Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3413/03.2TBVCT.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PAULO SÁ
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
INCAPACIDADE PERMANENTE ABSOLUTA
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS FUTUROS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANOS REFLEXOS
CÔNJUGE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/26/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDER PARCIALMENTE A REVISTA DOS AUTORES
NEGADA A REVISTA DA RÉ
Sumário :
I - Julga-se adequado fixar o valor da indemnização a título de danos futuros em 170.000€ e da indemnização por danos não patrimoniais em 200.000€, provando-se que, por causa do acidente, ocorrido em Novembro de 2001, o A. (nascido em 06-12-1972), então motorista de pesados (que auferia o vencimento mensal líquido de 415€), ficou, devido às lesões sofridas e às sequelas correspondentes, afectado de uma incapacidade permanente de 100%, necessitando de: usar um par de canadianas (cuja duração é inferior a 1 ano) como auxiliar de locomoção; submeter-se a consultas periódicas de controle do seu sangue, a intervenções cirúrgicas com anestesia geral, internamentos hospitalares, análises clínicas, exames radiológicos, consultas e tratamentos das especialidades de Urologia e de Cirurgia Vascular, bem como do foro psicológico e psiquiátrico, nomeadamente em relação ao seu estado de impotência sexual; ingerir medicamentos e tomar injecções penianas relacionadas com o seu estado de total impotência sexual; recorrer a tratamentos de fisioterapia dos seus membros inferiores; suportar as despesas com uma terceira pessoa para o desempenho de tarefas pessoais e diárias, tais como cortar as unhas dos pés, locomover-se, tomar banho.
II - Não se deve interpretar restritivamente o n.º 1 do art. 496.º do CC, por via do seu n.º 2.
III - Por isso, e considerando que a qualidade de vida da Autora, mulher do lesado, ficou profundamente afectada, os seus direitos conjugais amputados numa parte importante para uma mulher jovem e o seu projecto de ter mais filhos irremediavelmente comprometido, assiste-lhe o direito a indemnização, a título de danos não patrimoniais, que deve ser equitativamente fixada no montante de 50.000€.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. AA e mulher, BB, intentaram, separadamente, no Tribunal Judicial de Viana do Castelo, acções declarativas de condenação, com processo comum sob a forma ordinária, contra CC Portugal – Companhia de Seguros, SA, DD– Construção Civil e Obras Públicas, Ldª (antes, Ela – FF, Limitada) e EE, as quais vieram subsequentemente a serem apensadas, peticionando, o primeiro, a condenação de todos os RR. no pagamento da quantia de € 743.995,46, acrescida de juros, e da quantia que vier a liquidar-se em momento posterior em relação aos danos cuja quantificação não for ainda possível e, a segunda, a condenação dos RR. no pagamento da quantia de € 200.000,00, a título de danos morais, acrescida de juros.

Alegaram, para tanto, em síntese:

O A. AAque foi vítima de acidente de viação de que lhe resultaram danos, tendo a culpa do acidente sido exclusivamente do condutor do veículo segurado na R. CC Portugal.

A A. BB que, por força do mesmo acidente, o A. AA(seu marido) ficou totalmente incapacitado para o relacionamento sexual e para procriar.

Devidamente citados, os Réus contestaram.

A R CC impugnou os factos descritos na p.i. por os desconhecer e defendendo não assistir qualquer direito indemnizatório à A. BB.
Os RR. DDe Celso Martins excepcionaram a sua ilegitimidade (julgada improcedente no despacho saneador) e, no mais, imputando a culpa do acidente ao A.

O autor replicou, pugnando pela improcedência da excepção.

A Liberty Seguros, SA. (antes Companhia Europeia de Seguros, SA) deduziu incidente de intervenção principal espontânea, alegando que, como seguradora da entidade patronal ao serviço da qual o A. AA sofreu o acidente em apreciação nos autos, pagou várias despesas de que agora se quer ver ressarcida pela R. CC Portugal, acrescida de juros (com o mesmo fundamento, esta R. CC Portugal havia também requerido já a intervenção provocada da mesma seguradora). A intervenção foi admitida.

Elaborou-se o despacho saneador e organizou-se a matéria assente e a base instrutória.

Realizou-se o julgamento com observância do formalismo legal, mantendo-se os pressupostos relativos à validade e regularidade da instância e tendo-se respondido à matéria de facto, sem reclamações.

A final, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando a R. CC Portugal – Companhia de Seguros, SA.:
al a) a pagar ao A. AAa quantia de € 98.674,82 = € 13.556,66 (€ 415,00/30 x 980) + € 500,00 + € 98,19 + € 152,92 + € 6,48 + € 779,86 + € 100,00 + € 115.000,00 – (€ 29.981,84 + € 500,00 + € 98,19 + € 152,92 + € 6,48 + € 779,86)] a título de danos patrimoniais, e € 150.000,00 a título de danos não patrimoniais;
b) a pagar à A. BB a quantia de € 20.000,00 a título de danos não patrimoniais;
c) a pagar aos AA. AA e BB os juros de mora às taxas de 7% até 30Abr03 e 4% desde 1Mai03 em diante, desde a citação até integral pagamento, sobre o montante relativo aos danos patrimoniais; desde a data da prolação da sentença até integral pagamento, sobre o montante relativo aos danos não patrimoniais;
d) a pagar à interveniente Liberty Seguros, SA, a quantia de € 124.504,95, acrescida de juros de mora desde a notificação daquela R. para contestar o pedido da interveniente, à taxa de 4%;
e) a pagar ao A. Manuel, a quantia que vier a liquidar-se em momento posterior quanto aos danos indicados nos Factos 97, 98 e 99, nos termos expostos nesta decisão, até ao limite de € 748.196,84, subtraído das quantias indicadas em a), b), c) e d) supra;
f) os RR. DD– Construção Civil e Obras Públicas, Lda, e EE, a pagarem ao A. AAa quantia que vier a liquidar-se em momento posterior quanto aos danos indicados nos Factos 97, 98 e 99, nos termos expostos na sentença, no caso de tal quantia exceder o limite indicado em e) supra [subtraído das quantias indicadas em a), b), c) e d) supra] e na parte relativa a esse excesso.
No mais, julgou a acção improcedente, absolvendo os RR. do restante pedido.

Recorreram, de apelação, os AA., a R. CC e a interveniente Liberty, tendo a Relação de Guimarães decidido julgar totalmente improcedentes as apelações da R CC e da interveniente Liberty, e em julgar parcialmente procedente a apelação dos AA, e, em consequência, revogar correlativamente a sentença recorrida, fixando os danos patrimoniais pela perda de rendimento do trabalho do A. AA(deduzida a quantia de € 85.018,16 que a Liberty lhe entregou a titulo de incapacidades) em 54.981,84 €, fixando os seus danos não patrimoniais em 200.000,00 €, e fixando os danos não patrimoniais da A BB em € 50.000,00, mantendo, no demais, aquela sentença.

Desta decisão recorrem, de novo, os AA. e a R. CC, de revista, para este STJ.

Os AA. concluem as suas alegações do seguinte modo (na transcrição fizeram-se duas supressões, corrigiu-se a numeração, procedeu-se a algumas correcções de natureza ortográfica e deixaram-se assinaladas incorrecções que se optou por não alterar):

1.ª Não se questiona no presente recurso, a parte do douto acórdão recorrido, em que o mesmo decidiu sobre a culpa/responsabilidade na produção do sinistro, em relação ao condutor do veiculo automóvel segurado da recorrida CC (…);
2.ª Já que, de acordo com a prova produzida e com os factos provados, essa culpa é exclusivamente imputável ao condutor do veiculo automóvel segurado da recorrida CC (…);
3.ª Discorda, porém, o Recorrente AA, em relação ao montante indemnizatório que lhe foi atribuído, a título de indemnização por danos de natureza não patrimonial;
4.ª O valor de 200.000,00 €, fixado pela douta sentença recorrida (sic), é insuficiente para ressarcir (compensar) os danos a este título sofridos pelo Recorrente, tendo em conta a gravidade das lesões sofridas e das sequelas delas resultantes;
5.ª Pelo que adequada e justa se reputa a quantia de 250.000,00 € e que, como se fez na petição inicial, ora se reclama.
6.ª O valor global de 140.000,00 €, fixado a título de indemnização pela Incapacidade Permanente, Definitiva e Irreversível – 100,00% –, para o trabalho, é insuficiente, para ressarcir o Recorrente dos danos, a este título, sofridos;
7.ª O Autor/Recorrente contava, à data do sinistro dos presentes autos, 29 anos (nasceu em 06-12-1972), auferia um rendimento do seu trabalho de 415,00 €/mês (acrescido de trabalho suplementar, consubstanciado em ajuda ao seu pai), ficou a padecer de uma Incapacidade de 100,00% e a expectativa de vida activa cifra-se nos 74.90 anos de idade;
8.ª O montante de 140.000,00 € fixado a este título é, assim, insuficiente;
9.ª Justo e equitativo é o valor reclamado, no articulado de ampliação do pedido indemnizatório, de 460.825,18 €;
10.ª A esse valor deverá ser deduzido o montante que a Interveniente Liberty Seguros, SA. pagou no âmbito de acidente de trabalho, que é de 29.981,84 € e não de 85.018,16 €;
11.ª O douto acórdão recorrido, neste particular, cometeu um lapso de escrita;
12.ª Requer-se a rectificação desse lapso de escrita, ao abrigo do disposto no artigo 249.º do Código Civil;
13.ª E, corrigido esse lapso – que é manifesto –, ao valor fixado ou que vier a ser fixado, de forma definitiva, a título de indemnização pelos danos decorrentes da Incapacidade Permanente, para o trabalho, de que o Autor ficou a padecer, apenas deverá ser deduzido o valor de:
a) apenas e tão só de 29.981,84 €;
b) e não, como fez o acórdão recorrido, o valor de 85.018,16 €;
14.ª Na sua petição inicial, o Autor/Recorrente reclamou as indemnizações aí quantificadas, acrescidas de juros de mora vincendos, contados à taxa legal – na altura 4% ao ano –, desde a citação, até efectivo pagamento;
15.ª Relativamente à quantia que se reporta à indemnização por danos de natureza não patrimonial, o acórdão recorrido apenas fixou esses juros a partir da data da sua prolação;
16.ª Relativamente às indemnizações respeitantes aos danos de natureza patrimonial, nunca a doutrina, nem a jurisprudência, suscitaram quaisquer dúvidas;
17.ª Na realidade, relativamente aos montantes indemnizatórios respeitantes às indemnizações por danos de natureza patrimonial, sempre foi entendido, como continua a ser, de forma uniforme, que esses juros são devidos desde a data da citação;
18.ª Mas, a lei não distingue, entre danos de natureza patrimonial e patrimonial, nem entre as indemnizações por danos emergentes e por lucros cessantes;
19.ª Por imperativo legal, devem, pois, ser fixados os juros moratórios, relativa à indemnização sobre a quantia patrimonial, a partir da data da citação, até efectivo pagamento;
20.ª É que o valor referente à indemnização por danos de natureza não patrimonial não foi actualizado, com referência à data da prolação da sentença proferida em 1.ª instância;
21.ª Esse valor é inferior ao reclamado no articulado da petição inicial;
22.ª Pelo que não tem aplicação a doutrina estabelecida no Acórdão de Fixação de Jurisprudência, do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2002, de 9 de Maio de 2002, publicado no Diário da República, Série I-A, de 27 de Junho de 2002;
23.ª Como, de resto, foi já decidido pelo Acórdão subscrito pelos Exmos. Juízes Conselheiros Pires da Costa, Custódio Mendes e Mata Miranda (sic) – Acção Ordinária nº. 2/2002, 2º. Juízo, do Tribunal Judicial de Ponte de Lima (Supremo Tribunal de Justiça, a Revista nº. 3076/05);
24.ª A Autora/Recorrente BB peticionou a indemnização/compensação de 200.000,00 €;
25.ª O acórdão recorrido fixou-lhe a indemnização/compensação de apenas de 50.000,00 €;
26.ª Os danos sofridos pela Autora/Recorrentes são da máxima e inexcedível gravidade;
27.ª A quantia fixada, de 50.000,00 € é absolutamente insuficiente para compensar/ressarcir a Autora/Recorrente pelos danos, a este título sofridos;
28.ª Justa e equitativa é a quantia de 200.000,00 €, a este título reclamada na petição inicial;
29.ª E, sobre esse montante, devem incidir os juros moratórios, contados desde a data da citação, até efectivo pagamento;
30.ª No demais, deve confirmar-se o já decidido pelo tribunal da Segunda Instância
31.ª Decidindo de modo diverso fez o acórdão recorrido má aplicação do direito aos factos provados e violou, além de outras, as normas dos artigos 562.º, 564.º e 805.º, n.ºs 1, 2 e 3, do Código Civil.

Por sua vez, a R CC, concluiu as suas alegações nos seguintes termos:

A. A indemnização atribuída à A BB, emergindo de um dano indirecto, sofrido de um modo directo apenas na pessoa do seu cônjuge, não tem suporte legal, pelo que viola o disposto no artigo 495.º do CC, o que deverá determinar a sua revogação.
B. A indemnização no valor de EUR 150.000,00 destinada a ressarcir os danos não patrimoniais do autor é exagerada, e deverá, por isso mesmo, ser reduzida para EUR 85.000,00.
C. A indemnização destinada a ressarcir o dano patrimonial futuro do Autor não deverá ir além do valor peticionado na sentença, ou seja, EUR 115.000,00

A R CC contra-alegou relativamente às alegações dos AA, pugnando pela redução da indemnização pelo dano patrimonial e não patrimonial do A, pela manutenção do decidido quanto aos juros referidos ao dano não patrimonial e pela fixação do dano não patrimonial da A. BB, a entender-se como ressarcível, em valor não superior ao da sentença.

II. Fundamentação

De Facto

II.A. São os seguintes os factos dados como provados, face ao oportunamente especificado e ao resultado do julgamento:

1. No dia 02 de Novembro de 2001, pelas 13,20 horas, ocorreu um acidente de trânsito na Rua 116, no lugar de Santiago, Castelo do Neiva, Viana do Castelo, no qual foram intervenientes: o veículo automóvel pesado de mercadorias de matrícula SQ-00-00, o veículo automóvel pesado de mercadorias de matrícula 61-52-GH, e o A. AA (A);
2. À data do acidente, o GH era propriedade da R. Ela – FF, Limitada, sendo, na altura, conduzido pelo R. EE, empregado daquela e que conduzia então o GH em cumprimento de ordens e instruções que a dita sociedade lhe havia previamente determinado, seguindo por itinerário que a mesma lhe havia também indicado (B);
3. A Rua 116, no local do sinistro, apresentava um traçado sensivelmente rectilíneo pavimentado em “calçada à portuguesa” e, pelas suas 2 margens, a faixa de rodagem da Rua 116 apresentava bermas também empedradas (C);
4. A Rua 116, no local do acidente e antes de lá chegar, para quem circula no sentido lugar de Igreja-Estrada Nacional n°. 13-3, apresentava uma inclinação descendente (D);
5. Na altura do acidente o tempo estava “bom” e seco e o pavimento da faixa de rodagem da Rua 116 encontrava-se seco (E);
6. O acidente ocorreu no centro urbano e habitacional do lugar de Santiago, Castelo do Neiva, Viana do Castelo, totalmente sobre a metade direita da faixa de rodagem da Rua 116, tendo em conta o sentido lugar de Igreja-Estrada Nacional nº. 13-3 (F);
7. Antes do acidente, o A. AA imobilizou a marcha do SQ, o qual ficou então com a parte frontal apontada no sentido Norte e traseira no sentido Sul, de forma a configurar com o eixo divisório da faixa de rodagem da Rua 116 sensivelmente um ângulo recto (G);
8. Após a imobilização do SQ, o A. colocou-se de pé, no solo, sobre a metade direita da faixa de rodagem da Rua 116, tendo em conta o sentido lugar de Igreja-Estrada Nacional n.º 13-3, do lado direito da caixa de carga do SQ (H);
9. Momentos antes do acidente, o GH transitava pela Rua 116 no sentido lugar de Igreja-Estrada Nacional n.º 13-3, pela metade direita da faixa de rodagem da referida via, tendo em conta o seu sentido de marcha (I);
10. À data do acidente, o A. AA exercia a profissão de motorista de veículos automóveis pesados de mercadorias em cumprimento de ordens e instruções que a sua entidade patronal (sociedade “Casa Passos de MPS & Filhos – Materiais de Construção, Lda”, com sede no lugar de Sendim de Baixo, Castelo do Neiva, Viana do Castelo) lhe havia previamente determinado, seguindo por itinerário que a mesma lhe havia também indicado (J);
11. O A. AA nasceu no dia 06 de Dezembro de 1972 (K);
12. A A. BB nasceu no dia 02 de Novembro de 1976 (L);
13. Os AA. AA e BB são casados um com o outro desde 24 de Setembro de 1994. Do casamento dos AA. nasceu uma filha em 12 de Março de 1995 (M e N);
14. Para a R. CC Portugal – Companhia de Seguros, SA, estava transferida a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo GH, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º 45/00404145/80, em vigor à data do acidente (O);
15. No exercício da sua actividade, a interveniente Liberty Seguros, SA. (antes Companhia Europeia de Seguros, SA) celebrou com a “Casa Passos de MPS & Filhos – Materiais de Construção, Lda”, um contrato de seguro do Ramo de Acidentes de Trabalho na modalidade de prémio variável, titulado pela apólice n.º 64/675652, através do qual esta transferiu para aquela a responsabilidade pelos encargos provenientes de Acidentes de Trabalho em relação a todos os trabalhadores que se encontram ao seu serviço e, nomeadamente, o A. AA (P);
17. A Rua 116, no local do sinistro, tinha uma extensão superior a 150 metros. A sua faixa de rodagem tinha, ao longo do seu percurso, uma largura aproximada de 6 metros. A Rua 116 tinha bermas (1 a 3);
18. No exacto local do acidente, a Rua 116 configurava um recinto/largo com a Rua 117, a qual confluía com aquela e com ela formava um entroncamento, pela respectiva margem esquerda, tendo em conta o sentido lugar de Igreja-Estrada Nacional n.º 13-3. Nesse largo/recinto as faixas de rodagem da Rua 116 e da Rua 117 apresentavam, em conjunto, uma largura superior a 15 metros. O piso da Rua 116 era pavimentado a blocos de granito irregulares e lombas/ondulações. A inclinação descendente da Rua 116 (conforme referido em 4) era superior a 10% (4, 5, 6, 7, 8, 13 e 14);
19. A Rua 117, no local do entroncamento, configurava um traçado rectilíneo que se desenvolvia em direcção ao interior do lugar de Santiago ao longo de mais de 100 metros. A faixa de rodagem da Rua 117 tinha uma largura aproximada de 6 metros, sendo o seu piso pavimentado a asfalto. Na altura do acidente, o pavimento da faixa de rodagem da Rua 117 encontrava-se seco e em “bom estado” de conservação (9 a 12);
20. Para quem se encontrasse no local do acidente, conseguia avistar a faixa de rodagem da Rua 116 em direcção ao lugar de Igreja, em toda a sua largura, ao longo de uma distância de 50 metros, e, em direcção à Estrada Nacional n.º 13-3, ao longo de uma distância de 25 metros (15 e 16);
21. O A, ao chegar ao local onde o acidente viria a ocorrer, penetrou com o rodado da frente do SQ num espaço de terra batida existente na margem direita da Rua 116, tendo em conta o sentido Igreja-Estrada Nacional n.º 13-3 (correspondente ao acesso ao logradouro de uma casa), e aí imobilizou a sua marcha, de forma a ocupar com a respectiva parte traseira, ao nível da sua caixa de carga, uma largura de cerca de 3 metros da faixa de rodagem da Rua 116 (20 a 22);
22. O A. pretendia descarregar, da caixa de carga do SQ para o logradouro indicado em 20, 3 paletes de tijolos com o auxílio da grua hidráulica existente do lado direito do SQ (entre a sua cabine e a sua caixa de carga), cujo braço articulado e rotativo tem com um comprimento de 4,30 metros (23 e 24);
23. Para realizar a operação de descarga das paletes de tijolos, o A: colocou-se de pé, no solo, do lado direito do SQ com vista a, desse lugar, poder manobrar os comandos hidráulicos da grua e poder proceder à pretendida descarga; manteve o motor do SQ em funcionamento, com vista a alimentar o sistema hidráulico da grua; e manteve o SQ com as “sapatas”, situadas ao nível da parte frontal da sua caixa de carga, apoiadas e fixas no solo (25);
24. Os factos descritos em 25. implicaram que as rodas frontais da cabine do SQ tivessem que ficar suspensas no ar, razão por que o SQ apenas pôde estar imobilizado com o auxílio exclusivo do seu sistema de travão de mão (o qual actua apenas às suas rodas de trás), e na posição perpendicular em relação ao eixo divisório da faixa de rodagem da Rua 116 (26 a 28);
25. Quando se encontrava imobilizado nas circunstância referidas, o SQ (na sua quase totalidade) e o A. eram visíveis para quem circulava pela Rua 116, no sentido Igreja-Estrada Nacional nº. 13-3, quando se encontrasse a uma distância de 90 metros (31);
26. Ao colocar-se de pé, no solo, sobre a faixa de rodagem da Rua 116, o A. fê-lo junto à zona de união entre a cabine do SQ e a sua caixa de carga, iniciando então a operação de descarga dos tijolos com os comandos hidráulicos da grua (32 e 33);
27. Quando se encontrava colocado no solo da forma descrita, o A. e o SQ (parte lateral direita da caixa de carga) foram embatidos pela parte frontal do GH (34);
28. O GH seguia então a velocidade de cerca de 5 Km/h (35, 45 e 46);
29. No momento do embate, o condutor do GH entalou o A. entre a parte frontal do GH e a parte lateral direita da caixa de carga do SQ, a uma distância de 1 metro da linha delimitativa da berma do mesmo lado (37 e 38);
30. Depois do embate, o SQ e o A. (na altura entalado entre a parte frontal do GH e a parte lateral direita da caixa de carga do SQ) foram arrastados ao longo de 6,30 metros (39 e 40);
31. Momentos antes do acidente e numa altura em que o SQ já se encontrava imobilizado nas circunstâncias descritas, tinha passado no local um veículo automóvel pesado de mercadorias exactamente igual ao GH e com carga idêntica, provindo do mesmo lugar deste (41 e 42);
32. Na altura do acidente, o GH pesava 40 toneladas (28 relativas ao material que transportava e 12 relativas ao peso do próprio veículo) (44);
33. Como consequência directa e necessária do acidente, resultou para o A. traumatismo da região da bacia, esmagamento da região da bacia, hemorragia da região do hipogastro, hemorragia da região púbica, fractura dos ramos púbicos superior e inferior, à esquerda, com desvio, rotura vascular na raiz da coxa, hematúria por rotura da uretra prostática, choque hipovolémico, pé esquerdo pálido, impotência funcional, por esquemia aguda, do membro inferior esquerdo, laceração perineal, rotura da parede anterior do recto, lesão do nervo ciático poplíteo externo esquerdo, rotura da bexiga, escoriações, feridas e hematomas espalhados pelo corpo todo (51);
34. O A. foi transportado de ambulância para o Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo, onde lhe foram prestados os primeiros socorros e efectuados exames radiológicos. Na mesma altura, foi ministrada ao A. uma transfusão de sangue (5 unidades) e uma transfusão de plasma (2 unidades) (52 e 53);
35. O A. foi de imediato transferido, de helicóptero, para o Hospital de S. João do Porto e aí internado no Bloco Operatório, após o que, depois de sujeição a anestesia geral, foi submetido a uma intervenção cirúrgica de 8 horas consubstanciada em laparatomia exploradora, com colostomia terminal do sigmóide e cistostomia (por impossibilidade de algaliação) (54 e 55);
36. Após a intervenção cirúrgica, o A. manteve-se internado na Unidade de Cuidados Intensivos no Hospital de S. João do Porto com respiração assistida, perfusão antibiótica, sedação, analgesia e controlo analítico permanente (56);
37. O A. manteve-se na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de S. João do Porto desde 02 de Novembro de 2001 até 10 de Novembro de 2001, período em que se manteve sempre deitado de costas e sem se poder virar, na situação de estado de coma provocado (57 e 58);
38. Durante o período em que se manteve da Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de S. João do Porto o A. foi politransfundido, mantendo-se ventilado artificialmente ao longo dos primeiros 5 dias e sendo entubado no quinto dia (59 a 61);
39. A. manteve-se estável hemodinamicamente, com diurese e função renal normal e em estado sub-febril, por sinais de celulite de raiz da anca da coxa esquerdos, com consequente leucocitose (62 e 63);
40. No dia 10 de Novembro de 2001, o A. foi transferido para o Serviço de Cirurgia do Hospital de S. João do Porto, onde se manteve durante 2 dias (64);
41. No dia 12 de Novembro de 2001, o A. obteve alta hospitalar no Hospital de S. João do Porto, sendo transferido para o Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo, onde se manteve internado durante 137 dias, período durante o qual foi reenviado ao Hospital de S. João do Porto (em 25 de Novembro de 2001 e em 03 de Dezembro de 2001) para reavaliação por Urologia e Cirurgia Vascular (65 a 67);
42. No dia 06 de Março de 2002, o A. foi submetido a uma segunda intervenção cirúrgica, anestesia geral, no Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo, consubstanciada em uretroplastia, topo a topo, após uretrectromia segmentar, com excisão de zona fibrosa pós-traumática, por via combinada (68);
43. No dia 28 de Março de 2002, o A. obteve alta hospitalar, regressando a casa (69);
44. O A. manteve-se algaliado até 15 de Maio de 2002 (70);
45. No Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo o A. manteve-se sempre deitado de costas e sem se poder virar (71);
46. Regressado a casa, o A. continuou sempre deitado de costas e sem se poder virar, de onde saía apenas para se dirigir ao Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo, para frequentar sessões de fisioterapia à região dos membros inferiores, com maior incidência do pé esquerdo (72 e 73);
47. O A. manteve-se em fisioterapia 3 vezes por semana, no Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo, desde 14 de Novembro de 2001 até finais de Junho de 2002 (74);
48. Quando esteve internado no Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo (entre 12 de Novembro de 2001 e 28 de Março de 2002), o A. frequentou idêntico tratamento de fisioterapia naquela Unidade Hospitalar em sessões diárias (75);
49. A partir de 03 de Abril de 2002, o A. passou a ser assistido nos Serviços Clínicos da Liberty Seguros, SA, no Porto, onde foi assistido e tratado ao longo de mais de 20 consultas e idêntico número de sessões (76 e 77);
50. No dia 13 de Abril de 2002, o A. foi novamente readmitido no Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo para realização de nova cistostomia com algaliação (78);
51. No dia 08 de Maio de 2002, o A. foi readmitido no Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo, onde foi internado ao longo de 8 dias, sendo então submetido a uma terceira intervenção cirúrgica, com anestesia geral, consubstanciada na reconstrução do trânsito intestinal e encerramento de colostomia (79 e 80);
52. No dia 15 de Maio de 2002, o A. obteve alta hospitalar no Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo e dirigiu-se ao Hospital de S. João do Porto para análise da algália e para ver se a mesma podia ser extraída (81);
53. No dia 16 de Maio de 2002, o A. teve alta do Hospital de S. João do Porto e foi transferido novamente para o Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo (82);
54. Nessa altura, a algália não lhe foi extraída em virtude de a mesma se apresentar encravada na uretra (83);
55. O A. manteve-se, desta vez, internado no Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo por um novo período de 8 dias, obtendo alta no dia 23 de Maio de 2002 (84);
56. Após regressar à sua casa, o A. passou a ser acometido de agravamento da circulação no seu membro inferior esquerdo, razão por que passou a ser acompanhado e tratado pelos Serviços Clínicos da Liberty Seguros, SA, no Porto, por um especialista em Cirurgia Vascular, onde se dirigiu por 12 vezes (85 e 87);
57. No dia 25 de Junho de 2002, por indicação do especialista que o acompanhava, o A. fez Eco-Doppler no Hospital de Santa Maria do Porto, tendo posteriormente continuado as consultas e tratamento nos Serviços Clínicos da Liberty Seguros, SA, para acompanhamento e controle (88 e 89);
58. No dia 01 de Julho de 2002, o A. foi internado no Hospital de S. João António do Porto, onde se manteve desde 01 de Julho de 2002 até 23 de Agosto de 2003, aí fazendo análises clínicas, um T AC, exames aos vasos circulatórios dos membros inferiores, e onde foi submetido a uma quarta intervenção cirúrgica, consubstanciada em “by-pass” e transposição de vasos superficiais, retirados das faces anteriores de ambos os membros inferiores (“by-pass” cardiofemural) (90 a 92);
59. Durante esse período de tempo de internamento, foi efectuada ao A. nova cistotomia e retirada uma prótese destinada a irrigação sanguínea (que anteriormente lhe havia sido aplicada na região dos membros inferiores) (93);
60. Durante este período de internamento, o A. foi afectado de complicação infecciosa a nível do sangue e do seu sistema circulatório, razão por que lhe foi ministrada “Vacomicina” e foi mantido em isolamento absoluto até 23 de Agosto de 2003 (94 e 95);
61. No dia 08 de Julho de 2002 o A. foi submetido a uma quinta intervenção cirúrgica no Hospital de Santo António do Porto, por ter sido acometido de complicação obstrutiva de vaso sanguíneo, na face interna da coxa direita, com aneurisma volumoso (rebentou-lhe esse vaso sanguíneo e o sangue era projectado para o exterior, em repuxo) (96);
62. Porque no dia 18 de Julho de 2002 se repetiu a fuga descontrolada de sangue, em repuxo, do mesmo vaso sanguíneo, o A. foi novamente operado a esse vaso sanguíneo para estancamento da fuga, tendo-lhe sido então efectuada uma sexta intervenção cirúrgica, consubstanciada na transposição de vaso sanguíneo, retirado do membro superior esquerdo e transplantado no membro inferior direito (97 e 98);
63. Durante essa sexta operação, foi efectuado ao A: tratamento de falso aneurisma volumoso anastomótico bilateral de ambas as coxas, remoção de prótese vascular anterior, pontagem ileopoplítea (13. porção), com veia safena interna invertida (04-07-2002), e pontagem ileopoplétea (13. porção) com veia cefálica antóloga invertida e laqueação da artéria femural superficial esquerda, por ter surgido novo falso aneurisma na anastomose femural superficial esquerda (18-07-2002), e cistostomia percutânea (04-07-2002) (99);
64. No dia 23 de Agosto de 2002, o A. obteve alta hospitalar do Hospital de Santo António do Porto, sendo transferido para o Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo, onde se manteve internado ao longo de 6 dias no Serviço de Especialidades Cirúrgicas (Urologia) (100 e 101);
65-No dia 28 de Agosto de 2002, o A. obteve alta hospitalar do Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo regressando à sua casa (102);
66 No dia 29 de Agosto de 2002, o A. dirigiu-se aos Serviços Clínicos da Liberty Seguros, SA, no Porto, e foi imediatamente internado de urgência no Hospital de Santa Maria do Porto, onde se manteve internado ao longo de 9 dias e onde foi assistido por médicos especialistas em Cirurgia Vascular e Urologia (103 e 104);
67. No dia 06 de Setembro de 2002, o A. obteve alta hospitalar do Hospital de Santa Maria do Porto e regressou à sua casa, onde se manteve deitado (105);
68 No dia 09 de Setembro de 2002, o A. continuou tratamento de fisioterapia no “Centromedifísica, Lda”, em Viana do Castelo, consubstanciado em tratamentos de movimentos nos 2 joelhos, massagens e calores húmidos, o que fez ao longo dos meses de Setembro, Outubro e Novembro de 2002 e Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho e Julho de 2003 (106 e 107);
69. No dia 20 de Setembro de 2002, o A. foi submetido a uma sétima intervenção cirúrgica uretral, com anestesia geral, consubstanciada em emissão de mina, pela uretra, com algália, com desobstrução do canal uretral (108);
70. O A. obteve alta do Hospital de Santa Maria do Porto no dia 24 de Setembro de 2002, regressando à sua casa (109);
71. No dia 01 de Outubro de 2002, o A. passou a ser acometido de hemorragias através de pénis (uretra), que se prolongaram ao longo de 18,30 horas (110);
72. No dia 11 de Outubro de 2002, o A. regressou ao Hospital de Santa Maria do Porto, onde lhe foi retirada a algália que lhe havia sido aplicada (111);
73. Posteriormente, o A. desenvolveu trajecto fistuloso, da uretra para o intestino, razão por que, a partir de 18 de Outubro de 2002, continuou em tratamentos de Urologia e de Cirurgia Vascular no Hospital de Santa Maria do Porto (112 e 113);
74. Foi-lhe então efectuado tratamento de encerramento do trajecto fistuloso da uretra para o intestino (114);
75. No dia 13 de Dezembro de 2002, o A. foi internado no Hospital de Santa Maria do Porto, onde se manteve internado durante 4 dias (115);
76. Nesse dia 13 de Dezembro de 2002, o A. foi submetido a uma oitava intervenção cirúrgica, com anestesia geral, consubstanciada em desobstrução da uretra (116);
77. A partir de 13 de Dezembro de 2002, o A. continuou a dirigir-se ao Hospital de Santa Maria do Porto, à especialidade de Urologia, para desobstrução, com dilatação, da uretra (117);
78. No dia 07 de Janeiro de 2003, o A. dirigiu-se aos Serviços Clínicos da Liberty Seguros, SA, para se submeter a consulta da especialidade de Cirurgia Vascular (118);
79. No dia 08 de Janeiro de 2003, o A. dirigiu-se ao Centro de Saúde, Extensão de Castelo do Neiva, onde lhe foi retirada a algália (119);
80. No dia 18 de Fevereiro de 2003, o A. dirigiu-se aos Serviços Clínicos da Liberty Seguros, SA, altura em que lhe foi receitado tratamento hipo-coagulante, em Laboratório Médico do Porto (120);
81. A partir dessa data, o A. continuou em consultas periódicas de controle do seu sangue num consultório médico no Porto (121);
82. Desde a data do acidente, e à parte dos períodos em que esteve retido no leito, nos Hospitais e na sua casa, o A. usou sempre um par de canadianas como auxiliar de locomoção (122);
83. No momento do acidente e nos instantes que o precederam, o A. sofreu um susto e receou pela própria vida (123);
84. O A. sofreu dores nas as regiões do seu corpo atingidas, nomeadamente ao nível da bacia, ao nível do abdómen e dos membros inferiores, dores essas que se prolongaram por mais de 2 anos, e que ainda hoje o afectam (124 a 126);
85. No tipo de operações cirúrgicas a que o A. foi submetido existiu perigo de morte, por embolia gorda (127);
86. Como sequelas das lesões sofridas, o A. apresenta:
a) fractura dos ramos púbicos superior e inferior, à esquerda, com ligeiro desvio, consolidada, mas com persistência de dores intensas;
b) impotência sexual absoluta e definitiva, com impossibilidade de conseguir obter qualquer erecção, manter relações sexuais, orgasmo e ejaculação;
c) uso ocasional de “Caverject” injectável (injecção peniana), de sucesso nulo;
d) incontinência urinária, com estreitamento irregular da uretra membranosa, com calibre médio de 5 milímetros;
e) imperiosidade de fezes, com períodos de incontinência, resultante de reconstrução do trânsito intestinal, após encerramento colostomia;
f) insuficiência artério-venosa no membro inferior esquerdo, sendo portador de reconstrução de vasos por pontagem;
g) trofoedema marcado de todo o membro inferior esquerdo, com particular evidência na raiz da coxa;
h) insuficiência arterio-venosa no membro inferior esquerdo, sendo portador de reconstrução de vasos por pontagem;
i) cicatriz deformante, com 2 centímetros de largura ao longo de toda a face interna do membro inferior esquerdo, resultante de transposição de vasos sanguíneos;
j) limitação da mobilidade do joelho esquerdo, cuja flexão apenas é possível até aos 90 graus;
l) rigidez da articulação tibio-társica do membro inferior esquerdo;
m) insuficiência arterio-venosa do membro inferior direito, sendo portador de reconstrução de vasos por pontagem;
n) cicatriz deformante, com 2 centímetros de largura ao longo de toda a face interna do membro inferior direito, resultante de transposição de vasos;
o) cicatriz no membro superior esquerdo resultante de abordagem cirúrgica, para abordagem vascular, ao longo da face interna do todo o membro;
p) sequelas de “by pass” vascular;
q) sequelas de colostomia;
r) sequelas de cistostomia;
s) cicatriz cirúrgica deformante, ao longo da linha branca do abdómen, resultante de 3 abordagens cirúrgicas;
t) necessidade de apoio externo, com um par de canadianas, na locomoção e na marcha;
u) impossibilidade em se deslocar por longas caminhadas e dificuldade em subir e em descer escadas;
v) impossibilidade em executar todas as tarefas que impliquem o uso dos membros inferiores com destreza;
x) dores ao longo de todo o membro inferior esquerdo;
z) necessidade do auxílio de uma terceira pessoa para determinados gestos da sua vida quotidiana: cortar as unhas dos pés, tomar banho, subir e descer escadas, e outras;
aa) síndrome ansioso-depressivo;
bb) manifestação de desinteresse pela vida social e tendências para o isolamento;
cc) crises de choro fácil desânimo perante a vida;
dd) quadro clínico do foro psiquiátrico;
ee) necessidade de acompanhamento permanente por médico da especialidade de Psiquiatria;
ff) necessidade de recorrer a medicação do foro psiquiátrico, nomeadamente com ansiolíticos e anti-depressivos (Bromalex x 1,50 e Zoloft SOO) (128);
87. Antes do sinistro, o A. nunca havia sofrido qualquer outro acidente (129);
88. Os factos descritos em 85. causaram ao A. desgosto (130);
89. Devido à impotência sexual de que ficou portador, o A. passou a ser acometido de um sentimento de ciúme em relação à sua mulher, o que se traduz em discussões (131, 132 e 159);
90. As lesões sofridas pelo A. e as sequelas delas resultantes determinaram um período de doença com Incapacidade Temporária Absoluta Geral de 241 dias e com Incapacidade Temporária Absoluta Profissional de 980 dias (133 a 135);
91. As lesões sofridas pelo A. e as sequelas delas resultantes determinaram para o A. uma Incapacidade Total e Permanente para o exercício da sua actividade profissional habitual e para o exercício de qualquer outra actividade profissional dentro da sua área de preparação técnico-profissional (136);
92. No exercício da sua actividade profissional (conforme indicado em 10), o A. auferia o ordenado líquido médio de € 415,00 (137);
93. Desde a data do acidente até ao presente data, a entidade patronal do A. nada mais lhe pagou, a título de ordenados, subsídios de alimentação ou quaisquer outras quantias (138);
94. Antes do acidente, o A. auxiliava o seu pai no desempenho da actividade deste, com fins lucrativos, de armazenamento e venda de materiais de limpeza e de beleza, e de materiais escolares. A partir do acidente, o A. não mais auxiliou, nem mais auxiliará, o seu pai na actividade desenvolvida por este (139 e 144);
95. Se não fosse o acidente, o A. continuaria a trabalhar até aos 65 anos (146);
96. Como consequência directa e necessária do acidente, o A. efectuou as seguintes despesas: consultas médicas, € 500,00;taxas moderadoras, € 98,19; medicamentos, € 152,92;ecografias, € 6,48;deslocações, € 779,86 (147);
97. Como consequência directa e necessária do acidente, as peças de vestuário que o A. trazia, no valor de € 100,00, ficaram inutilizadas (148);
97. O A. não se encontra completamente curado, necessitando de, no futuro: usar um par de canadianas (cuja duração é inferior a 1 ano) como auxiliar de locomoção; receber tratamentos à base de “varfine” (hipo-coagulante sanguíneo); usar “Caverject” no pénis, por auto-injecção (injecção peniana), numa tentativa de despertar erecção sexual; se submeter a consultas periódicas de controle do seu sangue; se submeter a intervenções cirúrgicas com anestesia geral, internamentos hospitalares, consultas médicas, análises clínicas, exames radiológicos, medicamentos, taxas moderadoras, transportes, refeições, consultas e tratamentos das especialidades de Urologia e de Cirurgia Vascular; se submeter a consultas e tratamentos do foro psicológico e psiquiátrico, nomeadamente em relação ao seu estado de impotência sexual; ingerir medicamentos e de tomar injecções penianas relacionadas com o seu estado de total impotência sexual; efectuar consultas e tratamentos quinzenais para dilatação e desobstrução do seu canal uretral; recorrer a tratamentos de fisioterapia, nomeadamente para desentorpecimento e para refortalecimento dos seus membros inferiores e para tratamento à rigidez da região tibio-társica do seu membro inferior esquerdo; suportar as despesas com uma terceira pessoa para o desempenho de tarefas pessoais e diárias, tais como cortar as unhas dos pés, locomover-se, tomar banho, e outras (149);
98. Como consequência das lesões sofridas e das sequelas delas resultantes, o A. ficou impossibilitado de conduzir um veículo com comandos convencionais (de pé), necessitando, por isso, de adquirir um veículo automóvel com comandos especiais (de mão), cujo valor ascende a não menos de € 20.000,00 (gama média) (150 a 152);
99. Como consequência das lesões sofridas e das sequelas delas resultantes, o A. sente dificuldade em deslocar-se numa casa com escadas, sem rampas internas, sem portas interiores e exteriores de abertura e fecho automático, e sem casas de banho adaptadas à sua condição física (154 a 156);
100. Face à impossibilidade de obter qualquer relacionamento sexual com o A. AA, a A. BB passou a ser acometida de permanente desgosto, apreensão pelo seu futuro, angústia, insatisfação, irritabilidade fácil e revolta (158);
101. A A. BB queria ter mais um filho do A. AA, o que, em face da condição física deste, será impossível de ocorrer como consequência de relacionamento sexual entre ambos, mas não através de métodos clínicos por meio de extracção de espermatozóides (160 e 161);
102. Em cumprimento do contrato de seguro identificado em 15, a interveniente Liberty Seguros, SA, despendeu com o A. AA até 9 de Janeiro de 2007, a quantia de € 124.504,95 assim discriminada: € 94.199,10, a título de assistência hospitalar, medicamentosa e honorários médicos;€ 324,01, a título de transportes;€ 29.981,84, a título de incapacidades (162 e 163).

II.B. De Direito

II.B.1. São as seguintes as questões objecto dos recursos.

a) valor da indemnização pelos danos patrimoniais do A. relacionados com a perda de capacidade de trabalho;
b) rectificação do acórdão quanto à dedução das quantias pagas pela Liberty
c); valor da indemnização pelos danos não patrimoniais do A.
d); Data a partir da qual são devidos juros pelos referidos danos;
e) Direito da A. a ser indemnizada por danos não patrimoniais
f) valor da indemnização pelos danos desta.


II.B.2. Danos patrimoniais da A. e valor fixado

Na presente acção, os Autores, demandaram as RR. em virtude de, todos eles, terem de responder pelos danos por aqueles sofridos, em consequência do acidente de viação causado por culpa do condutor do veículo SQ.

Estamos, pois, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, por factos ilícitos.

Sobre a obrigação de indemnizar impõem-se algumas considerações prévias.

Para o surgimento da responsabilidade civil devem verificar-se determinados pressupostos.

Segundo o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, são elementos constitutivos da responsabilidade civil: o facto; a imputação do facto ao lesante; o dano; a ilicitude; o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

É necessário, desde logo, que haja um facto voluntário do agente (…), que o facto do agente seja ilícito (…), que haja um nexo de imputação do facto ao lesante (…), e que, à violação do direito subjectivo ou da lei, sobrevenha um dano (...) Por último, exige a lei que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima" (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9.ª edição, Almedina, Coimbra, pp. 543-544; idem, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, 4.ª edição, revista e actualizada, com a colaboração de M. HENRIQUE MESQUITA, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, volume I, p. 471).

Facto voluntário significa, aqui, “um facto dominável ou controlável pela vontade" (ANTUNES VARELA, ob. cit., p. 545).

A ilicitude pode revestir duas modalidades. Pode traduzir-se na violação do direito subjectivo de outrem quando reprovada pela ordem jurídica, e pode consistir também na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios.

Assim acontece, por exemplo, com as normas que tutelando certos interesses públicos, visam ao mesmo tempo proteger determinados interesses particulares: (…) se um automobilista viola as regras de trânsito e, com isso, provoca um acidente, além de sofrer a cominação de uma multa ou uma sanção de outro tipo, terá de indemnizar os danos a que der causa" (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, ob. cit. p. 472).

O dano pode ser patrimonial ou não patrimonial, conforme seja ou não susceptível de avaliação pecuniária.

No que respeita ao nexo de causalidade que deve existir entre o facto e o dano, refere a lei que "a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão” (artigo 563.º do Código Civil).

O Supremo Tribunal de Justiça tem perfilhado o entendimento de que, segundo a doutrina da causalidade adequada, consignada no art.º 563.º do Código Civil, para que um facto seja causa adequada de um dano, é necessário, antes de mais, que, no plano naturalístico, ele seja condição sem a qual o dano não se teria verificado e depois que, em abstracto ou em geral, seja causa adequada do mesmo, sendo que se o nexo de causalidade, no plano naturalístico, constitui matéria de facto, não sindicável pelo Supremo, já o mesmo vem a constituir, no plano geral ou abstracto, matéria de direito, por respeitar à interpretação e aplicação do art.º 563.º do Código Civil, e por isso, sindicável em recurso de revista (cf., v. g., o ac. de 2.3.95, no BMJ n.º 445, pp. 445 e ss.).

Quanto ao nexo de imputação do facto ao lesante consiste o mesmo em o agente ter actuado com culpa.

"Não basta reconhecer que ele procedeu objectivamente mal. É preciso, nos termos do artigo 483.º, que a violação ilícita tenha sido praticada com dolo ou mera culpa.
Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo." (ANTUNES VARELA, Das Obrigações…, vol. I, citado, p. 582).

Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei (n.º 2 do artigo 483.º).

Em princípio é, assim, necessário que o facto seja ilícito, ou seja, violador de direitos subjectivos ou interesses alheios tutelados por uma disposição legal, e culposo, isto é, passível de uma censura ético-jurídica ao sujeito lesante.

A regra base no nosso ordenamento é a concepção da responsabilidade subjectiva, ou seja, baseada na culpa.

Isto, quer se trate de responsabilidade contratual, originada pela violação de um direito de crédito ou obrigação em sentido técnico, quer se trate de responsabilidade extracontratual, resultante da violação de um dever geral de abstenção contraposto a um direito absoluto (direito real, direito de personalidade).

A diferença essencial no que respeita à culpa consiste na presunção de culpa existente na responsabilidade contratual (artigo 799.º do C. Civil) enquanto que na responsabilidade aquiliana é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa (artigo 487.º, n.º 1, do C. Civil).

Ora, "sendo a culpa do lesante um elemento constitutivo do direito à indemnização, incumbe ao lesado, como credor, fazer prova dela, nos termos gerais da repartição legal do ónus probatório (art. 342.º,n.º 1)" (ANTUNES VARELA, Das Obrigações…, op. e vol. cit., p. 611).

Finalmente, a indemnização deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, fixando-se a indemnização em dinheiro, sempre que não seja possível a reconstituição natural, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (art.º 566.º, do Código Civil).

Vamos remeter-nos de imediato para a primeira questão colocada relativa á indemnização dom A. pelo dano patrimonial resultante da adveniente incapacidade permanente e total para o trabalho.

A Relação arbitrou a este título uma indemnização de € 140.000.

Como é sabido, o A. pugna pela alteração, pretendendo o aumento desta indemnização para 460.825,18.

O Autor ficou, devido às lesões sofridas e às sequelas correspondentes, afectado de uma incapacidade parcial permanente de 100%.

O ressarcimento dos danos futuros, por cálculo imediato, como é o caso, depende da sua previsibilidade e determinabilidade (artigo 564.º, n.º 2, do Código Civil).

Assim, na fixação da indemnização devem ser atendidos os danos futuros – sejam danos emergentes, sejam lucros cessantes – desde que previsíveis.

No caso de os danos futuros não serem imediatamente determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior (artigo 564.º, n.º 2, 2ª parte, do Código Civil).

Os danos futuros previsíveis, a que a lei se reporta, são essencialmente os certos ou suficientemente prováveis, como é o caso, por exemplo, da perda ou diminuição da capacidade produtiva de quem trabalha e, consequentemente, de auferir o rendimento inerente, por virtude de lesão corporal.

Ora, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que se verificaria se não tivesse ocorrido o evento que obriga à reparação, a fixar em dinheiro, no caso de inviabilidade de reconstituição em espécie (artigos 562.º e 566.º, n.º 1, do Código Civil).

A indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que ele teria então se não tivesse ocorrido o dano, e, não podendo ser determinado o seu valor exacto, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (artigo 566.º, n.os 2 e 3, do Código Civil).

A incapacidade permanente é susceptível de afectar e diminuir a potencialidade de ganho por via da perda ou diminuição da remuneração ou implicar para o lesado um esforço acrescido para manter os mesmos níveis de ganho ou exercer as várias tarefas e actividades gerais quotidianas.

Não se trata de danos morais, como afirmam os Acs. do STJ de 12.5.94 (CJSTJ, Ano II, Tomo. II, p. 99) e de 28.9.95, (BMJ, n.º 449.º, p. 347), mas de danos materiais indirectos, pois que impedem ou limitam o exercício de determinadas actividades (Ac. RC, de 14.10.97, CJ, ano XXII, tomo IV, p. 36; Ac. STJ, de 5.2.87, BMJ, 364.º, p. 819).

É que, como se pode ler no Ac. do STJ de 9.7.1998, Proc. n.º 52/98-2.ª (Sumários dos Acórdãos, n.º 23, p. 52): «Uma incapacidade permanente e parcial reflecte-se de duas formas alternativas no património do lesado: ou provoca uma diminuição efectiva de remuneração porque o lesado produz menos e, por via disso, recebe menos; ou não há qualquer diminuição sensível de remuneração do lesado, mas este tem efectuar um esforço sobrecarregado para manter os mesmos níveis de produtividade que tinha antes da lesão.
No primeiro caso há uma diminuição visível e palpável de proventos; no segundo caso um desgaste anormal do lesado como ser produtivo que, no futuro, se irá reflectir na sua condição de máquina produtiva.(…) De qualquer modo (…) sempre danos patrimoniais efectivos que nada têm a ver com o dano moral que a incapacidade permanente também provoca» (v., também, os Acórdãos de 7.2.2002, proc. 3985/01-2.ª, de 8.1.2004, proc. 4083-7.ª e de 6.7.2004, proc. 2084/04-2.ª, in Sumários dos Acórdãos, n.º 58, pp.19 e 20, n.º 77, p. 8 e n.º 83, p. 25, respectivamente).

Ora, “[o] cálculo da indemnização pela incapacidade permanente, quer seja o dano entendido como de natureza patrimonial quer seja entendido como de natureza não patrimonial, e dentro desta categoria do dano com sequelas incapacitantes, enquanto danos futuros previsíveis (Art. 564.º, n.os 1 e 2 CC), faz-se por recurso à equidade (Art. 566.º, n.º 3), quer quanto à perda da capacidade de trabalho profissional e de trabalho em geral quer quanto ao dano fisiológico ou funcional.“

Como é sabido, a jurisprudência dominante tem-se firmado no sentido de a indemnização por danos patrimoniais futuros dever ser calculada em atenção ao tempo provável de vida do lesado, por forma a representar um capital que, com os rendimentos gerados e com a participação do próprio capital, compense, até ao esgotamento, o lesado dos ganhos do trabalho que, durante esse tempo, perdeu (v. acórdãos de 13.10.92, BMJ n.º 420, p. 514, de 31.3.93, BMJ n.º 425, p. 544, de 8.6.93, CJSTJ, ano I, tomo II, p. 138, de 11.10.94, CJSTJ, ano II, tomo II, p. 86 de 28.09.95, CJSTJ, ano III, tomo III, p. 36, de 12.6.97, proc. 95/97-2.ª, Sumários dos Acórdãos n.º 12, pp. 41 e 42, de 6.7.2000, proc. 1861/00, Sumários dos Acórdãos n.º 43, p. 20 e de 25.06.2002, CJSTJ, ano X, tomo II, p. 128).

Subjaz a esta orientação o propósito de assegurar ao lesado o rendimento mensal perdido, compensador da sua incapacidade para o trabalho, encontrando para tanto um capital produtor de rendimento que cubra a diferença entre a situação anterior e a actual, durante todo o período de vida activa.

A partir do acórdão do STJ de 9.1.79, BMJ, 283.º, p. 260 (v. ainda os acórdãos de 18.1.79, de 18.5.81 e de 8.5.86, in respectivamente, BMJ, n.º 283, p. 275, n.º 307, p. 242 e n.º 357, p. 396) a nossa jurisprudência tem vindo a acolher, sem divergências, o entendimento de que a indemnização a pagar ao lesado deve “representar um capital que se extinga no fim da vida activa e seja susceptível de garantir, durante esta, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho”, assim se evitando o enriquecimento injustificado do lesado, mediante a acumulação do próprio capital e os respectivos rendimentos.

Porém, já no que toca aos critérios para fixação do referido capital se patenteiam divergências jurisprudenciais, optando-se nuns casos por fórmulas ou critérios concretos mais complexos (v. g. a invocada no Ac. STJ de 4.2.93, CJSTJ, ano I, tomo I, p. 130) e noutros por métodos mais simplificados (v.g. SOUSA DINIS – “Dano Corporal em Acidentes de Viação”, CJSTJ, ano V, tomo II, p. 15 e “Dano Corporal em Acidentes de Viação, CJSTJ, ano IX, tomo I, p. 5 e ss. e BMJ n.º 357, pp. 396 e 416).

“Em todas entram dados fixos – o montante periódico dos rendimentos, o termo da vida activa (65 anos) e o grau de incapacidade – e dados variáveis, como o dispêndio com necessidades próprias, a depreciação da moeda e a taxa de rendimento do capital (a qual vem descendo na medida da descida das taxas de juro do mercado – 9% no Ac. STJ de 4/2/93, citado, p. 128; 7% no Ac. STJ de 5/5/94, CJSTJ, ano II, tomo II, p. 86; hoje, dada a baixa remuneração dos produtos financeiros, cremos que a taxa de 3%, proposta pelo recorrente, será uma boa base de trabalho) e a percentagem a subtrair em razão da idade do lesado e em proporção directa com esta – a jurisprudência francesa costuma deduzir 1/4 ou mesmo 1/3 na capitalização do rendimento; entre nós no Ac. RP de 20/5/82 descontou-se 20%” (cf. CJ, ano VII, tomo II, p. 212).

E, fazendo-se ainda um outro desconto para evitar o enriquecimento injustificado, resultante do recebimento antecipado do que receberia anualmente.

Convirá aqui esclarecer-se que não deve atender-se apenas ao limite da vida activa, posto que, atingido este, isso não significa que a pessoa não continue a trabalhar ou não continue a viver por muitos anos, tendo, nessa medida, direito a perceber um rendimento como se tivesse trabalhado até aquela idade normal para a reforma. E que a vida média é, hoje, pelo menos para os homens, de cerca de 73 anos (cf. Acórdão deste Tribunal de 19.10.2004, proc. 2897/04-6.ª, in Boletim Interno, disponível em www.stj.pt).

Sublinhar-se-á, porque se trata de factos notórios que relevam da experiência da vida, que, em tese geral, as perdas salariais resultantes de acidentes de viação continuarão a ter reflexos, uma vez concluída a vida activa, com a passagem à “reforma”, em consequência da sua antecipação e/ou menor valor da respectiva pensão, se comparada com aquela a que teria direito se as expectativas de progressão na carreira não tivessem sido abruptamente interrompidas.

Mas as referidas fórmulas não se conformam com a própria realidade das coisas, avessa a operações matemáticas, certo que não é possível determinar com precisão o tempo de vida útil, a evolução dos rendimentos, da taxa de juro ou do custo de vida.

Acresce que não existe uma relação proporcional entre a incapacidade funcional e o vencimento auferido pelo exercício profissional, em termos de se poder afirmar que ocorre sempre uma diminuição dos proventos, na medida exactamente proporcional à da incapacidade funcional em causa.

Assim, nesse caso, as mencionadas tabelas só podem ser utilizadas como meramente orientadoras e explicativas do juízo de equidade a que a lei se reporta. Os tribunais, que não podem deixar de decidir, têm que fazer a justiça possível aqui e agora, julgando segundo a equidade, quando não é possível apurar o valor exacto dos danos.” (ac. STJ de 01.02.00 – Sumários dos Acórdãos, n.º 38, p. 9; ver ainda os acórdãos de 10.02.98 e de 25.06.02, in CJSTJ, ano VI, tomo I, p. 66 e ano X, tomo II, p. 128, respectivamente).

A partir dos pertinentes elementos de facto, independentemente do seu desenvolvimento no quadro das referidas fórmulas de cariz instrumental, deve calcular-se o montante da indemnização em termos de equidade, no quadro de juízos de verosimilhança e de probabilidade, tendo em conta o curso normal das coisas e as particulares circunstâncias do caso (cf. Ac. do STJ de 10.02.98, já citado).

Devem, pois, utilizar-se juízos lógicos de probabilidade ou de verosimilhança, segundo o princípio id quod plerumque accidit, ou seja, segundo o que é normal acontecer, com a equidade a impor a correcção, em regra por defeito, dos valores resultantes do cálculo baseado nas referidas fórmulas de cariz instrumental.

No fundo, a indemnização por dano patrimonial futuro deve corresponder à quantificação da vantagem que, segundo o curso normal das coisas, ou de harmonia com as circunstâncias especiais do caso, o lesado teria obtido não fora a acção e ou a omissão lesiva em causa.

E na segunda das supracitadas hipóteses, em que a afectação da pessoa do ponto de vista funcional não se traduz em perda de rendimento de trabalho, deve todavia relevar o designado dano biológico, porque determinante de consequências negativas a nível da actividade geral do lesado.

O referido dano biológico, de cariz patrimonial, justifica, com efeito, a indemnização, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial. Mas as regras de cálculo da indemnização por via das mencionadas tabelas não se ajustam, como é natural, a essa situação.

No caso, ficou provado que o autor auferia da sua actividade profissional a remuneração de 415 euros/mês, (14 vezes ao ano), actividade esta que poderia exercer até à idade da reforma (65 anos).

Mas a diminuição da capacidade de ganho é apenas um dos elementos da diminuição da capacidade de trabalho, conceito base da indemnização e que compreende o trabalho doméstico, pessoal e social.

Se se adoptasse a fórmula proposta por Sousa Dinis no Parecer citado, tomando como remuneração base a quantia de 415 euros/mês, as respectivas contas levar-nos iam às seguintes conclusões:

– O rendimento anual a considerar como base do cálculo é o de € 5.810 (415 x 14);
– Dado o coeficiente de incapacidade de 100%, o rendimento anual perdido pelo autor é esse mesmo valor,
– O capital para obter este rendimento, à taxa anual de 3%, seria o de € 193.666 (5810 x 100: 3);
– Descontando 20%, desconto adequado à idade do autor e a sua idade de reforma (193.666 x 20% = 38.733), o valor encontrado é o de € 154.933 (193.666 – 38.733).
– Descontando agora 10% relativo ao recebimento antecipado (valor que reputamos mais adequado, dada a actual rigidez das aplicações de capital em valores muito baixos), encontraremos o valor final de 139.440 euros.

Este valor, arredondado (140.000 euros), também em termos de estrita lógica de equidade, se nos afigura adequado.

A tal quantia terá, no entanto que acrescer um valor correspondente à maior dificuldade para o A, em exercer as tarefas da sua vida quotidiana activa até ao fim desta (ou seja, até ao termo médio de 73 anos, que é o limite previsível).

Neste caso o recurso à equidade é absolutamente necessário e parece-nos proporcionado o valor de € 30.000, a este título.

Consequentemente, entende-se dever corrigir-se o valor atribuído a título de danos futuros resultantes da IP para 170.000 euros.

II.B.3. Valor a pagar a esse título ao A.

Tem razão a recorrente seguradora no que concerne ao erro de contas de que padece a decisão recorrida.

De facto, tendo a Relação alterado apenas o valor da indemnização de € 115.000 para € 140.000, a consequência deveria ser o aumento da indemnização, a título de danos patrimoniais líquidos, em € 25.000.

Ou seja, de € 98.674.,82 para € 123.674,82.

A Relação confundiu, induzida pelos recorrentes, a quantia de € 85.018,16 correspondente ao valor a receber pelo A., a título de indemnização pela IP, após dedução da quantia paga pela Liberty, como indemnização pelas incapacidades (€ 29.981,84), com a quantia a deduzir do referido montante indemnizatório fixado (€ 115.000).

E como na sentença nem sequer se procedeu a essa autonomização, havendo que ser deduzida da totalidade da indemnização por danos patrimoniais as quantias pagas pela Liberty (31.519, 29) haverá que proceder-se à referida rectificação, nos termos do artigo 249.º do Código Civil.

O que implica que o valor a pagar pela CC, como indemnização pelos danos patrimoniais já liquidados passe a ser agora de 153.674,82.

II.B.4. Danos não patrimoniais do A.

Em sede de matéria de facto, apurou-se que o autor:

– Como consequência directa e necessária do acidente, sofreu traumatismo da região da bacia, esmagamento da região da bacia, hemorragia da região do hipogastro, hemorragia da região púbica, fractura dos ramos púbicos superior e inferior, à esquerda, com desvio, rotura vascular na raiz da coxa, hematúria por rotura da uretra prostática, choque hipovolémico, pé esquerdo pálido, impotência funcional, por esquemia aguda do membro inferior esquerdo, laceração perineal, rotura da parede anterior do recto, lesão do nervo ciático poplíteo externo esquerdo, rotura da bexiga, escoriações, feridas e hematomas espalhados pelo corpo todo.
– Em função destas lesões foi logo submetido a uma intervenção cirúrgica de 8 horas, com anestesia geral.
– Ficou em coma provocado por oito dias.
– Manteve-se internado em diferentes unidades hospitalares por mais de 4 meses.
– Em 6.3 foi sujeito a uma segunda intervenção cirúrgica, também com anestesia geral.
– Tendo tido alta hospitalar, manteve-se sempre algaliado até 15/5.
– Durante a situação de coma provocado e enquanto permaneceu no hospital de Viana do Castelo esteve sempre na posição de deitado de costas sem se poder virar.
– Apenas em Maio, tendo sido sujeito a uma terceira intervenção cirúrgica, novamente com anestesia geral para a reconstrução do transito intestinal, encerrou a colostomia.
– Novas hospitalizações se seguiram, com curtos períodos de internamento decorrentes de complicações várias, que lhe determinaram, em 1.7.02, 8.7.02 e 18.7.02, três novas intervenções cirúrgicas.
– E assim continuou com tratamentos e curtos e sucessivos internamentos, até que, em 20.9.02, foi sujeito à sétima intervenção cirúrgica.
– Manteve-se essencialmente o mesmo quadro de complicações que lhe determinaram uma oitava intervenção cirúrgica em 13.12.2002.
– Entretanto, quando lhe foi possível levantar-se, passou a locomover-se sempre com o auxílio de canadianas, o que fará pelo resto dos seus dias.
– Sofreu por várias vezes risco de vida por embolia e teve e continua a ter dores.
– Das sequelas que o A apresenta, destacam-se as dores intensas, a impotência sexual absoluta e definitiva, incontinência urinária, imperiosidade de fezes com períodos de incontinência, cicatrizes diversas algumas das quais deformantes, limitação de mobilidade do joelho esquerdo, necessidade de utilização de canadianas, necessidade de auxilio de terceira pessoa para actos vários, como tomar banho, cortar unhas, descer e subir escadas, tudo isto num quadro clínico de foro psiquiátrico, com síndrome ansioso depressivo e recurso necessário a medicação adequada.
– No momento do acidente o autor sofreu um susto e temeu pela sua vida.
– Todas as sequelas com que ficou são motivo de desgosto e o facto de se ter tornado incapaz de se relacionar sexualmente com a sua mulher desperta-lhe um sentimento de ciúme e motiva discussões entre os cônjuges.

Todos estes sofrimentos e transtornos, por merecerem a tutela do direito (art. 496.º, n.º 1 do CC), são indemnizáveis.

O chamado “quantum doloris” não é mensurável, mas há na listagem da matéria de facto dados bastantes para concluir que foi elevado. E o prejuízo estético também é elemento que integra o dano não patrimonial, da mesma forma que o prejuízo de afirmação pessoal (alegria de viver), o desgosto do lesado de se ver na situação em que se encontra, e a clausura hospitalar (SOUSA DINIS, “Dano Corporal em Acidentes de Viação”, CJSTJ, ano IX, tomo I, p. 7).

Os danos desta natureza não são susceptíveis de verdadeira e própria indemnização (quer pela via da reconstituição natural quer por via da atribuição do equivalente em dinheiro), mas apenas de compensação (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Almedina, Coimbra, 9.ª edição, 1.º vol., p. 630).

A lei – artigos 562.º e 496.º CC – manda atender sempre a um critério de equidade, com base na ponderação dos factores previstos no art. 494.º – grau de culpabilidade do agente, situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso.

O juízo equitativo não pode deixar de ter em consideração o sistema económico – poder aquisitivo da moeda e características e condições gerais da economia – em que a compensação vai operar, sem esquecer que nos movemos em campo do maior relativismo e subjectividade.

Ora, o autor pede a este título a quantia de € 250.000,00, tendo o acórdão arbitrado quantia pouco inferior – € 200.000,00.

Entendeu-se no acórdão recorrido que todas as sequelas têm de ser situadas e valoradas ao nível de uma pessoa de 30 anos, do sexo masculino, que até ao acidente era saudável e que deixou, definitivamente, de poder trabalhar, de poder executar com facilidade um sem número de tarefas comuns, de fruir de uma forma normal a vida e até de se realizar ao nível do casamento.

Além disso, desde o acidente, o A, tem acumulado um sem número de experiências, assustadoras, traumatizantes, dolorosas, com risco de vida, o que é motivo de desgosto, de perturbação da sua vida familiar e de desenvolvimento de desequilíbrio psico-somático.

A Relação fez, a nosso ver, uma adequada ponderação deste quadro e aplicou devidamente a equidade.

Temos por razoável chamar à colação os valores que actualmente se atribuem pela perda do direito à vida (50.000 a 60.000 euros), para sem comparar reconhecer que o A. passou já quase 7 anos e meio a sofrer de um forma muito intensa e tem ainda uma longa vida à sua frente para continuar a suportar as dores, o sofrimento, a sensação de dependência e de incapacidade.

Um tal quadro justifica o valor atribuído, que por ser justo se deve manter.

II.B.5. Data a partir da qual se vencem juros sobre esse montante

Sustentam os autores/Recorrentes que os juros de mora, incidentes sobre a compensação por danos não patrimoniais por eles sofridos, são devidos desde a citação.

Temos por correcta a decisão da Relação, de resto, devidamente fundada na sentença.

Na sentença sustentou-se, como fez questão de o reafirmar o acórdão da Relação que:

“(…) entendemos que, tendo os danos não patrimoniais sido calculados segundo um juízo actualista de equidade (conforme o art. 496º-3 CC), os respectivos juros de mora se aplicam apenas a partir da data em que foram fixados, e não desde a citação como sucede em relação aos danos patrimoniais (AcsRL 26Mar92, CJ t. 2º p. 152, RC 22Abr93, CJ t. 2º p. 69, STJ 10Nov93, Sub Judice-Novos Estilos 7º p. 206, RC 2Dez93, CJ t. 5º p. 63, STJ 2Nov95, CJ-S t. 3º p. 220, RL 3Out96, BMJ 460º p. 790 e RP 15Jan97, BMJ 463º p. 638) – aliás, esta solução impõe-se até pelas dificuldades que, pelo facto de não estarmos perante valores matematicamente exactos, se levantam à quantificação de um dano relativo a bens imateriais que teve lugar no passado, conhecida que é a grande evolução valorativa dos danos de natureza não patrimonial. Por isso, a quantia final equitativamente arbitrada quanto a estes danos foi antes obtida através de um juízo de ponderação do valor crescente que os danos desta índole cada vez mais reclamam [veja-se que, a não se aceitar esta tese, o montante destinado a ressarcir tais danos teria forçosamente que ser inferior ao atrás fixado, dado que, nessa hipótese, teria o Tribunal que encontrar o respectivo valor à data da citação; caso contrário (ou seja, se a fixação da indemnização por tais danos se reportasse a uma data posterior à citação e, apesar disso, os juros de mora fossem calculados desde a citação), haveria certamente duplicação de valores, solução de todo proibida (“Assento” STJ 4/02 cit; a propósito, cf. AcsRP 8Mai96, CJ t. 3º p. 225 e STJ 23Abr98, CJ-S t. 2º p. 49)]. Desta forma, os juros de mora dos danos não patrimoniais serão contabilizados desde a data mais recente em que foram avaliados – ou seja, desde o encerramento da audiência (que coincide genericamente com a prolação desta decisão) – até integral pagamento.”

O que significa que os danos não patrimoniais foram valorados com referência à data em que foi proferida a sentença recorrida, tendo sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do art.º 566.º, n.º 2 do C. Civil, não havendo, por isso, qualquer fundamento legal para os juros de mora respeitantes a tais danos serem contados a partir da data da citação, como se disse no acórdão da Relação.

Respeitado foi, indiscutivelmente o acórdão uniformizador n.º 4/2002 (publicado no D.R. I Série-A, de 27 de Junho de 2002 e que fixou a doutrina de que “[s]empre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º. 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente) e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.”

Também aqui não merece a decisão recorrida qualquer censura.

II.B.6. Danos não patrimoniais da Autora

O entendimento clássico a esse respeito é o de que só tem direito a indemnização por danos não patrimoniais o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com a violação da disposição legal, afirmando--se que os danos de natureza não patrimonial a ressarcir são apenas os sofridos pelo próprio ofendido, por serem direitos de carácter estritamente pessoal. – Ac. do STJ de 2.11.95, in www.dgsi.pt.

Argumenta-se, em síntese, que só o titular do direito violado tem direito à indemnização (art. 496.º, n.º 1, do CC), pelo que não estão incluídos na obrigação de indemnização os danos sofridos directa ou reflexamente por terceiros, salvo no caso de morte, sublinhando a natureza excepcional da norma do n.º 2 do art.º 496.º do Código Civil. Ora, dada a impossibilidade de interpretação analógica das normas excepcionais e a impossibilidade de interpretação extensiva, por o legislador apenas ter querido abranger as pessoas indicadas no preceito, como decorre do argumento histórico, a exclusão impõe-se (Neste sentido, DARIO DE ALMEIDA, Manual, p. 165, ANTUNES VARELA, RLJ, ano 103.º, p. 250, nota 1, Revista dos Tribunais, ano 82.º, p. 409; Ac. da RP de 4.4.91, CJ, ano XVI, tomo I, p. 255; Ac. da RC de 20.9.94, CJ, ano XIX, tomo IV, p. 35, Ac. da RC de 26.10.93, CJ, ano XVIII, tomo IV, p. 69, Ac. da RL de 6.5.99, CJ, ano XXIV, tomo III, p. 88, Acs. do STJ de 13.1.70, BMJ n.º 193, p. 349 e de 21.3.2000, CJ, ano VIII, tomo I, p.138).

Contra tal posição clássica, VAZ SERRA (RLJ, ano 104.º, p. 14), RIBEIRO DE FARIA (Direito das Obrigações, vol. 1.º, p. 491, nota 2) AMÉRICO MARCELINO (Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 6.ª ed., p. 380) ABRANTES GERALDES, Temas da Responsabilidade Civil, II, pp. 9-90, e em “Ressarcibilidade dos danos não patrimoniais de terceiro em caso de lesão corporal”, em Estudos em Homenagem ao Prof Dr Inocêncio Galvão Teles, IV, 263 e ss, e o CONS. SOUSA DINIS (“Dano Corporal em acidentes de viação”, CJ, ano IX, tomo I, pp.11 e 12) sustentam a possibilidade de uma interpretação diversa.

Justifica-se que se faça, à semelhança do que fez o acórdão recorrido, apelo à argumentação aduzida por VAZ SERRA, em anotação ao Ac. do STJ de 13.1.70, para justificar a possibilidade desta interpretação:

“Ora, o dano não patrimonial pode ser causado a parentes do lesado imediato, não somente no caso de morte deste, mas também em casos diversos desse e, pode ser em tais casos tão justificado o direito de reparação do dano não patrimonial dos parentes como no de morte do lesado imediato.
Se, por ex., como na hipótese sobre que o acórdão incidiu, um filho menor é vítima de um acidente de viação, ficando aleijado gravemente, a dor assim causada a seus pais pode ser tão forte como o seria se o filho tivesse morrido em consequência do acidente ou mais forte ainda.
Seria, pois, incongruente a lei que, reconhecendo aos pais o direito a satisfação pela dor sofrida por eles no caso de morte do filho, lhes recusasse esse direito pela dor por eles sofrida no caso de lesão corporal ou da saúde do filho.”

“Para se admitir tal direito, bastará dar à al. 3 do n.º 1 do artigo 56.º do Código da Estrada uma interpretação extensiva, considerando-a aplicável também a outros casos em que os parentes nela indicados sejam causados danos em consequência da lesão do lesado imediato, ao menos quando esses danos forem tão graves como os que podem resultar da morte deste.”

E diz, ainda, o ilustre Mestre:

“A lei refere-se expressamente só ao caso de morte por ser aquele em que, em regra, maiores danos existem, não excluindo, portanto, que os parentes da vítima imediata tenham também direito de reparação dos seus danos em outros casos. A razão de ser é a mesma “(loc. cit., p.15).

Conclui VAZ SERRA que, embora sejam excepcionais as normas dos artigos 56.º, nº 1, al. 3 do CE/56, 495.º e 496.º, n.º 2, do Código Civil, elas são susceptíveis de interpretação extensiva e, por conseguinte, de extensão a outros casos compreendidos no espírito da lei (loc.cit., p.16).

E advoga que o reconhecimento do direito de indemnização por danos não patrimoniais de terceiros pode assentar directamente na norma do art.º 496.º, n.º 1, do Código Civil.

Vai na mesma linha AMÉRICO MARCELINO (obra citada, p. 380), ao afirmar que o “grande princípio do n.º 1 do artigo 496.º não põe outras reservas, outras condições que não seja o tratar-se de danos tais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. O que depois se diz nos n.os 2 e 3 do art. 496.º não afecta em nada este princípio. Trata-se de disposições para determinados circunstancialismos ou sobre o modo de encontrar indemnizatório.”

RIBEIRO DE FARIA (obra e local citado) defende a interpretação extensiva do artigo 496.º, n.º 2, do Código Civil, de modo a abarcar casos que caibam no seu espírito, considerando que o parente é ele mesmo pessoa lesada em juridicamente protegido e reputando equiparável a gravidade dos danos que resultem da morte com a dos que decorrem de outras lesões profundamente incapacitantes e que se reflectem nos familiares da vítima.

Por sua vez, o Desembargador ANTÓNIO GERALDES, analisou com profundidade esta temática, designadamente com contributos do direito comparado, concluindo (Temas…, p. 89-90):

“São ressarcíveis os danos não patrimoniais suportados por pessoas diversas daquela que é directamente atingida, designadamente quando fique gravemente prejudicada a sua relação com o lesado ou quando as lesões causem neste grave dependência ou perda de autonomia que interfira fortemente na esfera jurídica de terceiros;
Tal direito de indemnização deve ser circunscrito, por ora, às pessoas indicadas no n.º 2 do art.496.º do CC.“

Também SOUSA DINIS, no estudo citado, defende, a respeito da impotência sexual do marido, que não podendo fundar-se no art 496.º,n.º 2 essa ressarcibilidade, por este pressupor a morte da vítima, vai encontrá-lo na violação de um direito de personalidade, encarando a sexualidade como um desses direitos, acrescentando que “o débito conjugal tem tanta força que a sua recusa pode ser motivo de divórcio. Ao débito corresponde o direito do cônjuge ter com o outro um relacionamento sexual normal. Logo a sexualidade, pelos menos dentro do casamento, pode ser encarada como um direito de personalidade”.

Tratando especificamente a questão do núcleo essencial da comunhão conjugal diz JORGE DUARTE PINHEIRO (O Núcleo Intangível da Comunhão Conjugal, p. 737) que “o acto ilícito de terceiro que impossibilita uma pessoa casada de ter relações sexuais viola direitos de duas pessoas que são eficazes erga omnes: o direito à integridade física de que é titular a «vítima principal», e o direito de coabitação sexual, pertencente ao cônjuge da vítima de lesão corporal”, sendo que este é, como o primeiro, um dano directo (v., no mesmo sentido, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. IV, p. 258 e PEREIRA COELHO, Curso de Direito de Família, p. 356).

Em termos de jurisprudência, assinalaram-se no acórdão decisões em que, embora não a respeito concreto da lesão corporal de que resultou impotência sexual, mas, umas vezes, de lesões em menores que se traduzem em aleijões significativos (cfr Ac. do STJ de 25.11.98, relatado por Herculano Lima, BMJ 481.º, p. 470 e Ac. da RP de 23.3.06, proc. 0631053, in www.dgsi.pt), outras de publicações jornalísticas contendo insinuações referentes ao comportamento de mulher casada (Ac STJ 26.2.04, relatado por Araújo Barros, proc. 03B3898, in www.dgsi.pt), se admite o ressarcimento de danos de carácter não patrimonial de parentes próximos do lesado que não haja falecido em consequência da lesão.

Além disso, a específica situação considerada nos presentes autos – tutela dos danos não patrimoniais resultantes da privação do débito sexual na sociedade conjugal em consequência da impotência do cônjuge marido decorrente de acidente de viação – foi tratada nos acórdãos da RP de 26.6.03 (proc. 0333036, em que foi relator Gonçalo Silvano) e da RC de 25.5.04 (processo 3480/03, em que foi relator Jorge Arcanjo), ambos acessíveis em www.dgsi.pt, onde foi admitida essa tutela, na base de um ou outro destes entendimentos: pela interpretação extensiva do disposto no n.º 2 do art 496.º, ou recorrendo apenas ao n.º 1 do art 496.º, entendendo que a lesão em causa ofende directamente o direito à sexualidade, encarando este direito como um direito de personalidade.

E concluiu o acórdão recorrido, subscrevendo o que se diz no Ac. da RC de 26.02.04, atrás citado, “ser de rejeitar a doutrina clássica, eivada de uma lógica demasiado formal, sem atentar que o direito deve servir para a vida e a jurisprudência, que tem desempenhado um papel preponderante na reelaboração do direito da responsabilidade civil, designadamente no âmbito dos acidentes de viação, não pode deixar de utilizar todo o arsenal metodológico que possibilite adequar eficazmente o direito à realidade social dos tempos modernos, o que implica, no dizer do grande pensador do século XX, que foi MICHEL FOUCAULT, transformar o direito civil numa “ jurisdição de tipo sociológico“ (FRANÇOIS EWALD, Foucault, A Norma e o Direito, pp.153 e 154)”.

Não parecem existir obstáculos de natureza hermenêutica que impeçam uma tal interpretação, à luz dos critérios constantes do art.º 9.º do Código Civil.

Desde logo, por não haver fundamento bastante para se entender que a não adopção da posição sustentada por VAZ SERRA, na Comissão Revisora do Código Civil, em prol da ressarcibilidade dos danos dos familiares da vítima que não faleceu, significa, de forma inequívoca, o acolhimento da tese contrária.

Além disso, não parece dever interpretar-se restritivamente o n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil, por via do seu n.º 2.

Os argumentos aduzidos em defesa da interpretação mais aberta do direito de indemnização, nos casos como o relatado nos presentes autos, afiguram-se--nos ponderosos.

Esta tese foi ainda acolhida no acórdão deste STJ de 8.03.05, proferido no processo n.º 4486-04-6ª Secção, publicado em adenda ao livro de ABRANTES GERALDES, citado.

Pelas razões expostas, parece-nos ter sido bem decidido pelo acórdão recorrido reconhecer à Autora o direito à indemnização pelos danos não patrimoniais invocados, que são graves, dada a factualidade provada, uma vez que a sua qualidade de vida ficou profundamente afectada, os seus direitos conjugais amputados numa parte importante para uma mulher jovem e os seus projectos de ter mais filhos irremediavelmente comprometido.

Disse-se ainda no acórdão recorrido:

“Não se duvidará que a sexualidade – e não necessariamente dentro do casamento – integra a personalidade, constituindo um direito que emana da própria pessoa, e por assim ser, encontra acolhimento na protecção constitucional da pessoa humana, da sua personalidade e dignidade. Parafraseando CAPELO DE SOUSA, A Constituição e os direitos de personalidade, citado no acima referido Ac STJ de 26/2/04, “direitos de personalidade são todos aqueles direitos subjectivos, privados, absolutos, gerais, extra-patrimoniais, inatos, perpétuos, intransmissíveis, relativamente indisponíveis, tendo por objecto os bens e as manifestações interiores da pessoa humana, visando tutelar o integridade e o desenvolvimento físico e moral dos indivíduos e obrigando todos os sujeitos de direito a absterem-se de praticar ou de deixar de praticar actos que ilicitamente ofendam ou ameacem ofender a personalidade alheia (…)”.

Ora, o direito à sexualidade comunga destas características, não havendo motivo para o excluir dos direitos de personalidade.
Com uma particularidade: é que o direito à sexualidade, na sua complexidade, pode resultar ofendido, não na sua vertente física, enquanto lesão dos órgãos genitais que (por excelência) permitem o seu exercício (como sucedeu ao A AA), mas apenas na sua componente afectiva (como sucedeu à A BB), enquanto expressão privilegiada que é do afecto que liga duas pessoas (em principio de sexo diferente) que optaram por uma consistente e plena comunhão de vida; de tal modo que, basta que uma delas se veja lesada fisicamente no seu desempenho sexual, para que a outra, que mantém com ela uma comunhão de vida, se veja, pelo mesmo acto, directamente lesada no seu direito à sexualidade com aquela concreta pessoa. Pois que não se escamoteia que a lesão no direito à sexualidade de quem resulta atingido fisicamente no seu desempenho, porque não a pode exercer satisfatoriamente com quem quer que seja, é, obvia e naturalmente, muito mais grave do que a lesão do direito à sexualidade de quem a deixa de poder exercer, em maior ou menor grau, com o seu companheiro de vida.

É esta lesão da A BB – que, já se viu, é directa, porque concomitante com a sofrida pelo A AA– que está em causa ressarcir.

Mas não apenas essa.

É que a A ficou também lesada – e directamente, enquanto corolário da perspectiva atrás referida – com o facto de não poder, doravante, conceber, do seu marido, outro filho, tal como desejava, senão através de métodos clínicos, diferentes do normal, que é o relacionamento sexual entre pessoas de sexo diferente. Também este parece ser um dano suficientemente grave para merecer a tutela do direito.

Deve referir-se que a A BB – pese embora tenha utilizado uma acção autónoma – não trouxe aos autos muitos factos concretos que facilitem a fixação de indemnização relativamente aos danos em apreço.

Sabe-se apenas que à data do acidente tinha 25 anos, está casada com o A AA há cerca de sete, é casada catolicamente (sem que, no entanto, da factualidade alegada, se possa concluir se a opção pelo casamento católico representou, e representa, efectivamente, uma convicção religiosa suficientemente forte que conduza à rejeição de um possível divórcio, ou pelo menos, a um grande desconforto espiritual, perante tal hipótese) e que têm em comum uma filha. Sabe-se também, como atrás referido, que a tranquilidade da vida do casal tem resultado prejudicada pelos ciúmes do A em relação à A, e que esta, face à impossibilidade de obter qualquer relacionamento sexual com o A, passou a ser acometida de permanente desgosto, apreensão pelo seu futuro, angústia, insatisfação, irritabilidade fácil e revolta.

Com estes elementos, em sede de pura equidade – embora com o apoio que representa a fixação pela Relação do Porto, no acórdão já referido, de 25/5/04, embora especificamente para o dano da privação do debito sexual, do valor de 40.000,00 € – entende-se ressarcir a A dos acima referidos danos através do montante de € 50.000,00.”

A justificação do montante encontrado para este dano está feita de uma forma que não merece reparo, nada se nos oferecendo acrescentar.

III. Pelo exposto, acordam em conceder parcialmente a revista dos AA.e em negar a revista da Ré, alterando-se, em consequência, a decisão recorrida fixando-se em € 153.674,82 a quantia a pagar ao A. pela CC, a título de danos patrimoniais, mantendo-se, no mais, a decisão recorrida.

Custas dos recursos dos AA., aqui e nas instâncias, a suportar pelas partes, na proporção do respectivo decaimento.
Custas do recurso da R., a cargo desta.

Lisboa, 26 de Maio de 2009
Paulo Sá (relator)
Mário Cruz
Garcia Calejo