Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
242/08.0TTCSC.L1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: SOUTO DE MOURA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
QUESTÃO DE DIREITO
NEGLIGÊNCIA
DEVER DE CUIDADO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Sumário :

I - Se o objectivo da unificação jurisprudencial aponta, por razões pragmáticas ponderosas, para a multiplicação de tantos processos e portanto de decisões, quantas as questões de direito invocadamente em oposição, já a ponderação do efeito interno do acórdão de fixação de jurisprudência aconselharia a posição contrária.
II - A lógica do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência é a de se atender preferencialmente à eficácia externa da uniformização de jurisprudência, ao serviço da segurança do direito, para todos; nesta linha, as vantagens do tratamento de uma única questão por recurso são inegáveis.
III -Não fôra assim, estar-se-ia a dar prevalência ao interesse pessoal do recorrente, o que transformaria o recurso de fixação em mais um grau de recurso ordinário, com um simples efeito colateral e secundário que seria o de uniformização. Não é isso que o legislador, seguramente, pretendeu.
IV -Somos, portanto, levados a interpretar literalmente o art. 437.º do CPP: soluções opostas quanto à mesma questão de direito, uma só, plasmadas em dois acórdãos, só dois, o recorrido e o fundamento. Ou então, para usar o lugar paralelo, talvez mais claro, do art. 763.º, n.º 1, do CPC, um acórdão, em contradição com outro, e sobre a mesma questão fundamental de direito.
V - Se numa fase de exame preliminar (cf. art. 440.º, n.º 3, do CPP), se vier a considerar o recurso inadmissível, se concluir pela não oposição de julgados quanto à mesma questão de direito, ou se entender que nem sequer se perfilam questões de direito, o que tudo levará à rejeição do recurso, então nada impedirá que se incluam numa mesma decisão as questões levantadas, no recurso, pelo recorrente. A exigência de processos separados, e de decisões autónomas de fixação de jurisprudência, justifica-se se, a partir do exame preliminar, o processo houver de prosseguir.
VI -Não existe oposição de julgados, quanto à mesma questão de direito, quando no acórdão recorrido se considera uma certa factualidade suficiente para formar a convicção do julgador de que o agente foi negligente e no acórdão fundamento se tem essa factualidade por insuficiente.
VII - Por outras palavras, o preenchimento do tipo negligente socorre-se de uma factualidade que integra a violação do dever de cuidado. Ora, a violação do dever de cuidado constitui um elemento normativo, e não meramente descritivo, do tipo. Para o preencher há que formular um juízo de valor sobre a conduta adoptada, é preciso tomar posição sobre se os cuidados tidos em conta se reputam insuficientes ou não.
VIII - Mas como só em face de cada condicionalismo se apura tal suficiência, a lei não nos pode fornecer um critério geral de cuidado devido, e é por isso que não estamos perante uma questão de direito. Estamos perante uma valoração de factos que se não reclama neste ponto da norma, recorre à multividência do julgador, e não pode deixar, evidentemente, de comportar uma dose de discricionariedade

Decisão Texto Integral:

A – O ACÓRDÃO RECORRIDO


1. Na sequência de uma visita inspectiva às instalações do “Banco .......... S.A.” (doravante B .....), sitas na Av. ............Estoril, pelas 18 h do dia 23/5/2007, foi o dito B .....autuado pela Inspecção Geral de Trabalho (fls. 3).
Na verdade, os trabalhadores AA e BB encontravam-se àquela hora ao serviço, sob as ordens, sob a direcção, e mediante retribuição da infractora, certo que o respectivo horário de trabalho era das 8h às 16h 30, e faltava o registo do trabalho suplementar que estava a ser prestado.
A Srª Inspectora da “Autoridade Para as Condições de Trabalho – Centro Local de Lisboa Ocidental” (de seguida A C T) propôs, e o Sr. Director decidiu, imputar ao B...., ao abrigo do art. 204º nº 1 (que estabelece a obrigatoriedade do registo do trabalho suplementar), a infracção punida como contra-ordenação grave nos termos dos art.s 663º nº 2, 620º nºs 1 e 3, e 616º, todos do Código do Trabalho (Lei 99/2003 de 23 de Agosto, doravante C T), e ainda art. 8º nº 1 do D L 433/82 de 27 de Outubro. Aplicaram-lhe a coima de 20 U C, no valor de € 1 920,00 (vide fls. 12v e 13v).

2. O B.... interpôs recurso de impugnação para o Tribunal de Trabalho de Cascais (fls.18), defendendo, em síntese, que não existiu qualquer negligência da sua parte, já que adoptara os procedimentos que se mostravam adequados, atendendo à dimensão humana muito elevada da entidade patronal. Assim, deu as pertinentes ordens e instruções aos trabalhadores e responsáveis das suas unidades orgânicas, através de reuniões e memorandos normativos.
Acresce “que o registo informático do trabalho suplementar eventualmente prestado só pode ser efectuado por quem tem acesso ao respectivo aplicativo informático, para o efeito, de acordo com a norma de procedimentos interna relativa ao registo de trabalho suplementar. Ou seja, o director do estabelecimento/Gerente” (cf. fls.23 e fls. 38 e segs.).
Foram juntas cópias de decisões do Tribunal de Trabalho de Vila Franca de Xira (fls. 55), Leiria (fls. 63), e Vila Real (fls. 76) que confortam a posição do impugnante.

3. O Tribunal de Trabalho do Círculo Judicial de Cascais produziu a decisão de 12/8/2008 (fls. 86 e segs.), nos termos da qual apurou a seguinte matéria de facto:

“1- No dia 11 de Março de 2007, pelas 18 horas foi efectuada urna visita inspectiva pela Sr.a Inspectora da A.C.T. (à data designada de Inspecção Geral do Trabalho) CC, ao estabelecimento (local de trabalho) do Banco ................, SA., sito na Av." .........no Estoril. - cf. auto de notícia de fls. 6/8.
2- Nessa altura encontravam-se ao serviço da Arguida, sob as suas ordens, direcção, fiscalização mediante retribuição, os seguintes trabalhadores:
a)- AAcujo horário é das 8h00 às 16h30, pelo que a partir das 16:30 às 18:00horas, o trabalhador encontrava-se a prestar trabalho suplementar, o qual não estava registado, nem havia qualquer forma de registo do trabalho suplementar; e
b) - BB, cujo horário é das 08:OOh às 16:30h, pelo que a partir das 16:30 às 18:00 horas, o trabalhador encontrava-se a prestar trabalho suplementar, o qual não estava registado, nem havia qualquer forma de registo do trabalho suplementar. - cf. auto de notícia de fls. 6/8 e documentos de fls. 9 e 10.
3- A Arguida foi notificada para a apresentação de documentos, nomeadamente, do horário de trabalho, tendo junto o documento que se acha a fls. 11 (horário de trabalho).
4- Relativamente aos identificados trabalhadores, que se encontravam a prestar trabalho suplementar entre as 16.30h e as 18.00h, não havia qualquer registo de trabalho suplementar.
5- A arguida/recorrente, é uma sociedade comercial com cerca de 15.000 trabalhadores, e no que respeita ao registo do trabalho suplementar, dá instruções aos seus Gerentes de Agências/Sucursais, acerca dos procedimentos a ter.
6-(...) o que faz, quer através da emissão de Memorandos Normativos e Manuais Operativos, quer através de reuniões para o efeito, com o respectivo Director Comercial — d. documentos
j juntos a fls. 54/59 e 60/68.
7 - Memorandos esses, que o gerente da sucursal em questão, tinha conhecimento à data da visita inspectiva.
8 - A recorrente sabia que estava obrigada a manter o registo do trabalho prestado pelos seus trabalhadores, para além do seu horário diário normal e ao agir da forma descrita, representou como possível que não possuísse tal registo, sem se conformai com essa realização.
9 - Em 2006, a arguida indicou um volume de negócios de €: 3.082.726.911,41.

Factos não provados.

Não se provaram quaisquer outros factos constantes do auto de notícia, da decisão recorrida e do requerimento de interposição de recurso e omissos na anterior descrição ou que estejam em
contradição com aqueles.”

Depois, considerou que o banco arguido não tomou as medidas, em concreto, necessárias, para evitar que o ilícito ocorresse.
Aí se defende que o dever jurídico imposto ao B.... não é o de distribuir instruções ou dar formação aos seus agentes mas o de efectuar o registo do trabalho suplementar prestado. Que ao transferir as suas obrigações para os gerentes e sub-gerentes, o banco tinha obrigação de dirigir e fiscalizar o cumprimento desses deveres. Que depois das instruções e reuniões que o arguido diz que efectuou, nada mais fez para verificar que as suas ordens estavam a ser cumpridas.
A decisão manteve a coima aplicada.

4. O B.... recorreu então para o Tribunal da Relação de Lisboa (fls. 105 e segs.), retomando fundamentalmente a anterior argumentação, e sublinhando que o auto de notícia, a decisão administrativa que aplicou a coima, ou a decisão recorrida, não referem que na altura da inspecção que constatou o trabalho suplementar, se encontrasse na agência o gerente, ou outrem em seu nome, com poderes de controle do registo efectivo desse trabalho suplementar, o que reforçaria a tese defendida da falta de negligência.
Transcreve em seu apoio extractos dos Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 3/12/2008 (Pº 8819/08 - 4) e de 1/7/2009 (Pº 3672/08.4TTLSB.L1), de que junta cópias.

5. A decisão ora recorrida é o acórdão de 16/12/2009 da Relação de Lisboa que, deixando intocada a matéria de facto apurada na primeira instância, negou provimento ao recurso. Veremos adiante porquê.

B - O RECURSO

O banco arguido interpôs então o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência (fls. 160 e segs.), em síntese, com dois fundamentos:
a) Em primeiro lugar, no acórdão recorrido, e de acordo com a factualidade provada, os trabalhadores AA e BB estavam a trabalhar sob as ordens, direcção e fiscalização do recorrente. Trata-se de uma expressão conclusiva e atinente a matéria de direito, que não consubstancia qualquer facto.
Assim o decidiu, segundo o recorrente, o Ac. do S T J de 22/11/2007 (Pº 07S2889), e o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/10/2008 (Pº 7129/08 - 4) cuja cópia foi junta a fls. 182.

b) Depois, o acórdão recorrido considera que o facto de se não ter dado por provado, que o Gerente da Agência do Estoril em apreço, estivesse no local de trabalho aquando da inspecção, na qualidade de responsável pelo registo do trabalho suplementar, não impedia a responsabilização do banco arguido [antes a reforçaria].
Decidiu exactamente ao invés, o Ac. da Relação de Lisboa de 3/12/2008 (Pº 8819/08) com cópia junta a fls. 191, por considerar que, não estando demonstrado nos autos tal presença, faltavam elementos de facto para concluir que a aí arguida agira com negligência. No mesmo sentido se decidiu, segundo o recorrente, no Ac. de 1/7/2009 (Pº 3672/03) com cópia junta a fls. 200.

As conclusões da motivação foram:

“1. No que respeita à primeira questão em análise no presente recurso extraordinário ("as expressões "trabalhar sob as ordens, direcção e fiscalização " constituem matéria de direito e, por isso, não devem estar inseridas na matéria de facto? "), verifica-se que que o Acórdão recorrido, decidiu em sentido, diametralmente, oposto aos doutos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça e o do próprio Tribunal da Relação de Lisboa (respectivamente, de 22.11.2007, processo n.° 07S2889 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.10.2008, processo n.° 7129/08-4).
2. Existe contradição entre o Acórdão proferido nos presentes e os doutos Acórdãos, respectivamente, do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.11.2007, processo n.° 07S2889 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.10.2008, processo n.° 7129/08-4, uma vez que o douto Acórdão recorrido (ao contrário dos dois outros Acórdãos citados, de 22.11.2007 e de 29.10.2008 ) faz constar, porquanto o mantém, o conteúdo do Ponto 2 da denominada "Fundamentação de facto" (que contém as expressões "trabalhar sob as ordens, direcção e fiscalização"), quando ao invés, oficiosamente o deveria ter dado como não escrito, porquanto tal expressão não consubstancia um facto, por se tratar de matéria conclusiva.
3. Assim sendo, tal douto Acórdão (ora recorrido), está em oposição com o decidido no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.11.2007, processo n.° 07S2889, e no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.10.2008, processo n.° 7129/08-4, que decidiram que tal expressão, mais não é do que matéria de direito, porquanto, o thema decidendum da acção depender exclusivamente do significado real dessas expressões ("Nessa altura encontravam-se ao serviço da Arguida, sob as suas ordens, direcção, fiscalização e mediante retribuição, os seguintes trabalhadores ").
4. Na presente acção, pretendia ver-se discutido, entre outras questões, se no dia da visita inspectiva, determinados trabalhadores estariam, ou não, a prestar trabalho, e se esse trabalho era suplementar, sem que o mesmo estivesse registado.
5. Assim, o thema decidendum da presente acção dependia das respostas às expressões "encontravam-se ao serviço da Arguida?", "sob as suas ordens, direcção, fiscalização?" "mediante retribuição? ".
6. Mas como a questão a decidir dependia do significado real dessas expressões, as mesmas teriam de ser consideradas como matéria de direito - e não foram! - e nunca como matéria de facto,
7. Pelo que, e na senda do que já havia sido decidido pelo douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.11.2007, processo n.° 07S2889, e pelo douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.10.2008, processo n.° 7129/08-4, deveria o douto Acórdão de que ora se recorre, tê-las considerado como não escritas, nos termos do n.° 4 do artigo 646.° do Código do Processo Civil.
8. Em face do alegado, deverá ser fixada a requerida uniformização de jurisprudência, nos seguintes termos:
"As expressões "encontravam-se ao serviço da Arguida, sob as suas ordens, direcção e fiscalização" são conclusivas, não podendo constituir matéria de facto, mas apenas de direito, pelo que, deverão ser dadas por não escritas, sempre que elenquem os factos constantes da matéria de facto dada como provada."

9. No que respeita à segunda questão em análise no presente recurso extraordinário ("não resultando provado que o Gerente (trabalhador responsável pelo registo do trabalho suplementar) se encontrava presente na agência, poderá o desrespeito por parte desse trabalhador, das instruções dadas pela entidade patronal, relativas ao registo do trabalho suplementar, obstar, ou não, a que se impute a esta última a prática da infracção contra-ordenacional em causa?), mais uma vez, verificamos que o Acórdão recorrido decidiu em sentido, diametralmente, oposto, ao já vertido pelo mesmo Tribunal da Relação de Lisboa.
10. Em todos os Acórdãos - Acórdão recorrido, Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 03.12.2008 (processo n.° 8819/08), e de 01.07.2009 (processo n.° 3672/03) - consta de entre os factos dados como provados, que a entidade patronal, é uma sociedade comercial com uma estrutura orgânica e hierárquica muito elevada, com grande número de trabalhadores, pelo que, por forma a, acautelar que todas as exigências legais são cumpridas, emite memorandos internos, que disponibiliza a todos os seus trabalhadores, sobre - entre outras matérias - o registo dó trabalho suplementar. Como também em todos aqueles Acórdãos não consta que o gerente (pessoa responsável pelo registo de trabalho suplementar) estava presente no Balcão no momento da visita inspectiva ou no início da prestação do eventual trabalho suplementar.
11. Contudo, apesar de as situações fácticas serem iguais nos três citados Acórdão, como se descreve no parágrafo anterior, existe contradição entre o decidido pelo Acórdão recorrido e os outros dois Acórdãos (do Tribunal da Relação de Lisboa de 03.12.2008 (processo n.° 8819/08), e de 01.07.2009 (processo n.° 3672/03)) porquanto, enquanto que estes dois últimos Acórdãos decidiram (como acima se transcreveu) que, não estando presente o trabalhador ao qual incumbe cumprir e controlar o cumprimento das instruções ou normativos emanados pelo Banco (no sentido de procederem ao registo do trabalho suplementar, quando este seja prestado), não é possível qualificar a actuação do Banco arguido, como sendo negligente e aplicar-lhe uma coima, pela falta do registo do trabalho suplementar, ao contrário, decidiu o douto Acórdão do Tribunal da Relação proferido nos presentes autos, que apesar das normas emitidas pelo Banco e de o Gerente não estar presente, o Banco agiu com negligência, condenando assim o Banco arguido (diversamente dos outros dois Acórdãos), consubstanciando-se assim, oposição frontal entre as decisões jurisprudências em causa.
12. Existem duas soluções jurídicas diferentes, aplicadas à mesma questão de facto e de direito, que é a de saber como se afere a existência de pressupostos fácticos, que qualifiquem como negligente, a actuação de uma entidade empregadora, negligência essa que é pressuposto de uma condenação pela falta de registo de trabalho suplementar.
13. Deve assim ser fixada jurisprudência no sentido em que:
"Se existirem instruções dadas pela entidade patronal, comunicadas aos trabalhadores, impondo o registo de trabalho suplementar, por parte do responsável, se este registo devendo ter sido feito por aquele responsável, não tiver sido feito, e se não se apurar que aquele responsável estava presente no estabelecimento, no momento em que o trabalho suplementar tiver sido realizado, tais factos não permitem concluir que a entidade empregadora não agiu com o dever de cuidado a que estava obrigada e não consubstanciam a negligência da entidade patronal, pressuposto da condenação de contra-ordenação por falta de registo de trabalho suplementar."

O Mº Pº junto do Tribunal da Relação de Lisboa respondeu (fls. 212), e defendeu que, por um lado não podia apresentar-se mais do que um acórdão fundamento, e que por outro, mesmo que assim se não entendesse, estar-se-ia, no caso, apenas perante questões de facto.
Saber se alguém exerce funções sob as ordens direcção e fiscalização de outrem, [sem se pôr em causa o sentido das expressões], seria matéria de facto. Saber se constitui conduta negligente do banco arguido a falta do registo em apreço, independentemente do apuramento da presença do gerente responsável, nas instalações, seria ainda matéria de facto, porque atinente à livre convicção do julgador [e assim à apreciação da prova]. Disse, entre o mais:

“(…) O artigo 438° n° 2 do CPP estatui que, no requerimento do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, deve ser identificado o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre eventualmente em oposição, o local da publicação, se estiver publicado, justificando a oposição que origina o conflito de jurisprudência.
Ora, o requerimento formulado pela recorrente contradiz frontalmente aquele dispositivo legal, ao indicar mais de um acórdão.
A exigência de indicação de apenas uma decisão radica na necessidade de delimitar com precisão a questão a dirimir, sendo este o sentido da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, podendo confrontar-se os seguintes arestos: de 05.09.2007, P° 2566/07-3, de 13-07-2009, P° 1381/04.2TAOER.L1-B.S1, de 01-10-2009, P° 10/07.3GASPS.B.C1 e de 07.01.2010, P°1054/08.7GCMFR.L1-A.S1.
Acresce que as invocadas oposições de acórdãos não se verificam quanto à questão de direito, tudo se reconduzindo a meras questões de facto:
- Quanto à primeira, nas circunstâncias apuradas em sede probatória na primeira instância, é óbvio que é matéria de facto enunciar-se que os trabalhadores da recorrente que se encontravam a prestar serviço para além do horário normal de trabalho exerciam funções sob as suas ordens, direcção e fiscalização.
- Quanto à segunda, é do domínio da livre convicção do julgador o determinar se, nas circunstâncias em que a recorrente foi fiscalizada pelos inspectores da então IGT, a ausência, sob qualquer forma, do registo do trabalho, suplementar dos trabalhadores que então permaneciam em estabelecimento do B.........para além do período normal de trabalho poderia ser imputada a actuação negligente do próprio banco, avaliando a actuação do responsável pela elaboração dos necessários registos, alicerçando a sua convicção em elementos que radicam quer na presença quer na ausência desse responsável no momento da visita inspectiva.
Assim sendo, dir-se-à
III
EM CONCLUSÃO:
I - E jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça que no recurso extraordinário de fixação de jurisprudência não pode ser indicado mais de um acórdão fundamento, nem deve ser formulado convite à correcção do requerimento em caso de indicação de vários acórdãos fundamento.
II - Termos em que o presente recurso deve ser rejeitado, face ao que se dispõe no artigo 441°, n° 1 do CPP.
III - Caso se não entenda desse modo, ainda assim o recurso deve ser rejeitado, uma vez que a invocada oposição de acórdãos não se verifica quanto à questão de direito, como exige o artigo 437°, n° 1 do CPP, tudo se reconduzindo a uma mera oposição quanto a questões de facto.”

Depois de ter sido notificado desta resposta, alertado, o recorrente veio dizer a fls. 218 que, em relação à primeira questão, apenas apresentaria como acórdão fundamento o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/10/2008 tirado no Pº 7129/08 - 4 [cuja cópia foi junta a fls. 182].
Quanto à segunda questão, apresentava então como acórdão fundamento o Ac. da Relação de Lisboa de 3/12/2008 do Pº 8819/08 [com cópia junta a fls. 191].
Acrescenta que, caso se tenha que tomar em consideração no recurso interposto apenas uma questão de direito (o que não era a sua posição), sempre prescindiria da segunda questão invocada.

O MºPº neste S.T.J. teve vista nos autos, de acordo com o nº 1 do artº 440º do C.P.P., e pronunciou-se doutamente, no sentido da rejeição do recurso, ao abrigo do artº 441º nº 1 do CPP.
Depois de manifestar a sua inteira concordância, em relação à posição assumida pelo colega junto da 2ª instância, referiu, em síntese, que no tocante às duas questões de direito, segundo o recorrente a precisarem de uniformização, não existia, tanto quanto pode apurar, nenhum aresto deste S T J em que se debatesse um pluralidade de questões de direito.
Depois de ter em conta que numa mesma decisão se podem levantar e se levantam amiúde várias questões de direito, de ter que se atender ao interesse do recorrente em ver impugnada a decisão recorrida, e ao interesse da unidade da própria decisão, apesar destas considerações, o Mº Pº propendeu para a separação de processos, a fim de que cada um tratasse da sua questão de direito.
Depois, afirmou que, fosse como fosse, estavam em causa nos autos apenas oposições em matéria de facto. Impondo-se, para efeitos do presente recurso, que as questões de direito eventualmente assinaladas como estando em oposição, fossem tratadas, examinadas e decididas, expressamente (Ac. do S T J de 13/1/2000, Pº 1129/99).

Colhidos os vistos submeteram-se os autos a conferencia.

C – APRECIAÇÃO

1. Como já se viu, o recorrente optou por indicar um único acórdão fundamento para cada uma das duas questões de direito levantadas, ainda antes de os autos serem conclusos para o exame preliminar previsto no artº 440º nº 1 do C P P. A indicação inicial de mais de um acórdão fundamento, para cada questão supostamente em oposição, contrariando a jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal, deixou, pois, de constituir obstáculo ao prosseguimento do recurso.
Subsiste, no entanto, aqueloutra questão da invocação de mais de uma questão de direito, alegadamente em oposição, no mesmo recurso.
A posição que se tome sobre esta problemática, para além de atender à literalidade da norma do nº 1 do art 437º do C P P, e de passar em revista elementos de ordem histórica ou sistemática prestáveis, terá evidentemente que valorizar a teleologia do preceito.
Ora, as finalidades que se pretendem prosseguir com o recurso extraordinário em apreço ressaltam, claramente, da disciplina estabelecida para a eficácia do acórdão que resolver o conflito. Tal efeito está previsto no artº 445º do próprio C P P, e respeita em primeiro lugar a uma eficácia interna, com incidência na decisão recorrida, e depois a uma eficácia externa, com o desígnio de unificação jurisprudencial.
Sabe-se que o acórdão de fixação de jurisprudência “não constitui jurisprudência obrigatória” (cf. artº 445º nº 3 do C P P) mas vincula ao respectivo seguimento, na falta de fundamentação cabal para as divergências que se perfilhem. Isto, na esteira do acórdão com força obrigatória geral do Tribunal Constitucional 743/96, de 28 de Maio (D R, Iª Série-A, de 18/7/1996), a que se deve, quanto ao ponto em apreço, a redacção dada ao preceito apontado pela Lei 59/98 de 25 de Agosto.
Assim sendo, se o objectivo de unificação jurisprudencial aponta, por razões pragmáticas ponderosas, para a multiplicação de tantos processos e portanto de decisões, quantas as questões de direito invocadamente em oposição, já a ponderação do efeito interno do acórdão de fixação de jurisprudência aconselharia a posição contrária. Ou seja, a resolução da oposição, das mais do que uma questão de direito, tratadas na mesma decisão recorrida, reclamaria uma só decisão de fixação, por ser a que melhor proporcionaria efeitos concomitantes sobre a dita decisão recorrida. Estar-se-ia aqui perante uma “cumulação de pedidos” sem incompatibilidade entre si, e que proporcionariam a unidade decisória.
Parece portanto que a eficácia interna aconselharia uma tomada de posição, e a externa a posição contrária.
Ora, a invocação de um único acórdão fundamento em cada recurso, como vem sendo pacificamente exigido no S T J, obrigaria necessariamente a que cada questão de direito fosse resolvida na sua própria decisão de fixação (1).
Depois, e sobretudo, a lógica do recurso extraordinário em foco é a de se atender preferencialmente à eficácia externa da uniformização de jurisprudência, ao serviço da segurança do direito, para todos. Nesta linha, as vantagens do tratamento de uma única questão por recurso são inegáveis.
Não fora assim, estar-se-ia a dar prevalência ao interesse pessoal do recorrente, o que transformaria o recurso de fixação em mais um grau de recurso ordinário, com um simples efeito colateral e secundário que seria o de uniformização. Não é isso que o legislador, seguramente, pretendeu.
Somos portanto levados a interpretar literalmente o nº 1 do artº 437º do C P P: soluções opostas quanto à mesma questão de direito, uma só, plasmadas em dois acórdãos, só dois.
Ou então, para usar o lugar paralelo, talvez mais claro, do artº 763º nº 1 do C P C, um acórdão, em contradição com outro, e sobre a mesma questão fundamental de direito.
Assim se pronunciou inequivocamente o acórdão deste Supremo Tribunal de 12/3/2003 (Pº 4623/02 da 3ª Secção):
“(…) Mas ainda que estas deficiências pudessem ser corrigidas por convite feito aos recorrentes, sempre o recurso seria de rejeitar por falta de requisitos substanciais ligados à oposição de acórdãos sobre a mesma questão fundamental de direito.
É que os recorrentes não se limitam a formular um pedido de fixação de jurisprudência relativamente ao tratamento conflituante sobre uma única questão, mas sim de duas (uma relacionada com a censura penal e outra referente ao valor probatório das declarações prestadas em audiência por um arguido em desfavor de outro), indicando para cada uma delas um acórdão-fundamento diferente.
Ora a lei é claríssima quando estabelece que o recurso para fixação de jurisprudência se restringe a uma única questão de direito (fala-se expressamente em «a mesma questão de direito - art. 437º, n.º 1 do CPP) e que para essa questão só é possível indicar um único acórdão-fundamento, como atrás ficou dito.”

2. Importa no entanto sublinhar, que a posição a que aderimos cobra verdadeira razão de ser, depois de verificada a oposição de julgados sobre a mesma questão de direito. Porque só então se equacionarão verdadeiramente as dificuldades (ou vantagens) da conjugação num mesmo acórdão de fixação de mais de uma questão de direito. Numa fase de exame preliminar (cf. artº 440º nº 3 do C P P), em que se venha a considerar o recurso inadmissível, se conclua pela não oposição de julgados quanto à mesma questão de direito, ou se entenda que nem sequer se perfilam questões de direito, o que tudo levará à rejeição do recurso, então nada impedirá que se incluam numa mesma decisão as questões levantadas, no recurso, pelo recorrente. A exigência de processos separados, e de decisões autónomas de fixação de jurisprudência, justifica-se se, a partir do exame preliminar, o processo houver de prosseguir.

3. Em relação à primeira oposição invocada, já se viu que o acórdão recorrido deixou intocada a matéria de facto que vinha da primeira instância. E aí se disse
“(…) 2- Nessa altura encontravam-se ao serviço da Arguida, sob as suas ordens, direcção, fiscalização[e] mediante retribuição, os seguintes trabalhadores:
a)- AA cujo horário é das 8h00 às 16h30, pelo que a partir das 16:30 às 18:00horas, o trabalhador encontrava-se a prestar trabalho suplementar, o qual não estava registado, nem havia qualquer forma de registo do trabalho suplementar; e
b) - BB, cujo horário é das 08:OOh às 16:30h, pelo que a partir das 16:30 às 18:00 horas, o trabalhador encontrava-se a prestar trabalho suplementar, o qual não estava registado, nem havia qualquer forma de registo do trabalho suplementar. - cf. auto de notícia de fls. 6/8 e documentos de fls. 9 e 10.”

3. 1. Ora, analisada a decisão apresentada como acórdão fundamento para a primeira suposta oposição, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29/10/2008 (Processo n.° 7129/08-4), já transitado em julgado, aí se lê:

“(…) II. FUNDAMENTOS DE FACTO
A 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. No dia 14/4/2007, pelas 18.00 horas, na dependência bancária e local de trabalho da arguida, sito na avenida dos ...................., nº ..., ..., em Algés (Agência dos ........), foi efectuada uma visita inspectiva;
2. Naquele dia e hora, o banco arguido tinha ao seu serviço, sob as suas ordens, direcção e mediante retribuição, desempenhando tarefas próprias da actividade, os trabalhadores DD, EE e FF;
3. De acordo com o mapa de horário de trabalho em vigor os referidos trabalhadores deveriam ter terminado o seu dia de trabalho pelas 16.30horas;
4. No livro de registo de trabalho suplementar não constava qualquer registo prévio do trabalho suplementar prestado pelos referidos trabalhadores;
5. O Banco arguido apresentou no ano civil anterior, ano 2006, um volume de negócios superior a 10.000.000,00 de euros.
III FUNDAMENTOS DE DIREITO
A arguida foi acusada de, no dia 14/04/2007, ter ao seu serviço, três funcionários a trabalhar, na sua agência de Algés, fora do seu horário de trabalho, sem ter registado previamente a prestação desse trabalho.
O tribunal recorrido considerou provada esta matéria e condenou a arguida na coima de €2.016,00, pela prática de contra-ordenação prevista nos arts. 204°, n."s 1, 2, 3 e 4 e 663° n.°2 do Código do Trabalho [CT].
O recorrente discorda da referida decisão, alegando que não existem factos, na acusação e na decisão, que permitam concluir que o mesmo cometeu tal contra-ordenação.
Vejamos se lhe assiste razão.
Dispõe o art. 197°, n.° 1 do CT que o trabalho suplementar é aquele que é prestado fora do horário de trabalho. E o art. 204° n. °s 1, 2, 3 e 4 do CT estabelece que o empregador que recorra ao trabalho suplementar deve possuir um registo desse trabalho onde, antes do início da sua prestação e logo após o seu termo, devem ser anotadas as horas de início e termo do trabalho suplementar, e que esse registo deve ser visado pelo trabalhador imediatamente a seguir à sua prestação e deve conter a indicação expressa do fundamento da sua prestação.
Por seu turno, o art. 258° dispõe que só é exigível o pagamento do trabalho suplementar que tenha sido prévia e expressamente determinado pelo empregador ou que tenha sido prestado de modo a não ser previsível a oposição deste.
Finalmente, o art. 663°, n.° 2 do CT diz-nos que constitui contra-ordenação grave a violação do disposto nos n.ºs 1, 2, 3 e 4 do art, 204, infracção essa a que corresponde em abstracto em caso de negligência e atendendo ao volume de negócios da arguida, a coima de 15 UC a 40 UC, nos termos do art. 630° n. °s 3, al. e) e 5 do mesmo código.
Quer isto dizer que só se poderá concluir que o recorrente cometeu a contra-ordenação que lhe foi imputada se na matéria de facto provada constarem factos que nos permitam concluir:
a) Que os trabalhadores em causa estavam vinculados à arguida por contrato de trabalho;
b) Que os referidos trabalhadores se encontravam a prestar trabalho, no dia 14/04/2007, na agência da arguida, em Algés, fora do seu horário de trabalho;
c) Que esse trabalho foi prévia e expressamente determinado pelo recorrente ou foi prestado de modo a não ser previsível a oposição deste.
Ora, se analisarmos a "matéria de facto" que ai" instância deu como provada, verificamos que nela consta apenas, em termos factuais, o seguinte:
1. Que no dia 14/04/2007, pelas 18.00 horas, a ACT efectuou uma visita inspectiva à dependência bancária do arguido, sita na Avenida dos ...............a, n.".............., em Algés;
2. Que nesse dia e hora, se encontravam a trabalhar, naquela dependência, DD, EE e FF;
3. Que no livro de registo de trabalho suplementar não constava qualquer registo prévio de trabalho suplementar prestado pelos referidos trabalhadores.
Toda a demais matéria descrita nos "factos provados" da sentença, é constituída por matéria de direito e por conclusões, designadamente, a descrita nos nºs 2 e 3, nos quais de refere que "o banco arguido tinha ao seu serviço, sob as suas ordens, direcção e mediante retribuição, desempenhando tarefas próprias da actividade os trabalhadores DD, EE e FF " e que "de acordo com o mapa de horário de trabalho em vigor os referidos trabalhadores deveriam ter terminado o seu dia normal de trabalho pelas 16.30 horas". Se em relação a determinadas expressões, é possível concluir, com segurança, que constituem matéria de facto ou matéria de direito, muitas vezes, defrontamo-nos com expressões de integração dúbia ou com expressões que ora se inserem no campo dos factos, ora surgem como categorias puramente jurídicas, consoante o contexto em que se integram. Estas dificuldades de delimitação são extensíveis aos juízos de valor, que tanto integram normas jurídicas, como, por vezes, se situam no plano dos factos. Não é, por isso, despicienda a opção que o juiz tiver que tomar quanto à integração de determinada expressão ou afirmação no campo da matéria de facto ou na matéria de direito, já que dela pode depender o sucesso ou o insucesso do processo.
A inclusão das expressões "tinha ao seu serviço, sob as suas ordens e direcção", "o seu dia normal de trabalho terminava às 16.30 horas" numa ou noutra das referidas categorias dependerá fundamentalmente do objecto da acção.
Se o thema decidenddum da acção, no todo ou em parte, estiver precisamente dependente e localizado no significado real destas expressões, tem de considerar-se que estamos perante matéria de direito, insusceptível de ser incluída na acusação e na decisão sobre a matéria de facto (realce nosso). Na eventualidade de o tribunal as integrar na decisão da matéria de facto, a decisão, nessa parte, é totalmente irrelevante, pois essa matéria, nos termos do art. 646", n."4 do CPC, deve considerar-se não escrita. Se pelo contrário, o objecto do litígio não girar à volta da resposta exacta que se dê a tais afirmações, parece-nos que as mesmas podem ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção de meios de prova e da pronúncia final do tribunal que efectua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se dos textos legais. Ora, estando em causa neste processo, a questão de saber se os trabalhadores DD, EE e FF, no dia 14/4/2007, pelas 18.00 horas, estavam a prestar serviço, sob as ordens e direcção do arguido, fora do seu horário de trabalho (realce nosso), o juiz recorrido não podia integrar na decisão da matéria de facto provada as expressões "naquele dia e hora, o Banco tinha ao seu serviço, sob as suas ordens e direcção"; "de acordo com o mapa de horário de trabalho em vigor deveriam ter terminado o seu dia normal de trabalho pelas 16.30 horas", pois a questão a decidir está precisamente dependente do significado real destas expressões. Constituindo estas expressões matéria de direito a sua integração na decisão da matéria de facto é totalmente irrelevante (devendo considerar-se não escrita - art. 646º, n.º4 do CPC). Não constam, assim, da matéria de facto provada elementos de facto concretos que nos permitam formular tais juízos de valor ou tais conclusões, isto é, que nos permitam concluir que os referidos trabalhadores estavam a trabalhar, naquele dia e hora, fora do seu horário de trabalho, por determinação do recorrente. Não constando da "matéria de facto provada" elementos que nos permitam concluir que tal trabalho estava a ser prestado fora do horário de trabalho daqueles trabalhadores e tinha sido previamente determinado pelo recorrente, não podemos concluir que o arguido infringiu o disposto no art. 204°, n.° 1 do CT, pois o cumprimento da obrigação prevista neste preceito só faz sentido se estiver em causa a prestação de trabalho fora do horário de trabalho e se o empregador tiver previamente determinado a prestação e não se opuser, expressa e tacitamente, a essa prestação. (…)”

3. 2. A não oposição de julgados quanto à mesma questão de direito resulta claramente do confronto das duas decisões.

3. 2. 1. Desde logo, o acórdão recorrido limita-se a deixar intocada a matéria de facto apurada em primeira instância.
Curiosamente, na impugnação que dirigiu ao Tribunal de Trabalho de Cascais, a defesa do Banco arguido centra-se exclusivamente na não verificação de negligência da parte deste (fls. 18 e segs.). Não se questiona minimamente que os trabalhadores AA e BB estivessem a trabalhar sob as ordens, direcção, fiscalização e mediante retribuição do B.....
Mas no recurso para o Tribunal da Relação (fls. 105 e segs.), o B.... volta a deixar intocada a inclusão na matéria de facto do que acima se transcreveu, não se lhe refere minimamente, e muito menos pretende que seja passagem a considerar não escrita de acordo com o art. 646º, n.º4 do Código de Processo Civil.
Ou seja, era pacífico para todos, acusação, defesa e tribunal, antes do presente recurso extraordinário, que a expressão transitada para o acórdão recorrido “sob as suas ordens, direcção, fiscalização[e] mediante retribuição” respeitava a matéria de facto. Nunca ninguém questionou a existência ou os termos do vínculo laboral que ligava, supostamente por contrato, os trabalhadores ao Banco. Ao contrário do que parece ter acontecido com o acórdão fundamento, o “thema decidendum” nunca esteve dependente do significado, considerado pacífico, daquelas expressões, antes se centrou sempre, e só, na questão de ter ou não havido negligência por parte do B.....
E como bem se refere no acórdão fundamento (e essa seria mais uma razão para a inexistência de oposição de julgados), a mesma expressão pode ser relativa, num certo contexto, a matéria de direito, e noutro, a matéria de facto. Aí se referiu
“(…) Se pelo contrário, o objecto do litígio não girar à volta da resposta exacta que se dê a tais afirmações, parece-nos que as mesmas podem ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção de meios de prova e da pronúncia final do tribunal que efectua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se dos textos legais”.
A expressão em causa nunca poderá ser considerada, no acórdão recorrido, atinente a matéria de direito. Não respeitando a matéria de direito, não pode existir entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, oposição…quanto à mesma questão de direito.

3. 2. 2. Mas, mesmo que por absurdo se entendesse que as expressões incluídas na matéria de facto, no contexto da decisão recorrida, eram matéria de direito, nunca se tinha tomado explicitamente posição, no acórdão recorrido, acerca dessa suposta questão de direito.
O artº 437º do C.P.P. reclama, para fundamento do recurso extraordinário de revisão, a existência de dois acórdãos, tirados sob a mesma legislação, que assentem em soluções opostas quanto à mesma questão de direito. Perfilada pois uma questão de direito, importa que se enunciem “soluções” para ela, que se venham a revelar opostas.
Os dois acórdãos têm que assentar em soluções opostas. A oposição deve ser expressa e não tácita. Isto é, tem que haver uma tomada de posição explícita divergente quanto à mesma questão de direito. Não basta que a oposição se deduza de posições implícitas, que estão para além da decisão final, ou que em cada um dos acórdãos esta tenha, só por pressuposto, teses diferentes. A oposição deve respeitar à decisão e não aos seus fundamentos (cf. v.g. Ac. do S.T.J. de 11/10/2001, Pº 2236/01 desta 5ª Secção).
Citando A. REIS, dizem-nos SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES:
“Dá-se a oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas” (in “Recursos em Processo Penal”, pag. 183).
A seu turno, o Ac. deste S.T.J. de 23/4/1986 (B.M.J. 356-272) defendeu que “É indispensável para haver oposição de acórdãos, justificativa de recurso, que as disposições legais em que se basearam as decisões conflituantes, tenham sido interpretadas e aplicadas diversamente a factos idênticos”. Esta jurisprudência foi depois uniformemente seguida neste Supremo Tribunal (cf. ob. cit. a menção dos acórdãos pertinentes, a pag. 183, nota 189).
Como diz P. P. de Albuquerque, “A oposição de acórdãos tem de ser expressa e não tácita, não bastando que um deles aceite tacitamente a doutrina contrária [à] do outro” (in “Comentário do Código de Processo Penal” pag. 1181).

3. 3. Na linha do que atrás se concedeu, não deixaremos de tomar posição sobre a outra suposta oposição de julgados quanto à mesma questão de direito invocada pelo recorrente: necessidade ou não de o gerente da Agência estar aí presente aquando da prestação do trabalho suplementar, para se poder falar de negligência do Banco.

3. 3. 1. Transcreve-se o que tal propósito se disse no acórdão recorrido.
“(…) O art. 15° do Código Penal dispõe: "Age com negligencia quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstancias, esta obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto".
Assim, no tipo legal negligente censura-se ao agente o não ter observado os deveres de diligência que, perante as circunstancias e face aos seus conhecimentos e capacidades pessoais, lhe incumbiam, não prevendo a realização do resultado, quando o podia ter feito, ou, prevendo-o, confiou em que não ocorreria.
A negligência traduz-se, assim, na omissão de um dever objectivo de cuidado ou diligencia que, segundo as circunstâncias concretas, seria adequado a evitar o resultado produzido. Também na negligencia se parte de um facto voluntário punível, um comportamento humano dominado pela vontade, pelo que a responsabilidade negligente pressupõe, igualmente, a capacidade de acção vertida numa conduta humana socialmente relevante.
A infracção em causa há-de abarcar um agente, uma determinada actividade, um resultado, e a violação de um dever de cuidado a que esse agente esta obrigado e de que se e capaz, residindo neste ultimo aspecto o fulcro da responsabilidade negligente.
No caso "sub judice" e facto público e notório que o Banco arguido tem uma dimensão bastante significativa de âmbito nacional, tendo ao seu serviço um número considerável de trabalhadores e, certamente, dispõe de um serviço de apoio jurídico que lhe permite ter uma noção precisa do conteúdo das suas obrigações legais de âmbito laboral.
Daí ser legitimo sustentar que, em situações como a que e focada nestes autos ou outras similares, o empregador deve providenciar pela adopção de todos os mecanismos que lhe permitam verificar o cumprimento das normas legais sobre registo do trabalho suplementar, mantendo esse registo sempre disponível para controlo e fiscalização das competentes autoridades a quem esse registo tem de ser facultado logo que solicitado.
Ora, "in casu", como resulta dos factos provados sob os n°s 1 e 2, aquando da visita inspectiva á Agência do Banco recorrente no Estoril, os trabalhadores AA e BB, estavam a realizar trabalho suplementar sem que houvesse registo do mesmo, ou qualquer forma de o registar, inviabilizando que a ACT controlasse a realização daquele tipo de trabalho e não foi invocada pelo recorrente qualquer razão que pudesse entender-se como, eventualmente, justificativa dessa falta de registo, pelo que o Banco/arguido agiu sem a diligência e cuidado que lhe eram devidos, sendo que podia e devia ter agido de outro modo, pois sabia que estava obrigada a manter o registo daquele tipo de trabalho (facto 8).
Neste contexto, aquele Banco não agiu com o dever de cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, pelo que é perfeitamente legitima a imputação subjectiva da contra-ordenação ao mesmo, nos termos em que foi efectuada pela autoridade administrativa e mantida pelo Tribunal recorrido.
Diz o recorrente nas conclusões 17 e 18, que a falta de registo do trabalho suplementar ficou a dever-se a uma omissão do trabalhador responsável pela realização desse registo, mas que não consta dos factos provados quem era esse responsável.
Mas não é assim.
É o próprio Banco recorrente que diz nas suas conclusões 12, 13 e 14 que a responsabilidade de efectuar o registo do trabalho suplementar cabe aos responsáveis de Unidades
Orgânicas e aos colaboradores em quem deleguem como, aliás, resulta do facto 5 dado como provado.
Realmente, no facto 5 deu-se como provado que a arguida/recorrente, no que respeita ao registo do trabalho suplementar, dá instruções aos seus gerentes de Agências/Sucursais, acerca dos procedimentos a ter.
Assim, a pessoa que, no "terreno" tinha de efectuar, ou assegurar que se efectuasse o registo do trabalho suplementar, era o gerente da Agência inspeccionada, sita no Estoril e não foi dada justificação para que o mesmo não tivesse efectuado aquele registo ou ordenado a alguém que o fizesse, o que revela uma total falta de cuidado e diligência no cumprimento daquela imposição legal.
E não venha o recorrente querer afastar a sua responsabilidade pelo facto de ter encarregue aquele gerente de proceder ao registo do trabalho suplementar.
Como se entendeu nos Ac.s desta Relação citados pelo recorrente e juntos nestes autos, à arguida compete dar instruções, mas também lhe compete fazê-las observar, escolhendo para o efeito chefias idóneas, competentes e responsáveis, exercendo eficazmente sobre elas o poder de controlo e fiscalização. De outro modo, teríamos uma situação de total irresponsabilidade da entidade empregadora que sempre poderia dar uma ordem e achar que podia, em sua defesa, dizer que a culpa era do trabalhador. E é precisamente isso que o Banco recorrente vem fazer, nomeadamente na sua conclusão 17.
Como se refere no Ac. citado pelo recorrente e junto a fls. 144 e segs. os actos ou omissões dos gerentes "..., enquanto levados a cabo no desempenho das correspondentes funções de direcção ou chefia na Agência em que foram investidos pela Administração, não podem deixar de ser imputados, directamente, ao empresário (entidade patronal ou empregador), sob pena de estar encontrada uma forma de total desresponsabilização da entidade empregadora, já que, ante uma qualquer conduta assumida no seio da sua organização empresarial e que, por acção ou omissão, seja violadora de deveres ou obrigações, designadamente de natureza laboral, e, como tal susceptível de constituir ilícito de mera ordenação social, sempre a mesma se poderia escudar na existência de uma qualquer circular ou ordem por si emitida, e, com base nela, imputar a culpa a um qualquer trabalhador que a devesse ter cumprido".
É isso que o Banco recorrente vem fazer (conclusão 17) ao dizer que a falta do registo em causa se ficou a dever a uma omissão do trabalhador responsável, esquecendo que a omissão desse trabalhador (o gerente da Agência inspeccionada - facto 5 da matéria provada), é imputável à entidade patronal (o Banco recorrente), que tem obrigação de arranjar pessoas competentes nas quais delega os seus poderes e o dever de fiscalizar se os mesmos são efectivamente cumpridos.
O recorrente vem ainda dizer na conclusão 31 e 32, que não ficou provado que na Agência inspeccionada se encontrasse, no momento da visita inspectiva, o respectivo gerente ou qualquer outro trabalhador em que estivessem delegados os poderes de controlo e efectivo registo do trabalhão suplementar.
Acontece que isso só realça a negligência verificada neste caso concreto pois que o gerente encarregue de efectuar o registo do trabalho suplementar, não devia ter saído da Agência sem proceder a tal registo ou, a ter que sair, devia ter encarregue outra pessoa que ali permanecesse, de efectuar aquele registo. E se este actuou de forma incompetente ou negligente ao ir-se embora sem proceder ao registo em questão e sem deixar alguém encarregue de o fazer, isso é imputável ao Banco recorrente, pois que, como já supra referimos, compete ao mesmo, enquanto entidade patronal do dito gerente, assegurar-se da sua competência e diligência no cumprimento das ordens que lhe deu. De outro modo estava descoberta a forma óptima de instituições como o Banco/arguido nunca responderem pelo tipo de infracção em causa, pois bastava que delegasse os seus poderes de efectuar o registo do trabalho suplementar no gerente de cada Agência e este saísse à sua hora normal, deixando outros trabalhadores a realizar trabalho suplementar, sem encarregar ninguém de efectuar o registo do mesmo.
No óptica do Banco recorrente, não estando na Agência, aquando da visita inspectiva, o gerente da mesma ou alguém que este tenha encarregue de efectuar o registo do trabalho suplementar, a falta desse registo nunca seria punida, o que é inconcebível, tanto mais que se estaria a premiar uma conduta irresponsável, logo negligente, do Banco/arguido ao não fiscalizar se o gerente saía da Agência sem cumprir aquela obrigação legal e sem deixar alguém encarregue de a cumprir. Se tal se aceitasse, interessava mais ao Banco/arguido arranjar gerentes incompetentes ou descuidados, do que pessoas competentes e diligentes, pois sempre beneficiaria da prestação de trabalho suplementar, sem que este fosse controlado pelas autoridades competentes.
Ora, repisamos, à entidade patronal compete, não só dar instruções, mas também, fazê-las cumprir, escolhendo para o efeito chefias idóneas, competentes e responsáveis, exercendo eficazmente sobre elas o poder de controlo e fiscalização.
Se o gerente actuou mal ao não ter permanecido na Agência para registar o trabalho suplementar e não ter deixado alguém encarregue de efectuar esse registo, o Banco recorrido poderia agir contra ele em termos disciplinares. O que não pode é aproveitar-se da eventual incompetência ou negligência desse gerente, por si nomeado, para tentar eximir-se à sua responsabilidade contra-ordenacional.
Como já supra referimos e aqui nos permitimos repetir, em casos como o destes autos, os actos ou omissões dos gerentes, enquanto levados a cabo no desempenho das correspondentes funções de direcção ou chefia na Agência em que foram investidos pela Administração, não podem deixar de ser imputados, directamente, à entidade patronal, sob pena de estar encontrada uma forma de total desresponsabilização desta, pois que, perante uma conduta assumida na Agência, violadora de deveres ou obrigações, neste caso de natureza laboral, susceptível de constituir ilícito de mera ordenação social, sempre o empregador podia escudar-se na existência de uma qualquer circular ou ordem por si emitida e, com base nela, imputar a culpa a esse gerente por a não ter cumprido.
No caso concreto destes autos, há ainda a realçar que, não só se verificou a falta do registo do trabalho suplementar relativo ao dia da visita inspectiva da ACT, mas também se deu como provado no facto 2 que não havia qualquer forma de registo do trabalho suplementar.
E no facto 8 deu-se como provado que "A recorrente sabia que estava obrigada a manter o registo do trabalho prestado pelos seus trabalhadores, para além do seu horário normal e ao agir da forma descrita, representou como possível que não possuísse tal registo, sem se conformar com essa realização".
Perante estes factos, não faz sentido o Banco recorrente vir insistir que não se verifica o elemento subjectivo da infracção em causa - a negligência pela qual foi punido.
Improcedem, pois, todas as conclusões de recurso”

3. 3. 2. A seu turno, no acórdão para este efeito indicado como fundamento (Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 3/12/2008, Pº 8819/08), afirmou-se:

“(…) O aqui arguido "Banco BPI, S.A." foi responsabilizado mediante o pagamento de uma coima no valor de € 2 112,00 pela autoridade administrativa, que considerou que o mesmo havia cometido, por negligência, uma infracção ao disposto no art° 204°, n° 1, do Código do Trabalho.
Estabelece este normativo legal que «o empregador deve possuir um registo de trabalho suplementar onde, antes do início da prestação e logo após o seu termo, são anotadas as horas de início e termo do trabalho suplementar».
Ora, ficou provado que, havendo terminado o período normal de trabalho às 16 horas e 30 minutos, o arguido mantinha ao seu serviço, no balcão dos Olivais, em Lisboa, no dia 24/5/2007, pelas 17,10 horas, os trabalhadores GG, HH e II, sem que tivesse sido efectuado o registo de trabalho suplementar, com indicação da respectiva hora de início.
Conclui-se, pois, desta matéria de facto, que a prestação de actividade laboral para além das 16,30 horas do mencionado dia 24 de Maio de 2007, por parte dos referidos trabalhadores ao serviço e sob a autoridade e direcção do arguido, se efectuava em manifesta violação do disposto naquele normativo legal, o que constitui contra-ordenação laboral uma vez que esta, nos termos do art° 614° do aludido Código do Trabalho é «todo o facto típico, ilícito e censurável que consubstancie a violação de uma norma que consagre direitos ou imponha deveres a qualquer sujeito no âmbito das relações laborais e que seja punível com coima».
Estabelece, aliás, o art° 663°, n° 2, do mesmo Código, que «constitui contra-ordenação grave a violação do disposto no ...n.° 1 ...do art.º 204º.
A questão que se coloca agora, é, pois, a de saber se o arguido pode ser responsabilizado pelo cometimento de uma tal contra-ordenação, a título de negligência, como for considerado pela autoridade administrativa.
Entendeu a sentença recorrida que não estavam preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do ilícito contra-ordenacional, já que se não provou que a arguida não promoveu o registo do trabalho suplementar, ao invés se apurou que a mesma, através da Direcção de Recursos Humanos, deu instruções aos seus trabalhadores no sentido do registo de trabalho suplementar ser efectuado pelo trabalhador que o presta, registando-o no início da prestação e logo após o seu termo, conforme nota de procedimentos a fls. 44 e ss. dos autos.
Entendimento que o recorrente M°P° não aceita, sustentando, em suma, que por existirem normas internas que facultam aos trabalhadores esse registo, tal não afasta a responsabilidade do empregador pela actuação a titulo de negligência, por não observar o dever de cuidado e zelo necessários ao cumprimento da norma. Essas de instruções de carácter genérico não esgotam o dever de diligência imposto por lei ao empregador. Vejamos:
Tal como no ilícito penal, no ilícito contra-ordenacional há também um princípio de culpa.
Do art° 8º , n° 1 do RGCO decorre que a negligência só é punível se a lei especialmente o determinar.
O art.º 616° do Código do Trabalho estipula que "A negligência nas contra-ordenações laborais é sempre sancionável'.
Desta norma não decorre qualquer presunção de negligência nas contra-ordenações. dado que a culpabilidade deve ser apreciada e decidida no decurso do processo respectivo (cfr. João Soares Ribeiro, Contra-Ordenações Laborais - Regime Jurídico Anotado contido no Código do Trabalho, 2ª edição, pág. 335).
Dispõe o art. 15° do Código Penal: "Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz: a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto"..
No tipo legal negligente censura-se ao agente o não ter observado os deveres de diligência que, perante as circunstâncias e face aos seus conhecimentos e capacidades pessoais, lhe incumbiam, não prevendo a realização do resultado, quando o podia ter feito, ou prevendo, confiou em que não ocorreria.
A negligência traduz-se, à partida, na omissão de um dever objectivo de cuidado ou diligência que, segundo as circunstâncias concretas, seria adequado a evitar o resultado produzido.
Na negligência não deixa de se partir de um facto voluntário punível, em que se exige um. Comportamento humano dominado pela vontade, pelo que a responsabilidade negligente pressupõe, igualmente, a capacidade de acção, vertida numa "conduta humana socialmente relevante".
O tipo há-de abarcar um agente, uma determinada actividade, um resultado, e a violação de um dever de cuidado a que se está obrigado e de que se é capaz (cf. artº 15° do Cod. Penal), residindo neste último aspecto o fulcro da responsabilidade negligente.
O problema essencial reside no critério a utilizar para aferir do que seja uma acção prudente ou uma acção negligente, o que significa, na verdade, descobrir o conteúdo do dever de cuidado, cuja contrariedade determinará a tipicidade da acção.
Na situação concreta não poderá adoptar-se o raciocínio simplista de que, pelo simples facto de o arguido ter encarregue cada um dos trabalhadores que prestava trabalho suplementar de proceder ao seu registo, e não o tendo os trabalhadores feito, tal o desonera de providenciar por esse registo.
É facto público e notório que o Banco arguido tem uma dimensão significativa, de âmbito nacional, tendo ao seu serviço um número considerável de trabalhadores.
Ora, como bem refere Jorge Henrique Pinto Furtado, in Curso de Direito das Sociedades, 5a Edição, paga 365, «a crescente complexidade, no mundo moderno, da organização empresarial e dos meios técnicos do seu funcionamento, conjugados com o intento de optimização da eficácia da actividade económica, levaram porém o empresário de maior dimensão a repartir em muitos casos a chefia da empresa, com certos trabalhadores subordinados muito qualificados, que se elevam assim à função directiva.
Surge deste modo a segunda das apontadas classes - os dirigentes - que, tendo embora a condição de trabalhadores subordinados partilham a chefia com o empresário (entidade patronal detentora do capital), formando uma espécie correntemente denominada de patrões sem capital».
Daí que seja legítimo sustentar que, em situações do género da que nos ocupa, o empregador deverá providenciar pela adopção de outros mecanismos que lhe permitam verificar o cumprimento das normas legais sobre registo de trabalho suplementar, não podendo pura e simplesmente descartar essa responsabilidade com o argumento de que passou essa sua incumbência para os trabalhadores em questão.
E, como se escreveu no Ac. desta Relação de 7/6/2006, proc. 3797/06, em que o aqui relator interveio como adjunto, se há trabalhadores que se possam integrar no referido patamar de responsabilidade, "eles são, seguramente, os gerentes bancários enquanto dirigentes ou máximos responsáveis nas Agências que integram, a estrutura, em regra complexa e altamente hierarquizada, de uma qualquer instituição bancária. Daí que os respectivos actos ou omissões, enquanto levados a cabo no desempenho das correspondentes funções de direcção ou chefia na Agência em que foram investidos pela Administração, não possam deixar de ser imputados, directamente, ao empresário (entidade patronal ou empregador), sob pena de estar encontrada uma forma de total desresponsabilização da entidade empregadora, já que, ante uma qualquer conduta assumida no seio da sua organização empresarial e que, por acção ou omissão, seja violadora de deveres ou obrigações, designadamente de natureza laboral, e, como tal susceptível de constituir ilícito de mera ordenação social, sempre a mesma se poderia escudar na existência de uma qualquer circular ou ordem por si emitida, e, com base nela, imputar a culpa a um qualquer trabalhador que a devesse ter cumprido".
Acontece, porém, que no caso em apreço não ficou provado que, no momento do início da prestação do trabalho suplementar, ou posteriormente, se encontrasse na agência o respectivo gerente ou qualquer outro trabalhador em que estivessem delegados os respectivos poderes. Apesar de tal estar referido no auto de notícia, não consta do elenco dos factos dados por provados pela 1ª instância, sendo que este Tribunal de recurso não tem, por via de regra, poderes de reapreciação da matéria de facto, mesmo que fosse o caso.
Assim sendo, não estando demonstrado nos autos que, no momento em questão, se encontrasse na agência qualquer trabalhador com funções de chefia ou que detivesse poderes de controlar o efectivo não registo do trabalho suplementar, faltam elementos de facto que permitam concluir que a arguida não agiu com o dever de cuidado a que estava obrigada e era capaz.
E não se presumindo a negligência, não é legítima a imputação subjectiva da contra-ordenação ao arguido.
Pelo que improcedem as conclusões do recurso.”

Não são necessárias grandes considerações para se concluir que a divergência que aflora nos dois acórdãos em confronto respeita exclusivamente a matéria de facto. Eloquente neste sentido é a passagem transcrita, do acórdão apontado como fundamento, em que se diz “faltam elementos de facto que permitam concluir que a arguida não agiu com o dever de cuidado a que estava obrigada e era capaz”.
Ou seja, no acórdão recorrido entendeu-se que a ausência do gerente da Agência bancária, na altura em que estava a ser prestado trabalho suplementar, não era impeditiva da imputação da infracção ao B.... a título de negligência, antes a favorecia. No acórdão fundamento considerou-se que a falta de prova da presença do dito gerente na Agência, debilitava de tal modo o acervo de factos necessários para se integrar a negligência, que a culpa do banco sob esta modalidade (ou outra), não foi considerada provada.
A negligência cifra-se na violação de um dever de cuidado a que se está obrigado e de que se é capaz (cf. artº 15° do Cod. Penal). Importa, em primeiro lugar, que o facto que se pretende evitar tenha sido previsto, ou pudesse ter sido previsto pelo o agente. Fosse razoavelmente previsível, portanto. Depois, é necessário que tenha ocorrido uma omissão de cuidado a que, segundo as circunstâncias, se está obrigado. Pede-se ao agente uma diligência que se considera objectivamente devida, e que se cifra nos procedimentos aconselháveis, no condicionalismo, a evitar o efeito danoso.
Partindo do princípio de que os factos são idênticos, no que releva, em ambos os acórdãos, a convicção de que o B.... agiu com culpa, por parte do julgador, bastou-se com um certo número de factos provados, no acórdão recorrido. Esses mesmos factos foram insuficientes, no acórdão fundamento, para criar a convicção, no julgador, de que o B.... fora negligente.
Por outras palavras, o preenchimento do tipo negligente socorre-se de uma factualidade que integra a violação do dever de cuidado. Ora, a violação do dever de cuidado constitui um elemento normativo e não meramente descritivo do tipo. Para o preencher há que formular um juízo de valor sobre a conduta adoptada, é preciso tomar posição sobre se os cuidados tidos em conta se reputam insuficientes ou não. Mas como só em face de cada condicionalismo se apura tal suficiência, a lei não nos pode fornecer um critério geral de cuidado devido, e é por isso que não estamos perante uma questão de direito. Estamos perante uma valoração de factos que se não reclama neste ponto da norma, recorre á mundividência do julgador, e não pode deixar, evidentemente, de comportar uma dose de discricionariedade.
Não dependeu de uma diferente interpretação do dito nº 1 do artº 15 saber se houve ou não violação do dever de cuidado. Dependeu de uma diferente valoração dos factos disponíveis. E é por isso que não estamos perante divergência sobre matéria de direito.

D - DELIBERAÇÃO

Pelo exposto se decide em conferência, neste S.T.J., não existir oposição de julgados sobre a mesma questão de direito, entre o decidido no acórdão de 16/12/2009, do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no Pº 242/08.OTTCSC.L1 (acórdão recorrido), e no acórdão da mesma Relação proferido a 3/12/2008, no Pº 8819/08 (acórdão fundamento), ou no acórdão de 29/10/2008 proferido no Pº 7129/08-4, sempre da Relação de Coimbra (acórdão fundamento quanto à segunda questão invocada no recurso), nos termos do nº 1 do artº 437º do C.P.P..
Termos em que se rejeita o presente recurso de acordo com o artº 441º nº 1 do C.P.P..



Taxa de Justiça: 4 U C



Lisboa, 4 de Novembro de 2010

Souto de Moura (Relator)
Soares Ramos
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(1) Salvaguardada a eventualidade remota de, por coincidência, o acórdão fundamento também tratar as mesmas questões de direito e todas em oposição com o acórdão recorrido.