Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6473/03.2TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO DA SILVA GONÇALVES
Descritores: DECISÃO SURPRESA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
INTERPRETAÇÃO AUTÊNTICA
PRÁTICAS INDIVIDUAIS RESTRITIVAS DO COMÉRCIO
PERDA DE CHANCE
INDEMNIZAÇÃO
PRESSUPOSTOS
Data do Acordão: 05/19/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES/ OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO COMERCIAL - RELAÇÕES COMERCIAIS / PRÁTICAS INDIVIDUAIS RESTRITIVAS DE COMÉRCIO.
Doutrina:
- Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 448.; Obrigações, Vol. I, 861, 863, 869 e 871, e Vol. II, 97.
- Katiane da Silva Oliveira, A teoria da perda de uma chance, Nova vertente na responsabilidade civil.
- Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil” Anotado, Volume I, 9.
- Lopes do Rego, Comentários ao “Código de Processo Civil”, 34.
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 184.
- Mariana França Gouveia, O Princípio Dispositivo e a Alegação de Factos em Processo Civil.
- Nuno Sebastião, A Condenação Além do Pedido, 10.
- Patrícia Helena Leal Cordeiro da Costa, Dano de Perda de Chance e a Sua Perspectiva no Direito Português.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 342.º, 483.º, 563.º.
D.L. N.º 370/1993, DE 29-10: - ARTIGO 1.º.
D.L. N.º 166/2013, DE 27-12.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 23.09.2003, EM WWW.DGSI.PT.
-DE 11.3.2010, PROCESSO N.º 1860/07.OTVLSB.S1.
-DE 05.02.2013, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Há decisão surpresa se o juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeqúe a uma correcta e atinada decisão do litígio.

II - A interpretação autêntica sobrevém sempre que o poder legislativo, responsável pelo nascimento da norma, faz publicar uma nova lei tendente a, exclusivamente, clarificar aspetos interpretativos que outra precedente, obscuramente contém. Não é este o sentido que o DL n.º 166/2013, de 27-12, quis protagonizar na sua formulação. Revogando o DL n.º 370/93, veio este diploma legislativo estabelecer diversificado regime jurídico referentemente à nova realidade surgida no seio das relações comerciais, acomodando-o às práticas individuais restritivas de comércio (PIRC), procedendo, na prática, à normatização das relações comerciais projetadas na distribuição empresarial, independentemente da sua extensão e grandeza.

III - A “perda de chance” (perte d´une chance/perda de oportunidade) consigna, como trave mestra da sua formulação teórica, a atribuição de uma indemnização ao lesado quando fique patenteado que, muito embora não esteja assegurado o nexo causal entre o facto e o dano final, da ocorrência de um determinado evento se divisa que em resultado dele, é real, séria e considerável a probabilidade de obtenção de uma vantagem ou de prevenção de um prejuízo. Os pressupostos referentes a esta indemnização não se comprovam na ação.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Nos presentes autos de acção declarativa de condenação, com processo comum e forma ordinária, que “AA Portuguesa, SA” (anteriormente denominada AA Combustíveis, SA, e antes disso, BB Portuguesa SA) instaurou contra “CC & Filhos, SA”, a Autora pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 48.833,83, acrescida de juros vencidos que perfazem a quantia de € 2.637,65 e os vincendos até ao pagamento à taxa supletiva a que alude o artigo 102.º, parágrafo único, do Código Comercial.


Para tanto alegou como causa de pedir a circunstância de ter celebrado com a Ré um contrato de fornecimento de bens e serviços, nos termos do qual concedeu a esta última a faculdade de, em qualquer posto de abastecimento “BB” ligado ao sistema “EuroBB” e identificado com o símbolo “EuroBB Service”, adquirir produtos e serviços contra a apresentação de um cartão de crédito válido, que lhe era fornecido pela primeira (Autora), cartão esse que também servia para pagar portagens rodoviárias e transportes em “ferry-boats”.

Mais referiu que esses fornecimentos e serviços eram efectuados, por conta e ordem da Autora, pelas entidades detentoras dos referidos postos de abastecimento e pelas entidades que exploram as autoestradas e os transportes por “ferry-boats”.

Disse ainda que a Autora havia fornecido à Ré cartões daquele tipo, que esta recebeu e utilizou nas suas viaturas e da forma que estava convencionada e ainda que, por essa via, no período compreendido entre Junho e Outubro de 2003 a Autora fornecera à Ré os produtos e serviços que constam das facturas que foram juntas aos autos, umas com vencimento a 14 dias e outras a 15 dias da data da sua emissão, facturas essas que totalizam € 11.044,09 e cujos números, vencimentos e montantes indicou na petição inicial.

Referiu que vencidas essas facturas a Ré não as pagou à Autora.

Também invocou que, no âmbito das suas actividades, entre Fevereiro e Julho de 2003 fez quarenta fornecimentos de gás propano à Ré, cujo preço global fora de € 37.789,79 e a esses fornecimentos se referem as facturas cujos números, vencimento e valores igualmente se indicou na petição inicial.

Recordou que a Ré recebeu os fornecimentos de gás e as facturas indicadas, mas não as pagou quando as mesmas se venceram.

Concluiu, alegando que o valor em dívida à data em que a acção foi proposta ascendia a € 48.833,88, acrescida dos juros vencidos à taxa supletiva a que alude o artigo 102º parágrafo único do Código Comercial e vincendos até integral pagamento.


Regularmente citada, a Ré apresentou contestação, na qual, aceita os fornecimentos descritos na petição inicial, na sua espécie, montantes e enquadramento contratual e alega que esses montantes se referem em exclusivo ao uso do cartão EuroBB, no âmbito do contrato anexo à petição inicial e que foi junto aos autos a fls. 22 a 25.

No entanto, defende-se por excepção, invocando ser credora da Autora em montante superior ao pedido na petição inicial, pretendendo a compensação do crédito da Autora com parte do seu contra-crédito invocado na contestação-reconvenção.

Mais alegou que os pagamentos solicitados nesta acção não são devidos, porquanto, é credora da Autora da quantia de € 1.815 632,49 (Escudos: 364 001 661$00).

Nesta parte, alega ainda que manteve relações comerciais com a Autora com especial incidência no âmbito de fornecimentos de combustíveis, gasóleo, lubrificantes e betumes, salientando que, no que concerne a betumes, tinha com a Autora uma relação preferencial por causa dos descontos que esta última lhe fazia, com excepção de zonas fora do grande Porto, particularmente junto à fronteira espanhola, zona onde ela (Ré) contratava com a DD.

Referiu que durante mais de 12 anos os preços de fornecimento obtidos da BB e da DD eram idênticos e análogos aos praticados no mercado e que no ano de 1999 a relação comercial contratual estabelecida entre as partes era regulada por um acordo de fornecimento (cfr. carta CSB/12 de 10-03-99).

Mais alegou que a partir de Agosto de 1999 o preço base do betume no mercado passou a ter alterações no mercado com oscilações crescentes e variáveis, as quais, discrimina no artigo 25 da contestação.

Afirmou que em Agosto de 1999 houve quebra da relação comercial entre a Ré e a DD, relação que só foi retomada em Janeiro de 2002.

Alegou que a EE, apesar de ter sido contactada pela Ré, nunca apresentou proposta para fornecimento de matérias à Ré e que essa omissão era feita com a intenção de não entrar em concorrência com a Autora.

De seguida referiu ser uma cliente de relevo de gasóleo, lubrificantes, fuel, betumes e emulsões relativamente aos restantes concorrentes, concretamente, a FF (Sociedade de Empreitadas FF, SA, que, não é parte neste litígio e que alega ser cliente da autora) e, por isso, afirmou não existirem na sua perspectiva, razões objectivas que justificassem a não apresentação de propostas por parte da EE (a qual, assinale-se não é parte neste litígio), concluindo, nesta parte da contestação pela verificação de prática não concorrencial da EE.

Mais disse que estava impossibilitada de controlar as implicações que as oscilações do preço do petróleo tinham no custo real da matéria-prima e alega que estava impossibilitada de aquilatar o valor do desconto praticado e/ou a usufruir, enunciando os descontos que foram praticados pela Autora à Ré desde Janeiro de 1999 a 31 de Dezembro de 2002.

Prossegue voltando a alegar que a relação comercial com a DD estava suspensa e que a EE manifestava-se indiferente à apresentação de qualquer proposta, sustentando que manteve um relacionamento comercial com a Autora na convicção de que os preços praticados por esta eram os melhores do mercado para empresas da dimensão e volume de compras análogas às suas, o que, afirma tinha acordado com a Autora e prometido.

Mais afirma que isso era pressuposto das sucessivas encomendas e fornecimentos e que a Autora sempre lhe referiu que as condições contratuais eram iguais às praticadas com empresas concorrenciais nas mesmas circunstâncias.

Diz ainda que, entretanto, no último trimestre de 2001 reatou as relações comerciais com a DD e que celebrou com a DD um acordo em 21.01.2002 que passou a regular os betumes que lhe eram fornecidos e que os preços praticados pela DD eram similares aos praticados pela Autora, do que resultava um preço final praticamente idêntico.

Não deixou no entanto de alegar que aquando da proposta conjunta com outra empresa da especialidade (a GG Construtoras, SA) relativa à execução de uma dada obra, se apercebeu da existência de descontos praticados pela EE bem superiores aos que com ela eram praticados quer pela BB quer pela DD, e, que por isso, contactou a DD, a qual, reconheceu a incorrecção dos preços praticados e emitiu nota de crédito no valor que identifica neste seu articulado, a favor da ré e emitiu posteriormente uma outra nota de crédito por forma a ressarcir a ré dos prejuízos decorrentes da aplicação de preço injusto.

Mais afirma que entretanto apurou os descontos praticados pela Autora relativamente à FF, os quais elenca, alegando ter tido consumos superiores aos da FF e concluindo que a Autora de má-fé, dolosamente aproveitando-se da relação de confiança existente entre ambas as partes e da sua ignorância, aplicou e recebeu preços injustos, não concorrenciais e não contratados, nos fornecimentos que lhe fez.

Alega também que a Autora, invocando a necessidade de exclusividade e segura que estava quer da impossibilidade de alternativas em que se encontrava a Ré, quer das relações de confiança existentes entre ambas, quer ainda do desconhecimento desta última quanto aos preços praticados noutras empresas concorrenciais, impôs descontos de metade dos praticados no mercado, designadamente por si mesma, descontos que foi corrigindo.

Diz que por causa da actuação ilícita da Autora, ela Ré pagou entre Agosto de 1999 a final de 2002 mais € 219 781 262$00 do que deveria ter pago, tendo em atenção o preço praticado para si pela Autora e aquele que a mesma Autora praticou à FF no mesmo período.

Prossegue, e alega que tal actuação da Autora lhe originou ainda outros prejuízos, nomeadamente, a perda de competitividade de novas propostas que teve de apresentar, porquanto, ao ter um preço de aquisição de betuminosos mais caro teve que apresentar orçamentos mais elevados nos diversos concursos em que interveio, isto é, alega que o custo adicional por si suportado, se reflectiu no custo de execução e consequentes propostas a apresentar, criando um sobre custo da ordem descrita no articulado em apreço.

Alegou ainda que nos anos de 2001, 1999 e 2000 apresentou em três concursos propostas, as quais, se lhe tivesse sido dada a possibilidade de estar em igualdade de circunstâncias com empresas análogas do mercado teria ganho, passando a descrever as obras em causa, as propostas por si apresentadas, as que forma apresentadas pela adjudicatária e as sua propostas corrigidas.

Continuou afirmando que deixou de auferir por causa da Autora margens de lucro adicionais, concluindo que sofreu, nesta parte, prejuízos já liquidados no valor total de € 1.815.632,49.

Mais adiante voltou a assinalar que sofreu prejuízos directos motivados pelos custos adicionais incorridos e prejuízos derivados das perdas de oportunidade no seu mercado preferencial.

Alegou ainda que, após estar consciente da prática de irregularidades por parte da Autora, mas por desconhecer a respectiva quantificação, e face à pressão por parte da mesma para pagar a quantia em débito e com a ameaça de cessação imediata de fornecimento de betuminosos, emitiu em 13-05-2003 e entregou à autora quatro cheques pré-datados no valor de € 115 456,08, cada um, com datas de vencimento entre 10-07-2003 e 10-10-2003, que “ liquidaram o saldo da conta corrente contabilística alegado pela autora, tendo a ré feito escrito uma carta na qual assinalava a sua posição.

Continuou alegando que em virtude de não ter logrado obter um acordo com a Autora deu aqueles cheques sem efeito enviando uma missiva á autora de 7. 07-2003, não pagando os valores titulados pelos referidos cheques.

Mais descrimina o conteúdo dos documentos que entende serem relevantes para aquilatar da bondade da sua argumentação.

Conclui pela dedução de pedido reconvencional, alegando ter tido prejuízos já liquidados no valor de € 1 815 632,49, continua alegando que o crédito da Autora é de € 48 833,88 e finaliza dizendo que a diferença entre esses valores, no valor de € 1.766 798,61, corresponde ao valor que a Autora lhe deve.

Sem prescindir, alega ainda que a Autora lhe deve outros prejuízos que não liquida por não serem determináveis as decorrências resultantes da actuação ilícita da autora, designadamente ao nível da adjudicação ou não adjudicação de obras, ao nível de lucros a obter nas mesmas, influência a nível financeiro, danos na sua imagem comercial, a nível da concessão de créditos, valor das diligências que vai ter de tomar para ser ressarcida totalmente dos prejuízos causados pela Autora.

Finalizou a contestação-reconvenção pugnando pela improcedência da acção e pedindo a condenação da Autora a pagar-lhe a quantia total já liquidada de € 1 766 798,61, acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal desde a notificação da reconvenção, e, na parte ainda não susceptível de liquidação, numa indemnização a fixar por decisão ulterior, nos termos dos artigos 564º- n.º 2, 565º, ambos do Código Civil ou para execução de sentença, nos termos dos artigos 471º, n.º, al. b), 661º, n.º 2 e 805º, todos do CPC, mas sempre em valor nunca inferior a € 250 000,00.


A Autora replicou, respondendo à excepção de compensação invocada pela Ré e contestou o pedido reconvencional.

Assim, impugnou a factualidade alegada pela Reconvinte para suportar o contra-crédito invocado.

Disse ser verdade que a Ré, há cerca de 15 anos é sua cliente de combustíveis, gasóleo, lubrificantes, betumes e emulsões, aceitou que a mesma também foi e tem sido cliente de outras empresas petrolíferas que lhe forneceram e fornecem betumes, designadamente da EE e da DD, alegou que em Portugal, na área de betumes, é a EE a empresa que dispõe de maior quota de mercado, seguida da DD, concedeu que até ao final de 2001 a EE tinha uma reduzida capacidade de produção e armazenagem no norte de Portugal e alegou que a partir de 2002 a EE alterou a sua estratégia comercial, afirmando que a Ré era má pagadora.

Alegou que além da BB existem outras empresas que forneciam todo o pais, quer em betumes, quer outros produtos petrolíferos, descrevendo as quantidades de betume consumidas pela Ré nos anos de 1999 a 2002 e as quantidades que lhe foram fornecidas pela BB e pelo conjunto das restantes petrolíferas, concluindo que não é verdade que a Ré tenha tido com a autora uma relação preferencial na área de betumes, embora aceite, que a tivesse na área dos combustíveis e dos lubrificantes.

Contudo, negou que se tivesse vinculado a fornecer betumes à Ré ao melhor preço que estivesse a praticar para empresas da dimensão e volume de compras da Ré.

Disse não estar obrigada a fornecer a Ré a um preço pré-fixado, nem a Ré estava obrigada a comprar-lhe se não lhe agradassem as condições de venda pretendidas por esta.

Referiu que em 1999 as vendas eram efectuadas de acordo com a carta/contrato (já atrás referida) que regulou as relações comerciais entre ambas; que a alteração dos descontos que foram sendo praticados nesse ano, por força das alterações do preço do petróleo no mercado internacional, foram comunicadas à Ré e por esta aceites, continuando esta a fazer encomendas ao longo do ano e a aceitar sempre os preços finais praticados.

Afirmou que a partir de 2000, inexistindo qualquer contrato escrito ou acordo verbal entre a Autora e a Ré, aquela passou a facturar de acordo com a proposta que apresentara em 2000 e a conceder os descontos que em cada momento definia e que a Ré sempre aceitou, descontos que foram variando, umas vezes para mais, outras vezes para menos, em função das alterações do mercado, da escassez de produto no mercado internacional e da modificação do preço do petróleo.

Reiterou que a Ré conhecia as condições que eram praticadas e sempre as aceitou.

Pronunciou-se sobre as razões que determinavam a variação que existia na atribuição de descontos a cada um dos seus clientes e salientou que essa variação era determinada pelo comportamento do cliente, isto, é, pelo bom cumprimento aquando do vencimento das facturas, pelo planeamento das encomendas que o cliente fazia e comunicava à Autora, o que para esta era essencial face à necessidade de ter de importar betumes do mercado internacional (uma vez que não tinha refinarias próprias em Portugal) e de ter de controlar os stocks existentes em armazém para poder satisfazer as encomendas de todos os seus clientes.

Mais disse que a Ré bem sabia que tinha de cumprir as suas obrigações de pagamento atempado - como qualquer cliente que não tenha um comportamento relapso - e sabia da necessidade de planificar as encomendas (até porque estas obrigações ficaram expressamente reflectidas no contrato que em 2002 a Ré assinou com a DD.)

Explicou que não estava obrigada a vender à Ré em condições diferentes das que praticou e que por isso não lhe causou qualquer dano.

Disse não reconhecer que lhe deva a quantia que esta reclama, quer a título de excepção de compensação, quer como justificação do seu pedido reconvencional.

Salientou não estar obrigada a vender a um preço diferente do que foi facturado, pelo que não existia motivo para alterar as facturas como pretendia a Ré, nem para a emissão de notas de crédito que as devessem corrigir.

Alegou que nada tem a ver com a circunstância de a DD ter tomado diferente posição face a reclamação da Ré.

Isto porque contratualmente, assumira para com a Ré obrigações nesse sentido mas que não vinculam a Autora.

Daí não te aceite as reclamações da Ré, como aquela fez saber a esta por carta de 1 de Agosto de 2003.

Impugnou expressamente os volumes de negócio que a Ré afirmou ter, a sua posição no “ranking” das empresas de obras públicas, a importância do “ranking” como factor decisivo e determinante na fixação dos preços de venda de produtos petrolíferos, os valores dos descontos e das quantidades que a Ré indicou na contestação, as percentagens de betumes nos diversos tipos de obras referidas pela Ré.

Também impugnou o lucro estimado pela Ré e a amortização adicional de equipamento, por entender que não há lugar à mesma.

Concluiu pugnando pela procedência da acção e pela improcedência da excepção e da reconvenção formuladas pela Ré.


Os autos prosseguiram os seus termos tendo a dado passo (cfr. fls. 704) sido proferido despacho cujo teor é o seguinte:

“Considerando o teor da escritura de fls. 636 e seguintes e da certidão de matrícula junta a fls. 649 e seguintes, das quais resulta que a AA Portuguesa S.A. (anteriormente designada AA Combustíveis S.A), incorporou por fusão a AA Betumes Comercialização e Distribuição de Produtos Petrolíferos S.A., visto que o disposto nos artigos 97.º e seguintes do CSC e artigos 276.º, n.º 2, 277.º, n.ºs 3 e 4, ambos do CPC e visto ainda o teor do requerimento de fls. 701, determino, antes de tudo o mais, a notificação dos legais representantes da sociedade requerente de fls. 633 para em dez dias vir aos autos ratificar os actos processuais por si praticados desde 30-12-2005, dada do registo da fusão”.


Entretanto, a ré veio requerer a aclaração deste mesmo despacho, alegando para tanto, que não compreende o sentido do despacho porquanto este pressupõe a validade da substituição processual antes requerida e que resultou da cisão da originária autora “BB” em 5 novas empresas, sendo que o despacho que decidiu tal matéria foi objecto de recurso.

A propósito de tal pedido de aclaração foi proferido despacho no qual se entendeu que o despacho “reclamado” não enferma de qualquer obscuridade ou ambiguidade, porquanto está em conformidade com o despacho proferido no apenso H de Habilitação de Cessionário.

Assim sendo acabou por se indeferir a requerida aclaração.


Da mesma peça processual consta também o seguinte despacho (cfr. fls. 746/747):

Consequentemente, e no que se reporta ao requerimento de fls. 633 em face do teor da escritura pública junta aos autos e da certidão de matrícula juntas aos autos a fls. 635 a 647 e 649 a 684, e em face do instrumento de ratificação de fls. 762 (pelo qual o Presidente do Conselho de Administração e administrador Delegado Sr. HH, ratifica, para todos os efeitos, os actos processuais já praticados em nome da mandante, designadamente aqueles praticados a partir de 30-12-2005, pelo Sr. Dr. II no âmbito do processo n.º 6473/03.2TVPRT, pendente na 1ª secção da 4ª Vara Cível do Porto, julgo ratificados para todos os efeitos, os actos processuais já praticados em nome da mandante, designadamente aqueles praticados a partir de 30-12-2005, pelo Sr. Dr. II no âmbito do processo n.º 6473/03.2TVPRT, pendente na 1ª Secção da 4ª Vara Cível do Porto, e, assim defiro a requerida substituição processual art.º 276.º, n.º 2 CPC.

Pelo exposto, julgo procedente por provada, a requerida substituição e assim julgo a requerente “AA Portuguesa S.A” legitimada a substituir nos autos principais, por causa da fusão, a sociedade “AA Betumes Comercialização e Distribuição de Produtos Petrolíferos S.A.

Custas do incidente a cargo da requerente, uma vez que a ratificação dos actos foi feita posteriormente por determinação do tribunal, fixando a taxa de justiça em 1 UC - art.º 16.º, n.º 1 do CCJ”.”       

  

Destes dois despachos (o de fls. 704 e o de fls. 746/747) veio a ré CC & Filhos S.A. interpor recurso.

Tais recursos foram considerados tempestivos e legais, sendo admitidos como sendo de Agravo, com subida diferida, nos autos e efeito devolutivo.

A Sr.ª Juiz “a quo” e como se mostra de fls. 903 e seguintes, proferiu despacho onde sustentou os despachos recorridos.

A ré/agravante apresentou as suas alegações de recurso das quais fez constar as respectivas conclusões que se podem aqui sintetizar do seguinte modo:

Na tese da ré/agravante a decisão recorrida bem como as decisões anteriores que com esta última estão intimamente interligadas assentam na pressuposta legalidade na validade da primeira habilitação/substituição (da BB portuguesa para a AA Betumes).

Porém, decidida a sua improcedência, com trânsito em julgado, diversas consequências devem ser retiradas.

Assim, não se pode afirmar em simultâneo, que a AA Betumes não é sucessora da BB Portuguesa S.A. e, por outro lado, reconhecer que a mesma pode transmitir direitos e obrigações à AA Portuguesa, nessa qualidade.

Nesta conformidade e em suma, defende-se a ilegalidade da intervenção da AA Portuguesa e questiona-se a ratificação dos actos por si praticados, razão pela qual se defende a nulidade da decisão que julgou a sua habilitação/substituição nos autos.

A agravada AA Portuguesa S.A. juntou as suas contra alegações onde pugna pela improcedência do recurso e pela confirmação do despacho recorrido. 


Findos os articulados, foi dispensada a audiência preliminar e foi proferido despacho que saneou o processo e seleccionou a matéria assente e a matéria controvertida.


De seguida foram admitidas as provas indicadas nos requerimentos probatórios e foi ordenada perícia colegial.

Procedeu-se então à realização da audiência de discussão e julgamento no culminar da qual foi proferida decisão quanto à matéria de facto controvertida, a qual não foi objecto de qualquer reclamação das partes litigantes.

Autora e Ré partes apresentaram alegações de Direito.


De seguida proferiu-se sentença onde se decidiu do seguinte modo:

1) Julgou-se procedente, por provada, a acção e condenou-se a Ré a pagar à Autora o capital de € 48.833,83, acrescida de juros legais à taxa supletiva a que alude o artigo 102.º parágrafo 3.º do Código Comercial vencidos desde a data de vencimento de cada uma das facturas referidas no item 9 dos factos provados até à data da notificação da autora-reconvinda da contestação-reconvenção.

2) Julgou-se parcialmente procedente, por provado o pedido reconvencional e assim, se decidiu:

a) - Condenar a Autora-Reconvinda a pagar à Ré - Reconvinte a quantia de € 686 533,58 acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal vencidos e vincendos desde a notificação da reconvenção até integral pagamento;

b) - Condenar a Autora-Reconvinda a pagar à Ré-Reconvinte a importância a liquidar em incidente de liquidação de sentença, correspondente à diferença, se existir, entre o valor de € 686 533,58 e o valor máximo de € 1 096 261,33.

3) Tendo em consideração a excepção da compensação invocada pela Ré-reconvinte, julgou-se a mesma procedente, por provada, e, operando o “encontro de contas” entre os créditos referidos em 1) e 2), consideraram-se reciprocamente compensados os aludidos créditos, condenando a Reconvinda a pagar à Reconvinte o remanescente da quantia já liquidada, no montante de € 637.699,75 (correspondente à diferença entre € 686.533,58 e € 48.833,83) acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal vencidos e vincendos desde a data da notificação da autora-reconvinda do pedido reconvencional até ao efetivo e integral pagamento.

4) Fixou-se o valor da acção em € 2.016.798,61,


*


Inconformada, desta sentença apelou a autora “AA Portuguesa S.A.”.

A ré “CC & Filhos S.A.” apresentou contra-alegações nas quais também interpôs recurso subordinado e deduziu as correspondentes alegações.

 

A Relação do Porto, por acórdão de 28 de Outubro de 2015 (cfr. fls. 6837 a 6909), negou provimento aos agravos e julgou improcedentes os recursos de apelação interpostos, assim confirmando integralmente a sentença recorrida.

                                          

Irresignada, interpõe agora a recurso para este Supremo Tribunal a autora “AA Portuguesa S.A.”, que alegou e concluiu pelo modo seguinte:

1. A presente acção iniciou-se antes de 2008 pelo que lhe é inaplicável o regime de inadmissibilidade em caso de "dupla conforme" - artigos 7.º, n.º 1 da Lei 41/2013, Dec. Lei 303/2007 e 67l.º, n.º 3 do novo C. P. Civil.

2. Mas sempre se justificaria ser admissível o recurso de revista como recurso extraordinário nos termos do actual art.º 672.º do C. P. Civil, porquanto:

     a) Nunca um Tribunal Português conferiu a um particular o direito de ser indemnizado com fundamento em responsabilidade extracontratual por violação do regime de discriminação consagrado no regime das práticas individuais restritivas do comércio;

     b) Não existe uma prática decisória relevante por parte da entidade administrativa relevante - Autoridade da Concorrência - quanto à concreta aplicação ou violação da norma relativa ao ilícito de discriminação contida no Dec. Lei 370-93, e

     c) No Acórdão recorrido o Tribunal da Relação parece considerar que os requisitos de aplicação da norma em causa diferem conforme esta seja aplicada como "norma de protecção" no âmbito de uma acção cível como a dos autos ou como "norma sancionatória" no âmbito de um processo de contra-ordenação, sem que haja fundamentado esse entendimento.

     3. A decisão do Tribunal da l.ª Instância, ao condenar a Autora a indemnizar a Ré com fundamento em responsabilidade civil extracontratual, por violação do ilícito de discriminação previsto no Dec. Lei 370/93, tem a natureza de uma decisão surpresa, violando o princípio do contraditório.

     4. A decisão do Tribunal da l.ª Instância também cometeu uma ilegalidade quando, violando o princípio do dispositivo, não acrescentou aos factos controvertidos os que a Autora havia alegado na réplica quando impugnou a defesa por excepção apresentada pela Ré.

     5. O Acórdão da Relação, não só errou ao decidir que a sentença recorrida não violou os princípios do contraditório e do dispositivo, como ele próprio é também nulo por violação do contraditório, ao considerar a participação da Autora num grupo de empresas em posição dominante no sector dos betumes e cartelizado com vista à divisão da clientela e fixação de preços, questões nunca antes abordadas nos autos.

     6. Em ambos os casos, as decisões aplicam um regime jurídico nunca alegado ou discutido pelas partes na acção, sem que, para mais, tivessem resultados provados nos autos factos que se subsumissem à previsão dos institutos e das normas em causa.

     7. O princípio segundo o qual o juiz não está sujeito às alegações das partes no que toca à indagação, interpretação e aplicação do direito - art.º 664.° C. P. Cv - deve ser compatibilizado com as proibições absolutas das decisões surpresa - art.º 3.°, n.º 3 C. P. Cv - devendo, antes da prolação da sentença, ser facultado às partes o exercício do contraditório, sempre que a qualificação jurídica a adoptar ou a subsunção a um determinado institui não correspondam à previsão das partes, expressa ao longo do processo;

     8. A causa de pedir invocada pela Ré Reconvinte foi a violação pela Autora de um acordo comercial e não de uma qualquer disposição do ordenamento jurídico da concorrência, não tendo a Ré alegado factos que pudessem levar à aplicação pelo Tribunal das normas que o vieram a ser;

9. A imputação genérica que a Ré faz à Autora de comportamento anticoncorrencial visa a acusação de uma violação do acordo comercial celebrado entre as partes, gerador de responsabilidade contratual, e não a acusação de uma conduta violadora das normas do direito da concorrência;

10. Toda a defesa da Autora, ou seja, os factos principais da sua defesa, foi elaborada na perspectiva, e com o objectivo, de contestar a existência do acordo entre as partes tal como invocado pela Ré e, consequentemente, a inexistência de qualquer violação contratual e não de qualquer outro regime, nomeadamente de um ilícito jusconcorrencial, cujos factos principais de que depende a aplicação não foram alegados;

11. Quando a Autora, na sua defesa, alega, singelamente, que "não tem uma posição no mercado que lhe permita manipular preços", e que a "a quota de mercado da BB equivale a cerca de metade da EE" está apenas a alegar factos instrumentais e complementares dos factos principais da sua defesa, nomeadamente a circunstanciar a sua posição no mercado com evidentes alternativas, dos produtos petrolíferos no âmbito da defesa da acusação que a Ré lhe fez de má-fé e dolo comercial;

12. Nem mesmo o Tribunal de primeira instância configurou, ao longo do processo, a possibilidade de decisão da causa com base na norma que veio a ser aplicada, só o tendo feito, de forma evidente, na sentença, o que se conclui do facto do Tribunal não ter levado à base instrutória os factos que foram invocados pela Autora para justificar as diferenças nos descontos aplicados à Ré e à FF, em função do seu comportamento (mau pagamento e mau planeamento), factos que assumiriam essencialidade no julgamento da causa se estivesse prevista a possibilidade de aplicação do regime da descriminação que o Tribunal a quo veio a aplicar;

     13. As partes não tiveram oportunidade de discutir, efectivamente, ou produzir prova, sobre os pressupostos, de direito e de facto, de aplicação do instituto da proibição de discriminação previsto no Dec. Lei 370/93, regime sem histórico de aplicação, para além de complexo jurídica e factualmente;

     14. Nomeadamente, as partes não tiveram oportunidade de discutir a natureza da norma como "norma sancionatória" ou "norma de protecção"; o requisito da desconformidade da conduta discriminatória com o direito (concorrência; a verificação dos ilícitos jusconcorrenciais de abuso de posição dominante ou cartel;

     15. Se a Autora tivesse configurado a possibilidade de o Tribunal vir a aplicar ao caso o ilícito de discriminação previsto no regime das PIRC, poderia - e crê convictamente que conseguiria - demonstrar e esclarecer o Tribunal sobre a inaplicabilidade ao caso dos autos da norma que veio a ser aplicada;

     16. Não tendo sido alegados os factos principais de que depende a aplicação de certo regime jurídico, o tribunal não o pode aplicar - porque estaria a definir o objecto do processo, violando, portanto, o princípio dispositivo;

     17. No presente caso, a violação do princípio do contraditório, quer pela sentença do Tribunal da 1.ª Instância, quer pelo Acórdão da Relação - este, em particular pela decisão absolutamente inesperada sobre a verificação de posição dominante colectiva e cartel - pode, manifestamente, influir na decisão da causa;

    18. Devem ser consideradas nulas as decisões proferidas pelo Tribunal da 1.ª Instância, e pelo Tribunal da Relação, por violação do princípio do contraditório e do princípio do dispositivo, previstos nos artigos 3.° e 5.º do Código do Processo Civil;

    19. O regime jurídico das práticas individuais restritivas da concorrência (PIRC), onde se insere o regime da discriminação em causa nos autos, tem, desde a sua origem, uma dependência e complementaridade relativamente ao direito da concorrência, pelo que tem que ser interpretado e aplicado de forma integrada, e não independente, com as normas de direito da concorrência;

     20. Constitui requisito de aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 1.º do Dec.

Lei 370/93, de 29-10, que a discriminação seja ilícita face ao direito da concorrência;

    21. A desconformidade com as leis da concorrência para a verificação de discriminação ilícita veio a ser expressamente clarificado através de consagração no n.º 1 do artigo 3.° do actual regime jurídico das PIRC, aprovado pelo Dec. Lei 166/2013;

    22. O n.º 1 do artigo 3.° do Dec. Lei 166/2013, ao introduzir a expressão "nem resultantes de práticas conformes ao Direito da Concorrência", não veio fazer mais do que consagrar expressamente um entendimento que era totalmente pacífico e enraizado do ordenamento jurídico do direito da concorrência ao longo da vigência do n.º 1 do artigo 1.º do Dec. Lei 370/93, no sentido de que a discriminação só é ilícita se violar regras do direito da concorrência;

     23. A disposição do n.º 1 do artigo 3.° do Dec. Lei 166/2013, que exclui expressamente da proibição de discriminação as práticas conforme ao direito da concorrência, constituiu uma norma interpretativa do disposto no anterior regime da discriminação previsto no previsto no n.º 1 do artigo 1.° do Dec. Lei 370/93, pelo que tem aplicação desde a entrada em vigor da lei que interpreta;

    24. A interpretação levada a cabo pela sentença do Tribunal da 1.ª Instância e confirmada pelo Tribunal da Relação, no sentido de que a mera prática de preços desiguais, sobre prestações equivalentes, sem justificação de diferença de e.g. custos, constitui discriminação ilícita, levaria ao fim dos processos de negociação entre as partes e a uma cristalização das condições comerciais, estagnando o livre desenvolvimento do mercado e da economia, impedindo a livre e salutar competição, valores que o direito e a política da concorrência visam precisamente salvaguardar.

    25. A posição dominante ou de cartel do agente da discriminação constitui um requisito de aplicação do regime da proibição de discriminação constante do n.º 1 do artigo 1.º do Dec. Lei 370/93 ou do n.º 1 do artigo 3.° do Dec. Lei 166/2013, independentemente da natureza sancionatória ou de protecção em que a norma seja aplicada;

     26. A verificação dos comportamentos ilícitos previstos na legislação da Concorrência implica necessariamente a prévia definição do(s) mercado(s) relevante(s), com referência ao(s) qual(is) se determina igualmente as condições da oferta e da procura e eventuais ligações entre os diferentes operadores e, consequentemente a posição relativa de cada um no mercado, o que possibilitará a análise da eventual existência de uma prática de colusão, de uma decisão de associação de empresas ou de uma posição de domínio (e eventual abuso), e respectiva afectação do mercado - tal exercício não consta dos autos;

     27. No caso dos autos, não foi alegado, nem discutido, nem provado qualquer facto que permitisse concluir pela existência de um acordo entra a Autora e qualquer outra empresa com vista a descriminar a Ré relativamente aos seus concorrentes, colocando-a numa posição de maior fragilidade e desvantagem, pelo que não podia o Acórdão da Relação fundamentar a aplicação do regime da discriminação na existência de uma concertação entre a Autora e outras empresas fornecedoras de betume;

     28. São pressupostos de aplicação do ilícito de posição dominante que: (i) exista um operador económico que ostente uma posição dominante; (ii) que tal operador abuse dessa posição dominante; e (iii) que esse abuso produza efeitos anticoncorrenciais.

    29. A posição dominante é necessariamente aferida em função do poder de mercado que determinada empresa detém, sendo verificada através de elementos que permitem a caracterização do mercado relevante em causa, designadamente susceptibilidade de esta empresa adoptar comportamentos independentes que lhe permite agir sem ter em conta, nomeadamente, o comportamento dos seus concorrentes, clientes ou fornecedores; bem como a quota de mercado da empresa em causa - o factor mais usado para determinar a existência de tal dominância num determinado mercado

     30. No caso dos autos, não foi alegado, nem discutido, nem provado, qualquer facto que permitisse concluir a susceptibilidade de a Recorrente adoptar comportamentos independentes dos seus concorrentes, clientes ou fornecedores, nem qual a respectiva quota de mercado, e qual o mercado relevante de modo a aferir pela existência de uma posição dominante e eventual abuso da mesma;

     31. Tão pouco foi alegado, discutido, ou provado, quais as demais empresas presentes no fornecimento e betumes em Portugal, e a respectiva quota de mercado e modo de funcionamento no mesmo, e que o Acórdão de Relação afirma estarem concertadas com a Autora, para se aferir sobre a existência de uma posição dominante colectiva;

     32. Da mesma maneira, inexiste qualquer elemento nos autos que sequer indicie a existência de coordenação de vontades ou estrutural entre as empresas (inominadas) fornecedoras de betumes em Portugal, elementos essenciais na aferição de uma eventual posição colectiva;

     33. O invocado abuso de posição dominante colectiva e de cartel da Autora e de outras empresas do sector dos betumes (que o Tribunal nem identifica) não é manifestamente um facto notório, ou seja, de conhecimento geral. Não é pela simples razão que não existe! Nem no presente, nem no passado.

    34. Não se verificam os fundamentos invocados pelo Acórdão da Relação para condenar a Autora a indemnizar a Ré pela prática do ilícito de discriminação, o que impõe a revogação desta decisão.

    35. A sentença da l.ª Instância e o Acórdão da Relação, ora recorrido, ao considerarem preenchidas no caso dos autos as condições do ilícito de discriminação previsto no regime das práticas restritivas do comércio, condenado a ora recorrente a indemnizar a ré com fundamento em responsabilidade civil extracontratual, erraram na aplicação do direito;

     36. Foram violadas as disposições legais citadas nestas conclusões.

    37. O Acórdão de Relação, ora recorrido, deve ser revogado e substituído por decisão que absolva a Autora do pedido da Ré de compensação do seu crédito e de pagamento do remanescente do valor peticionado em reconvenção;

    38. E, em consequência, deve confirmar-se a condenação da Ré no valor peticionado na petição inicial da acção.


    Contra-alegou a ré “CC & Filhos, SA” e interpôs recurso subordinado, alegando e concluindo pela forma seguinte:

    I. Vem o presente recurso subordinado interposto do aliás muito douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 28.10.2015, que julgou os recursos interpostos da decisão e 1.ª Instância absolutamente improcedentes confirmando integralmente aquela.

    II. Como resulta da reconvenção formulada, a Ré deduziu pedido relativo aos lucros cessantes (na quantia de 719.368,18 euros) decorrentes da invocada não adjudicação de 3 empreitadas (identificadas no processo), por motivos imputáveis à Autora (que vendeu betume à Ré por preço superior àquele que deveria praticar - seja tendo em atenção a contratação realizada entre ambas, seja por via do disposto na legislação que regula a concorrência).

     III. Ora, quanto a esta matéria foi dado por provado o seguinte:

           “…

    17 - A Ré, pelo menos, apresentou propostas e orçamentos nos concursos abertos nas três empreitadas a seguir indicadas e que nesses orçamentos a Ré e a concorrente ganhadora indicaram os valores seguintes para pavimentação betuminosa.

   1 - Remodelação de arruamento e infra-estruturas - Dr. JJ - Freguesia de Grijó.

    - Firma CC & Filhos, S.A. - 19298862$00 - proposta apresentada em 10-12-1999

    - Concorrente ganhador, KK & Filhos, Lda. - 23.637.900$00

    2 - Aeroporto Francisco Sá Carneiro - Porto - ASC2000 - Rede de acessos viários, parques de estacionamento de superfície e infra estruturas gerais.

     - Firma CC & Filhos, S.A. - 46 812790$00 - proposta apresentada a 28-08-2000.

    - Concorrente Ganhadora, Sociedade de Empreitadas FF - 56 313 343$00.

     3 - Beneficiação do pavimento do IC1 (N12/Freixieiro) - Firma CC & Filhos, S.A. - 162639000$00 - proposta apresentada a 08-05-2001.

    - Concorrente Ganhador, LL, S.A. - 164 430 000$00. - resposta quesito 6°.

    18 - Provado apenas que se tivesse sido cobrado pela autora o mesmo preço que foi cobrado a FF:

    - no ano de 1999, na empreitada de Remodelação de arruamento e infra-estruturas Dr. JJ, obra de arranjos exteriores, adjudicada a KK & Filhos, Lda. por 152671 745$00, a Ré poderia, se quisesse, apresentar uma proposta de € 761 087,00 (152584 244$00), ou seja, menos € 5304,00 do que o valor da sua proposta apresentada a concurso, correspondente a € 766391,00;

    - no ano de 2000, na empreitada do Aeroporto Francisco Sá Carneiro - Porto - ACS 2000 - Rede de acessos viários, parque de estacionamento de superfície e estruturas gerais - Concurso n.º 18/00/DIA, obra de arranjos exteriores, cujo dono de obra era ANA - Aeroportos de Portugal, S.A., adjudicada a Sociedade de Empreitadas FF, S.A., por 646.411.123$50, Ré poderia ter, se quisesse, apresentado uma proposta de € 3 268 115 (655 198 185$00), ou seja, menos € 52562,00 do que o valor da sua proposta apresentada a concurso, ou seja, € 3 320 677.

    - no ano de 2001, na empreitada de beneficiação do pavimento /C1 (N12/Freixieiro), adjudicada por 187842000$00 a LL por € 936 952,00 a Ré, se quisesse, poderia ter apresentado, uma proposta de € 888 832,00, ou seja, menos € 65 580,00 do que o valor da sua proposta apresentada a concurso no valor correspondente a € 954 412, 00

  - e provado que:

  - Os valores de pavimentação betuminosa indicados na empreitada de Remodelação de Arruamento e Infra-Estruturas Dr. JJ, obra de arranjos exteriores, adjudicada a KK & Filhos, Lda., foram:

 - Firma CC & Filhos, S.A. 19298862$00.

- Concorrente ganhador, KK & Filhos, Lda., - - - 23637900$00.

- Os valores de pavimentação betuminosa da empreitada do Aeroporto Francisco Sá Carneiro - Porto - ASC 2000 - Rede de Acessos Viários, parque de estacionamento de superfície e estruturas gerais - Concurso n.º 18/00/DIA, Obra de Arranjos Exteriores, cujo dono de obra era ANA - Aeroportos de Portugal, S.A., adjudicada a Sociedade de Empreitadas FF, S.A. por 646411 123$50, foram:

- Firma CC &, Filhos, S.A. ----- 46 812 790 $00.

- Concorrente Ganhador, Sociedade de Empreitadas FF, S.A - 56313343$00.

- Os valores de pavimentação betuminosa da empreitada de beneficiação do pavimento /C 1 (N12/ Freixieiro), adjudicada por 187842 000$00 a LL, S.A., por 187842 000$00, foram:

- Firma CC & Filhos, S.A ---------- 162639000$00.

- Concorrente Ganhador, LL, S.A. -- 164430000$00.

- resposta questões 7.º e 8.º .

     …”

    IV. Os argumentos utilizados pelo douto Acórdão recorrido são, esquematicamente os seguintes:

• Tratando-se de concursos públicos, sempre a respectiva adjudicação estaria dependente de terceiros (Adjudicante) e de factores aleatórios incompatíveis com o conceito de causalidade adequada, donde resultaria sempre e de qualquer maneira, a improcedência do pedido reconvencional nesta sede;

• Não logrou a Ré provar e estabelecer o devido nexo causal entre a prática discriminatória da Autora e os preços que lhe foi possível apresentar nos referidos concursos;

V. Importa desde já deixar claro que a Recorrente no que respeita à obra do Aeroporto Francisco Sá Carneiro reconhece que o novo preço que poderia propor, não seria inferior ao preço porque foi adjudicada a obra, razão pela qual nada tem a opor ou a objectar, quanto a esta obra em concreto, ao decidido pelo douto aresto recorrido, limitando o recurso nesta sede às duas restantes obras, já no que respeita aos restantes primeiros argumentos, cumpre concluir que os mesmos são verdadeiramente falaciosos (com todo o respeito), para além de desvirtuarem a situação em concreto.

VI. É que:

    Não importa saber quais são os fornecedores das concorrentes vencedoras, nem os preços que foram praticados relativamente aos betumes (e ou outros itens);

    - O que importa é apurar se, com os preços que a BB deveria praticar à CC (aqui Recorrente) esta poderia (ou não) apresentar preços finais inferiores aos apresentados pelos concorrentes vencedores;

    - Tal factualidade é objetiva e concreta;

   - O Tribunal entendeu que, por a Ré ter apresentado em todas as propostas o preço do item "pavimentação betuminosa" inferior ao das concorrentes vencedoras, tal item não teria relevância, sendo que o preço teria sido onerado por outros factores ou itens;

   - Este raciocínio é absolutamente errado:

    - De facto um preço final é uma composição de inúmeros factores, tendo algumas empresas vantagens nuns (como por exemplo a proximidade, que faz baixar os custos inerentes a deslocações) e outras noutros (como por exemplo betuminoso, por ter uma pedreira, como era o caso da CC);

   - Mas tudo isso é indiferente para o caso concreto;

   - O que importa aqui apurar é se, mantendo-se inalteradas todas as restantes variáveis (e que são alheias ao que se discute no processo), a redução do preço do betuminoso era susceptível de fazer variar o preço final e em que medida.

    - Esta factualidade foi dada por provada no processo, tendo-se apurado que no que respeita à obra do Aeroporto tal facto não era susceptível de variar o preço em termos relevantes para a adjudicação, mas que tal ocorria nas outras 2 empreitadas.

    - Apurar a política de orçamentação de cada concorrente, seria materialmente impossível e absolutamente irrelevante para a questão em concreto;

    - O que importa (e foi feito) foi apurar se tal variável, por si só (mantendo-se inalterada toda a restante composição do preço) teria relevância para a adjudicação (tendo-se apurado e verificado que sim...).

VII. Ou seja, não assiste razão ao Tribunal recorrido nesta sede.

VIII. Também o argumento de não se saber se o DO adjudicaria (ou não) à Ré (se esta apresentasse o melhor preço das propostas) não procede, na verdade:

• De facto, é do senso comum e um facto notório e do conhecimento generalizado (art. 412.º do CPC) que assim é;

• O elemento determinante nas empreitadas aqui em causa era o preço proposto "proposta economicamente mais favorável";

• Foi assim, que aconteceu com as concorrentes vencedoras (que apresentaram os melhores preços, sendo-lhes, em consequência, adjudicadas as obras);

• Não se vislumbra (nem foi alegada nos autos) qualquer causa que pudesse levar à não adjudicação das ditas obras em caso da Ré apresentar o melhor preço (como resultaria de ter o preço normal nos betumes...).

IX. A Ré teve efetivamente um prejuízo, decorrente de lucros cessantes nunca inferiores a 246.471,99 euros pela perda de adjudicação das obras relativas à "Remodelação de arruamento e infra-estruturas - Dr. JJ - Freguesia de Grijó" (no valor de 112.946,85 euros) e "Beneficiação do pavimento do IC1 (N12/ Freixieiro" (no valor de 133.525,14 euros).

X. Ora:

• "Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação" (art. 562 do CC);

• Por outro lado, o art. 564.º do CC estipula "que o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão".

XI. Ao decidir como decidiu o Tribunal "a quo" integrou deficientemente a factualidade apurada ao direito, violando aqueles preceitos legais (designadamente e para além do mais os art.s 562 e 564 do CC e art. 412 do CPC).

XII. Assim e para além da condenação já efectuada (na quantia de 686.533,58 euros, acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal vencidos e vincendos, desde a notificação da reconvenção até integral e efetivo pagamento, acrescida da quantia que vier a ser liquidada em incidente de liquidação de sentença, correspondente à diferença, se existir, entre a aludida quantia de 686.533,58 (mínimo) e o valor máximo de 1.096.261,33 euros), DEVE AINDA A AUTORA SER CONDENADA NA QUANTIA SUPLEMENTAR DE 246.471,99 EUROS, relativa aos lucros cessantes pela perda da adjudicação das obras relativas à "Remodelação de arruamento e infra-estruturas - Dr. JJ - Freguesia de Grijó" e "Beneficiação do pavimento do IC1 (N12/ Freixieiro)", tudo somando a quantia global, já liquidada, de 933.005,57 euros, acrescida de juros, à taxa legal comercial, a contar da citação da reconvenção, até integral e efetivo pagamento.

XIII. Quanto à perda de chance em particular adere-se ao defendido por Patrícia Helena Leal Cordeiro da Costa (Dano de Chance e sua Perspectiva no Direito Português), ao teor da dissertação de Nuno Santos Rocha "A Perda de Chance como uma Nova espécie de Dano", bem assim como a diversa Jurisprudência, tudo acima transcrito e aqui dado por integrado para todos os efeitos legais.

XIV. E no caso concreto, salvo melhor opinião, parece não haver dúvidas:

    • Naquelas duas empreitadas em concreto a Ré concorreria com o melhor preço;

    • O preço é sempre e em todas as empreitadas (tanto assim que foi determinante na adjudicação às vencedoras...) um critério essencial, senão mesmo último e definitivo ara a adjudicação;

    • Face ao exposto, a probabilidade de tais empreitadas serem adjudicadas à Ré era não só séria, como mesmo "muito provável";

    • Que o mesmo é dizer que a possibilidade de ganhar tais empreitadas não era desprezível (pelo contrário e como se disse supra, seria altamente provável...).

XV. Assim e em decorrência do comportamento da Autora (aplicação de preços que lhe estavam vedados, quer contratualmente, quer tendo em atenção as regras concorrenciais em vigor à época dos factos), a Ré ficou impossibilitada de apresentar nas duas aludidas empreitadas "Remodelação de arruamento e infra-estruturas - Dr. JJ - Freguesia de Grijó" e "Beneficiação do pavimento do IC1 (N12/ Freixieiro") a melhor proposta.

XVI. O nexo de causalidade entre a conduta da Autora e o dano suportado (lucro cessante) pela Ré é evidente (embora nesta sede subsidiária se parta do principio que o Tribunal não considera possível face à "álea" decorrente de o concurso estar sujeito a decisões de terceiros - DOs).

XVII. Termos em que, efetivamente, por causa imputável à Autora a Ré perdeu a oportunidade de lhe serem adjudicadas as referidas empreitadas.

XVIII. Tal perda consubstancia um dano indemnizável.

XIX. Por entender que o prejuízo decorrente da "perda de chance" é autónomo e não coincide com o dano final, nesta sede subsidiária requer-se a este título a condenação da Autora na quantia de 172.500,00 euros, correspondente a um percentual inferior a 70% do dano final (246.471,99 euros).

XX. Tal percentual é justo e equilibrado (na perspectiva da equidade a utilizar na sua quantificação) atendendo à incerteza (mínima) das adjudicações, da alta probabilidade que as mesmas ocorressem (dado a Ré ter a possibilidade de apresentar o melhor preço) e a causa que tal impossibilitou (unicamente imputável à Autora, que praticou preços com a Ré mais elevados, que lhe estavam vedados).

XXI. Nem se diga como o faz o douto Acórdão recorrido de que não ficou provado o nexo causal entre o preço por si apresentado a concurso e as práticas discriminatórias perpetradas pela Autora "BB".

    • Como vem de se dizer, a teoria da proposta economicamente mais favorável é aquela que domina a prática comum no âmbito das adjudicações de obras públicas (e mesmo nas privadas);

    • Nessa medida, basta ao Tribunal verificar que, mantendo-se todos os demais factores inalterados, aplicando-se às propostas apresentadas pela" CC" o preço praticado pela "BB" em betumes, designadamente à "FF", o seu preço global seria inferior àquele que permitiu que um terceiro ganhasse o referido concurso;

    • Tornando-se, assim, sob qualquer perspectiva e de forma absolutamente irrefutável a única proposta economicamente mais vantajosa, ou seja, a única proposta que, de acordo com a lei e as práticas do sector, poderia ganhar os referidos concursos;

     • Pelo que, no que ao nexo causal diz respeito, tal singelo e objectivo facto deverá bastar para se julgar procedente o pedido formulado pela "CC" a título de perda de chance.

XXII. Assim e nesta sede subsidiária,

    Para além da condenação já efectuada (na quantia de 686.533,58 euros, acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal vencidos e vincendos, desde a notificação da reconvenção até integral e efetivo pagamento, acrescida da quantia que vier a ser liquidada em incidente de liquidação de sentença, correspondente à diferença, se existir, entre a aludida quantia de 686.533,58 (mínimo) e o valor máximo de 1.096.261,33 euros), DEVE AINDA A AUTORA SER CONDENADA NA QUANTIA SUPLEMENTAR DE 172.500,00 EUROS, relativa aos lucros cessantes pela perda da oportunidade da adjudicação das obras relativas à "Remodelação de arruamento e infra-estruturas - Dr. JJ - Freguesia de Grijó" e "Beneficiação do pavimento do IC1 (N12/ Freixieiro)", tudo somando a quantia global, já liquidada, de 859.033,58 euros, acrescida de juros, à taxa legal comercial, a contar da citação da reconvenção, até integral e efetivo pagamento.

XXIII. Termos em que,

    Deve dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, ser a douta sentença recorrida revogada e substituída por outra que julgue no sentido antes exposto, por ter violado por erro de interpretação e ou aplicação o disposto nos citados preceitos e diplomas legais (designadamente arts. 562,564,762,799 e 804 todos do CC, tudo com a consequente condenação da autora nos termos supra aludidos.

 

Contra-alegou a autora pedindo a improcedência do recurso de revista subordinado.


A autora “AA Portuguesa, SA” fez juntar aos autos os Pareceres dos Ex.mos Srs. Professores Doutores Mariana França Gouveia (cfr. fls. 7121 a 7169) e Manuel Lopes Porto (cfr. fls. 7088 a 7120).


Corridos os vistos legais cumpre decidir.

  As instâncias consideraram provados os factos seguintes:

1. A Autora dedica-se à importação e comercialização, no mercado interno, de produtos derivados do petróleo. (alínea A)).

2. A Ré tem por actividade a indústria da construção civil e obras públicas. (alínea B)).

3. No âmbito das respectivas actividades autora e ré celebraram, em 24 de Março de 1994, contrato denominado de “ Serviço EuroBB”, através do qual a autora concedeu à ré a possibilidade de, “em qualquer posto de abastecimento de combustíveis na Europa ligado ao sistema “EuroBB” (…) utilizar o cartão de crédito, com tarja magnética, emitido pela BB, denominado “EuroBB” como meio de pagamento dos produtos comercializados e dos serviços prestados nesse posto de abastecimento, nomeadamente dos combustíveis petrolíferos para veículos a motor, dos lubrificantes “BB” e dos produtos petrolíferos similares e conexos, de acordo com a categoria de compra expressa no cartão “EuroBB”- cláusula 1ª. (alínea C)).

4. Com o referido cartão a ré podia, igualmente, efectuar o pagamento de portagens rodoviárias e de transporte em “ ferry-boat”. (alínea D)).

5. O fornecimento desses produtos e serviços à ré eram efectuados pelas entidades detentoras dos referidos postos de abastecimento e pelas entidades que exploram as auto-estradas e os transportes por “ ferry-boat”, por conta e ordem da autora. (alínea E)).

6. A autora forneceu à ré diversos cartões desse tipo, que esta recebeu e utilizou nas suas viaturas, e da forma acordada. (alínea F)).

7. Entre Junho e Outubro de 2003 a autora forneceu, no âmbito do contrato descrito em C), vários serviços que deram origem às seguintes facturas:

   a. factura nº 30…92, com vencimento em 5 de Agosto de 2003 no valor de €137,59 ;

   b. factura n.º 56…52, com vencimento em 15 de Agosto de 2003 no valor de € 9 272,79;

   c. factura n.º 57…50, com vencimento em 15 de Agosto de 2003 no valor de € 1 422,63;

   d. factura nº 32…43, com vencimento em 19 de Agosto de 2003 no valor de €114,70;

   e. factura n.º 34…43, com vencimento em 2 de Setembro de 2003 no valor de € 11,70 ;

   f. factura n.º 56…79 com vencimento em 15 de Setembro de 2003 no valor de € 30,46 ;

   g. factura n.º 56…72 , com vencimento em 12 de Novembro de 2003 no valor de € 54,22. (alínea G)).

8. A Ré não efectuou o pagamento das quantias referidas em G). (alínea H)). 

9. No âmbito das relações comerciais entre a autora e a ré aquela forneceu a esta, entre Fevereiro e Julho de 2003, gás propano, a granel, recebidos pela ré, fornecimentos esses que deram origem às seguintes facturas:

   a. factura nº 71…87, com vencimento em 3 de Março de 2003, no valor de € 1 399,33;

   b. factura nº 71…73 com vencimento em 7 de Março de 2003 no valor de € 846,30;

   c. factura nº 71…04 , com vencimento em 12 de Março de 2003 no valor de € 629 45;

   d. Factura n.º 71…26, com vencimento em 15 de Março de 2003, e no valor de € 1.255,99;

   e. e) Factura n.º 71…48, com vencimento em 19 de Março de 2003, e no valor de € 921,25;

   f. f) Factura n.º 71…82, com vencimento em 24 de Março de 2003, e no valor de € 1.082,80;

   g. g) Factura n.º 71…94, com vencimento em 29 de Março de 2003, e no valor de € 405,32;

   h. h) Factura n.º 71…95, com vencimento em 29 de Março de 2003, e no valor de € 1.142,47;

   i. i) Factura n.º 71…40, com vencimento em 4 de Abril de 2003, e no valor de € 1.358,59;

   j. j) Factura n.º 71…40, com vencimento em 7 de Abril de 2003, e no valor de € 737,15;

   k. k) Factura n.º 71…72, com vencimento em 11 de Abril de 2003, e no valor de € 1.031,37;

   l. l) Factura n.º 71…83, com vencimento em 15 de Abril de 2003, e no valor de € 958,37;

   m. m) Factura n.º 71…82, com vencimento em 19 de Abril de 2003, e no valor de € 1.037,68;

   n. n) Factura n.º 71…19, com vencimento em 23 de Abril de 2003 e no valor de € 847,04;

   o. o) Factura n.º 71…33, com vencimento em 28 de Abril de 2003, e no valor de € 1.365,87;

   p. p) Factura n.º 71…62, com vencimento em 2 de Maio de 2003, e no valor de € 1.215,96;

   q. q) Factura n.º 71…66, com vencimento em 5 de Maio de 2003, e no valor de € 663,65;

   r. r) Factura n.º 71…64, com vencimento em 13 de Maio de 2003, e no valor de € 1.425,53;

   s. s) Factura n.º 71…17, com vencimento em 15 de Maio de 2003, e no valor de € 368,94;

   t. t) Factura n.º 71…50, com vencimento em 17 de Maio de 2003, e no valor de € 1.412,43;

   u. u) Factura n.º 71…29, com vencimento em 19 de Maio de 2003, e no valor de € 405,32;

   v. v) Factura n.º 71…01, com vencimento em 23 de Maio de 2003, e no valor de € 855,75;

   w. w) Factura n.º 71…95, com vencimento em 28 de Maio de 2003, e no valor de € 1.229,07;

   x. x) Factura n.º 40…85, com vencimento em 3 de Junho de 2003, e no valor de € 1.330,94;

   y. y) Factura n.º 71…12, com vencimento em 7 de Junho de 2003, e no valor de € 832,47;

   z. z) Factura n.º 71…37, com vencimento em 12 de Junho de 2003, e no valor de € 1.031,13;

   aa) Factura n.º 71…14, com vencimento em 18 de Junho de 2003, e no valor de € 1.252,34;

   bb) Factura n.º 71…75, com vencimento em 23 de Junho de 2003, e no valor de € 1.031,87;

   cc) Factura n.º 71…99, com vencimento em 27 de Junho de 2003, e no valor de € 912,53;

   dd) Factura n.º 71…82, com vencimento em 2 de Julho de 2003, e no valor de € 904,50;

   ee) Factura n.º 71…65 com vencimento em 7 de Julho de 2003, e no valor de € 962,75;

   ff) Factura n.º 71…45, com vencimento em 14 de Julho de 2003, e no valor de € 662,91;

   gg) Factura n.º 71…59, com vencimento em 18 de Julho de 2003, e no valor de € 1.178,85;

   hh) Factura n.º 71…82, com vencimento em 21 de Julho de 2003, e no valor de € 705,13;

   ii) Factura n.º 71…75, com vencimento em 28 de Julho de 2003, e no valor de € 29,84;

   jj) Factura n.º 71…76, com vencimento em 28 de Julho de 2003, e no valor de € 59,67;

   kk) Factura n.º 71…19, com vencimento em 28 de Julho de 2003, e no valor de € 1.332,39;

   ll) Factura n.º 71…84, com vencimento em 1 de Agosto de 2003, e no valor de € 479,55;

   mm) Factura n.º 71…05, com vencimento em 5 de Agosto de 2003, e no valor de € 1.178,85, e

   nn) Factura n.º 40…94, com vencimento em 13 de Agosto de 2003, e no valor de € 1.307,98. (alínea I))

10. A Ré não efectuou o pagamento das quantias referidas em I). (alínea J)).

11. Entre a autora e a ré existiram também trocas comerciais na área de betumes que aquela, ao longo de vários anos (cerca de 30), foi fornecendo a esta (alínea L)).

12. No ano de 1999, a relação contratual entre a autora e a ré, era regulada por um acordo de fornecimento (carta csb/de 10-03-99). (alínea M)).

13. Embora o acordo assinado entre a CC e a BB previsse para 1999 a aplicação de um desconto de € 80,06, a autora, invocando alterações do preço do petróleo, modificou tal desconto de € 80,06 para € 71,33 (31-07 a 18-08) e para € 58,86 até final desse ano. (alínea N)).

14. Enquanto que, nesse mesmo ano, praticava com a FF um desconto de € 79,29 (18-08 a 9-129 e € 104,25 depois dessa data (alínea O)).

15. A Ré promoveu uma reunião com a BB, representada pelo Senhor Engenheiro MM, a qual, ocorreu em 13-06-2003, onde deu a conhecer as suas posições em relação aos preços praticados pela BB para consigo relativamente ao betume. (alínea P)).

Da Base Instrutória estão provados os seguintes factos:

16. Os valores facturados pela Autora à Ré no que concerne ao fornecimento de betume entre Agosto de 1999 e final de 2002, foram superiores aos que seriam praticados se fossem praticados os mesmos valores de venda que a autora praticava em relação à FF, resultantes dos descontos a que alude a alínea Q) da matéria assente e a resposta à questão 7º da base instrutória, pelo menos, no valor correspondente a € 686.533,58 e, no máximo, no valor correspondente a € 1.096.261,33, sendo que:

- no ano de 1999, a autora forneceu a Ré 2 918,34 toneladas de betume, pelo valor global de € 344.767,10;

- no ano de 2000 a autora forneceu a Ré 7 978,03 toneladas de betume pelo valor global de € 1.548.686,91;

- no ano de 2001, a autora forneceu a Ré 14 026,87 toneladas de betume pelo valor global de € 2.453.293,79 e

- no ano de 2002, a autora forneceu a Ré 4 420,00 toneladas de betume pelo valor global de € 830.888,55.(resposta às questões 3º e 4º).

17 - A Ré, pelo menos, apresentou propostas e orçamentos nos concursos abertos nas três empreitadas a seguir indicadas e que nesses orçamentos a Ré e a concorrente ganhadora indicaram os valores seguintes para pavimentação betuminosa.

  1 - Remodelação de arruamento e infra-estruturas – Dr. JJ – Freguesia de Grijó.

- Firma CC & Filhos, S.A. - 19 298 862$00 – proposta apresentada em 10-12-1999 –- Concorrente ganhador, KK & Filhos, Lda. - 23.637.900$00.

  2 - Aeroporto Francisco Sá Carneiro - Porto - ASC2000 – Rede de acessos viários, parques de estacionamento de superfície e infra-estruturas gerais.

- Firma CC & Filhos, S.A. - 46 812 790$00 - proposta apresentada a 28-08-2000.

- Concorrente Ganhadora, Sociedade de Empreitadas FF - 56 313 343$00.

3 - Beneficiação do pavimento do IC1 (N12/ Freixieiro) - Firma CC & Filhos, S.A. - 162 639 000$00 – proposta apresentada a 08-05-2001.

- Concorrente Ganhador, LL, S.A. - 164 430 000$00. (resposta quesito 6º)

18. Provado apenas que se tivesse sido cobrado pela autora o mesmo preço que foi cobrado à FF:

- no ano de 1999, na empreitada de Remodelação de arruamento e infraestruturas Dr. JJ, obra de arranjos exteriores, adjudicada a KK & Filhos, Lda. por 152 671 745$00, a Ré poderia, se quisesse, apresentar uma proposta de € 761 087,00 (152 584 244$00) ou seja, menos € 5 304,00 do que o valor da sua proposta apresentada a concurso, correspondente a € 766 391,00;

- no ano de 2000, na empreitada do Aeroporto Francisco Sá Carneiro - Porto – ACS 2000 - Rede de acessos viários, parque de estacionamento de superfície e estruturas gerais – Concurso n.º 18/00/DIA, obra de arranjos exteriores, cujo dono de obra era ANA – Aeroportos de Portugal, S.A., adjudicada à Sociedade de Empreitadas FF, S.A., por 646.411.123$50, Ré poderia ter, se quisesse, apresentado uma proposta de € 3 268 115 (655 198 185$00), ou seja, menos € 52 562,00 do que o valor da sua proposta apresentada a concurso, ou seja, € 3 320 677.

- no ano de 2001, na empreitada de beneficiação do pavimento IC1 (N12/Freixieiro), adjudicada por 187 842 000$00 a LL por € 936 952,00 a Ré, se quisesse, poderia ter apresentado, uma proposta de € 888 832, 00, ou seja, menos € 65 580, 00 do que o valor da sua proposta apresentada a concurso no valor correspondente a € 954 412, 00

- Os valores de pavimentação betuminosa indicados na empreitada de Remodelação de Arruamento e Infra-Estruturas Dr. JJ, obra de arranjos exteriores, adjudicada a KK & Filhos, Lda., foram:

- Firma CC &Filhos, S.A. - - - - - 19 298 862$00.

- Concorrente ganhador, KK & Filhos, Lda., - - - 23 637 900$00.

- Os valores de pavimentação betuminosa da empreita da do Aeroporto Francisco Sá Carneiro - Porto - ASC 2000 – Rede de Acessos Viários, parque de estacionamento de superfície e estruturas gerais – Concurso n.º 18/00/DIA, Obra de Arranjos Exteriores, cujo dono de obra era ANA – Aeroportos de Portugal, S.A., adjudicada à Sociedade de Empreitadas FF, S.A. por 646 411 123$50, foram:

- Firma CC & Filhos, S.A. -46 812 790 $00.

- Concorrente Ganhador, Sociedade de Empreitadas FF, S.A. -56 313 343$00.

- Os valores de pavimentação betuminosa da empreitada de beneficiação do pavimento IC 1 (N12/Freixieiro), adjudicada por 187 842 000$00 a LL, S.A., por 187 842 000$00, foram:

- Firma CC & Filhos, S.A. - - - - - 162 639 000$00.

- Concorrente Ganhador, LL, S.A. - 164 430 000$00. (resposta questões 7º e 8º).

19. Os descontos praticados pela Autora relativamente a outras sociedades, designadamente à “Sociedade de Empreitadas FF, S.A. (FF) foram a partir de 18 de Agosto de 1999, de:

- 18-08-1999 a 09-12-1999 - € 94,11

- 09-12-1999 a 31-01-2000 - € 121,71

- 01-02-2000 a 26-03-200 - € 91,12

- 27-03-2000 a 1 de Maio de 2000 - € 112,23

- 02-05-2000 a 10-07-2000 - € 135,92

- 11-07-2000 a 26-10-2000 - € 59,45

- 27-10-2000 a 31-12-2001 - € 103,88

- 01-01-2002 a 31-12-2003 - € 126,37 (resposta questão 11º).

20. Provado que as quantidades consumidas à BB pelas empresas CC e FF, durante esse período, foram as seguintes:

- 1999: a CC consumiu 2 918,340 toneladas, a FF consumiu 2 025,780 toneladas;

- 2000: a CC consumiu 8 538,880 toneladas, e a FF consumiu 1 695,450 toneladas;

- 2001: a CC consumiu 14 685,423 toneladas e a FF consumiu 2 141,625 toneladas. (resposta questão 12º).

21. Ao abrigo do artigo 607º, n.º 5, do NCPC e com base no acordo das partes, nomeadamente, com base nos requerimentos da Ré e da Autora, apresentados em 8 de Abril de 2014 e 22 de Abril de 2014, respectivamente, considero provado que encontram-se pagas as facturas relativas aos fornecimentos de betumes que a Autora fez à Ré, que tais fornecimentos de betumes nada têm a ver com o crédito da A. cujo pagamento é peticionado nesta acção, nem com a dívida a que se reportam os 4 cheques sacados por CC & Filhos, SA, e não pagos, executados no proc.º 647/03.6TVPRT, agora pendente no 1.º Juízo de Execução do Porto.



======================================


Nesta ação pretende a autora “AA Portuguesa, SA” que a ré “CC & Filhos, SA” seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 48.833,83, consistente no custo do fornecimento de bens e serviços prestados e que a ré não pagou.


Não nega a ré o pagamento do valor destes bens e serviços dispensados pela autora à ré.

Todavia, invocando ser credora da autora em montante superior ao pedido, por ser credora da demandante referentemente à quantia de € 1.815 632,49 (364001661$00), argúi a ré que nada tem que lhe pagar.

Pugnando pela improcedência da acção e evocando que a autora é responsável pelo embolso da quantia já liquidada de € 1.766 798,61 e, também, em montante ainda indefinido por não ser agora susceptível de liquidação, deduziu pedido reconvencional rogando que a autora seja condenada a pagar-lhe a quantia já liquidada de € 1.766.798,61 e em indemnização a fixar por decisão ulterior na parte ainda não susceptível de liquidação, mas nunca em valor inferior a € 250.000,00.


A autora não reconhece que deve à ré a quantia que esta reclama no seu pedido reconvencional.


Ambas as instâncias deram parcial razão às partes na ação.

Julgando parcialmente procedente o pedido reconvencional, tal como o havia decidido a 1.ª instância, a Relação condenou a autora-reconvinda a pagar à ré - reconvinte a quantia de € 686 533,58 e a importância a liquidar em incidente de liquidação de sentença, correspondente à diferença, se existir, entre o valor de € 686 533,58 e o valor máximo de € 1 096 261,33; e, operando o “encontro de contas”, considerou reciprocamente compensados os créditos entre as duas sociedades, condenando a reconvinda a pagar à reconvinte o remanescente da quantia já liquidada, no montante de € 637.699,75 (correspondente à diferença entre € 686.533,58 e € 48.833,83).


    É contra este entendimento assim professado que a autora reage e que a ré também não aceita na sua plenitude no recurso subordinado que interpôs.


    Evoca a autora/recorrente “AA Portuguesa, SA” que devem ser consideradas nulas as decisões da 1.ª Instância e do Tribunal da Relação, com fundamento na violação do princípio do contraditório e do princípio do dispositivo, previstos nos artigos 3.° e 5.º do Código do Processo Civil;

    Questiona também se a disposição do n.º 1 do artigo 3.º do Dec. Lei 166/2013, constituiu uma norma interpretativa relativamente ao disposto no anterior regime da discriminação previsto no previsto no n.º 1 do artigo 1.º do Dec. Lei 370/93.

Alega ainda a autora que a sua conduta não é censurável e, por isso, não estão preenchidos os requisitos do art.º 483.º do C.Civil, nomeadamente não se verifica qualquer desequilíbrio nas relações comerciais que tenha que ser reposto.


Por sua vez a ré/reconvinte argúi que, salvo o caso da situação verificada no “Aeroporto Francisco Sá Carneiro”, quanto às duas restantes obras, se verificam todos os requisitos necessários para que se lhe concedida a indemnização decorrente da perda de lucros cessantes espelhados no pedido reconvencional.

   Quanto mais não seja requer a ré que a autora seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 172.500,00, concretizado no prejuízo decorrente da "perda de chance", correspondente a um percentual inferior a 70% do dano final (246.471,99 euros).


Vejamos se assiste razão às recorrentes.


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I. Aponta a recorrente “AA Portuguesa, SA” à sentença apelada e, por arrastamento, ao acórdão recorrido, os vícios da violação do princípio do contraditório - contra todas as expectativas condenou a autora a indemnizar a ré com fundamento em responsabilidade civil extracontratual (o ilícito de discriminação previsto no Dec. Lei 370/93) - e da profanação do princípio do dispositivo - não acrescentou aos factos controvertidos os que a autora havia alegado na réplica quando impugnou a defesa, por excepção, apresentada pela ré.

   Essencialmente, não tiveram as partes oportunidade de discutir, ou produzir prova, sobre os pressupostos, de direito e de facto, de aplicação do instituto da proibição de discriminação previsto no Dec. Lei 370/93, conclui a recorrente.


         Vejamos.

1. O princípio do contraditório (ou da audiência), que tem a sua expressão mais generalizada no direito que tem toda e qualquer pessoa a ser ouvida antes de contra ela ser proferida decisão que a atinja na sua pessoa ou património, manifesta-se também no princípio estatuído no art.º 3.º, n.º 3, do C.P.Civil de que não é lícito ao Juiz, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.


Quer isto dizer que as partes (demandado e demandante e os outros eventuais sujeitos processuais) não podem ser surpreendidas por uma decisão tomada pelo Juiz fora do contexto em que se posicionaram em juízo - o efeito surpresa é intrinsecamente malévolo e atentório do dever de lealdade que deve informar a actividade dos operadores judiciários (Abílio Neto; Código Processo Civil Anotado; pág. 54).

Por outro lado, o princípio do contraditório, um dos princípios estruturantes do processo civil, assumiu uma dimensão mais aprofundada com a reforma do Processo Civil operada pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro e pelo Dec. Lei n.º 180/96 de 25 de Setembro.

Consagrado no artigo 3.º n.º 3, decorre deste princípio, conforme consta do preâmbulo daquele primeiro diploma legal, a proibição da prolação de decisões surpresa, não permitindo aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente tenha sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

A norma contida no artigo 3.º, n.º 3 do CPC resulta (…) de uma imposição constitucional, conferindo às partes num processo o direito de se pronunciarem previamente sobre as questões - suscitadas pela parte contrária ou de conhecimento oficioso - que o tribunal vier a decidir.” - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 259/2000; DR, II série, de 7 de Novembro de 2000.


Traduzindo-se na garantia das partes a uma efectiva participação em todos os actos do processo, o princípio do contraditório encontra-se ao serviço do princípio da igualdade das partes. A prévia audição das partes visa colocá-las em paridade, dando-lhes a oportunidade de influenciar a decisão judicial que vai ser tomada.


decisão surpresa se o Juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeqúe a uma correcta e atinada decisão do litígio.

Ou seja, apenas estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporte uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever - neste preciso sentido, os Acórdãos do STJ de 29.09.1998 e de 14.05.2002, ambos retirados do site www.dgsi.pt.

Pronunciando-se sobre a necessidade do pedido e da contradição, estabelece-se no n.º 1 do artigo 3.º do CPC que “o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe, sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição”.

Esta norma veio proibir a decisão surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.

Esta vertente do princípio tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado, pois as que estejam na disponibilidade exclusiva das partes, tal como as que sejam oficiosamente cognoscíveis mas na realidade tenham sido levantadas por uma das partes, são naturalmente objecto de discussão antes da decisão, sem que o facto de a parte que as tenha levantado não ter exercido o direito de resposta (desde que este lhe tenha sido facultado) implique falta de contraditoriedade”.[1]


2. Analisando a contestação/reconvenção apresentado pela ré, deste articulado naturalmente inferimos que a sociedade/ré lembrou, em seu proveito, a negação que a autora havia feito das normas de direito da concorrência e bem assim a existência de práticas anticoncorrenciais praticadas também pela demandante: é o que resulta da descrição posta dos pontos 40., 46., 50., 65., 69., 104., 111., 112., 113., 114., 117., 121., deste articulado.

Desta feita, para além do incumprimento do contrato celebrado, deduziu a reconvinte/ré igualmente circunstâncias jurídico-factuais suscetíveis de integrarem condutas desrespeitadoras dos princípios afetos à leal concorrência que hão-de ser exercidas pelas partes contratantes.


 Relembremos a este propósito que, porque é a autora/recorrente quem, na réplica, contraria a delação que a ré lhe contrapõe sobre a prática de comportamentos violadores das regras de funcionamento de mercado e da defesa de concorrência, deste dado da ação podemos asseverar que, como o afirma a Relação, “não existe qualquer surpresa no facto do Tribunal “a quo” ter apreciado e proferido decisão sobre tal matéria. Tudo porque o que consta da sentença recorrida mais não é do que decorrência lógica e necessária de tudo o que a tal propósito a ré alegou na sua contestação; e tanto mais porque está comprovado que a autora não só teve a possibilidade de se pronunciar quanto a tais questões, como de facto veio a responder ás mesmas em articulado próprio, no caso a réplica”.


Não pode, assim, a recorrente “AA Portuguesa, SA” queixar-se de que a resolução contra ele tomada lhe causou surpresa, porquanto, do modo como a causa foi discutida, designadamente do modo como estão descritos os articulados oferecidos pelas partes, a pretensão da ré tomada no seu pedido reconvencional era uma realidade jurídica que não poderia ser afastada do horizonte da decisão a tomar pelo julgador.

Não deverá “banalizar-se” a audição atípica e complementar das partes, ao abrigo do preceito ora em análise, de modo a entender-se que toda e qualquer mutação do estrito enquadramento legal das partes deram às suas pretensões passa necessariamente pela actuação do preceituado no art.º 3/3. [2]


   Lembremos que este Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado; e, constando eles do elenco dos factos provados, assim deles se terão de extrair as consequências que deles advirão (
como o pretor romano: "da mihi factum dabo tibi jus") e não está sujeito, às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (n.º 3 do art.º 5 do C.P.Civil).

- O art.º 664.º consagra o princípio do conhecimento oficioso do direito: o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. A articulação deste princípio com a regra da proibição das decisões-surpresa, contida no n.º 3 do art. 3º, significa tão só que, antes de proferir a decisão, deve o julgador facultar às partes o exercício do contraditório, apenas quando a qualificação jurídica a adoptar ou a subsunção a determinado instituto não correspondam, de todo, àquilo com que estas, pelas posições assumidas no processo, possam contar. Trata-se, a nosso ver, de um princípio que não pode ser levado tão longe que esqueça que as partes são representadas por técnicos que devem conhecer o direito e que, por isso, conhecendo ou devendo conhecer os factos, devem igualmente prever todas as qualificações jurídicas de que os mesmos são susceptíveis.[3]


    A escolha da lei, a aplicar a cada caso concretamente definido, não constitui um privilégio da parte e a incluir no princípio do dispositivo; íntegra o poder-dever do Juiz que o tem de desempenhar mesmo que considere injusta ou imoral a lei - o dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo (n.º 2 do art.º 8.º do C.Civil).

     - Por forma a manifestar a inexistência de uma linha divisória estanque entre os factos e o direito, o legislador estabeleceu que é na conjugação do estatuído nos n.º s 1 e 3 do art. 5.º do CPC que a decisão deve ser tomada, no âmbito da causa de pedir invocada. Nessa precisa dimensão, que tem em conta a substancial e profunda alteração introduzida no art. 5.º do CPC relativamente ao que anteriormente se consagrava no art. 264.º, não existe, obviamente, decisão surpresa quando, mantendo-se dentro da causa de pedir invocada, a aplicação de regras de direito fundamentadoras dessa mesma decisão seja efectuada num quadro que as partes prognosticaram ou tinham o dever de prognosticar - Ac. STJ de 05.04.2016 (Mário Mendes (Relator); www dgsi.pt.


3. Queixa-se a recorrente “AA Portuguesa, SA” de que a causa de pedir invocada pela ré/reconvinte se traduziu na violação de um acordo comercial gerador de responsabilidade contratual e não a acusação de uma conduta violadora das normas do direito da concorrência.

   Violando o princípio do dispositivo, o acórdão recorrido não fez acrescentar aos factos controvertidos os que a autora havia alegado na réplica quando impugnou a defesa por excepção apresentada pela ré.


         Será assim?

    O princípio do dispositivo é aquele que se afirma por oposição ao princípio do inquisitório ou da oficialidade, ou seja, o que é decisivo é a vontade das partes (princípio do dispositivo) e não a vontade do juiz (princípio do inquisitório).

 O princípio do dispositivo identifica-se essencialmente em três vectores:

 1. As partes determinam o início do processo; é o princípio do pedido, cabendo às partes o impulso inicial do processo; o art.º 3.º do CPC consagra expressamente tal expressão deste princípio;

2. As partes têm a disponibilidade do objecto do processo (disponibilidade do pedido, das questões e dos factos necessários à decisão desse pedido);

3. As partes têm a disponibilidade do termo do processo, podendo prevenir a decisão por compromisso arbitral, desistência, confissão ou transacção.

O pedido é o ponto de partida de toda a tramitação processual, posta ao serviço das pessoas para a resolução do conflito de interesses que trazem a juízo.  

E se é certo que, em nome da segurança das partes, o Tribunal terá de atender aos limites que a própria parte estabelece à causa, ao fixar os contornos do seu próprio pedido,[4] ferindo de nulidade a sentença que não consagra este comando legal, isto é, não podendo, pois, a decisão determinar efeitos jurídicos que as partes não abordaram no desenvolvimento da lide, nem abordar questões que o autor ou réu omitiram nos articulados, a resolução tomada pela Relação enquadra-se neste tipificado contexto jurisdicional e nada temos a assinalar no sentido de que se haja exorbitado deste horizonte jurídico-processual. 


   Quando a acção é proposta, a parte que toma a seu cuidado esta tarefa processual tem também implícito no seu comportamento o desígnio de que, para obter o êxito pretendido tem de convencer o Julgador de que os são verídicos factos que avançam a sustentar o seu pedido.

    Por outro lado, o demandado que se vê confrontado com o empenho assim demonstrado pelo seu opositor na acção, no caso de não aceitar as prerrogativas às quais se arroga o demandante, vai igualmente procurar demonstrar que lhe não assiste a razão que lhe nega.

     A estrutura da ação haverá de se conceber nestes moldes; e é do circunstancialismo factual trazido pelas partes à demanda nos seus articulados, depois de se terem reputado jurisdicionalmente exactos, que deles vamos retirar as devidas consequências legais.

  

    Neste entrecho da lide tem primordial importância a repartição do ónus da prova consignado no art.º 342.º do Código Civil, a chave da resolução do litígio - num sistema processual inteiramente baseado no princípio dispositivo, em que o tribunal tenha que julgar “secundum allegata et probata partium”, o ónus da prova de um facto consiste em ter a parte que alegar e provar o facto que lhe aproveita, sob pena de o juiz ter de considerá-lo como não existente e como líquido o facto contrário (Antunes Varela; Manual de Processo Civil, pág. 448), ou seja, dito de outro modo, este ónus traduz-se "para a parte a quem compete, no encargo de fornecer a prova do facto visado, incorrendo nas desvantajosas consequências de se ter como líquido o facto contrário, quando omitiu ou não logrou realizar essa prova; ou na necessidade de, em todo o caso, sofrer tais consequências se os autos não contiverem prova bastante desse facto"- Manuel de Andrade; Noções Elementares de Processo Civil; pág. 184.

   

    Foi neste envolvimento processual que autora e ré delinearam o seu tecnicismo judicial e foi neste adjetivo enquadramento que alcançaram ou perderam ou os seus projetados objetivos.   

    Tiveram as partes, incluindo a autora/recorrente, a possibilidade de, através dos seus articulados produzidos na ação, se defenderem de todas as imprecações que contra cada uma delas foram inferidas e a aplicação da lei corporizada pela Relação está fundamentada em factos, pormenorizadamente escolhidos e trazidos à lide por autora e ré.


    Se é certo que os factos instrumentais permitem, através de uma presunção legal ou natural, inferir um outro, designadamente uma realidade jurídica donde resulte a prova da ilicitude do lesante, também é verdade que os factos instrumentais alegados pela autora em sua defesa - "não tem uma posição no mercado que lhe permita manipular preços" e que "a quota de mercado da BB equivale a cerca de metade da EE" - não comprovam a inveracidade do circunstancialismo factual que fundamenta a prática discriminatória levada a cabo pela recorrente na venda de betume e que motivou a sua condenação no pedido reconvencional.

    …É possível distinguir entre factos principais e não principais. Os primeiros são aqueles que constam da previsão normativa a aplicar, ou sejam, reconduzem-se aos factos constitutivos, impeditivos, extintivos e modificativos. Os segundos são todos os outros. Distinguir de entre estas categorias, nunca me pareceu de qualquer utilidade. A distinção entre factos principais e não principais é necessária tão só para delimitar os poderes do juiz, para operacionalizar o princípio dispositivo - Prof. Doutora Mariana França Gouveia; O Princípio Dispositivo e a Alegação de Factos em Processo Civil.


    Factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito, por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos pertinentes; não pertencem à norma fundamentadora do direito e são-lhe, em si, indiferentes, servindo apenas para, da sua existência, se concluir pela existência dos próprios factos fundamentadores do direito ou da excepção (Ac. STJ de 23 de Setembro de 2003; Relator Santos Bernardino; dgsi.pt).

 

Claramente, a observância dos princípios do contraditório e do dispositivo encontra-se plenamente realizada em toda a interventiva tramitação que às partes foi confiada e dela usaram.


4. Argumenta a autora/recorrente que a haver uma prática discriminatória levada a cabo por si na venda de betume, esta sua atitude mercantil encontra-se objectivamente justificada, pois que não estamos perante prestações equivalentes no sentido em que esta expressão está caracterizada pelo Dec. Lei n.º 370/93, que visa essencialmente o equilíbrio das relações comerciais.

A conduta da autora/apelante não é censurada pelo ordenamento jurídico, designadamente pelas normas PIRC e não estão preenchidos os requisitos do art.º 483.º do C.Civil, nomeadamente se não verifica qualquer desequilíbrio nas relações comerciais que tenha que ser reposto, não havendo lugar a qualquer indemnização por parte da recorrida.

   

    Advoga também a autora/recorrente que não está demonstrado que tenha violado o direito de concorrência, porquanto não dispunha no mercado de uma posição que possa ser classificada como dominante.

 

              Quid Juris?

O comércio de betumes é um setor em que, como faz presumir a Relação, as empresas fornecedoras tendem a “distribuir” entre si, de forma concertada, a clientela, assumindo a obrigação de não concorrer entre si pela sua “angariação” no mercado nacional.

Considerando concretamente a actividade comercial da autora, temos que esta sociedade concentra a sua actividade comercial, no comércio de betume, conjuntamente com as demais empresas que transaccionam o mesmo produto, de forma que a clientela deste produto se compartilhe na sua procura com base em preços/base fixados para o mercado nacional, isto é, mediante acordo horizontal, que deve ser tido como relevante para os efeitos que aqui importa considerar e que são os de verificação de posição dominante, como se escreve no acórdão recorrido (presunção jurídica não sindicável pelo STJ).

Tem assim a autora de ficar responsabilizada pelo ressarcimento dos danos causados em resultado da ilicitude cometida.


Não merece provimento a alegação da autora no sentido de que sempre faltaria fundamento para a ressarcibilidade do prejuízo sofrido pela ré em resultado da venda do betume por um preço superior ao que deveria praticar.

    Neste contexto jurídico-processual discordamos do entendimento professado pela Ex.ma Prof. Dr.ª Mariana França Gouveia, porquanto, como procurámos demonstrar, a condenação referente ao pedido reconvencional moveu-se no enquadramento da causa de pedir alegada e no contexto da discussão da ação que a autora trouxe à demanda.    


    II. É o Dec. Lei n.º 370/1993, de 29/10 (na redação que lhe foi introduzida pelo Dec. Lei n.º 140/1998, de 16/05), a lei aplicável ao caso sub judice, por ser o diploma legislativo que estava em vigor na data em que foram alegadamente praticados os factos proibitivos das práticas individuais restritivas de comércio.

      

    O Dec. Lei n.º 370/1993, de 29/10, trouxe para esta regulamentação (PIRC - Práticas Individuais Restritivas do Comércio) a figura da “venda com prejuízo” de forma a envolver as relações entre agentes económicos, com o objetivo de evitar a ocorrência de tratamento legal discriminatório - retomam-se assim neste diploma as figuras das práticas individuais que constavam do Decreto-Lei n.º 422/83, acrescentando-lhe a figura de «venda com prejuízo» já existente na legislação nacional na actividade do comércio a retalho (Decreto-Lei n.º 253/86, de 25 de Agosto), abrangendo agora as relações entre agentes económicos. Evita-se, desta forma, a ocorrência de tratamento legal discriminatório mais susceptível de ocorrer dado que se esbateram as fronteiras anteriormente rigidamente definidas (seu preâmbulo).


    É proibido a um agente económico praticar em relação a outro agente económico preços ou condições de venda discriminatórios relativamente a prestações equivalentes, nomeadamente quando tal prática se traduza na aplicação de diferentes prazos de execução das encomendas ou de diferentes modalidades de embalamento, entrega, transporte e pagamento, não justificadas por diferenças correspondentes no custo de fornecimento ou do serviço (n.º 1 do Dec. Lei n.º 370/1993, de 29/10).


Ora, estando comprovado na ação que os valores facturados pela autora à ré, no que concerne ao fornecimento de betume entre Agosto de 1999 e final de 2002, foram superiores aos que seriam praticados se fossem praticados os mesmos valores de venda que a autora praticava em relação à FF, resultantes dos descontos a que alude a alínea Q) da matéria assente e a resposta à facticidade posta em 7. da base instrutória, havemos de conjecturar que, como o faz a Relação (assentindo no juízo difundido na sentença apelada), pelo menos no valor correspondente a € 686.533,58 e, no máximo, no valor correspondente a € 1.096.261,33, este circunstancialismo factual  é subsumível ao estatuído naquele supra preceito legal.

Ao proceder assim a autora diferenciou negativamente a ré relativamente a outra sua cliente (a FF), posicionando-a em lugar de maior debilidade e desigualdade, isto é, debilitando-a no tratamento que mantinha com outra empresa comparativamente aos preços que à autora percebia; e, completando, porque está patenteada a ilicitude da conduta transacional da autora, a responsabilidade indemnizatória prevista no art.º 483.º, n.º 1 do Cód. Civil é uma certeza jurídica de que a autora se não pode desobrigar.


     Entende a recorrente “AA Portuguesa, SA” que a disposição do n.º 1 do artigo 3.° do Dec. Lei 166/2013, que exclui expressamente da proibição de discriminação as práticas conforme ao direito da concorrência, constituiu uma norma interpretativa relativamente ao disposto no anterior regime da discriminação previsto no previsto no n.º 1 do artigo 1.° do Dec. Lei 370/93, pelo que, tendo aplicação desde a entrada em vigor da lei que interpreta, abrange, igualmente, o caso agora em exame.


          Não aprovamos esta perceção jurídica.

   A chamada interpretação autêntica sobrevém sempre que o poder legislativo, responsável pelo nascimento da norma, faz publicar uma nova lei tendente a, exclusivamente, clarificar aspetos interpretativos que outra precedente, obscuramente contém.

    Porque tem apenas como motivação apartar dela a equivocidade consentida na interpretação de lei anterior, essa novel regra irá produzir efeitos retroativos, isto é, vai aplicar-se a fatos passados antes da sua entrada em vigor, tudo porque o que esta nova lei faz é materializar a interpretação que tem como certa da lei anterior, ficando ela integrar o sentido que a nova lei lhe confere.


Não é este o sentido que o Dec. Lei 166/2013, de 27/12, quis protagonizar na sua formulação. Revogando o Dec. Lei 370/93, veio este diploma legislativo estabelecer diversificado regime jurídico referentemente à nova realidade surgida no seio das relações comerciais, acomodando-o às práticas individuais restritivas de comércio (PIRC), procedendo, na prática, à normatização das relações comerciais projetadas na distribuição empresarial, independentemente da sua extensão e grandeza.

- Após 19 anos de aplicação do Decreto-Lei n.º 370/93, de 29 de outubro, alterado pelos Decretos-Leis n.º s 140/98, de 16 de maio, e 10/2003, de 18 de janeiro, verifica-se uma necessidade de rever este regime. Na verdade, os constrangimentos que conduziram à sua aprovação mantêm-se e em alguns casos, alteraram-se com a evolução significativa do setor do comércio.

Comparativamente ao regime que se revoga, o presente decreto-lei clarifica a noção de venda com prejuízo, em particular do que se entende por preço de compra efetivo, no sentido de facilitar a sua interpretação e fiscalização, tendo em consideração, entre outros, os descontos diferidos no tempo, quando estes sejam determináveis no momento da emissão da respetiva fatura (seu preâmbulo).


Não tendo propósito interpretativo, o Dec. Lei 166/2013 há-de ter-se como imperativo tão só para as situações que ocorram posteriormente à sua entrada em vigor e, consequentemente, não se molda à relação comercial, firmada entre autora e ré, que está em discussão na presente ação.


Neste ponto dissentimos do que afirma o bem elaborado parecer jurídico do Ex.mo Sr. Prof. Lopes Porto.

     Em nada se expressando este diploma legal sobre a interpretação de outro e do seu conteúdo se verificando que nele se inova quanto a certos aspectos do regime das PIRC, anteriormente tratados no Decreto-Lei n.º 370/93, dele também não resulta, mesmo implicitamente, que o legislador tenha claramente incutido na sua elaboração a ideia de que o novo diploma tem natureza interpretativa do precedente Decreto-Lei n.º 370/93.

     Do seu preâmbulo o que resulta é que, como atrás expusemos, neste diploma se pretendeu firmar um diferenciado regime legal, com vista a obviar aos constrangimentos provocados pela detetada evolução significativa do setor do comércio.


    III. O pedido reconvencional deduzido pela ré/recorrente engloba a indemnização por lucros cessantes (€ 719.368,18) atinente à perda da adjudicação de três empreitadas (Remodelação de arruamento e infra-estruturas - Dr. JJ - Freguesia de Grijó; Aeroporto Francisco Sá Carneiro - Porto - ASC2000 - Rede de acessos viários, parques de estacionamento de superfície e infra estruturas gerais; Beneficiação do pavimento do IC1; N12/Freixieiro), fundamentando a sua pretensão na circunstância de a autora/recorrida lhe ter vendido betume por preço superior àquele que deveria praticar.


1. A Relação, aquiescendo ao entendimento professado pela 1.ª instância, ponderando que, tratando-se de concursos públicos sempre a respectiva adjudicação estaria dependente de terceiros (adjudicante) e de factores aleatórios incompatíveis com o conceito de causalidade adequada, porque a demandada/reconvinte não logrou provar o nexo causal entre a prática discriminatória da autora e os preços que lhe foi possível apresentar nos referidos concursos, julgou improcedente este pedido reconvencional.

Argúi, todavia, a recorrente que, muito embora este desiderato não tenha sido conseguido no que diz respeito ao “Aeroporto Francisco Sá Carneiro”, quanto às duas restantes obras, se verificam todos os requisitos necessários para que se lhe conceda a rogada indemnização:

     - O que importa é apurar se, com os preços que a “BB” (agora “AA”) deveria praticar à CC/ré esta poderia (ou não) apresentar preços finais inferiores aos apresentados pelos concorrentes vencedores; e, porque assim é efetivamente, é evidente o prejuízo que a autora lhe causou em consequência de a venda de betume ter sido concretizada por preço que excedeu o que lhe incumbia exerce, conclui a reconvinte “CC & Filhos, SA”.

    

           Sem razão, porém.

     Na indemnização não cabem todos os danos que se verificaram após o facto constitutivo da responsabilidade. Nesta só se incluem os prejuízos resultantes do facto causador do dano, "os danos resultantes da violação" (art.º 483.º, n.º 1, do C.Civil): e a nossa lei (art.º 563.º, do C.Civil) consagra a doutrina da causalidade adequada: um facto só deve considerar-se causa (adequada) daqueles danos (sofridos por outrem) que constituem uma consequência normal, típica, provável dele.

   A indemnização só cobre aqueles danos cuja verificação era lícito nessa altura prever que não ocorressem se não fosse a lesão, ou seja, o autor do facto só será obrigado a reparar aqueles danos que não se teriam verificado sem esse facto e que, abstraindo deste, seria de prever que não se tivessem produzido.

    Os danos que o facto só provocou mercê de circunstâncias extraordinárias, não previsíveis de modo nenhum por um observador experiente na altura em que o facto se verificou, serão suportados pela pessoa lesada (Prof. A. Varela; Obrigações; Vol. I, pág. 861, 863, 869 e 871 e Vol. II, pág. 97).


     Tendo na devida conta que a ré/reconvinte ofereceu em todas as suas propostas, no concernente ao item "pavimentação betuminosa", um preço inferior ao das concorrentes vencedoras, desta facticidade havemos de aprontar, natural e racionalmente, que foram outras verbas, igualmente, constantes dessas pormenorizadas propostas, que foram onerar, decisivamente, cada uma delas.


Está, assim, por demonstrar que a ré teve efetivamente prejuízo decorrente de lucros cessantes nunca inferiores a € 246.471,99 pela perda de adjudicação das obras relativas à "Remodelação de arruamento e infra-estruturas - Dr. JJ - Freguesia de Grijó" (no valor de 112.946,85 euros) e "Beneficiação do pavimento do IC1 (N12/ Freixieiro" (no valor de 133.525,14 euros).


   2. Protesta a recorrente/ré “CC & Filhos, SA” em seu favor que, em consequência de o preço da venda de betume praticado ter sido efectuado em montante superior ao devido, naquelas duas empreitadas teria concorrido com melhor preço do que aquelas que ganharam o concurso:

     - a probabilidade de tais empreitadas serem adjudicadas à ré era não só séria, como mesmo "muito provável", ou seja, a possibilidade de ganhar tais empreitadas não era desprezível, conclui a reconvinte.

     Por entender que foi por causa imputável à autora que a ré perdeu a oportunidade de lhe serem adjudicadas aquelas especificadas empreitadas e que o prejuízo decorrente da "perda de chance" é autónomo e não coincide com o dano final, requer a ré a este título que a autora seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 172.500,00, correspondente a um percentual inferior a 70% do dano final (246.471,99 euros).


              A recorrente não tem razão.

   Quando se não evidencia que determinado facto foi a causa de um ocasionado e certo dano, para se obviar a uma injusta resolução motivada pela detetada dificuldade de prova do nexo de causalidade a cargo do lesado, recorrem os tratadistas à figura da “perda de chance” (perte d´une chance/perda de oportunidade) que consigna, como trave mestra da sua formulação teórica, a atribuição de uma indemnização ao lesado quando fique evidenciado que, muito embora não esteja assegurado o nexo causal entre o facto e o dano final, da ocorrência de um determinado evento se divisa que em resultado dele, é real, séria e considerável a probabilidade de obtenção de uma vantagem ou de prevenção de um prejuízo.    


    A “perda de chance” consolida a ideia da perda da capacidade do alcance de um resultado favorável.

    - No sentido jurídico, a “perda de chance” é a probabilidade real de alguém obter um lucro ou evitar um prejuízo e “caracteriza-se essa perda de chance quando, em virtude da conduta de outrem, desaparece a probabilidade de um evento que possibilitaria um beneficio futura para a vítima, como progredir na carreira artística ou militar, arrumar um melhor emprego, deixar de recorrer de uma sentença desfavorável pela falha do advogado, e assim por diante”. [5]

    Podendo justificar-se no estatuído no art.º 563.º, do C.Civil (o lesante responde apenas pelos danos que provavelmente o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão), é apertada a malha da sua cobertura jurídica e há-de ser ponderadamente ajuizada para a sua aplicabilidade em cada caso concreto, exigindo-se do Julgador o necessário equilíbrio emocional e bom senso capaz de não generalizar a sua adaptação aos casos em que, exclusivamente, se enquadram apenas nos cânones da proteção da ética, em simples expectativas e suposições conjeturais.

     Ocorre quando uma situação omissiva faz perder a alguém a sorte ou a «chance» de alcançar uma vantagem ou de evitar um prejuízo, como aconteceu, no caso concreto, com a omissão da ré, que privou o autor da «chance» de obter um resultado favorável, isto é, de conseguir a condenação do réu na acção de indemnização - Ac. STJ de 05.02.2013 (Hélder Roque Relator); dgsi.pt.


Temos vindo a considerar, disso também dando conta a Relação que, porque não foi o custo do betume que fez rejeitar as propostas apresentas no concurso pela ré e, desta feita, fez acarretar o valor final de cada uma delas, mas antes os demais valores indicados nas restantes verbas apresentadas, incluídas em cada uma de tais propostas, a rogada indemnização pedida pela ré/reconvinte baseada neste circunstancialismo jurídico-positivo não tem razão que a sustente.

 Tomando na devida conta a teorização, doutrinal e jurisprudencialmente, aceite sobre a “perda de chance”, asseveramos igualmente que à recorrente/ré não cabe a proteção condensada na relevância que esta figura jurídica atribui ao lesado.  


    Como ajuizamos nós e as instâncias disso fizeram eco, mesmo que o preço do betume exigido pela autora à ré fosse aquele que deveria ser o praticado, esta circunstância não provocaria, naturalmente, o ganho do concurso pela demandada; e, sendo assim, porque não foi esta denunciada controvérsia contratual que de algum modo foi a motivadora da perda do concurso, também dele se não poderão retirar as consequências indemnizatórias da perda de chance, por a tanto se não configurar a matéria de facto comprovada na ação.

    - A chance não é, assim, apenas uma mera expectativa de facto, antes constitui uma das manifestações, embora dotada de autonomia enquanto bem, do outro bem jurídico com que está conexa (Patrícia Helena Leal Cordeiro da Costa; Dano de Perda de Chance e a Sua Perspectiva no Direito Português).


    Foi este, outrossim, o entendimento da Relação, proficientemente bem delineado, ao qual de forma expressa assentimos.


          Concluindo:

 1. decisão surpresa se o Juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeqúe a uma correcta e atinada decisão do litígio.

    Analisando a contestação/reconvenção apresentado pela ré, deste articulado naturalmente inferimos que a sociedade/ré lembrou, em seu proveito, a negação que a autora havia feito das normas de direito da concorrência e bem assim a existência de práticas anticoncorrenciais praticadas também pela demandante: é o que resulta da descrição posta nos pontos 40., 46., 50., 65., 69., 104., 111., 112., 113., 114., 117., 121., deste articulado.

2. A interpretação autêntica sobrevém sempre que o poder legislativo, responsável pelo nascimento da norma, faz publicar uma nova lei tendente a, exclusivamente, clarificar aspetos interpretativos que outra precedente, obscuramente contém.

    Não é este o sentido que o Dec. Lei 166/2013, de 27/12, quis protagonizar na sua formulação. Revogando o Dec. Lei 370/93, veio este diploma legislativo estabelecer diversificado regime jurídico referentemente à nova realidade surgida no seio das relações comerciais, acomodando-o às práticas individuais restritivas de comércio (PIRC), procedendo, na prática, à normatização das relações comerciais projetadas na distribuição empresarial, independentemente da sua extensão e grandeza.

3. A “perda de chance” (perte d´une chance/perda de oportunidade) consigna, como trave mestra da sua formulação teórica, a atribuição de uma indemnização ao lesado quando fique patenteado que, muito embora não esteja assegurado o nexo causal entre o facto e o dano final, da ocorrência de um determinado evento se divisa que em resultado dele, é real, séria e considerável a probabilidade de obtenção de uma vantagem ou de prevenção de um prejuízo.

Os pressupostos referentes a esta indemnização não se comprovam na ação.


     Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.


     Custas por cada uma das sociedades recorrentes.


Supremo Tribunal de Justiça, 19 de maio de 2016.


António da Silva Gonçalves (Relator)

Fernanda Isabel Pereira

Pires da Rosa

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[1] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, página 9.

[2] Lopes do Rego; Comentários ao C.P.Civil; pág. 34.
[3] Ac. STJ de 11.3.2010; processo n.º 1860/07.OTVLSB.S1.
[4] Nuno Sebastião; A Condenação Além do Pedido; pág. 10.
[5] Katiane da Silva Oliveira; A teoria da perda de uma chance; Nova vertente na responsabilidade civil.

     A teoria da perda da chance (perte d´une chance) surgiu na França na década de 60 do século passado e foi bastante difundida na Itália.