Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
132/13.5TBPTL.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: ERRO NA DECLARAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
PROIBIÇÃO DE PROVA
DOCUMENTO AUTÊNTICO
ESCRITURA PÚBLICA
FORÇA PROBATÓRIA
DESCRIÇÃO PREDIAL
REGISTO PREDIAL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 04/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / PROVA TESTEMUNHAL / CONVENÇÕES CONTRA O CONTEÚDO DE DOCUMENTOS OU ALÉM DELE.
Doutrina:
- A. VAZ SERRA, RLJ, 113.º Ano, 1980/1981, p. 121;
- J. RODRIGUES BASTOS, Das Relações Jurídicas, V, 1969, p. 233, e 235;
- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, I, 2.ª edição, 1979, p. 320.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 394.º, N.º 1.
Sumário :
I. Com a proibição da prova por testemunhas, prevista no art. 394.º, n.º 1, do Código Civil, acautela-se o conteúdo dos documentos, com força probatória plena, contra os perigos inerentes à prova por testemunhas.

II. A prova do erro na declaração, consubstanciada em escritura pública, não está abrangida pela proibição inscrita no n.º 1 do art. 394.º do Código Civil.

III. O registo predial destina-se, essencialmente, a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário.

IV. Mantendo-se a incerteza da extensão do direito de propriedade reivindicado, nomeadamente quanto à área de 1357 m2, a ação, não permitindo o seu reconhecimento, com exatidão, não pode deixar de improceder.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I – RELATÓRIO


      AA e marido, BB, instauraram, em 8 de fevereiro de 2013, no então … Juízo da Comarca de … (Juízo Central Cível de …, Comarca de …), contra CC e mulher, DD, EE e FF, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que declarasse serem os Autores donos do prédio urbano, sito no lugar da … (atualmente Rua …, n.º 6), e descrito, sob o n.º 492 (…), na Conservatória do Registo Predial de …, condenasse os 1.º e 2.º Réus a restituírem o prédio e, em particular, a área de 1357 m2 e pagarem a indemnização, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, a liquidar em “execução de sentença”, condenasse os mesmos Réus a absterem-se, no futuro, da prática de quaisquer atos que afetem, ofendam ou violam o direito de propriedade dos Autores, a destruírem, levantarem e retirarem todas as obras por si construídas e os materiais implantados, a reconstruir a situação em que se encontrava o prédio antes da prática dos factos que originaram o processo, no prazo de trinta dias após o trânsito em julgado da decisão; subsidiariamente, fosse declarada a anulabilidade parcial da compra e venda judicial efetuada à Autora, em 9 de junho de 2010, apenas em relação ao terreno de 1357 m2, a validade desse negócio em relação à parte restante do prédio dos Autores, a redução correspondente do preço, na medida do valor da área de terreno de 1357 m2, aos preços de mercado da data da venda, o direito dos Autores receberem o montante correspondente ao valor da redução do preço do negócio, o direito dos Autores receberem dos 3.º e 4.º Réus indemnização e estes ainda condenados a restituírem-lhe o montante correspondente ao valor da redução do preço e a pagarem-lhes a indemnização, a liquidar em “em execução de sentença”.

Para tanto, alegaram que, no âmbito de processo de inventário, que se seguiu ao processo de divórcio da R. EE, a quem o 1.º R. doara uma parcela de terreno, destinada à construção, com a área de 2601 m2, e descrito, sob o n.º 492, na Conservatória do Registo Predial de …, e do R. FF, foi adjudicada à A., em 13 de julho de 2010, por venda, este prédio; em 30 de outubro de 2010, os AA. procederam à sua vedação; entretanto, os 1.º e 2.ª RR. invadiram o prédio, com um trator, e destruíram a vedação, voltando a invadi-lo em 11 e 15 de novembro de 2010; em 3 de dezembro de 2012, o 1.º R. iniciou obras no logradouro do prédio, junto ao caminho público e, no dia 4 de dezembro de 2012, a obra foi embargada extrajudicialmente, mas o R. prosseguiu com a obra; os 1.º e 2.ª RR. causaram-lhes danos patrimoniais e não patrimoniais.

Contestaram os três primeiros Réus, por impugnação, concluindo pela improcedência da ação.

Entretanto, na sequência da declaração de insolvência dos RR. EE e FF, foram citadas as respetivas Massas Insolventes.

Os 1.º e 2.ª RR. apresentaram articulado superveniente, que foi admitido, no qual alegaram que os AA. venderam o prédio a GG.

Teve lugar a audiência prévia, na qual foi proferido o despacho saneador, delimitado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Prosseguindo o processo e realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 5 de junho de 2017, sentença, que, julgando a ação improcedente, absolveu os RR. dos pedidos formulados na ação.

Inconformados, os Autores apelaram para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por acórdão de 10 de julho de 2018, julgando improcedente a apelação, confirmou integralmente a sentença.


Inconformados, os Autores interpuseram revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formularam essencialmente as conclusões:


a) A forma como foi permitido que os Recorridos contrariassem os efeitos da prova plena decorrentes de documento autêntico, através de testemunhas, viola o art. 394.º, n.º 1, do Código Civil.

b) A prova da não correspondência das escrituras públicas não pode ser feita através da prova testemunhal.

c) O acórdão, por ausência de fundamentação, é nulo, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.

d) Subsidiariamente, nunca poderia ter-se dado como provado que o 1.º R., quando declarou doar as verbas n.º s 1 e 3 aos seus filhos HH e EE, pretendeu dividir a área desses prédios em três parcelas.

e) Tal negócio é nulo, nos termos do art. 280.º do Código Civil.

f) O 1.º e 2.º RR. nunca poderiam ter uma posse condizente ao fracionamento e consequente aquisição por usucapião.  

g) Também não estaria completado o tempo necessário para a usucapião.

h) A impossibilidade legal de cindir o prédio impedia a aquisição por usucapião.

i) Devem ser eliminadas as alíneas s) e cc) dos factos provados.

j) O acórdão recorrido viola os arts. 6.º, 280.º, 371.º, 376.º e 394.º, n.º 1, do Código Civil, 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, e 6.º do DL n.º 555/99, de 16 de dezembro.


Com a revista, os Recorrentes pretendem a revogação do acórdão recorrido.


Contra-alegaram os 1.º, 2.ª e 3.ª Réus, nomeadamente no sentido de ser negado provimento ao recurso.


No acórdão da Relação de 22 de novembro de 2018, foi concluído não haver nulidade de acórdão a suprir.


Por acórdão da Formação a que alude o art. 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC) de 21 de fevereiro de 2019, foi admitida a revista excecional, com fundamento no disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 672.º do CPC.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


No recurso, está essencialmente em discussão, para além da nulidade do acórdão, a admissibilidade da prova testemunhal e, subsidiariamente, a nulidade do negócio.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados com provados os seguintes factos:


1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o n.º 4…2/20…6, freguesia de …, o prédio urbano, composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar, com logradouro de 2601 m2.

2. A aquisição do direito de propriedade sobre o referido prédio encontra-se inscrita a favor da A., por arrematação.

3.  Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o n.º 4…4/19…4, freguesia de …, o prédio rústico, composto de terreno de cultivo, com 1357m2.

4.  A aquisição do direito de propriedade sobre esse prédio encontra-se inscrita a favor do R. CC, por doação de II.

5.  A aquisição do direito de propriedade referida em 2. ocorreu no âmbito do processo de inventário n.º 507/2006.6TBPTL-B, para partilha dos bens comuns do casal, constituído por FF e EE, cujo divórcio fora decretado.

6.  No âmbito desse processo, a venda foi anunciada e o prédio descrito conforme anúncio de fls. 107 do apenso B, nele se podendo ler que o prédio a vender é o “prédio urbano, composto de parcela de terreno para construção, com uma moradia em construção, sito em …, freguesia de …, concelho de …, que confronta do norte com JJ, do sul carreiro e caminho da …, do nascente com KK e do poente com caminho de …., descrito na CRP sob o n.º 004…2/9…4, inscrito na matriz predial sob o artigo 388.º, com o valor patrimonial de € 24 709,50”.

7. A A. pagou pelo prédio o valor de € 185 000,00.

8.  E a propriedade foi-lhe adjudicada por despacho de 13/07/10, proferido no âmbito do referido processo.

9. Os AA. liquidaram o IMT e o imposto de selo relativos à compra e o IMI relativo ao prédio com base na área de 2601m2.

10.  E passaram a utilizar o prédio como seu a partir de 29/07/10.

11.  O R. CC, arrogando-se proprietário do prédio referido em 1. (inscrito na matriz predial rústica sob o art. 709.º), que afirmou ter de área 3500 m2, requereu à Câmara Municipal de …, em 02/11/99, o destaque de uma parcela deste terreno, com 1909 m2, a confrontar do norte com LL, por onde mede 53 metros, do sul com a parte restante do prédio por onde mede 59 metros, do nascente com MM, por onde mede 42 metros e do poente com caminho, por onde mede 19 metros.

12.  O destaque requerido foi autorizado pela C. M. de …, por decisão de 25/01/00.

13. O R. CC requereu à C. M. de … a retificação da área do prédio originário para 4510 m2, a confrontação norte como sendo com caminho público e a confrontação nascente como sendo com KK, retificação que foi deferida por decisão de 13/04/00.

14.  Por escritura pública celebrada em 05/05/00, no Cartório Notarial de …, o R. CC, com o consentimento da R. DD, declarou doar a seu filho, JJ, uma parcela de terreno destinada a construção urbana, com a área de 1909 m2, a destacar do prédio rústico sito no lugar da …, freguesia de …, concelho de …, descrito na C. R. Predial sob o n.º 4…2, freguesia de …, e inscrito na matriz predial rústica sob o art. 709.º, a confrontar, a parcela destacada, do norte com caminho público, por onde mede 53m, do sul com CC (restante parte de onde é destacada), por onde mede 59m, do nascente com KK, por onde mede 42m e do poente com caminho, por onde mede 19m.

15. Nessa mesma escritura, declarou doar, a sua filha EE, o prédio rústico, com a área de 2601 m2, no lugar da …, freguesia de …, concelho de …, que corresponde à restante parte do prédio atrás identificado, a confrontar de norte com JJ, de nascente com KK, do sul com carreiro e caminho da … e de poente com caminho de …., inscrito na respetiva matriz predial sob o art. 709.º.

16. Ainda na mesma escritura declarou doar a seu filho II o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e primeiro andar com logradouro, sito no lugar da …, descrito na C. R. Predial, sob o n.º 4…4, freguesia de …, e inscrito na respetiva matriz predial sob o art. 64.º.

17. Por escritura pública celebrada em 14/12/06, no Cartório de NN, o R. CC, em representação de II, declarou doar a si próprio o prédio rústico, composto de terreno de cultivo, com a área de 1357m2, a confrontar de norte com JJ, de nascente com KK, de sul com OO e EE e de poente com caminho público, sito no lugar de …, freguesia de …, descrito na C. R. Predial de …, sob o n.º 4…4, e inscrito na respetiva matriz sob o art. 1072.º, imóvel provindo do artigo urbano 352.º

18.  Quando soube que o prédio mencionado em 1. se encontrava à venda, a A., em 2010, deslocou-se ao prédio (alterado pela Relação).

19. O R. CC quando, na escritura pública de 05/05/00, declarou doar as verbas n.º s. 1 e 3 aos seus filhos HH e EE, pretendeu dividir a área dos prédios descritos nos artigos matriciais 64.º e 709.º, em três parcelas, todos existentes e com área no local.

20. Após a celebração da escritura pública de 05/05/00, os RR. FF e EE ocuparam a área de 1246,80 m2 e construíram um muro de vedação dessa parcela, delimitando-a da parcela destinada ao Jorge.

21.  O muro foi pago, a meias, entre o R. FF e HH, tendo sido construído pelo R. FF e por um funcionário deste.

22.  E procederam à construção da sua casa de habitação, com a área coberta de 264,30 m2 e descoberta de 982,50 m2, para cá do muro de vedação.

23. O muro de vedação existe, pelo menos, desde agosto de 2003, e o terreno contíguo com o qual confronta a norte encontra-se, na maioria da sua área, a uma cota inferior relativamente ao terreno que envolve a moradia do terreno a sul e que é aqui reivindicado pela autora.

24. Em 27/03/00, o 1.º R. requereu a retificação da área do logradouro do prédio urbano inscrito na matriz sob o art. 64.º de 30 m2 para 1289 m2 (alterado pela Relação).

25. Posteriormente, o HH demoliu a casa em ruínas, que existia na área do prédio a que se referia o art. 64º da matriz, e requereu a eliminação do art. 352.º, o que deu origem ao atual artigo rústico 1072.º e que se encontra descrito em 3.

26.  A partir de 05/05/00, a R. EE e o R. FF usufruíram apenas da área de 1246,80 m2, que foi delimitada pelo muro referido.

27.  E o HH passou a usufruir da área de terreno a norte desse muro, mandando-o limpar e cuidar, tendo, mais tarde, colocado, sem sucesso, o terreno à venda através de uma agência imobiliária.

28. A partir de 14/12/06, data da escritura pública referida em 17., têm sido os RR. CC e DD quem têm cuidado, limpado, cultivado e mandado cultivar, pago os impostos e os consumos de eletricidade do prédio descrito em 3. e registados no contador existente no anexo aí construído.

29. Fazendo-o à vista de toda a gente e na convicção de que esse prédio lhes pertence.

30. Se o prédio descrito em 1. tiver de área 2601 m2, terá, atualmente, o valor de mercado de € 300 000,00, sendo esse valor o de € 201 700,00 em junho de 2010.

31.  Se o prédio descrito em 1. tiver de área 1246 m2, terá, atualmente, o valor de mercado de € 260 000,00, sendo esse valor o de € 167 000,00 em junho de 2010.

32. O prédio descrito em 3. possui acesso próprio, pelo menos, desde 2003, através da Rua da … e tem montados dois portões metálicos, sendo um pedonal e outro de acesso automóvel.

2.2. Delimitada a matéria de facto, expurgada de redundâncias e retificada do erro material (7.), importa então conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente da admissibilidade da prova testemunhal e, subsidiariamente, da nulidade do negócio, para além da nulidade do acórdão.

Os Recorrentes suscitaram a nulidade do acórdão recorrido, ao abrigo do disposto no art. 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, alegando a falta de fundamentação, em particular sobre a questão da violação do art. 6.º, n.º 6, do DL n.º 555/99, de 16 de dezembro.

A arguição, no entanto, não procede, porquanto o acórdão recorrido encontra-se fundamentado, designadamente em termos de direito.

O acórdão recorrido teve pronúncia sobre a questão referida, precisamente, nos termos especificados pelos Recorrentes.

Para além do acórdão estar fundamentado, o respetivo vício, como é jurisprudência uniforme, apenas ocorre na falta absoluta de fundamentação.

Por outro lado, uma fundamentação insuficiente, errada ou medíocre não constitui causa da nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.

Nestes termos, improcede a arguição de nulidade do acórdão recorrido.


2.3. Como se relatou, tanto a sentença como o acórdão recorrido coincidiram na decisão de improcedência da ação de reivindicação de imóvel, sendo o recurso admitido por efeito da revista excecional.

A ação proposta, sendo de reivindicação, caracteriza-se, por um lado, pelo reconhecimento do direito de propriedade e, por outro, pela restituição da coisa – art. 1311.º, n.º 1, do Código Civil (CC).

Reconhecido o direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada desde que se prove a existência de um direito real ou obrigacional, que legitime o uso da coisa.

Os Recorrentes começaram por alegar a violação de normas substantivas de direito probatório material, nomeadamente do disposto no art. 394.º, n.º 1, do CC, norma que tem por inadmissível a prova testemunhal, se tiver por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais do conteúdo, designadamente, de documento autêntico. Por isso, entendem que devem ser eliminados os factos s) e cc), correspondentes aos descritos nos  n.º s 19 e 29, respetivamente.

Deste modo, suscita-se uma questão de facto, motivada na violação de direito material probatório, podendo, nessa medida, ser objeto da revista, nomeadamente ao abrigo do disposto no n.º 3 do art. 674.º do CPC.

O art. 394.º, n.º 1, do CC, relativo à inadmissibilidade da prova por testemunhas quanto a convenções contra o conteúdo de documento ou além dele, destina-se a “defender a autoridade e a estabilidade dos documentos contra a falibilidade da prova testemunhal”, nomeadamente nos casos em que as partes podiam ter-se munido da prova documental das suas convenções (A. VAZ SERRA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, 113.º Ano, 1980/1981, pág. 121). Com tal proibição da prova por testemunhas, acautela-se o conteúdo dos documentos contra os perigos inerentes à prova por testemunhas, tida por “precária”, no confronto com a prova por documentos (J. RODRIGUES BASTOS, Das Relações Jurídicas, V, 1969, pág. 233, e PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, I, 2.ª edição, 1979, pág. 320).

Com a invocação desta norma, os Recorrentes pretendem excluir do elenco dos factos provados os seguintes factos:

- O R. CC quando, na escritura pública de 5 de maio de 2000, declarou doar as verbas n.º s. 1 e 3 aos seus filhos HH e EE, pretendeu dividir a área dos prédios descritos nos artigos matriciais 64.º e 709.º, em três parcelas, todos existentes e com área no local (19);

- Fazendo-o à vista de toda a gente e na convicção de que esse prédio lhes pertence (29).

Desde logo, aquele primeiro facto não é contrário à declaração negocial formalizada na escritura, respeitante à doação feita a favor dos filhos JJ, EE e HH (14, 15 e 16).

Tal facto expressa apenas uma motivação tida pelo Recorrido CC, quando da outorga das três doações a favor dos filhos, nomeadamente a divisão dos dois prédios em três parcelas.

A motivação do ato consubstanciado na escritura pública de doação, não alterando o seu conteúdo, as doações, podia ser objeto de qualquer meio de prova, designadamente testemunhal, visto não estar abrangida pela proibição constante do n.º 1 do art. 394.º do CC. Com efeito, tal motivação não é suscetível de contrariar ou adicionar algo às doações celebradas, mantendo estas os efeitos que lhe são próprios. A proibição da prova por testemunhas estaria apenas proibida para as convenções contrárias ou adicionais da escritura de doação.

Por outro lado, a prova do erro na declaração, consubstanciada na escritura pública, também não está abrangida pela proibição inscrita no n.º 1 do art. 394.º do CC (J. RODRIGUES BASTOS, ibidem, pág. 235).

Sendo admissível a prova testemunhal, não pode ter havido violação do direito material probatório.

De resto, o efeito da prova admitida não contraria a força probatória plena resultante do documento autêntico, nomeadamente quanto aos negócios celebrados.

Por sua vez, quanto ao segundo facto (29), respeitante às características da posse, nomeadamente depois da doação, a favor do Recorrido CC, celebrada pela escritura pública de 14 de dezembro de 2006, não se vislumbra razão que obstasse à produção da prova por testemunhas, para além de ser inaplicável o disposto no art. 394.º, n.º 1, do CC.

Nestas circunstâncias, não se verificando qualquer violação do direito material probatório, carece de fundamento legal a pretensão de alteração da matéria de facto declarada provada, nomeadamente pela Relação.


Esclarecida a amplitude dos factos provados, vejamos então se é de reconhecer o direito de propriedade dos Recorrentes sobre o prédio urbano descrito, sob o n.º 492/20000516 (Seara), na Conservatória do Registo Predial de ….

A Recorrente, ao ter adquirido, por arrematação judicial, em 13 de julho de 2010, tal prédio, que antes pertencera, pelo menos em parte, a EE e que lhe fora doado por seu pai, o Recorrido CC, por escritura formalizada em 5 de maio de 2000, e ao dispor ainda do registo da propriedade, o que lhe confere a presunção derivada do registo, nomeadamente de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define, conforme disposto no art. 7.º do Código do Registo Predial (CRP), dispõe, efetivamente, do direito de propriedade sobre o prédio urbano descrito, sob o n.º 4…2/200…16 (…), na Conservatória do Registo Predial de ….

Se o reconhecimento do direito de propriedade, em si, não é questionável, já o mesmo não sucede quanto à sua extensão, nomeadamente à área do prédio, onde reside, verdadeiramente, o litígio entre as partes.

Na verdade, como resulta, desde logo da petição inicial, em causa está a área de 1357 m2, área que os Recorrentes afirmam integrar o prédio descrito sob o n.º 4…2/200…16, ao passo que os Recorridos entendem, por sua vez, ser a área apenas de 1246,80 m2, com exclusão daquela área de 1357 m2, que acabaria por constituir a área do prédio rústico descrito, sob o n.º 4…4/19…4 (…), na Conservatória do Registo Predial de ….

Este último prédio, rústico, foi doado, por escritura de 5 de maio de 2000, pelo Recorrido CCC, a favor do seu filho HH, que, por sua vez, o veio a doar a seu pai, por escritura de 14 de dezembro de 2006.

Dos factos provados não se evidencia que a referida área de 1357 m2, que os Recorrentes revindicam, pertença ao prédio urbano descrito, sob o n.º 4…2/200…16, na Conservatória do Registo Predial de ….

Quanto a isso, os factos não são nada esclarecedores. Tanto se refere que o prédio, para além da casa de rés-do-chão e primeiro andar, tem um logradouro com a área de 2601 m2 (1 e 15), como também se especifica uma área de 1 246,80 m2 (20 e 26). Acresce que a retificação das áreas, por iniciativa do Recorrido CC, repetiu-se por medidas consideráveis (13 e 24), sem que se possa compreender qual a área exata, quer do prédio descrito sob o n.º 4…2/200…16, quer do prédio descrito sob o n.º 4..4/19…24.

A área correspondente aos prédios não pode advir exclusivamente das declarações, ainda que exaradas em escritura pública, ou do registo do prédio.

Com efeito, a mera declaração da área do prédio doado não está abrangida pela força probatório dos documentos autênticos, como a escritura pública, na medida em que não se pode qualificar como sendo uma convenção contrária ou adicional à convenção plasmada no documento autêntico. Por sua vez, embora o registo possa identificar o prédio, pela sua área, com normas específicas, com vista à obtenção da sua harmonia, designadamente com a área identificada na inscrição matricial (arts. 28.º a 31.º do CRP), não tem o registo por fim definir fisicamente o prédio. Na verdade, como decorre do disposto no art. 1.º do CRP, o registo predial destina-se, essencialmente, a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário. O que interessa, pois, para a segurança jurídica, é a situação jurídica do prédio, nomeadamente no que se refere à definição dos seus direitos, ónus e encargos.

Por outro lado, para o esclarecimento da questão, não releva a validade ou invalidade do destaque que o Recorrido CC pretendeu efetuar também com a celebração da escritura pública de 5 de maio de 2000. Mesmo que se concluísse pela invalidade do destaque, não era possível delimitar, com exatidão, a área do prédio dos Recorrentes, obstando à verificação da alegada turbação do seu direito de propriedade.

Mantendo-se a incerteza da extensão do direito de propriedade dos Recorrentes, nomeadamente quanto à área de 1357 m2, a ação, tal como foi proposta, não permitindo o reconhecimento do direito de propriedade, com exatidão, não podia deixar de improceder, tal como decidiram as instâncias.


Nestes termos, não relevando as conclusões da revista, improcede o recurso e confirma-se o acórdão recorrido, o qual não violou qualquer disposição legal, designadamente as especificadas pelos Recorrentes.   



2.5. Os Recorrentes, ao ficarem vencidos por decaimento, são responsáveis pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Negar a revista, confirmando a decisão recorrida.


2) Condenar os Recorrentes (Autores) no pagamento das custas.


Lisboa, 11 de abril de 2019


Olindo dos Santos Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

José Sousa Lameira