Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2911/09.9TDLSB-A.E1-A.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 03/26/2014
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Referência de Publicação: DR, I SÉRIE, Nº 97, 21 DE MAIO DE 2014, P. 2906-2916
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL - ACTOS PROCESSUAIS / COMUNICAÇÃO DOS ACTOS E CONVOCAÇÃO PARA ELES / NOTIFICAÇÕES - MEDIDAS DE COACÇÃO / TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA - AUDIÊNCIA / DECLARAÇÃO DE CONTUMÁCIA (EFEITOS).
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 9.º, N.ºS 2 E 3.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 113.º, N.ºS 1, ALÍNEA B), 3 E 4, 196.º, N.ºS 2 E 3, AL. D), 287.º, 332.º, N.º1, 333.º, 334.º, N.ºS 1 E 2, 335.º, N.ºS1 E 3, 336.º, 337.º, N.ºS 1 E 3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 32.º, N.º6.
RESOLUÇÃO Nº 62/78, DA COMISSÃO CONSTITUCIONAL.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
-DE 29.4.1998, PROC. Nº 0018883, EM WWW.DGSI.PT .
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:
-DE 13.12.2006, PROC. N.º 44/94.0TACB-A.C1; DE 21.11.2007, PROC. Nº 210/00.0TBTNV-A.C1; E DE 19.12.2007, PROC. Nº 266/00.6; EM WWW.DGSI.PT .
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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
-DE 20.11.1996, PROC. Nº 9640904; DE 14.5.1997, PROC. Nº 9740386; DE 28.5.1997, PROC. Nº 9740457; E DE 11.6.1997, PROC. Nº 9740402; DE 15.10.1997, PROC. Nº 9710421, E DE 4.2.1998, PROC. Nº 9240401; DE 12.3.2008, PROC. Nº 0745380; EM WWW.DGSI.PT .
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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 27.7.2006, PROC. Nº 2953/06.
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-FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA Nº 9/2012, PUBLICADO NO DR, I-A, DE 10.12.2012, E EM WWW.STJ.PT .
-FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA, Nº 15/2013, PUBLICADO NO DR, I, DE 16.12.2013, E EM WWW.STJ.PT .
-VOTO DE VENCIDO DO CONS. CARMONA DA MOTA NO ASSENTO Nº 10/2000, DO STJ (DR, I, DE 10.11.2000).
Sumário :
«Ainda que seja conhecida a morada de arguido contumaz residente em país estrangeiro, não deve ser expedida carta rogatória dirigida às justiças desse país para ele prestar termo de identidade e residência, porque essa prestação não faz caducar a contumácia.»
Decisão Texto Integral:           

                Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

            I. Relatório

            O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Évora interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao abrigo dos arts. 437º e ss. do Código de Processo Penal (CPP), do acórdão daquele tribunal proferido em 26.2.2013, no processo principal, por se encontrar em oposição sobre a mesma questão de direito com o acórdão da mesma Relação de 27.9.2011, proferido no proc. nº 380/08.0TABJA-A.E1.

            Por acórdão deste Supremo Tribunal de 2.12.2013, proferido em conferência, nos termos do art. 441º, nº 1, do CPP, foi julgada verificada a oposição de julgados, e ordenado o prosseguimento dos autos para fixação de jurisprudência.

            Cumprido o disposto no art. 442º, nº 1, do CPP, apenas o Ministério Público apresentou alegações, que se transcrevem:

1- Da oposição de julgados.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido nos autos em epígrafe, de 2/12/13, decidiu verificada a oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, ordenando o prosseguimento do recurso, nos termos e para os efeitos do artº 441º, nº 1 do CPP.

A mesma questão de direito que assentou em soluções opostas centra-se na problemática de saber se, estando o acusado ausente no estrangeiro, declarado contumaz nos autos, conhecida que for a sua residência, a prestação de TIR, levada a cabo através de carta rogatória remetida às autoridades judiciárias competentes, faz caducar a sua situação de contumácia no processo em causa.

O acórdão recorrido, transitado em julgado a 3/4/13, decidiu positivamente, ou seja, pela legitimidade, validade e eficácia da expedição e cumprimento da carta rogatória para prestação de TIR, tendo em vista a cessação da situação processual de contumácia do arguido acusado.

Em contrapartida, o Acórdão da mesma Relação de Évora, transitado em julgado em 24/10/11, indicado como Acórdão Fundamento, proferido no processo 380/08.0TABJA-A.E1, decidiu negativamente, ou seja, a prestação de TIR efetuada por carta rogatória dirigida às autoridades judiciárias estrangeiras competentes, não constitui apresentação válida, nos termos do artº 336º, nº 1 do CPP, não tendo, por consequência, a virtualidade de fazer cessar a declaração de contumácia (…). Cfr. exposição do M.P. no Tribunal recorrido.

II.1 A argumentação do Acórdão Fundamento.

O Acórdão fundamento apresenta em abono da sua tese, a consideração de que “a contumácia é a situação processual de suspensão dos termos de um processo-crime, por ausência do arguido, e que conduz a que se imponha, ao declarado contumaz, um conjunto de medidas que, por lhe dificultarem a vida, se consideram adequadas a persuadi-lo a comparecer”. Fazendo apelo às anotações ao artº 337º do CPP, Comentário e Notas Práticas dos Magistrados do Ministério Público, do Distrito Judicial do Porto”, o referido Aresto regista os efeitos processuais necessários da contumácia, dos quais nos permitimos realçar, a imediata passagem de mandados de detenção para que o contumaz seja detido e apresentado em tribunal a fim de lhe ser tomado termo de identidade e residência (…)”, bem como “ser notificado do despacho que recebeu a acusação”. (sublinhado nosso).                

Mais adiante, concluindo o seu raciocínio, o mesmo Acórdão afirma que “a suspensão do processo que resulta da declaração de contumácia só termina com a apresentação ou detenção do arguido”, pelo que, sem a presença do arguido, o processo não pode prosseguir para a fase de julgamento. Ou seja, “o atual regime da contumácia assenta na ideia da inconveniência do julgamento na ausência do arguido”, sem prejuízo, porém, de “a suspensão dos termos ulteriores do processo não implicar que não deva diligenciar-se pela localização do arguido contumaz e pela realização de todos os actos susceptíveis de porem termos à situação de contumácia e, portanto, de permitirem a realização dos termos ulteriores do processo”. No mesmo sentido, cita os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 12/5/08, processo nº 0745380, e de 23/1/08, proc. 0745416.

Após deixar registado que a tramitação do processo com vista à localização do arguido não viola o disposto no nº 3, do artº 335º do CPP, o acórdão ora em análise sustenta que outra questão é a da possibilidade de prestação de TIR pelo arguido, através da cooperação judiciária internacional em matéria penal equivaler à apresentação do arguido que conduz à caducidade da declaração de contumácia, de acordo com o disposto no artº 336º, nº 1 do CPP. E decide negativamente. Porque, explica, “assente que a tramitação do processo com vista à localização do arguido não viola o disposto no nº 3, do artº 333º, do Código Processo Penal, convém lembrar que a questão suscitada (…) não é a da possibilidade de prestação de termo de identidade e residência através de instrumentos de cooperação judiciária em matéria penal, mas a de saber se tal diligência equivale à apresentação do arguido que conduz à caducidade da declaração de contumácia, (…).Equacionar a questão de outra forma – limitando-a à da possibilidade da prestação de termo de identidade e residência através de instrumento de cooperação judiciária em matéria penal – seria permitir a prática de actos não consentidos pela suspensão do processo a que a declaração de contumácia obriga” (…) (fls. 20).

“O Instituto da contumácia surge como uma das marcas distintivas do Código de Processo Penal de 1987. Tornou-se inútil com a reforma desse diploma legal de 1998. E “renasceu” com a reforma do Código de Processo Penal”. (fls. 20) 

Da natureza residual que o Acórdão ora sub judice atribui hoje à declaração de contumácia, atribui-lhe, entre outros, o efeito de só abranger os arguidos que, por não terem prestado termo de identidade e residência, desconhecem a pendência de um processo que prosseguiu nos termos do nº 5, do artº 283º do CPP e só poder ser utilizado por uma vez, em relação a cada arguido. O disposto no artº 336º, nº 3 do CPP, impõe que o arguido contumaz se apresente ou seja detido, para além de ser sujeito a termo de identidade e residência, ser notificado da acusação e da possibilidade de requerer a abertura da instrução no prazo a que se refere o artº 287º do CPP (cfr. fls. 20).

Daí que, decide o Acórdão fundamento, “rejeitarmos a ideia de que o nº 3 do artº 336º do CPP, não contemple as situações em que o arguido está ausente em morada conhecida no estrangeiro, nem aqueles em que o mesmo, apesar de ter prestado termo de identidade e residência não foi notificado da data designada para julgamento por ausência de depósito da notificação postal simples. E que, por isso, as normas do nº 1 e do nº 2 do mencionado preceito legal devem ser interpretadas restritivamente – considerando-se que a contumácia cessará com a prestação de termo de identidade e residência pelo arguido, mesmo que tal prestação não ocorra na sequência da detenção ou apresentação do arguido em juízo (…) nesta última situação, deve o arguido considerar-se regularmente notificado e os autos terão que prosseguir para realização da audiência de julgamento desde que as cartas contendo a notificação tenham sido remetidas para a residência que indica no termo de identidade e residência prestado ou que atualizou (…)” 

No que tange ao arguido declarado contumaz “foram-lhe impostas medidas que visam fazê-lo comparecer em tribunal e interessar-se pela resolução de processo-crime (…), acrescendo que o arguido declarado contumaz que se apresente ou seja detido, para além de ser sujeito a termo de identidade e residência, deve ser notificado da acusação e da possibilidade de requer a abertura de instrução no prazo a que se refere o artº 287º, do CPP. Juridicamente, a contumácia não é a “grande teimosia” ou a “recusa obstruída” de comparecer em Juízo. E por assim ser, as garantias de defesa que se reconhecem do arguido em processo crime não consentem que se façam operar todas as consequências decorrentes da prestação do termo de identidade e residência a alguém que desconhece a pendência de um processo crime em que figure como arguido e onde já se encontra acusado (…)”.  

Invocando um último argumento em defesa da sua tese, o Acórdão fundamento afirma que, a acatar solução oposta, tal “provocaria também, que voltasse a correr o termo prescricional que com ela se interrompeu e suspendeu a que não são aplicáveis os prazos máximos da suspensão e o alargado de prescrição. Ora, não estando efetuada a notificação do arguido para julgamento, nem garantida a sua realização – podendo ocorrer situação de não notificação da data para julgamento por ausência de depósito da notificação postal simples, já não será possível declará-lo novamente contumaz nem proceder ao seu julgamento, com a prazo de prescrição a correr”.

Pelas razões que sinteticamente acabamos de expor, o Acórdão fundamento decidiu que “A prestação de termo de identidade e residência, ainda que concretizado por carta rogatória dirigida às autoridades judiciárias competentes (…), não constitui apresentação válida, nos termos do artº 336º, nº 1 do Código de Processo Penal.

Assim sendo, não teria a virtualidade de fazer cessar a declaração de contumácia (…)”.

Neste mesmo sentido, decidiram ainda os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 26/3/08, proc. 0840057 e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13/12/2006, proc. 44/94.0TACBR-A.S1.

Com o devido respeito e salvo melhor opinião, a fundamentação e decisão do Acórdão fundamento não procede, não lhe cabe razão, pelo que a solução para a questão de direito sub judice deve ser julgada em conformidade com a decisão prosseguida pelo Acórdão recorrido e respectiva motivação. Com efeito,         

III- A Decisão recorrida

A fundamentação desenvolvida no Acórdão recorrido, clara e pormenorizada, ponderando cuidadosamente os fins tidos em vista pelo legislador com a introdução dos institutos jurídicos da prestação do termo de identidade e residência e da declaração de contumácia é quase exaustiva na análise e interpretação das normas aplicáveis e no balanceamento entre os direitos do arguido, que não são absolutos, e os deveres do Estado/Tribunais, de aplicação de uma justiça concreta, o mais célere possível e contém todo o argumentário, que subscrevemos inteiramente, por nos parecer que a solução nele alcançada se mostra a mais adequada e conforme aos objetivos últimos do legislador, com cobertura constitucional.

A fundamentação expendida no Acórdão recorrido dispensa-nos de a repetir, ainda que buscássemos outras palavras ou expressões para afinal exprimir a mesma ideia e juízo. Por isso que apenas ensaiaremos um sinóptico incurso histórico pelo regime processual dos julgamentos dos arguidos ausentes desde o CPP de 1929 até aos dias de hoje.

                O CPP de 1929 contemplava a possibilidade de julgamentos à revelia sob o título “do processo de ausentes”, no capítulo I, do Tomo VII – artºs 562º e segs.

                A falta do réu, na audiência de julgamento, em processo correccional, não impedia que fosse julgado à revelia, cumpridos certos formalismos, e o réu apenas podia recorrer da sentença, logo que dela notificado, no prazo de cinco dias – art.º 563.º e segs. O julgamento do réu ausente pronunciado em processo de querela – art.º 567.º e segs., poderia igualmente ocorrer à sua revelia, mediante o cumprimento de certos formalismos de publicidade, podendo o réu interpor recurso da decisão no prazo de cinco dias após a sua notificação ou requerer se procedesse a novo julgamento, § 3ª e 4.º do art.º 568.º. O julgamento à revelia, no processo de querela, era realizado em tribunal singular e a produção de prova reduzida a escrito - § 1º do mesmo artigo 568.º.

                Após a Revolução de Abril e sobretudo após a entrada em vigor da Constituição da República Portuguesa de 1976, uma onda de contestação se repercutiu no Mundo do Direito contra a previsão e possibilidade destes julgamentos à revelia, considerados feridos de inconstitucionalidade, por não acautelarem devidamente os direitos de defesa do réu.

                Muito se disse, muito se escreveu contra a persistência deste tipo de julgamento – o Acórdão recorrido recorda o professor Eduardo Correia como uma das vozes mais críticas, ao qual se me oferece aditar o professor Germano Marques da Silva -, como defensores acérrimos da inconstitucionalidade dos julgamentos a revelia, críticas essas, fundadas e fundamentadas na melhor jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Sendo o direito processual penal direito constitucional aplicado é natural que, face à natureza eminentemente humanista da nossa Constituição da República Portuguesa, de 1976, e às críticas doutrinais e jurisprudenciais de que já falamos supra, o novo CPP, de 1987, embora por forma exageradamente radical, proibisse em absoluto, na versão originária, o julgamento do arguido ausente, fossem elas as condições em que se verificasse essa “revelia”. Com efeito, não obstante o diploma prever já no art. 196.º, a sujeição do arguido a TIR, não constava do seu elenco a possibilidade de julgamento na sua ausência injustificada. O art.º 332.º, n.º 1, impunha a obrigatoriedade da presença do arguido na audiência e, se ausente em parte incerta, após o cumprimento de certos formalismos, o arguido era declarado contumaz – art. 335.º a 337.º, nos quais se contemplam - certos efeitos negativos e “prejudiciais” sobre a sua pessoa, bens, profissão e negócios - art.º 337.º do mesmo diploma.

                Porém, de imediato as “prateleiras” dos processos “contumazes” nas Secretarias Judiciais ameaçavam pôr em causa os objetivos da eficácia e celeridade da administração da justiça, tidos em vista com o novo CPP e, sobretudo, breve se constatou que arguidos, embora já ouvidos no processo e, por isso, conhecedores da sua existência, ou já notificados da acusação contra si deduzida, não compareciam na audiência de julgamento, engrossando, assim, a “anomia” a que ficavam votados os tribunais de julgamento.

                Por isso que nova tentativa legislativa de conjugar os direitos e deveres do arguido com os direitos e deveres fundamentais e constitucionais do Estado de manter a paz jurídica, administrar a justiça com a celeridade possível, proceder a julgamentos, condenar os culpados e absolver os inocentes.

                Por isso que, pelo D. Lei n.º 320-C/2000, de 15 de Dezembro, o legislador procura mais uma solução de ajustamento do CPP a uma das principais prioridades da política de justiça, o combate à morosidade processual.

                “A aplicação das normas do CPP revela que ainda persistem algumas causas de morosidade processual que comprometem a eficácia do direito penal e o direito do arguido «ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa», (…)”

                “(…) Para a consecução de tais desígnios, introduz-se uma nova modalidade de notificação do arguido, do assistente e das partes civis, permitindo-se que estes sejam notificados mediante via postal simples sempre que indicarem à autoridade policial ou judiciária que elaborar o auto de notícia ou que os ouvir no inquérito ou na instrução, a sua residência, local de trabalho ou outro domicílio á sua escolha e não tenham comunicado a mudança de morada  indicada através da entrega de requerimento ou da sua remessa por via postal registada à secretaria onde os autos se encontram a correr nesse momento (…)”- do respectivo preâmbulo. Na concretização dos objetivos assim anunciados, o artºs 196º e 335º sofrem alterações, acrescentando-lhes as seguintes redações:

                Artº 196º:

                1- …

2- Para efeitos de ser notificado mediante via postal simples, nos termos da alínea c) nº 1 do artº 113º, o arguido indica a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha.

3- Do termo deve constar que àquele foi dado conhecimento.

a) …

b) …

c) De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no nº 2, excepto se o arguido comunicar uma outra, (…)

d) de que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenham o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência ma sua ausência, nos termos do artº 333º.

O artº 335º passou a conter um nº 1, com a seguinte redação.

1- Fora dos casos previstos nos nºs 1 e 2 do artigo anterior se, depois de realizadas as diligências necessárias à notificação a que se refere o artigo 313º, nº 2 e primeira parte do nº 3, não foi possível notificar o arguido do despacho que designa o dia para audiência ou executar a detenção ou a prisão preventiva referidas nos artigos 116º, nº 2 e 254º, ou consequentes a uma evasão, o arguido é notificado por editais para se apresentar em juízo, num prazo até 30 dias, sob pena de ser declarado contumaz.

2 …

3…

4…”                            

O Instituto da Contumácia passou a ter, assim, uma intervenção residual, só aplicável aos suspeitos e arguidos que nunca haviam sido sujeitos à prestação de TIR e, por isso, se presumem nunca terem sabido da existência de processo- crime e acusação deduzida contra si – artº 355.º e segs. do C.P.P.

                O artº 336º do mesmo diploma dispõe, no seu n.º 1, que a declaração de contumácia caduca logo que o arguido se apresentar ou for detido e o n.º 2 estatui que logo que o arguido se apresente ou seja detido, o arguido é sujeito a termo de identidade e residência, com a expressa comunicação contida nas alíneas c) e d) do nº 3, do artº 196º, do CPP, já transcrito supra.

                Os efeitos e a notificação da contumácia constam do artº 337.º, do CPP.

Da leitura integrada dos normativos acabados de citar e tendo em consideração os objetivos prioritários do legislador com a introdução das novas redações dadas àquelas normas, expressamente referenciadas no preâmbulo do respectivo diploma, a morosidade processual é “mal” que pretende combater com a introdução de procedimentos, que agilizem o julgamento mas não belisquem, no seu acervo fundamental, os direitos do arguido.

                Registe-se que, entretanto, a revisão constitucional de 1997 veio admitir a realização de julgamento sem a presença do arguido, aditando um nº 6 ao artigo 32ª, com a seguinte redação: “a lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado, em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento”.   

O Acórdão do STJ, de 30/1/08, proc. 07P3272, decidiu que “a notificação por via postal simples (…) não ofende o núcleo essencial do direito de defesa do arguido, pois as garantias de que o legislador faz rodear a possibilidade de o arguido ser notificado por essa via são de molde a considerar-se como tendo chegado à esfera do conhecimento do arguido a notificação dos actos fundamentais do processo, nomeadamente aqueles em que se exige a sua presença, maxime, o julgamento, e que, se ele deles não tomou conhecimento foi por culpa sua, estando ciente das suas consequências” (do respetivo sumário, ponto 3).

O que o legislador ordinário não permite e a Constituição da República proíbe absolutamente é que o arguido seja julgado sem sequer saber que contra si houve inquérito, foi deduzida acusação, foi julgado, e porventura, condenado sem ter podido exercer os seus direitos de defesa.

Ora, no caso da prestação, por intermédio da carta rogatória de TIR, tendo em vista a caducidade da declaração de contumácia, não se colocam em causa os direitos do arguido e permite introduzir a pretendida celeridade na conclusão do processo, atento que não está, nem fica em causa o disposto no artº 336º, nº 3, do CPP: “se o processo tiver prosseguido nos termos da parte final do nº 5, do artº 283º, o arguido é notificado da acusação podendo requerer a abertura de instrução no prazo a que se refere o artº 287º, (…)”  

A prestação de termo de identidade, a que se reporta o artº 196º do CPP, obriga o suspeito à condição de arguido, às obrigações ali elencadas e ao fornecimento de uma morada, que escolhe para receber as notificações, ficando avisado de que, marcada data para audiência de julgamento, não comparecendo, o julgamento é realizado como se estivesse presente.

Por outro lado, o instituto da contumácia procura, fundamentalmente, levar o arguido ao tribunal para tomar conhecimento da existência do processo que contra si corre e prestar termo de identidade e residência, a partir de cuja prestação o arguido sabe que o julgamento pode prosseguir na sua ausência, como se estivesse presente.

Este é o objetivo primeiro da declaração de contumácia, pelo que se não vê qual a afetação abusiva dos direitos do arguido, ao prestar, por via diplomática, o termo de identidade e residência. Pelo contrário, as duas figuras processuais completam-se e “contribuem” para o escopo sempre perseguido pelo legislador, o de vencer a morosidade processual, sem comprometer os direitos fundamentais do arguido, os seus direitos de defesa.

Conhecida, através da prestação de TIR por carta rogatória, a existência do processo, o arguido tem garantidos todos os seus direitos de defesa, pode pedir a instrução, o processo na fase de julgamento pode já prosseguir sem a sua presença, se decidir a ele subtrair-se e o arguido deixa de ser confrontado com a “capitis deminutio” que sobre si recai com a declaração de contumácia.

Tendo por referência os direitos de defesa do arguido consagrados na CRP, é para nós claro que o arguido, cuja declaração de contumácia caduca com a prestação de termo de identidade e residência, prestado através de carta rogatória enviada à entidade judiciária estrangeira competente, não vê diminuídos os direitos que lhe assistem quando caduca a declaração de contumácia com a sua detenção ou prisão preventiva e prestação de TIR. A partir de então, o que ocorre é que o arguido, se não comparecer às diligências a que tem direito e o dever de estar presente, incluindo a presença nas audiências de julgamento, este prossegue como se estivesse presente, cumpridos que sejam determinados requisitos.  

Citando o Acórdão recorrido,

Concludentemente, a contumácia (…) não pode deixar de ser explicada no conjunto de normas que preveem e disciplinam o julgamento sem arguido presente.

Os preceitos legais que integram o complexo de normas a que nos referimos (artº 196º, nºs 1 e 3, artº 333º, nº 1 e 2, artº 334º, artº 335º e artº 336º do Código Processo Penal com os reajustamentos à versão inicial do Código de Processo Penal de 1987 decorrentes das alterações dadas pela Lei 59/98 e pelo Decreto-Lei nº 320-C/2000, vieram resolver o impasse processual criado no passado pelo arguido desaparecido, e combatem os riscos de domínio no desenrolar do processo pelo próprio arguido.

Simultaneamente, impedem que o processo crime prossiga à revelia de acusado que não sabia da sua pendência ou que não tenha conhecimento da data do julgamento (…)”.

Uma das principais finalidades da medida de coação TIR é, afinal, permitir o julgamento sem a presença do arguido, se este, contra o seu compromisso, abandonar por mais de 5 dias a residência ou outra morada que fez constar daquele documento, sem comunicar a sua alteração ao tribunal.

 Por outro lado e como vimos, a declaração de contumácia procura limitar a liberdade, a atuação e intervenção do arguido, por forma a fazê-lo comparecer no processo-crime, no qual foi declarado contumaz. Enfim, ambos os institutos jurídicos têm como escopo minorar a pendência de processos para julgamento, por ausência do arguido, sem descurar, desadequada e desproporcionadamente, os direitos de defesa deste. O arguido tem direitos, mas também tem deveres, sendo que um dos principais e primordiais poder/dever é o de estar presente em julgamento.

A leitura integrada e harmoniosa do CPP e dos instrumentos normativos nele previstos, em obediência ao que dispõe o nº 2, do artº 32º da CRP e artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, visam prosseguir a celeridade possível do julgamento do arguido, com salvaguarda do núcleo fundamental dos seus direitos de defesa.

É esta harmonização e (re)encontro entre os direitos e deveres do arguido que justificam a obrigação de o constituir como arguido na fase do inquérito, subscrever TIR e ser declarado contumaz, na fase de julgamento, no caso de nunca encontrado. Esta solução faz concluir que o legislador pretende e até impõe que a autoridade judiciária proceda a todas as diligências legalmente previstas, para chamar ao julgamento o arguido, aquele que “rompeu” com o TIR e aquele que, desconhecedor da existência da acusação contra si deduzida foi declarado contumaz.

A prestação de TIR permite e até impõe a realização de julgamento na ausência do arguido, no caso de este não cumprir os compromissos expressos naquela medida de coação.

Em contrapartida, nas situações em que o arguido nunca prestou TIR, o julgamento na sua ausência não é admissível, pelo que se não encontrado, detido ou preso preventivamente, o processo seguirá a tramitação para declaração de contumácia.

Como bem pondera o Acórdão recorrido, a contumácia representa como que um “coma processual”, quer para o arguido, quer para o próprio processo.

Mas se a declaração de contumácia é um reconhecimento de que no processo se gorou a possibilidade de localizar o arguido e de o sujeitar a TIR, ela indicia também que o arguido desconhece a pendência de processo-crime. (…).

Nestes casos, é de reconhecer a impossibilidade de cumprimento dos deveres decorrentes da posição de arguido, mesmo que um concreto acusado pretendesse responder perante a justiça. Ou desejasse “apresentar-se”, no sentido “mala partem” que é dado ao termo legal no despacho recorrido (…).

A prestação de TIR é condição sine qua non da possibilidade de prosseguimento do processo, pois só ela garante os direitos de defesa, investindo plenamente o arguido nesse estatuto complexo de direitos/poderes/deveres. Mas também apenas o próprio prosseguimento do processo garante, por seu turno, o cumprimento das finalidades do próprio processo penal.

Assim, a contumácia não pode deixar de representar uma suspensão do processo indesejável, uma anomalia, um remedeio necessariamente transitório para uma enfermidade adjetiva que é a impossibilidade de localização do arguido. Impossibilidade que impede o julgamento e obsta à decisão do caso e da causa, enquanto essa localização não se verificar (…)”.

Por isso que a lei processual obriga, nestes casos, o MºPº e o próprio juiz de julgamento a encetar todas as diligências necessárias à localização do arguido ausente, de forma a que, encontrado, se lhe dê conhecimento da existência do processo e da acusação contra si deduzida, seja sujeito a prestação de TIR, assim se alcançando o objetivo do prosseguimento do processo “paralisado”.

De outro modo, não se percebe a preocupação processual de procurar a localização do arguido, que aliás a lei não limita ao espaço nacional. Encontrado o arguido no estrangeiro, obtido a sua atual residência, nada obsta, pelo contrário, impõe-se que ao mesmo se dê conhecimento da existência do processo e da acusação contra si deduzida para lhe permitir o exercício dos seus poderes/deveres e, por outro lado, consolidar a realização de justiça pelos Tribunais/Estado com a prolação de uma sentença. É por isso viável, conveniente e até obrigatória a emissão da carta rogatória às entidades judiciais competentes, rogando a prestação de TIR pelo arguido, que assim deixa a situação de contumaz, tem conhecimento da existência do processo e, se o pretender, exercer todos os direitos que lhe são disponibilizados no e pelo C.P.P., para sua total defesa.

No mesmo sentido, Acs. de 15/5/01, do Tribunal da Relação de Lisboa, Coletânea de Jurisprudência, Ano XXVI, tomo III, pg. 141, de 13/2/05, do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. 2115/05.1, de 12/09/07, do Tribunal da Relação de Coimbra, proc. 613/03.9TAACB.C1 de 25/3/10, do Tribunal da Relação de Évora, proc. 690/07.3TBBJA-A.E1, de 15/2/11, do Tribunal da Relação de Évora, proc. 78/01.0TABJA-A.E1.  

Retomando o acerto da fundamentação e decisão do Acórdão recorrido a prestação de TIR faz cessar a declaração de contumácia. “Pelo que a afirmação do despacho (recorrido) só pode compreender-se na vertente de que, uma vez declarado a contumácia e na impossibilidade de deter o acusado, resta aguardar pela sua voluntária apresentação (…)”. Ora, “o art.º 335.º, n.º 1, do Código de Processo Penal dispõe que a «a declaração de contumácia (…) implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do art.º 320.º(…)

O n.º 1 do art.º 336.º preceitua que «a declaração de contumácia caduca logo, que o arguido se apresentar ou for detido». Por ultimo, o art.º 337.º, n.º 1, dispõe que «a declaração de contumácia implica para o arguido a passagem imediata de mandato de detenção para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo anterior» (…).

Estes preceitos não só legitimam a possibilidade de detenção para prestação do TIR (…) como fornece sinal seguro de que na contumácia, se praticam actos processuais. Até mesmo actos em regra, reservados à audiência de julgamento (memória futura)”. Por outro lado,

“(…) No pressuposto de que o legislador soube exprimir adequadamente o seu pensamento, a interpretação (…) (da expressão) “apresentação” no sentido “aparecimento processual”, surgimento processual, notícia nos autos de paradeiro – respeita ainda o mínimo de correspondência verbal na letra da lei (…), contém-se nos limites da interpretação consentida, sendo que o método extensivo é em geral permitido no direito adjetivo tanto mais que, no caso, se repercute, não in malam partem, mas in bonam partem”. (fls. 36 do Acórdão recorrido).

Aliás, resulta dos normativos atinentes à medida de coação TIR e à situação processual de contumaz, na fase de julgamento, que no caso de o arguido ter sido declarado contumaz o que significa que nunca teve contacto com os autos, não foi constituído arguido e não foi notificado da acusação, se localizado, após diligências obrigatoriamente encetadas pelo MºPº e pelo próprio juiz do processo em fase de julgamento, ainda que no estrangeiro, é obrigatória a remessa de carta rogatória às entidades judiciais competentes para prestação de TIR, nos termos e para os efeitos do art. 196.º do CPP, sem prejuízo do disposto no artº 336.º, n.º 3, do CPP, se o agora arguido pretender utilizar o direito de requerer a instrução.

A prestação de TIR não briga nem colide com a caducidade da declaração de contumácia, antes se completam e articulam para, dando execução aos direitos do arguido, simultaneamente se alcançar um dos objetivos primaciais, constitucionais e de lei ordinária processual penal, o de proceder e concluir com a celeridade possível o julgamento do arguido, pondo termos à incerteza jurídica da prática (ou não) do crime pelo qual aquele está acusado, na sequência de um juízo de probabilidade da sua culpabilidade.

Pelo exposto, o recurso interposto não merece provimento, deve manter-se a decisão nos seus precisos termos, propondo-se se fixe jurisprudência, nos termos e para os efeitos dos artºs 437º e 443º do CPP nos seguintes termos:

A prestação de termo de identidade e residência através de carta rogatória dirigida às autoridades judiciais competentes, no caso de arguido declarado contumaz, residente no estrangeiro, tem a virtualidade de fazer cessar a situação de contumácia, sem prejuízo do disposto no artº 336º, nº 3, do CPP”.                         

            Colhidos os vistos e reunido o Pleno dos Juízes das Secções Criminais, cumpre decidir.

           

II. Fundamentação

            A) A oposição de julgados

            Conforme é entendido uniformemente neste Supremo Tribunal de Justiça, o acórdão proferido em secção sobre a oposição de julgados não vincula o Pleno das Secções Criminais[1], pelo que há que reapreciar esta questão.

            Foi assim decidida a questão da oposição de julgados no acórdão preliminar, proferido em conferência:

No acórdão recorrido, apreciou-se a seguinte situação: o Ministério Público requereu a expedição de carta rogatória para o Brasil para que a arguida, declarada contumaz, mas com residência conhecida naquele país, prestasse termo de identidade e residência (TIR), a fim de se pôr termo à contumácia. O requerimento foi indeferido, com fundamento em que o art. 336º, nº 2, do CPP não contempla a situação em que o contumaz reside no estrangeiro. Interposto recurso para a Relação de Évora, esta revogou o despacho recorrido, ordenando a expedição da carta rogatória para prestação de TIR pela arguida, a fim de se viabilizar a caducidade da contumácia e o prosseguimento do processo.

Por sua vez, o acórdão-fundamento tratou esta situação: o Ministério Público requerera igualmente a expedição de carta rogatória dirigida à Suíça para prestação de TIR por parte do arguido, declarado contumaz, mas com residência conhecida nesse país, com vista à cessação da contumácia. Tal pretensão foi indeferida, com o argumento de que a contumácia cessa apenas quando o arguido se apresentar ou for detido. Não se tendo apresentado o arguido, nem sendo possível a sua detenção, por se encontrar no estrangeiro, entendeu-se que não havia fundamento para a carta rogatória com o fim assinalado. Interposto recurso para a Relação de Évora, esta confirmou o despacho referido, ratificando aquele entendimento.

Constata-se, pois, que sobre a mesma questão de direito – a saber: se, estando o arguido contumaz no estrangeiro, mas sendo conhecida a sua residência, é admissível a expedição de carta rogatória para o país da residência para que o arguido preste TIR, com vista à cessação da contumácia – a Relação de Évora pronunciou-se, nos acórdãos referidos, de forma oposta.

A oposição incide sobre a mesma legislação (art. 336º, nºs 1 e 2, do CPP), e é expressa, não meramente implícita, reportando-se à própria decisão, e não aos seus fundamentos, tendo como base matéria de facto idêntica.

Assim, conclui-se pela oposição de julgados, devendo o recurso prosseguir para fixação de jurisprudência.

                Ratifica-se inteiramente este entendimento, pelo que se passa a analisar a questão decidenda.

            B) O acórdão recorrido

            O acórdão recorrido entendeu que, sendo conhecido o paradeiro no estrangeiro de arguido declarado contumaz, é admissível a expedição de carta rogatória para a prestação de termo de identidade e residência (TIR), a fim de fazer cessar a contumácia.

            Extraem-se do acórdão as passagens mais significativas:

               

                A interpretação plasmada no despacho recorrido parte do princípio de que o arguido não é localizado porque não quer, que está ausente porque se furta à acção da justiça.

                Desatende às situações em que o acusado desconhece a pendência do processo-crime (que serão manifestamente a regra). Incumpre o poder-dever oficioso de notificação do arguido, que pressupõe a execução de todas as diligências legais para a sua localização. Esta pro-actividade impende exclusivamente sobre o tribunal, não sobre o sujeito processual acusado (o qual, nestas situações, desconhece o processo e, residindo no estrangeiro, dificilmente saberá dele).

                Será neste contexto que deve interpretar-se o art. 336º, nº 2 do Código de Processo Penal.

                Acresce que a interpretação seguida no despacho recorrido tem efeitos paralisantes do próprio processo-crime. Ela coloca o sistema de justiça à espera do arguido.

                Nos casos em que, por razões circunstanciais ou por impedimento legal, se revele impossível a detenção, restaria ao tribunal aguardar que o acusado decida apresentar-se. O que, no mínimo, exigiria que o próprio tivesse conhecimento da pendência do processo, o que dificilmente sucederá quando não foi constituído arguido, reside no estrangeiro e desconhece a pendência de processo-crime em Portugal.

                O despacho recorrido considerou que a declaração de contumácia só pode caducar quando o arguido se apresentar ou for detido (art. 336º, n.º 1, do Código Processo Penal). E que, não se tendo a arguida apresentado voluntariamente, e não sendo possível a detenção de residente no Brasil, não poderia haver lugar à expedição de carta rogatória, já que “a simples prestação de TIR não tem a virtualidade pretendida”.

                Ora, conforme expusemos, a prestação de TIR faz cessar a contumácia. Pelo que a afirmação do despacho só pode compreender-se na vertente de que, uma vez declarada a contumácia e na impossibilidade de deter o acusado, resta ao tribunal aguardar pela sua voluntária apresentação.

Vimos já que esta interpretação é axiológica e teleologicamente desadequada, no quadro da lei ordinária, da Constituição e da Convenção Europeia.

                Resta certificar que também o elemento literal de interpretação consente a solução que propugnamos.

                O art. 335º, n.º 1, do Código de Processo Penal dispõe que “a declaração de contumácia (…) implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido, sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do artigo 320º”. O art. 320º trata de actos relativos à aquisição e conservação da prova, da “memória futura”, prevendo que, mesmo em contumácia, podem praticar-se actos que seriam já actos de julgamento.

                O n.º 1 do art. 336º preceitua que “a declaração de contumácia caduca logo que o arguido se apresentar ou for detido…”. Por último, o art. 337º, n.º 1, dispõe que “a declaração de contumácia implica para o arguido a passagem imediata de mandado de detenção para efeitos do disposto no nº 2 do artigo anterior” (“Logo que se apresente ou for detido, o arguido é sujeito a termo de identidade e residência”).

                Estes preceitos não só legitimam a possibilidade de detenção do arguido para prestação de TIR ou de outra medida de coacção – sabido que a legalidade da detenção passa sempre por previsão legal expressa – como fornece sinal seguro de que, na contumácia, se praticam actos processuais. Até mesmo actos em regra reservados à audiência de julgamento (memória futura).

                É o arguido, não o processo, que se encontra em situação de contumácia.

                Ela representa a resposta à constatação da total e absoluta inviabilidade de localizar o arguido para o sujeitar a TIR. A ratio desta paralisia processual encontra-se na impossibilidade fáctica de prosseguimento do processo sem o arguido, no sentido de “na ausência do arguido”.

                Devem praticar-se todos os actos procedimentais que viabilizem o prosseguimento do processo, mais concretamente, que viabilizem a apresentação do arguido ou a sua detenção. “Apresentação” não apenas no sentido físico, de surgimento do arguido nas instalações do tribunal onde pende o processo, mas no sentido de apresentação-surgimento processual, apresentação-conhecimento do paradeiro do acusado.

                Este paradeiro pode ser voluntariamente comunicado pelo próprio ou pelo seu defensor. Haverá, neste caso, dúvida de que o mesmo se apresentou? Se assim é, não se vê razão para distinguir das situações em que o tribunal obtém a informação oficiosamente.

                É também indefensável considerar que o tribunal possa guardar a notícia do paradeiro do acusado e manter suspensa a instância processual ad eternum (a prescrição nestes casos nunca ocorreria, face à lei ainda em vigor).

                No pressuposto de que o legislador soube exprimir adequadamente o seu pensamento, a interpretação no sentido exposto – “apresentação” no sentido de “aparecimento processual”, “surgimento processual”, notícia nos autos do paradeiro – respeita ainda o mínimo de correspondência verbal na letra da lei (artigo 9º, nºs 2 e 3, do Código Civil). Contém-se nos limites da interpretação consentida, sendo que o método extensivo é em geral permitido no direito adjectivo, tanto mais que, no caso, se repercute, não in malam partem, mas in bonam partem.              

               

            Em sentido idêntico, decidiram os acórdãos:

            - da Relação de Guimarães de 20.3.2006, proc. nº 2430/05;

            - da Relação de Coimbra de 12.9.2007, proc. nº 613/03.9TAACB.C1;

            - da Relação de Coimbra de 31.10.2007, proc. nº 1924/05.4TBACB-A.C1;

- da Relação de Évora de 25.3.2010, proc. nº 690/07.3TBBJA-A.E1;

            - da Relação de Évora de 15.2.2011, proc. nº 78/01.0TABJA-A.E1.

                C) O acórdão-fundamento

            Por sua vez, o acórdão-fundamento decidiu que a prestação de TIR por arguido contumaz residente no estrangeiro, por meio de carta rogatória dirigida às autoridades do país onde reside, não faz cessar a declaração de contumácia.

            Desse acórdão retiram-se os seguintes trechos:

                Aqui chegados, e assente que a tramitação do processo com vista à localização do arguido não viola o disposto no n.º 3 do artigo 335.º do Código de Processo Penal, convém lembrar que a questão suscitada pelo Recorrente não é a da possibilidade de prestação de termo de identidade e residência através dos instrumentos de cooperação judiciária em matéria penal, mas a de saber se tal diligência equivale à apresentação do arguido que conduz à caducidade da declaração de contumácia, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 336.º do Código de Processo Penal.

                Equacionar a questão de outra forma – limitando-a à da possibilidade de prestação de termo de identidade e residência através dos instrumentos de cooperação judiciária em matéria penal – seria permitir a prática actos não consentidos pela suspensão do processo a que a declaração de contumácia obriga.

                A questão enunciada tem sido objecto de tratamento jurisprudencial pouco abundante e não coincidente.

                Fazendo uso da argumentação constante do já referido acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 12 de Maio de 2008 – também citado pelo Recorrente –, o que, ao cabo e ao resto, se pretende [com o requerimento rejeitado e com o recurso interposto] é a sujeição do arguido a medida de coacção, sem cuidar nem garantir a sua apresentação.

                Isto é, visa-se obter a caducidade da declaração de contumácia sem se garantir a apresentação do arguido.

                Com efeito, a apresentação a que se refere o n.º 1 do artigo 336.º do CPP, pressupõe uma actuação do arguido de colocação à disposição do processo, de forma a que se mostre assegurada a possibilidade da sua ulterior tramitação, que não se alcança com a prestação do termo de identidade e residência.

                Dito de outra forma, e com o respeito que nos merecem opiniões diversas, não aderimos ao entendimento de que a apresentação ou detenção do arguido assume carácter meramente instrumental da prestação de termo de identidade e residência [defendido pelo Recorrente e constante do acórdão desta Relação, de 15 de Fevereiro de 2011, relatado pelo Senhor Desembargador António João Latas, em processo que também corre pelo Tribunal de Beja, com o n.º 78/01.0TABJA].

                A argumentação em que se alicerça tal entendimento, constante do acórdão desta Relação acabado de mencionar – que não se encontra publicado –, sendo coincidente com quase totalidade das conclusões do recurso [pontos 2 a 10], dispensa-nos de a transcrever.

                Mas antes de explicarmos as razões da nossa não concordância, impõe-se dar “nota de espanto”.

                Ao referido acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 15 de Fevereiro de 2011, proferido no processo n.º 78/01.0TABJA – onde prevalece a posição agora defendida pelo Recorrente, em situação idêntica à dos presentes autos – a única referência que lhe é feita surge por manifesto lapso, no artigo 1º das conclusões do recurso [onde se identifica, erradamente, o número do processo onde se interpõe o presente recurso].

                Adiante!

                O instituto da contumácia surge como uma das marcas distintivas do Código de Processo Penal de 1987. Tornou-se inútil com a reforma desse diploma legal de 1998. E “renasceu” com a reforma do Código de Processo Penal de 2000.

                A natureza residual que actualmente o caracteriza descortina-se nas seguintes circunstâncias:

a) só abrange

- os indivíduos\arguidos que, por não terem prestado termo de identidade e residência, desconhecem a pendência de um processo que prosseguiu nos termos do n.º 5 do artigo 283.º do CPP;

- e\ou os arguidos que se evadam durante o cumprimento de penas de prisão;

b) só pode ser utilizado por uma vez, em relação a cada indivíduo\arguido;

c) pode ser evitado se, após a notificação, for requerida a realização do julgamento na ausência.

                Assim sendo, rejeitamos a ideia de que o n.º 3 do artigo 336.º do Código de Processo Penal, não contemple as situações em que o arguido está ausente em morada conhecida no estrangeiro, nem aqueles em que o mesmo, apesar de ter prestado termo de identidade e residência, não foi notificado da data designada para julgamento por ausência de depósito da notificação postal simples. E que, por isso, as normas do n.º 1 e do n.º 2 do mencionado preceito legal devam ser interpretadas restritivamente – considerando-se que a contumácia cessará com a prestação de termo de identidade e residência pelo arguido, mesmo que tal prestação não ocorra na sequência da detenção ou apresentação do arguido em juízo.

                Porque entendemos que, nesta última situação [de arguido que, apesar de ter prestado termo de identidade e residência, não foi notificado da data designada para julgamento, por ausência de depósito da notificação postal simples], deve o arguido considerar-se regularmente notificado e os autos terão que prosseguir para realização da audiência de julgamento, desde que as cartas contendo a notificação tenham sido remetidas para a residência que indicou no termo de identidade e residência prestado ou que actualizou.

                Recorde-se que do disposto no artigo 196.º do Código de Processo Penal resulta inequívoca a co-responsabilização do arguido que presta termo de identidade e residência pela indicação correcta e actualizada da sua residência para o efeito de ser notificado por via postal simples.

                E que o incumprimento de tal obrigação acarreta as consequências que já se deixaram assinaladas – legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º [alínea d) do n.º 3 do artigo 196.º referido].

                No caso de arguido ausente em morada conhecida no estrangeiro não vislumbramos razão considerar que para esta situação se considerar não contemplada na previsão legal.

                O arguido está declarado contumaz e foram-lhe impostas medidas que visam fazê-lo comparecer – em Tribunal – e interessar-se pela resolução de processo crime onde assume um papel de relevo – o de ter praticado um crime [o que se procura averiguar e, sendo caso disso, punir].

                Por outro lado, a tese propugnada pelo Recorrente esquece o disposto no n.º 3 do artigo 336.º do Código de Processo Penal – o arguido contumaz que se apresenta ou é detido, para além de ser sujeito a termo de identidade e residência, deve ser notificado da acusação e da possibilidade de requerer a abertura da instrução no prazo a que se refere o artigo 287.º do Código de Processo Penal.

                Juridicamente, a contumácia não é “a grande teimosia” ou “a recusa obstinada de comparecer em juízo”.

                E por assim ser, as garantias de defesa que se reconhecem ao arguido em processo crime não consentem que se façam operar todas as consequências decorrentes da prestação do termo de identidade e residência a alguém que desconhece a pendência de um processo crime em que figura como arguido e onde já se encontra acusado.

                O que nos permite concluir que a possibilidade de ulterior tramitação do processo, nas circunstâncias em análise, não se reconduz à prestação de termo de identidade e residência.

            Neste sentido decidiram os acórdãos:

- da Relação de Coimbra de 13.12.2006, proc. nº 44/94.0TACB-A.C1;

- da Relação do Porto de 12.3.2008, proc. nº 0745380.

D) Discussão

a) O instituto da contumácia

A questão decidenda prende-se essencialmente com a interpretação do art. 336º, nºs 1 e 2, do CPP, que regula a caducidade da declaração de contumácia.

Para enquadrar a questão, há porém que fazer uma breve digressão sobre esse instituto, sua razão de ser, e evolução legislativa.

O instituto da contumácia foi introduzido no direito português pelo CPP de 1987, e pretendia constituir um mecanismo para equilibrar a opção “radical” assumida no mesmo diploma de interditar os julgamentos “à revelia”.

Essa opção fora induzida pela Resolução nº 62/78, da Comissão Constitucional, que declarara inconstitucional, com força obrigatória geral, por violação do art. 32º, nºs 1 e 5 da Constituição, os §§ 1º, 2º e 3º do art. 418º do CPP de 1929, que permitiam em certas condições o julgamento dos arguidos na sua ausência.

Partindo desse mesmo pressuposto, ou seja, o da inconstitucionalidade estrita do julgamento na ausência do arguido, o CPP de 1987 veio estabelecer, como princípio, a obrigatoriedade da presença do arguido em julgamento (art. 332º, nº 1, da versão originária), com apenas duas exceções residuais, as previstas nos nºs 1 e 2 do art. 334º do CPP.

Para evitar que a falta do arguido se convertesse num obstáculo insuperável à marcha do processo, o legislador conferiu ao tribunal o poder de “tomar as medidas necessárias e legalmente admissíveis”, nomeadamente a de ordenar a detenção do faltoso pelo tempo indispensável para a realização da audiência, ou ainda, se fosse legalmente admissível, a prisão preventiva.

Para a hipótese de não ser possível executar a detenção do arguido ou de notificá-lo do despacho a designar o julgamento, o arguido era notificado por editais para se apresentar em juízo, sob pena de ser declarado contumaz.

Nessa situação, o processo ficava suspenso até à apresentação ou à detenção do arguido (art. 336º, nº 1, na versão originária do CPP).

A situação de contumácia implicava para o contumaz a anulabilidade dos negócios jurídicos de natureza patrimonial, podendo ainda o tribunal decretar a proibição de obter determinados documentos, certidões ou registos junto das autoridades públicas, bem como o arresto dos seus bens (art. 337º, nºs 1 e 3, do CPP).

A declaração da contumácia só caducava com a apresentação ou detenção do arguido (art. 336º, nº 3, na versão originária do CPP).

A contumácia, ao suspender a marcha do processo, criava uma situação anómala e indesejável, mas tinha uma natureza provisória e instrumental, e previa mecanismos para “encorajar” o contumaz a apresentar-se em juízo, pondo fim à suspensão do processo.

Com efeito, com aquelas medidas restritivas da capacidade civil, e eventualmente lesivas do património, pensava o legislador estabelecer um mecanismo suficientemente eficaz para assegurar a presença do arguido em julgamento.

Mas a prática judiciária em breve veio desmentir tal convicção, revelando-se a contumácia, enquanto instituto dissuasor da “revelia”, manifestamente insuficiente para os fins visados, o que provocou profundos e notórios entraves à administração da justiça penal, que o legislador não podia ignorar, como de facto não ignorou.

Assim, logo em 1997, a revisão da Constituição veio dar nova redação ao nº 6 do art. 32º, que passou a prever expressamente a possibilidade de “ser dispensada a presença do arguido ou acusado em atos processuais, incluindo a audiência de julgamento”.

Estava conferida a credencial constitucional explícita para o legislador ordinário rever o regime do julgamento do arguido na sua ausência, ou melhor, para afastar a obrigatoriedade estrita da presença do arguido em julgamento, e consequentemente para alterar o regime da contumácia.

Foi com a Lei nº 59/98, de 25-8, e sobretudo com o DL nº 320-C/2000, de 15-12, constatada a ineficácia do diploma anterior (como o revela abundantemente o preâmbulo deste último), que o legislador procedeu a uma reforma profunda do julgamento na ausência do arguido, mantendo o princípio da obrigatoriedade da sua presença em audiência, mas conferindo a essa presença mais o caráter de direito do que de obrigação do arguido, podendo portanto o tribunal realizar o julgamento na sua ausência, desde que considere que a presença dele não é absolutamente indispensável[2].

Na verdade, logo que constituído como tal, o arguido presta TIR, ficando notificado de que poderá ser julgado na sua ausência (arts. 196º, nº 3, d), e 333º do CPP).

Neste quadro, a contumácia perdeu importância, tornando-se praticamente residual. Ela agora só é aplicável nos casos excecionais em que os arguidos não tenham prestado TIR, nem tenha sido possível proceder à sua detenção ou à prisão preventiva, se admissível, para proceder à sua notificação da data da audiência.

B) A caducidade da contumácia

A declaração de contumácia implica a suspensão dos termos posteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido (nº 3 do art. 335º do CPP). Contudo, o mesmo preceito admite a prática de atos urgentes, embora não os defina.

A contumácia coloca o processo num certo estado de “letargia”, mas essa imobilidade é aparente ou em todo o caso precária, uma vez que a contumácia caduca com a apresentação do arguido ou a sua detenção (nº 1 do art. 336º do CPP).

Em qualquer dessas situações o arguido é imediatamente (e obrigatoriamente) sujeito a TIR, e eventualmente a outras medidas de coação (nº 2 do mesmo artigo).

Caso tenha sido já deduzida acusação, o arguido é ainda notificado da mesma, podendo requerer a abertura da instrução (nº 3, também do mesmo artigo).

Com a sujeição ao TIR, o arguido fica definitivamente ligado ao processo, tomando conhecimento nomeadamente da obrigação de comparecer sempre que para tal for notificado, e da possibilidade de realização do julgamento na sua ausência (art. 196º, nº 3, d), do CPP). O processo retoma, pois, o seu curso normal, podendo prosseguir os seus termos até final.

No entanto, a lei faz depender a prestação de TIR de prévia apresentação em juízo ou detenção do arguido.

Deverá esse preceito ser interpretado literalmente, circunscrevendo a possibilidade de prestação de TIR à verificação de alguma dessas duas situações?

E antes de mais: a detenção pode resultar de iniciativa tomada no processo em que a contumácia foi declarada?

Como vimos, a lei admite a prática de “atos urgentes”, sem os definir. Como densificar esse conceito?

Nesses atos deverão sem dúvida caber desde logo a apreciação de questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa, como a verificação de qualquer das causas de extinção da responsabilidade criminal ou a descriminalização dos factos imputados ao arguido, pois seria evidentemente inútil, contrariando o princípio básico da economia processual, manter pendente um processo destinado inevitavelmente ao arquivamento.

Mas poderá o tribunal tomar a iniciativa de ordenar a detenção do arguido para pôr fim à contumácia?

A resposta dada pela jurisprudência, no domínio da versão originária do CPP, não foi uniforme[3], embora maioritariamente se pronunciasse pela afirmativa, que era evidentemente a solução mais consentânea com a natureza “anómala” e meramente instrumental da contumácia.

Com a revisão processual contida na Lei nº 59/98, o legislador resolveu a controvérsia, alterando a redação do nº 1 do art. 337º do CPP, que passou a ser a seguinte:

A declaração de contumácia implica para o arguido a passagem imediata de mandado de detenção para efeitos do disposto no nº 2 do artigo anterior [ou seja, para a prestação de TIR, e consequente caducidade da declaração de contumácia] ou para aplicação de medida de prisão preventiva, se for caso disso, e a anulabilidade dos negócios jurídicos de natureza patrimonial celebrados após a declaração.

Assim, a declaração de contumácia não paralisa a procura do paradeiro do arguido. Pelo contrário, implica a imediata emissão de mandados para que o contumaz seja detido e submetido a TIR. Se os mandados não forem cumpridos, deverão fazer-‑se as diligências adequadas para localizar o arguido, passando-se novos mandados quando for conhecida a nova morada. Admitindo o crime imputado prisão preventiva, os mandados de detenção poderão ser emitidos para submissão do arguido a essa medida de coação.

O tribunal deve, pois, manter uma atitude proativa na localização do paradeiro do arguido contumaz, enquanto ele não se apresentar voluntariamente em juízo.

C) A localização do arguido no estrangeiro

Pode porém o contumaz ser localizado no estrangeiro. Em tal situação, não há apresentação do arguido, e as autoridades judiciais portuguesas não podem evidentemente ordenar a sua detenção[4].

Estarão então cerceados quaisquer meios de fazer caducar a contumácia? Concretamente, será possível ou não submeter o arguido a TIR, por meio de carta rogatória enviada às justiças do país onde o arguido reside?[5] Fará a prestação de TIR caducar a contumácia? Esta a questão em discussão neste recurso.

Como vimos acima, a prestação de TIR assume-se, no enquadramento legal atualmente vigente, como o elemento fulcral de ligação do arguido ao processo, permitindo a sua tramitação até final, e simultaneamente facultando ao arguido o exercício efetivo dos seus direitos de defesa.

Contudo, como já se assinalou, não é a prestação de TIR que precede e provoca a caducidade da contumácia; pelo contrário, é a caducidade da contumácia que determina e provoca a prestação de TIR. É o que dispõe o art. 336º, nºs 1 e 2, do CPP.

Ou seja: é o contacto pessoal do arguido com o tribunal (por meio da apresentação ou da detenção) que permite considerar caducada a contumácia, que é caracterizada precisamente pela impossibilidade de efetuar esse contacto. É o contacto pessoal que viabiliza, por meio da prestação de TIR, a manutenção de uma ligação do arguido ao processo até ao seu termo. O TIR é o instrumento dessa ligação subsequente à caducidade da contumácia, não a causa dessa caducidade.

Daí que a emissão de carta rogatória para prestação de TIR pelo arguido residente no estrangeiro não seria idónea para fazer cessar a caducidade.

Aliás, nem poderia ser de outra maneira, porque só a apresentação pessoal do arguido ou a sua detenção asseguram a sua efetiva disponibilidade para os posteriores termos do processo.

Ao invés, a mera prestação de TIR por contumaz residente no estrangeiro, ainda que fosse considerada admissível, não garantiria essa disponibilidade.

Efetivamente, com a reforma processual contida na Lei nº 59/98 e no DL nº 320-C/2000, o arguido que preste TIR pode ser notificado, mediante via postal simples, para os posteriores termos do processo, incluindo a audiência de julgamento, sendo julgado na sua ausência, caso não compareça (art. 196º, nºs 2 e 3, d), do CPP).

Pode, pois, o arguido ser julgado na sua ausência. Mas desde que regularmente notificado (art. 333º, nº 1, do CPP), notificação essa a realizar por meio de via postal simples, como se referiu. Sem essa notificação o julgamento na ausência do arguido não é admissível.

Acontece que a notificação por via postal simples segue o procedimento descrito nos nºs 3 e 4 do art. 113º do CPP, procedimento esse que, embora agilizado, relativamente a outras modalidades de notificação como a pessoal, garante, se cumprido nos seus precisos termos (e só nessas circunstâncias), a fiabilidade da transmissão ao arguido da comunicação do tribunal.

Esse procedimento consiste no seguinte: o distribuidor do serviço postal tem o dever de, após depositar a carta na caixa do correio do notificando, exarar uma declaração indicando a data e confirmando o local exato do depósito, que depois envia ao tribunal remetente. O distribuidor postal funciona, pois, como um “agente judiciário”, recaindo sobre ele o dever funcional, juridicamente fundado, de prestar aquela declaração, declaração essa que certifica a entrega da carta na caixa de correio do arguido. É essa declaração que fiabiliza a via postal como meio de comunicação ao arguido do ato ou da convocação do tribunal.

Esse dever jurídico imposto aos distribuidores dos serviços postais nacionais não é evidentemente extensível aos serviços postais estrangeiros, pelo que a remessa por via postal simples da comunicação de qualquer ato ou convocação do tribunal ao arguido residente no estrangeiro para a sua morada não cumpriria os requisitos do art. 113º, nºs 3 e 4, do CPP, não valendo, pois, como notificação.

Nem poderia “substituir-se” a notificação simples pela carta registada, prevista igualmente como meio de notificação na al. b) do nº 1 do art. 113º do CPP. Na verdade, não é por acaso que o legislador estabeleceu a via postal simples para a notificação do arguido sujeito a TIR. É que a notificação por via postal simples para a morada indicada pelo arguido, ao impor a elaboração pelo carteiro da declaração de depósito, e ao responsabilizar simultaneamente o arguido pela recolha da correspondência recebida nessa morada, assegura a entrega da correspondência no domicílio do destino, o domicílio indicado pelo arguido.

É essa declaração que o legislador entendeu ser a prova mais fiável, ou melhor a única fiável, da efetivação da notificação ao arguido, por sua vez responsabilizado pela receção de qualquer comunicação do tribunal naquele endereço, que ele escolheu para esse fim.

D) Posição assumida

Entende-se, pois, convergindo com o acórdão-fundamento, que a prestação de TIR por arguido contumaz residente no estrangeiro não faz cessar a contumácia, cuja caducidade depende exclusivamente da apresentação pessoal ou detenção do arguido, pelo que não deve ser emitida carta rogatória para aquele efeito para o país da residência do arguido.

III. Decisão

Com base no exposto, o Pleno dos Juízes das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça decide:

           

            a) Fixar jurisprudência, ao abrigo do art. 443º do CPP, com o seguinte teor:

           

            Ainda que seja conhecida a morada de arguido contumaz residente em país estrangeiro, não deve ser expedida carta rogatória dirigida às justiças desse país para ele prestar termo de identidade e residência, porque essa prestação não faz caducar a contumácia;

           

            b) Revogar o acórdão recorrido, que deverá ser reformulado em conformidade com a jurisprudência agora fixada.

Sem custas.

Oportunamente deve dar-se cumprimento ao disposto no art. 444º, nº 1, do CPP.           

Lisboa, 26 de março de 2014 — Maia Costa  — Pires da Graça — Raul Borges  — Manuel Braz — Isabel São Marcos — Pereira Madeira — Santos Carvalho — Rodrigues da Costa — Santos Monteiro (Vencido, acompanhando a declaração de voto do Exmo. Cons. Santos Cabral ) — Santos Cabral  (Vencido de acordo com declaração junta ) — Oliveira Mendes — Souto de Moura — Henriques Gaspar (Presidente).

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A apresentação ou detenção do arguido a que se refere o art. 336º nº2 do CPP assume natureza instrumental em relação à prestação de TIR, sendo certo que a lei processual não convoca outra consequência em relação à presença do arguido que não seja tal prestação.

Consequentemente, nada impede que a prestação de TIR se efectue através dos instrumentos de cooperação judiciária em matéria penal o que representa o afastamento dum ónus para o arguido que, por outra forma, terá de suportar a privação da liberdade ou de se deslocar a Portugal com a finalidade de prestar o referido termo. Importa ainda sublinhar que, admitindo a legalidade de tal prestação por carta rogatória e caduca a situação de contumácia, o mesmo arguido pode solicitar ou aceitar a dispensa da sua presença nos termos do art. 334º nº2 do CPP.

Igualmente se entende que a circunstância de o arguido residir no estrangeiro não impede, nesses casos, a aplicação do regime estabelecido nos arts 196º nºs 1 c) e 3, 313º nº3 e 113º nº1 c), todos do CPP, para as notificações subsequentes sendo admissível obter a notificação pessoal do arguido de acordo com as normas que regulam o serviço postal internacional.

Santos Cabral

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[1] Por último, ver o Acórdão de Fixação de Jurisprudência, nº 15/2013, publicado no DR, I, de 16.12.2013. É essa a solução expressamente consagrada, em processo civil, para o recurso de uniformização de jurisprudência (art. 692º, nº 4, do novo Código de Processo Civil).
[2] Ver, a propósito, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de nº 9/2012, publicado no DR, I-A, de 10.12.2012.
[3] No sentido afirmativo podem ver-se os seguintes acórdãos: de 20.11.1996, proc. nº 9640904; de 14.5.1997, proc. nº 9740386; de 28.5.1997, proc. nº 9740457; e de 11.6.1997, proc. nº 9740402, todos da Relação do Porto; e de 29.4.1998, proc. nº 0018883, da Relação de Lisboa. Ver, no mesmo sentido o voto de vencido do Cons. Carmona da Mota no Assento nº 10/2000, do STJ (DR, I, de 10.11.2000).
Em sentido oposto, ver os acórdãos da Relação do Porto de 15.10.1997, proc. nº 9710421, e de 4.2.1998, proc. nº 9240401.
[4] A não ser através de pedido de extradição, ou de emissão de mandado de detenção europeu, quando admissíveis.
[5] A solução não será diferente para os países da União Europeia, já que o mandado de detenção europeu não é suscetível de ser utilizado para fazer cessar a contumácia mediante a prestação de TIR. A este propósito, ver os acórdãos da Relação de Coimbra de 21.11.2007, proc. nº 210/00.0TBTNV-A.C1, e de 19.12.2007, proc. nº 266/00.6PRTNV-A. Com interesse, ver ainda o acórdão deste STJ de 27.7.2006, proc. nº 2953/06.