido apontadas situações desresponsabilizadoras do empreiteiro, imputáveis ao próprio dono da obra. Assim acontecerá quando o defeito tem origem no projecto, previsões, estudos ou materiais relativos à obra a executar, fornecidos pelo dono da obra, ou em instruções dadas por este ou por pessoas por si mandatadas para o efeito. Estaremos necessariamente perante um vício e não uma desconformidade da obra (…)”.

E Pires de Lima e Antunes Varela observam (ob. cit., anotação aos artigos 1208º e 1219º) que o empreiteiro é o técnico da arte e deve, por conseguinte, saber, quando se obriga, se lhe é ou não possível fazer a obra sem vícios, e daqui que existe culpa da sua parte quanto aos defeitos, salvo se tiver ocorrido uma situação que lhe é estranha (ou seja, para a qual não contribuiu) e que impediu a construção da obra sem vícios. Sendo o empreiteiro quem controla e dirige a execução da prestação, tem ele maior facilidade de conhecer e demonstrar que o vício da obra não procede de causas que lhe sejam imputáveis. Já ao dono da obra compete simplesmente provar a existência do defeito - mas não a sua origem - e a sua gravidade: afetação do uso ou desvalorização da coisa.

Improcedem assim, em tudo o que vai contra o que vem de ser dito, as conclusões 5ª a 47ª.

Na conclusão 48ª mais sustenta a Recorrente que, a ver-se no caso um contrato de empreitada, verifica-se a caducidade do direito da Autora.

Para o efeito a Recorrente argumenta, tal como sintetizado nessa conclusão, nos seguintes termos: “Relativamente ao regime da empreitada defendido no acórdão recorrido e para o caso de este vir a ser confirmado, no que não se concede, ainda assim impõe-se decisão diversa porque sub-rogando-se a Recorrida nos direitos da sua segurada, o prazo de dois anos a contar da entrega da obra para o exercício do direito de ação contra o empreiteiro por vício ou defeito terminara em setembro de 2013, dando a ação entrada em já no ano de 2016, facto que é de conhecimento oficioso e alegável a todo tempo.”

Mas esta argumentação não procede.

É certo que do art. 1224.º do CCivil decorre que o direito de indemnização que cabe ao dono da obra está submetido a prazos de caducidade, sendo que, na melhor das hipóteses para ele, o direito tem que ser exercido dentro do prazo de dois anos sobre a entrega da obra.

É igualmente certo que o direito que a Autora veio exercer, por via de sub-rogação legal ao credor (art. 136.º, n.º 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo D.L. n.º 72/2008) é o direito primitivo que a sua segurada possuía contra a Ré, que se transmitiu para a Autora, de sorte que manda a lógica que lhe sejam oponíveis as exceções que a Ré podia opor à dona da obra[1].

Pode ainda aceitar-se como certo (embora, em boa verdade, não esteja esclarecido nos autos em que data é que a obra foi realmente entregue) que a Autora veio exercer o direito indemnizatório que competia inicialmente à sua segurada já depois de decorridos dois anos sobre a entrega da obra.

Contudo, e contrariamente ao que pretende a Recorrente, a caducidade em questão não é de conhecimento oficioso (ou que possa ser alegada em qualquer fase do processo). O art. 333.º do CCivil e, por sua remissão, também o art. 303.º, são muito claros quanto a isto, na certeza de que não estamos aqui a discutir matéria excluída da disponibilidade das partes.

Embora nenhuma norma legal precise o alcance da expressão “matéria excluída da disponibilidade das partes”, é orientação assente nos círculos jurídicos que se tem em vista os direitos de natureza pessoal (em particular os direitos de personalidade e os fundados em relações jurídico-familiares, com destaque para o estado das pessoas), os direitos de natureza patrimonial que não podem ser renunciados (por exemplo o direito a alimentos), enfim, as situações em que estejam em causa motivos ou interesses de ordem pública.

Ora, nada disto se passa no caso vertente, que tem subjacente a natureza negocial do ato constitutivo da relação jurídica sob discussão (contrato de empreitada estabelecido entre a CC e a ora Recorrente, e contrato de seguro estabelecido entre CC e a Autora e oportuno pagamento à segurada do dano do sinistro). Como nos diz Ana Filipa Morais Antunes (Prescrição e Caducidade, 2ª ed., p. 332), “A disponibilidade do prazo de caducidade, fixado por lei, é, designadamente, indiciada pelos seguintes elementos: em primeiro lugar, a natureza negocial do acto constitutivo da relação jurídica em causa; em segundo lugar, a natureza jurídico-privada dos sujeitos da relação jurídica (…); em terceiro lugar, a natureza patrimonial dos direitos implicados; em quarto lugar, a inexistência de ponderosos interesses de ordem pública tutelados pela norma”. No caso vertente, qualquer um destes elementos concorre, de sorte que não pode haver a menor dúvida de que nos movemos no exclusivo âmbito de direitos disponíveis.

Deste modo, a caducidade de que agora vem falar a Recorrente havia, para que dela se pudesse conhecer, de ter sido alegada pela Ré (ainda que à cautela), o que tinha que ser feito na contestação (art.s 573.º e 579.º a contrario do CPCivil). Ainda aqui é útil transcrever o que refere a citada autora (ob. cit., pp. 353 a 356): “Na hipótese prevista no n.º 2 [do art.º 333.º do CCivil], isto é, nos casos de caducidade estabelecida no interesse privado, em matéria sujeita à disponibilidade das partes, o tribunal não pode conhecer oficiosamente da caducidade, que, por essa razão, deve ser alegada pelo interessado. Compreende-se esta exigência, atendendo ao facto de se admitir, então, designadamente, a renúncia à caducidade (cf. artigo 330.º, n.º 1). (…) O princípio deve ser observado em relação aos casos de caducidade legal, em matéria de direitos disponíveis-normalmente, de natureza patrimonial-, assim como quanto às hipóteses de caducidade convencional. (…) [S]e a caducidade for estabelecida em matéria não subtraída à disponibilidade das partes, a sua apreciação depende de invocação pelo respetivo beneficiário, que deve ocorrer em sede de contestação, salvo se o réu só tiver conhecimento dela depois de findo o prazo para a apresentação deste articulado”.

Improcede assim a conclusão 48ª.

Do que fica dito resulta que o acórdão recorrido não violou as normas legais que a Recorrente indica na conclusão 49ª.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Regime de custas:

A Recorrente é condenada nas custas do recurso.

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Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil):

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Lisboa, 4 de junho de 2019

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Henrique Araújo

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[1] Menezes Cordeiro (Direito das Obrigações, 2º volume, 1979, pp. 585 e 586) esclarece: «Tratando-se de uma transmissão, pela sub-rogação o sub-rogante vai receber o crédito que ao sub-rogado assistia, com todas as suas qualidades e defeitos. Por isso, assim como se transmitem “as garantias e outros acessórios”, assim também o devedor vai poder usar, contra o novo credor, todos os meios de defesa que podia movimentar contra o credor primitivo. O Código Civil não o diz expressamente (…). No entanto, resulta dos princípios gerais que assim deve ser e, caso se entenda necessário, da própria aplicação analógica do art.º 585.º do Código Civil, que nada tolhe.»
A questão prestar-se-á, porventura, a dúvidas, isto relativamente à prescrição e à caducidade. Assim, decidiu-se no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo de 27 de setembro de 2018 (D.R., I Série, de 7 de dezembro de 2018) que «O prazo de prescrição do direito da sub -rogada companhia de seguros só começa a correr depois de ter pago os danos sofridos pelo seu segurado, em consequência de acidente de viação, visto que só depois deste pagamento o seu direito pode ser exercido, nos termos do artigo 498.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil.». Este entendimento também poderia valer para o caso da caducidade, visto o disposto no art. 329.º do CCivil, na certeza de que o direito de sub-rogação que assiste à seguradora só pode ser exercido depois de ter cumprido perante o segurado lesado.