Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
10463/21.5T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: SUCESSÃO POR MORTE
CERTIFICADOS DE AFORRO
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
DIREITO DE REEMBOLSO
HERDEIRO
CONHECIMENTO
ÓNUS
CABEÇA DE CASAL
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I - O termo inicial de contagem do prazo de prescrição de 10 anos do direito a pedir o reembolso ou transmissão de certificados de aforro de que era titular o falecido, ocorre na data do conhecimento pelos herdeiros da existência dos certificados;

II – Assentando a prescrição na negligência do titular do direito, o  prazo de prescrição do direito ao reembolso dos certificados de aforro só pode iniciar-se quando os herdeiros tomam conhecimento da existência de tais certificados;

III – Não impende sobre o cabeça de casal o dever de diligenciar junto do IGCP sobre a existência de certificados de aforro titulados pelo de cujus.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



AA, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de BB, intentou a presente ação comum, contra a Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública - IGCP, E.P.E, com os seguintes pedidos:

“1) Seja reconhecido sobre os certificados de aforro subscritos por BB o direito ao seu resgate por parte da herança aberta por seu óbito;

2) Seja a titularidade da conta de aforro, nomeadamente dos certificados de aforro aludidos na presente ação, transmitida para a herança aberta por óbito de BB, dela passando a fazer parte integrante;

3) E que seja a Ré condenada a pagar ao Autor, na qualidade de cabeça de casal da herança em causa, o valor correspondente ao resgate de todos os certificados de aforro titulados pelo de cujus, que atualmente se cifram no montante de €118.314,17 (cento e dezoito mil trezentos e catorze euros e dezassete cêntimos).

4) Que seja também a Ré condenada a pagar ao Autor, na qualidade de cabeça de casal da herança em causa, o valor que se vier a apurar relativamente aos demais certificados de aforro titulados por este, cuja existência se venha a apurar no âmbito da presente ação, e cujo valor venha a ser liquidado em incidente de liquidação de sentença, ambos os valores acrescidos de juros remuneratórios e de mora até ao efetivo pagamento.

5) Bem como ao pagamento de juros vincendos à taxa legal contados desde a citação até total e efetivo pagamento.”

Alegou para tanto e em síntese:

No dia ... de outubro de 2004, faleceu BB, no estado civil de divorciado de CC;

Sucederam-lhe três filhos, AA, cabeça de casal e aqui autor, DD e EE, tendo sido habilitados como únicos herdeiros;

Em meados do ano de 2019, enquanto arrumavam alguns pertences do pai, foram encontrados documentos referentes a três certificados de aforro da série B, emitidos nos anos de 1990, 1991 e 1992;

O Autor, na qualidade de cabeça de casal, interpelou a Ré no sentido de obter o resgate no valor de € 118.314,17, o que não foi concedido por entenderem que os mesmos se encontram prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública desde 29/10/2014, ou seja, 10 anos após o óbito do titular.

Citada, o Réu contestou, por exceção e por impugnação. Arguiu a exceção de prescrição do direito invocado uma vez que à data do pedido de resgate já tinha decorrido o prazo de 10 anos a partir do óbito do aforrista. Era do conhecimento dos herdeiros a existência de certificados de aforro, pelo menos desde a movimentação de três certificados pela herdeira DD, em 17/07/2007. A verificação da prescrição determina a improcedência do pedido.


Na resposta, alegou o Autor que apenas em 2019 os herdeiros tomaram conhecimento da existência dos certificados de aforro em causa nos autos, pelo que não se verifica a prescrição.


Por sentença foi a acção julgada procedente nos seguintes termos:

“(…) condeno a AGÊNCIA DE GESTÃO DA TESOURARIA E DA DÍVIDA PÚBLICA - IGCP, E.P.E., a:

1) Reconhecer sobre os certificados de aforro subscritos por BB o direito ao seu resgate por parte da herança aberta por seu óbito.

2) Transferir a titularidade da conta de aforro, nomeadamente dos certificados de aforro aludidos na presente ação, transmitida para a herança aberta por óbito de BB, dela passando a fazer parte integrante;

3) Pagar ao Autor, na qualidade de cabeça de casal da herança em causa, o valor correspondente ao resgate de todos os certificados de aforro titulados pelo de cujus, designadamente:

- ...02, da Série B, adquirido no dia 30 de novembro de 1990, na quantidade de 2200 unidades, com o valor de aquisição de 5.486,78 (cinco mil quatrocentos e oitenta e seis euros e setenta e oito cêntimos);

- ...68, da Série B, adquirido no dia 15 de janeiro de 1991, na quantidade de 1300 unidades, com o valor de aquisição de 3.242,19 (três mil duzentos e quarenta e dois euros e dezanove cêntimos) e

- ...94, da Série B, adquirido no dia 28 de fevereiro de 1992, na quantidade de 1400 unidades, com o valor de aquisição de 3.491,59 (três mil quatrocentos e noventa e um euros e cinquenta e nove cêntimos), acrescidos dos respetivos juros remuneratórios e de juros de mora vencidos, à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

Valor da Ação: 118.314,17 (cento e dezoito mil trezentos e catorze euros e dezassete cêntimos).

Custas da Ação: a cargo da Ré.”


Inconformada com tal decisão, a Ré interpôs recurso de apelação, e com êxito, pois a Relação de Lisboa, por acórdão de 06.10.2022, julgou verificada a prescrição e, em consequência, revogou a sentença e absolveu a Ré dos pedidos.

É a vez do Autor interpor revista, visando a revogação do acórdão recorrido para ficar a subsistir a sentença da 1ª instância, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:     

1ª. O Autor, na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de BB, intentou a presente ação com vista ao reconhecimento dos certificados de aforro subscritos pelo seu pai, bem como o respetivo direito de resgate pelos herdeiros.

2ª. Seguidos todos os trâmites, após audiência de julgamento, a Meritíssima Juiz do Juízo Central Cível ... – Juiz ... proferiu sentença que condenou a Ré nos pedidos do Autor.

. A sentença proferida determinou que o prazo para a contagem do prazo de prescrição para o resgate dos certificados de aforro se deveria iniciar com o conhecimento dos herdeiros da existência dos mesmos, e não a partir da data do óbito do titular desses certificados.

4ª. E determinou que, in casu, o início do prazo se iniciou quando o Autor e a herdeira encontraram nos pertences do pai os títulos dos referidos certificados, em meados de 2019,

5ª. Não se conformando com a sentença proferida a Ré interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa pugnando pela procedência da exceção de prescrição, com base na adoção da teoria objetiva, por terem decorrido mais de 10 (dez) anos desde o óbito do titular dos certificados de aforro.

6ª.  A questão que se impunha, e que delimitou o recurso interposto pela Réparao Tribunal da Relação de Lisboa, prendia-se simplesmente com a questão de saber se o prazo de prescrição para o resgate dos certificados de aforro pelos herdeiros do aforrista se inicia com o óbito do titular dos certificados de aforro, ou apenas com o conhecimento dos herdeiros da existência dos referidos certificados.

. Os colendos desembargadores decidiram adotar pelo critério subjetivo, mantendo visão adotada pelo Tribunal de 1ª Instância, e que aliás sempre havia sido defendida pelo Autor.

.  Com efeito, o Tribunal da Relação de Lisboa manteve o entendimento de que a prescrição do direito de resgate de certificados de aforro por parte dos herdeiros começa a contar desde o momento em que os mesmos tomam conhecimento da existência desses certificados de aforro, e não da data do óbito do aforrista.

9ª.  Contudo, sem que nada o fizesse prever, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu alterar o momento que, no caso em concreto, relevava para efeitos de contagem do início do prazo de prescrição.

10ª. O Tribunal da Relação sobrepôs-se à perceção da Meritíssima juiz de julgamento e decidiu, oficiosamente, que o momento determinante para o termo inicial do prazo de prescrição, no caso em concreto, não é o momento em que o Autor e os herdeiros encontraram os documentos que titulavam os certificados de aforro peticionados, mas sim a data em que a herdeira DD procedeu ao levantamento de três certificados de aforro que lhe haviam sido confiados pelo pai.

11ª. O Tribunal da Relação de Lisboa considerou que desde esse momento surge para os herdeiros um especial dever de diligência e indagação junto do IGCP sobre a existência de outros certificados de aforro que hipoteticamente pudessem ter sido subscritos pelo de cujus.

12ª. E entendeu que a falta dessa atuação por parte dos herdeiros configura como inércia negligente e implica necessariamente a renúncia ao direito de resgate por forçado decurso do tempo.

13ª. Salvo o devido respeito, tais considerações configuram uma verdadeira contradição com os factos provados e assentes na sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância e colidem diretamente com a própria posição jurisprudencial adotada pelo Tribunal de recurso, a qual assenta na premissa de que ninguém pode exercer um direito que desconhece.

14ª. Assim, e ainda que na sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância conste expressamente o seguinte: “no caso em apreço, ficou demonstrado que o titular dos certificados de aforro faleceu em ... de outubro de 2004 (ponto 1. da Matéria de Facto Provada) e que, em meados do ano de 2019, DD e o Autor, enquanto mexiam em pertences do pai, encontraram documentos que mencionavam que este era titular da conta de aforro ...66, na qual se encontram inseridos os três certificados de aforro da série B, emitidos nos anos de 1990, 1991 e 1992 (Ponto 12. da Matéria de Facto Provada)”.

15ª.  E que, na mesma sentença, tenha ficado assente que: “considerando que o Autor e os demais herdeiros apenas tiveram conhecimento da existência dos certificados de aforro em apreço em meados de 019, apenas nessa data se terá por iniciado o prazo de prescrição acima referido.

16ª Ao invés de se pronunciar acerca da teoria a adotar no caso em apreço (objetiva ou subjetiva), o Tribunal da Relação de Lisboa foi para além da questão de direito suscitada pela Ré, e determinou oficiosamente uma alteração sobre o concreto momento de facto que determina o início da contagem do prazo de prescrição, revogando a decisão recorrida.

17ª. Andou mal o Tribunal recorrido ao proceder a esta alteração substancial, especialmente porque não teve sequer em consideração as circunstâncias, motivações e factos conexos com o resgate dos três certificados de aforro levado a cabo pela herdeira DD, elementos esses que ficaram bem esclarecidos em sede de julgamento e influíram diretamente na decisão tomada pela Meritíssima Juiz do Juízo Central Cível ....

18ª. Assim, não basta que se tenha dado como provado no ponto 12. que a herdeira DD procedeu ao resgate de três certificados de aforro detidos pelo seu pai, dos quais era movimentadora, para que se proceda a uma alteração da sentença proferida, muito menos no sentido de a revogar.

19ª. É necessário ter em consideração todos os factos e circunstâncias que estiveram na base daquele resgate, bem como o desconhecimento dos restantes herdeiros e as convicções de todos.

20ª. O Tribunal da Relação de Lisboa não dispunha de elementos suficientes que permitissem concluir com certeza que o conhecimento dos herdeiros se consubstanciou naquele momento, e não em 2019, conforme aliás ficou vastamente provado e assente na sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.

21ª. Efetivamente, o Tribunal da Relação de Lisboa ignorou o facto de a herdeira desconhecer completamente a existência de outros certificados de aforro subscritos pelo seu pai além dos que lhes foram confiados, nem podia saber, uma vez que à data desse resgate ainda não tinha sido criada a base de dados do registo central eletrónico, o qual só veio a ser criado pelo DL 47/2008, 13 de Março.

22ª. Pelo que, conforme constado facto provado n.º 13, o Autor e a herdeira DD apenas tiveram conhecimento da existência dos três certificados de aforro peticionados em meados do ano 2019 quando encontraram os documentos que titulavam estes certificados dentro de uma caixa onde constava uma coleção de moedas pertencentes ao seu pai.

23ª. Existe um desconhecimento sobre os certificados em causa que não pode ser ignorado nem desconsiderado neste plano. E é esse desconhecimento que não lhes permite exercer o direito correspondente.

24ª. Até porque se os herdeiros tivessem conhecimento da existência dos certificados de aforro, teriam, naturalmente, procedido ao seu resgate.

25ª. Não há inércia, e muito menos negligência quanto ao exercício do direito de resgate no caso em apreço, muito pelo contrário, assim que encontraram os documentos que indiciavam a existência de certificados de aforro os herdeiros procederam de imediato ao pedido de resgate junto do posto CTT mais próximo.

26ª. E só não o fizeram antes porque desconheciam por completo a existência daqueles bens, pelo que, naturalmente, não estavam capazes de exercer o direito que lhes assistia enquanto herdeiros.

27ª. Conforme é sabido, o regime da prescrição visa punir a inércia dos titulares de determinado direito, e, no caso em apreço, não há um comportamento inerte identificável por parte dos herdeiros.

28ª. Há sim uma impossibilidade de exercer um direito por desconhecerem que ele existe, conforme aliás ficou bem assente para o Tribunal de 1.ª Instância.

29ª. Não se pode impor, sem qualquer fundamento ou suporte legal, que os herdeiros procurem a existência de certificados de aforro que não conhecem, sob pena de, no limite, se extinguir a possibilidade de herdarem os direitos do de cujus na sua plenitude, vendo-se prejudicados na aquisição de bens que desconhecem sem culpa.

30ª. Não tendo existido indícios da subscrição de certificados de aforro nos bens da herança, nunca tendo sido enviados para a morada do aforrista quaisquer extratos, nem existindo o registo central eletrónico, o Autor não podia conhecer os certificados de aforro titulados pelo seu pai.

31ª. Sendo que na data do óbito não era exigível que indagasse o IGCP sobre a existência de certificados de aforro em nome do de cujus, nem hoje, após a criação base de dados de central de registo eletrónico de certificados de aforro, se impõe obrigatoriamente que os herdeiros diligenciem dessa forma.

32ª. Neste sentido, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Lisboa, esclarecendo que: Não impendem sobre os herdeiros qualquer dever de colherem informações junto das entidades públicas em ordem a estabelecerem com rigor o acervo de bens que constitui a herança; ao invés, são estas que estão oneradas com deveres específicos a tal respeito, como se pode ver v.g. pela norma do artigo 9.º-A, n.º 6, do Decreto-Lei 122/2002.” - v. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-12-2020, Processo n.º 1812/18.4.T8VCT.L1-6, Relatora Ana de Azeredo Coelho, disponível em www.dgsi.pt.

33ª. Em sentido idêntico entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, o seguinte: “ao cabeça de casal não está imposta, em qualquer disposição legal, a obrigatoriedade de diligenciar, antes de apresentar a relação de bens nas Finanças, junto do IGCP para saber da eventual existência de certificados de aforro, nem o facto de não diligenciar se pode considerar como comportamento negligente” sublinhado nosso - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-01-2019, P n.º 25635/15.3T8LSB.L1.S2, Relator Pedro De Lima Gonçalves.

34ª. Nem se  se diga, como entendeu o douto Acórdão recorrido, que após o regaste efetuado pela herdeira DD dos certificados que o pai lhe havia confiado, os herdeiros podiam/deviam ter indagado se existiam outros certificados de aforro ou outras contas tituladas pelo de cujus.

35ª. Não é de considerar, por contrariar fortemente o espírito da norma, que o facto de a herdeira DD ter procedido ao resgate de três certificados de aforro faz surgir na esfera da herança uma obrigação extraordinária de indagar sobre a existência de outros certificados que possam, num plano meramente hipotético, existir.

36ª. Sobre este assunto, e numa situação análoga entendeu o recente Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que: “Não impende sobre o herdeiro do titular dos certificados de aforro o dever de indagar junto do IGCP, sobre a titularidade dos mesmos” - v. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 23-06-2022, P.17082/21.4T8LSB.L1-6, relator Maria de Deus Correia.

37ª.  O caso vertido no Acórdão referido apresenta várias semelhanças com a questão controvertida nos presente autos, nomeadamente porque naquele caso o Autor resgatou duas subscrições de certificados de aforro da conta aforro titulada pelo seu pai, e vários anos volvidos descobriu a existência de outros certificados, sendo que decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa que não se considera gerar uma obrigação acrescida ao Autor no sentido de indagar se não teria sido criada outra conta”, uma vez que quando o Autor procedeu ao resgate dos certificados ficou convencido que conta de aforro tinha sido encerrada.

38ª. Não podia o Tribunal da Relação de Lisboa decidir, sem qualquer fundamentação nem suporte legal, entender pelo surgimento de um dever acrescido de investigação e indagação por parte dos herdeiros.

39ª. A considerar-se tal hipótese, estar-se-ia a criar um obstáculo ao exercício de um direito que os herdeiros desconhecem, dificultando ainda mais o resgate dos certificados de aforro por parte dos herdeiros que, não poucas vezes, desconhecem a totalidade dos bens que integram a herança.

40ª. Assiste-se, portanto, à criação pelo Tribunal da Relação de uma presunção através da qual se entende existir um dever desproporcional que surge na esfera dos herdeiros, e que os onera de forma totalmente desproporcional e desadequada.

41ª. Não nos podemos esquecer que com a subscrição de certificados de aforro, os aforristas por meio de um investimento pretendem tão só a arrecadação de valores pecuniários para si e, consequentemente, para os seus herdeiros.

42ª. E o IGPC já sabe, à partida, que os certificados subscritos serão, mais tarde ou mais cedo, resgatados pelos seus titulares (ou herdeiros) e que, nesse momento terá de ser entregue o valor correspondente ao investimento inicial acrescido de juros.

43ª. Nesse plano, entendeu o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29 de setembro de 2020: “Os certificados de aforro constituem, tão simplesmente, um instrumento financeiro e uma modalidade de aforro e investimento, criada a partir dos fundos monetários daquele que os subscreve, integrando-se, no momento da sua morte, no acervo hereditário do de cujus, em de igualdade com todos os outros bens que compõem o relictum, sem qualquer especialidade ou singularidade a reclamar regime diferenciado. (…). O seu destino normal e comum não deve ser, como se compreende, o da reversão dos montantes pecuniários entregues pelo particular em favor da entidade pública, assim financiada e sobre a qual impende a primordial obrigação de reembolso, beneficiando-a á custa do investidor falecido, a não ser que, em termos excepcionais, estes deixem seguramente vincado o seu interesse em agir durante o tempo tido como curial, equilibrado e razoável, funcionando então (e só então), nestas excepcionais circunstâncias, o sistema comum e corrente da extinção do seu direito por prescrição devida a inacção prolongada e injustificada.” – (sublinhado nosso) vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29 de setembro de 2020, Processo n.º 1731/18.4T8LSB.L2-7 Relator, Luís Espírito Santo.

44ª. Assim sendo, a reversão de certificados de aforro a favor do Instituto não pode ser a regra, mas sim a exceção, a operar apenas quando em situações excecionais e concretamente determinadas os herdeiros conhecem a totalidade dos certificados detidos pelo autor da herança, e mesmo assim optam conscientemente por não proceder ao seu resgate, deixando decorrer o prazo previsto de 10 (dez) anos.

45ª. Só dessa formasepoderágarantir, com justiçaeequidade, queos herdeiros, quemuitas vezes desconhecem grande parte do património do de cujus, exerçam plenamente os direitos que lhes assistem e tenham acesso à totalidade dos bens que compõe a herança, sem restrições ou imposições excessivas.

46ª. Por último, o ónus de provar o conhecimento da existência dos certificados há mais de dez anos incumbia única e exclusivamente à Ré, porquanto estamos perante instituto da prescrição, que configura uma causa extintiva do direito, e que faz inverter o ónus da prova.

47ª. O que aliás não passou despercebido ao Tribunal de 1ª Instância, na sentença proferida pelo Juízo Central Cível ... pode ler-se: “incumbia à demonstrar que o Autor, na qualidade de cabeça de-casal conhecia a existência de tais certificados mais de dez anos aquando da submissão do formulário com vista ao resgate dos mesmos, o que não logrou fazer (art. 342.º, n.º 2, do CC).”.

48ª. Uma vez que a Ré não logrou provar que o Autor conhecia anteriormente a existência dos referidos certificados de aforro, o Tribunal de 1.ª Instância só poderia ter decidido da forma versada na sentença proferida, pugnando pela improcedência da exceção de prescrição, por não provada.

49ª. Sucede que também esta questão não foi sequer questionada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que, sem mais, decidiu alterar a decisão proferida pelo Juízo Central Cível ..., passando por cima de todas as questões supra expostas, e de toda a matéria assente nos autos, sem qualquer fundamentação ou suporte legal, contrariando o espírito das normas e da jurisprudência invocada pelo próprio Tribunal de recurso naquela decisão.

50ª. Em suma, andou mal o Tribunal da Relação de Lisboa ao decidir da forma supra descrita, sendo que a sentença proferida pelo Juízo Central Cível ... não merecia qualquer censura por conferir uma decisão justa e adequada ao litígio em apreço.

51ª. A decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa padece de flagrante erro na interpretação e aplicação do direito, tendo o Acórdão em crise violado as normas constantes dos artigos 7.º do DL n.º 122/2002, de 04 de maio, e dos artigos 9.º, 342.º, n.º 2, e 306.º, n.º1 todos do Código Civil.


Contra alegou o Recorrido, pugnando pela improcedência da revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

1ª (…);

2. Contrariamente ao que o Autor/Recorrente alega, a douta decisão recorrida não padece de qualquer erro na interpretação e aplicação do direito, não tendo o Acórdão posto em crise violado as normas constantes dos artigos 7.º do DL n.º 122/2002, de 04 de maio, e dos artigos 9.º, 342.º, n.º 2, e 306.º, n.º 1 todos do Código Civil.

3. De modo sumário, na Sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, considerou-se “que o Autor e os demais herdeiros apenas tiveram conhecimento da existência dos certificados de aforro em apreço em meados de 2019, apenas nessa data se terá por iniciado o prazo de prescrição acima referido.” e que “Não é exigível que se exerça um direito que não se conhece, por isso, a Autora exerceu o seu direito antes do decurso do prazo de dez anos, pelo que o mesmo não estava prescrito.”

4. Não podendo a aqui Ré/Recorrida conformar-se com tal decisão, porquanto não concordou com a interpretação jurídica e solução de direito adotadas pelo Tribunal a quo, a qual, ademais, não logrou efetuar uma interpretação crítica da prova produzida, das alegações das partes nos respetivos articulados e da matéria assente, recorreu da mesma para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.

5. Veio, então, a ser proferido douto Acórdão por aquele Tribunal da Relação o qual, não obstante perfilhar a tese de que “a norma do artº do DL 172-B/86, na redação introduzida pelo DL 122/2002, de 04/05, não constitui opção inequívoca pelo sistema objetivo no que respeita ao início do prazo da prescrição.” e que “A contagem do prazo de prescrição inicia-se com o conhecimento pelo herdeiro da existência dos certificados de aforro, sendo esta a interpretação que melhor se coaduna com a harmonização sistemática das normas relativas à transmissão de bens por morte, designadamente com o disposto no artº 2059º do CC, e na medida em que à transmissão dos certificados de aforro por morte do respetivo titular não se justifica tratamento diferente dos restantes bens que integram o património hereditário.”, veio a decidir pela verificação da exceção perentória da prescrição.

6. Bem andou o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa ao concluir pela verificação daquela exceção, o qual, contrariamente ao alegado pelo Autor/Recorrente, ateve-se aos seus limites naquela que foi a sua justa apreciação. Com efeito,

7. O Venerando Tribunal da Relação de Lisboa atentou e ateve-se estritamente aos factos dados como provados, tendo bem andado ao considerar que “BB faleceu em .../10/2004, no estado civil de divorciado de CC, tendo-lhe sucedido três filhos, AA, cabeça de casal, DD e EE.”, matéria que foi dada como provada em sede de sentença nos pontos 1 e 2 dos Factos Provados.

8. Igualmente bem andou o douto Acórdão recorrido ao considerar, na sua análise, que “À data do óbito do aforrista, a conta aforro do falecido (n.º ...66) era constituída por seis certificados de aforro, todos da série B, três dos quais tinham como movimentadora designada CC e os restantes três certificados de aforro da série B subscrições n.ºs ...25, ...05 e ...60 - tinham como movimentadora designada, DD.”, matéria que foi dada como provada em sede de sentença nos pontos 4, 10 e 11 dos Factos Provados.;

9. E que “Em 17/07/2007 DD procedeu ao resgate de três certificados de aforro da série B (dos 6 (seis) que constavam na conta aforro do falecido), representativos de 6.700 unidades, no montante total de 53.756,43.”, matéria que foi dada como provada em sede de sentença no ponto 12 dos Factos Provados.

10. Bem andou o douto Acórdão recorrido ao atentar na seguinte matéria (igualmente) dada como provada em sede de sentença no ponto 13 dos Factos Provados : “Em meados do ano de 2019, DD e o Autor enquanto mexiam em pertences do pai, encontraram documentos que mencionavam que este era titular da conta de aforro ...66, na qual se encontram inseridos os (restantes) três certificados de aforro da série B, emitidos nos anos de 1990, 1991 e 1992.”; “Os herdeiros de BB, no dia 15 de março de 2019, preencherem e submeteram o formulário para obter o resgate total dos valores.”

11. Pelo que o que a douta decisão recorrida fezfoi, simplesmente, apreciar criticamente (como aliás lhe compete), à luz dos mesmos factos provados em sede de sentença – e não outros, como o Autor pretende indiciar -, a matéria, à qual aplicou o direito.

12. Na sentença recorrida considerou-se que este último facto (“Em meados do ano de 2019, DD e o Autor enquanto mexiam em pertences do pai, encontraram documentos que mencionavam que este era titular da conta de aforro ...66, na qual se encontram inseridos os (restantes) três certificados de aforro da série B, emitidos nos anos de 1990, 1991 e 1992)” traduz o momento do conhecimento da existência dos referidos três certificados de aforro, o que não corresponde à verdade.

13. Na verdade, como doutamente se refere no Acórdão recorrido, “Além de não constar do ponto 13 dos factos provados o conhecimento da existência daqueles certificados de aforro na data em que foram encontrados os respetivos títulos (meados de 2019), pelo menos a partir de 17/07/2007, data em que a herdeira DD procedeu ao levantamento de três dos seis certificados de aforro, cuja existência era do conhecimento dos herdeiros, podiam/deviam estes ter indagado se existiam na conta do falecido (ou noutras, sendo certo que todos os certificados da titularidade do falecido se encontravam na mesma conta aforro) outros certificados. Ao assim não terem atuado, tendo conhecimento de que o falecido era subscritor de certificados de aforro, incorreram em inércia negligente. O prazo previsto no artº 7º, 2 do DL 172-B/86, de 30/06, deve contar-se, in casu, a partir de 17/07/2007, pelo que, em 18/07/2017 prescreveu o direito ao peticionado reembolso. Ou seja, quando foi apresentado o pedido de resgate junto da R. (em 15/03/2019), o referido prazo se mostrava transcorrido.” Efetivamente,

14. Resultou provado nos autos – ponto 12 da matéria de facto considerada provada na Sentença de fls. - que “Em 17/07/2007 [após o óbito do titular], ao balcão dos CTT Correios de Portugal, S.A. (adiante CTT), localizados em ..., a movimentadora [e herdeira] DD, portadora do n.º de identificação civil 10...76, procedeu ao resgate de 3 (três) certificados de aforro da série B (dos 6 (seis) que constavam na conta aforro do falecido), representativos de 6.700 unidades, no montante total de 53.756,43 (cinquenta e três mil, setecentos e cinquenta e seis euros e quarenta e três cêntimos)”.

15. Daí deve, necessariamente, resultar o conhecimento, pelo Autor e herdeiros, de que o “de cujus” era aforrista e titular da conta aforro. Bastaria, para tanto, aos herdeiros questionar, em qualquer estação CTT, designadamente na estação CTT da vila onde o falecido aforrista, e sua família, eram afinal tão conhecidos de todos - como confessa o Autor no articulado de resposta às exceções -, a totalidade dos produtos associados à conta aforro do “de cujus”, aliás única conta desde sempre existente e que os herdeiros sabiam existir.

16. Se os herdeiros apenas se lembraram de o fazer em 2007 – quatro anos após o óbito (não comunicado à Ré) do titular aforrista – e não mais se lembraram até 2019, então fácil é concluir que Autor e demais herdeiros não seguiram um padrão de cautela, análogo ao do homem razoável. De que decorre, necessariamente, estarmos perante uma atuação negligente que deve ser sancionada com a aplicação do instituto da prescrição.

17. O Tribunal de 1.ª instância não logrou efetuar uma análise crítica, completa, da prova, não tendo sopesado a universalidade dos factos levados ao seu conhecimento, antes tendo optado por confortavelmente não considerar uma série de circunstâncias que deviam ter sido consideradas e que, sendo-o, ditariam um desfecho diferente para a presente ação, como, aliás, vieram a ditar em sede de recurso, fruto do olhar atento, experiente, cuidadoso, e justo, do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.

18. Com efeito, o Autor, aqui Recorrente, e demais herdeiros, estavam na posse de todos os elementos, circunstâncias, conhecimento e possibilidades que lhes permitiam saber, querendo, da existência de outros certificados de aforro para além dos já por si conhecidos que,como se viu, integravam uma mesma e única conta aforro; masnão sóo Autor e demais herdeiros optaram por não indagar quanto a saber das demais subscrições daquela mesma e única conta aforro do seu conhecimento, como nem sequer declararam os produtos de aforro resgatados em 2007 às finanças…

19. Pelo que se o não souberam é porque não procuraram saber, devendo entender-se que, dentro das circunstâncias relatadas e assentes, qualquer homem médio colocado perante os mesmos elementos, circunstâncias, conhecimento e possibilidades do Recorrido e demais herdeiros, tinha a obrigação de agir e procurar conhecer essa informação, dispondo de um vastíssimo prazo de 10 (dez) anos para o efeito…

20. Estamos, pois, manifestamente, no campo da inércia / inação / incúria do Recorrido e demais herdeiros; inércia, inação, incúria, essas, que, no contexto vindo de expor, exigia daqueles um comportamento diferente, uma especial atenção/cuidado, que não tiveram e que era, afinal, fácil e exigível que tivessem tido, como se viu.

21. Estamos, na verdade, perante um caso típico e exemplar de inércia negligente, a qual vem sendo sancionada pelos Tribunais superiores.

22. Contrariamente ao que alega o Autor/Recorrente nas suas alegações de recurso, a douta decisão recorrida não alterou, sem que nada o fizesse prever, a data relevante para efeitos de contagem do início do prazo de prescrição. Note-se, como muitíssimo bem se observou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa ora sob escrutínio, que do ponto 13 dos Factos Provados não consta o conhecimento da existência daqueles certificados de aforro na data em que foram encontrados os respetivos títulos (meados de 2019), sendo que, pelo menos a partir de 17.07.2007, data em que a herdeira DD, irmã do Autor, procedeu ao levantamento de três dos seis certificados de aforro, cuja existência era do conhecimento dos herdeiros, podiam/deviam estes ter indagado se existiam na conta do falecido aforrista (ou noutras, sendo certo que todos os certificados da titularidade do falecido se encontravam na mesma conta aforro) outros certificados.

23. Ateve-se, pois, aquele Tribunal superior à matéria de facto dos autos, dentro dos seus poderes de cognição. Determinou a norma aplicável, interpretou a referida norma e aplicou- a, dentro do que se espera e era esperado que fizesse, no âmbito dos seus poderes de cognição.

24. No caso em apreço, considerando os factos provados, desproporcional e desadequada foi, essa sim, a incúria do Autor e demais herdeiros que, oferecendo-se-lhes à saciedade todos os elementos que lhes permitiam indagar da existência de outros certificados nessa mesma (e única) conta do falecido, que aqueles, como se viu e resultou provado, bem conheciam e sabiam existir, optaram relaxadamente por nada fazer. E isto afasta por completo a tese da desproporcionalidade aventada pela Autora/Recorrente, designadamente por via da invocação do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 23.06.2022, no âmbito do processo n.º 17082/21.4T8LSB.L1-6, cujos contornos, nesta parte, não influem com os do caso vertente.

25. Pelo que, ainda que não haja sido adotada a tese objetivista sustentada pela Ré/Recorrida quanto ao início da contagem do prazo prescricional, bem andou o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, com o que fez a justiça que o caso concreto reclama;

26. Devendo manter-se, por conseguinte, nos seus precisos termos, o douto Acórdão recorrido.


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Objecto do recurso.

A revista suscita a apreciação das seguintes questões:

- O início do prazo de prescrição para o resgate dos certificados de aforro pelos herdeiros do aforrista;

- Se os herdeiros têm o ónus de indagar junto do IGCP sobre a eventual existência de certificados de aforro de que era titular o de cujus.


Fundamentação.

Estão provados os seguintes factos:

“1. No dia ... de outubro de 2004, faleceu BB, no estado civil de divorciado de CC.

2. Sucederam-lhe três filhos, AA, cabeça de casal, DD e EE, tendo sido habilitados como únicos herdeiros.

3. À data da morte, foi feita a participação de imposto de selo ao serviço de finanças, mencionando os bens de que era o inventariado titular.

4. O falecido BB era titular dos seguintes certificados de aforro:

- ...02, da Série B, adquirido no dia 30 de novembro de 1990, na quantidade de 2200 unidades, com o valor de aquisição de €5.486,78 (cinco mil quatrocentos e oitenta e seis euros e setenta e oito cêntimos);

- ...68, da Série B, adquirido no dia 15 de janeiro de 1991, na quantidade de 130 unidades, com o valor de aquisição de €3.242,19 (três mil duzentos e quarenta e dois euros e dezanove cêntimos) e

- ...94, da Série B, adquirido no dia 28 de fevereiro de 1992, na quantidade de 1400 unidades, com o valor de aquisição de €3.491,59 (três mil quatrocentos e noventa e um euros e cinquenta e nove cêntimos).

5. Os herdeiros de BB dirigiram-se à Loja CTT de ..., no dia 15 de março de 2019, preencherem e submeteram o formulário para obter o resgate total dos valores.

6. Em 19.03.2021 e 27.04.2020, AA, por si e pela sua mandatária, na qualidade de cabeça-de-casal da herança de BB, enviou carta à Ré a solicitar o resgate dos certificados de aforro referidos em 4.

7. A Ré respondeu “que os valores reclamados se encontram prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública desde 29/10/2014, ou seja, 10 anos após o óbito do titular (…) em virtude de não ter sido apresentada qualquer prova suspensiva ou interruptiva do referido prazo.”

8. Em meados de 2012, a R. tomou conhecimento, através do IRN, do óbito do aforrista, BB, em .../10/2004.

9. Na sequência desta informação, em 10/01/2013, o R. procedeu à imobilização da conta aforro n.º ...00 titulada pelo falecido.

10. À data do óbito do aforrista, isto é, em .../10/2004 a conta aforro do falecido era constituída por 6 (seis) certificados de aforro todos da série B, representativos de 11.600 unidades, num valor total correspondente a 82.533,94EUR (oitenta e dois mil, quinhentos e trinta e três euros e noventa e quatro cêntimos).

11. Os 6 (seis) certificados de aforro da série B que constavam da referida conta aforro à data do óbito do aforrista tinham todos movimentadores designados pelo titular, concretamente três títulos tinham como movimentadora designada, CC e os restantes três certificados de aforro da série B – subscrições n.ºs ...25, ...05 e ...60 - tinham como movimentadora designada, DD.

12. Em 17/07/2007, ao balcão dos CTT – Correios de Portugal, S.A. (adiante CTT), localizados em ..., a movimentadora, DD, portadora do n.º de identificação civil 10...76, procedeu ao resgate de 3 (três) certificados de aforro da série B (dos 6 (seis) que constavam na conta aforro do falecido), representativos de 6.700 unidades, no montante total de 53.756,43 (cinquenta e três mil, setecentos e cinquenta e seis euros e quarenta e três cêntimos).

13. Em meados do ano de 2019, DD e o Autor enquanto mexiam em pertences do pai, encontraram documentos que mencionavam que este era titular da conta de aforro nº ...66, na qual se encontram inseridos os três certificados de aforro da série B, emitidos nos anos de 1990, 1991 e 1992, referidos no ponto 3.”

“14. Os certificados de aforro mencionados em 12. eram conhecidos pelos herdeiros.” (aditado pela Relação).


O direito.

Está em causa saber se o direito que o Autor, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de BB, veio exercer de reembolso de certificados de aforro titulados pelo falecido, se encontra prescrito.

Os certificados de aforro são valores escriturais nominativo, reembolsáveis, representativos de dívida da República Portuguesa, denominados em moeda com curso legal em Portugal e destinados à captação da poupança familiar, que foram criados, originariamente, pelo Decreto-Lei nº 43453 de 30.12.1960.

No caso, estão em causa certificados de aforro (Série B), criados a partir da autorização constante do DL nº172-B/86 de 30.06., cujo art. 7º, nº1, na redacção que lhe foi conferida pelo DL nº 47/2008 de 13.03., estipula que por morte do titular de um certificado de aforro podem os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos:

a) A transmissão da totalidade das unidades que o constituem; ou

b) O respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tenha à data em que o reembolso é seja autorizado.

O nº2 do mesmo artigo 7º, ainda com a redacção original, dispõe que findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição.

Estamos perante a previsão de um prazo de prescrição especial, sem que se refira expressamente qual o modo de se proceder à sua contagem, designadamente quando a mesma se inicia, remetendo-se para as “demais disposições em vigor relativas à prescrição.”

A prescrição supõe a inércia do titular do direito. Por isso, o seu prazo não começa a correr enquanto o direito não puder ser exercido. Esta é a regra fundamental, consagrada no art. 306º do CCivil, que rege sobre o início do curso do prazo da prescrição. (Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 9ª edição, pag. 391).

Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, Almedina, pag. 166, diz-nos que no direito comparado a propósito do início do prazo, se observam dois grandes sistemas: o objectivo e o subjectivo.           

“Pelo sistema objectivo, o prazo começa a correr assim que o direito possa ser exercido e independentemente do conhecimento que, disso, tenha ou possa ter o respectivo credor. Pelo subjectivo, tal início só se dá quando o credor tenha conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito”. O sistema objectivo é o tradicional sendo compatível com prazos longos ao invés do sistema subjectivo que postula, em regra, prazos curtos.

O Código Civil optou, como regra, pelo sistema objectivo, veja-se o art. 306º, nº1.           

Há, no entanto, situações em que o Código adoptou o sistema subjectivo: a prescrição só se inicia a contar do momento em que o credor tenha conhecimento do direito que lhe compete, como sucede com os casos previstos no art. 482º (prescrição do direito à restituição do enriquecimento, e no art. 498º (prescrição do direito à indemnização).

No caso particular da contagem do prazo de prescrição do pedido de reembolso dos certificados de aforro, o Supremo Tribunal de Justiça, de forma unânime, que se saiba, tem seguido o sistema subjectivo, basicamente por duas ordens de razões: por a questão se colocar num contexto sucessório, e pelo fundamento específico da prescrição, a saber, a negligência do titular do direito e que, por isso, só a exigência do conhecimento da existência e titularidade do direito satisfaz o pressuposto de o direito poder ser exigido, referido no art. 306º do CC .


Assim sucedeu com os seguintes arestos:

Acórdão de 08.11.2005, P. 05A3169 (Lopes Pinto):

“Dispondo o art. 7º do DL nº 172-B/86 de 30.06., que “por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os beneficiários requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem …(nº1) e que “findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições relativas à prescrição”, nº2, a contagem do prazo prescricional só se inicia com o conhecimento da morte do titular (facto neutro) e de que ele era titular de certificados de aforro.”

Acórdão de 08.01.2019, P. nº 25635/15, (Rel. Pedro Lima Gonçalves):

I - A prescrição assenta no desvalor da inércia do titular de um direito no seu exercício e implica a afetação da sua eficácia; porém, o curso do prazo de prescrição apenas se pode iniciar quando o titular do direito esteja em condições de o exercer.

II – O prazo de 10 anos a que aludia o nº1 do art. 7º do DL nº 122/2003 de 04.05, inicia o seu decurso no momento em que o herdeiro teve conhecimento do decesso do titular dos certificados de aforro e da existência destes, porquanto só então aquele está em condições de exercer o direito ali previsto.


Acórdão de 29.10.2020, P. 24899/16 (Rel. Ilídio Sacarrão Martins), também subscrito pelo relator do presente:

O termo inicial do prazo para a extinção de direitos consagrada no nº2 do art.7º do DL nº 172-B/86, de 30.06., dependia do conhecimento do óbito e da existência dos certificados de aforro.


Acórdão de 25.02.2021, (Rel. João Cura Mariano); CJ/STJ, t.1., pag. 78 e ss:

“ O prazo de prescrição de 10 anos (art.7ºdo DL nº 172-B/86, na redacção que lhe foi conferida pelo DL nº 47/2008 de 13.03.), deve ser considerado um prazo sujeito a um sistema subjectivo, cuja contagem só se inicia quando, após a aceitação da herança, os herdeiros têm conhecimento da existência de certificados de aforro da série B no património do de cujus, sem prejuízo do prazo de prescrição ordinária de 20 anos, cuja contagem se inicia com a aceitação da herança, nos termos do art. 306º do Cód. Civil.”


É esta também a orientação claramente maioritária nas Relações, como foi o caso dos Acórdãos da Relação de Lisboa, 24.04.2018, P. 25635/15 (Rui Vouga), 14.07.2020 (Luís Filipe Sousa), de 29.09.2020 (Luís Espírito Santo) e de 17.12.2020 (Ana de Azeredo Coelho).

É esta também a nossa posição, parecendo-nos incontestáveis as considerações tecidas no já citado Acórdão do STJ de 25.02.21, que, com a devida vénia se transcrevem:

“…devemos ter em atenção que estamos perante um direito cuja aquisição tem origem sucessória. A totalidade das unidades que constituem um certificado de aforro ou o seu valor transmitem-se para os herdeiros do primitivo titular, em resultado da morte deste, embora a sua eficácia esteja condicionada ao exercício de um poder de escolha entre modalidades alternativas de realização dessa transmissão.

Ora, na transmissão de bens por via sucessória, os herdeiros, muitas vezes, podem não ter conhecimento da totalidade dos bens que integram o património do de cujus, realidade que se reflete em alguns aspectos do regime sucessório, como a possibilidade do herdeiro pedir judicialmente, a todo o tempo, a restituição de bens da herança a quem os possua (art. 2075º do CC), a do legatário poder reivindicar a entrega dos bens legados sem dependência de prazo (art. 2279º do CC), ou a previsão de partilhas adicionais, quando se verifique a omissão de bens (art. 2122º do CC).

A existência de uma probabilidade de se verificar esse desconhecimento, nestas situações, equipara-se àquelas em que se adotou o sistema subjectivo na previsão de prazos especiais de prescrição, exactamente porque se teve em consideração igual probabilidade do titular do direito, apesar deste já ser exigível, não ter conhecimento dos seus elementos constitutivos.

(…) Perante a identidade de situações, deve considerar-se que a remissão do art. 7º, nº2 do Decreto Lei nº 172-B/86, de 30.06., para as disposições em vigor relativas à prescrição, relativamente ao início do prazo, não se dirigiu ao sistema objectivo acolhido no regime regra do art. 306º do CC, mas sim às normas irmãs especiais que contêm prazos de média duração, em que se verifica a probabilidade dos elementos constitutivos do direito não serem conhecidos do seu titular, apesar de ele já poder ser exercido, como ocorre nos arts. 482º e 498º, nº1 do CCivil.

Assim sendo, o prazo de prescrição de 10 anos aqui em análise deve ser considerado um prazo sujeito a um sistema subjectivo, cuja contagem só se inicia quando, após a aceitação da herança, os herdeiros têm conhecimento da existência de certificados de aforro da série B no património do de cujus, sem prejuízo do decurso do prazo de prescrição ordinária, cuja contagem se inicia com a aceitação da herança, nos termos do art. 306º do CCivil.”


As instâncias não dissentiram deste entendimento, mas a Relação, ao contrário do que havia decidido a 1ª instância, julgou verificada a prescrição do direito, com a seguinte justificação:

“Na sentença recorrida considerou-se que este último facto (nº 13) traduz o momento do conhecimento da existência dos referidos três certificados de aforro.

Todavia, não podemos subscrever tal entendimento.

Além de não constar do ponto 13 dos factos provados o conhecimento da existência daqueles certificados de aforro na data em que foram encontrados os respetivos títulos (meados de 2019), pelo menos a partir de 17/07/2007, data em que a herdeira DD procedeu ao levantamento de três dos seis certificados de aforro, cuja existência era do conhecimento dos herdeiros, podiam/deviam estes ter indagado se existiam na conta do falecido (ou noutras, sendo certo que todos os certificados da titularidade do falecido se encontravam na mesma conta aforro) outros certificados. Ao assim não terem atuado, tendo conhecimento de que o falecido era subscritor de certificados de aforro, incorreram em inércia negligente.

O prazo previsto no artº 7º, nº 2 do DL nº 172-B/86, de 30/06, deve contar-se, in casu, a partir de 17/07/2007, pelo que, em 18/07/2017 prescreveu o direito ao peticionado reembolso. Ou seja, quando foi apresentado o pedido de resgate junto da R. (em 15/03/2019), já o referido prazo se mostrava transcorrido.

Pelo exposto, julga-se procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, substituindo-se pela seguinte:

- julga-se procedente a exceção de prescrição e, em consequência, absolve-se a R. dos pedidos.”


Não nos parece que se tenha decidido bem.

É certo que em 17/07/2007, DD, uma das herdeiras, procedeu ao resgate de 3 certificados de aforro da série B (dos 6 (seis) que constavam na conta aforro do falecido), representativos de 6.700 unidades, no montante total de 53.756,43 (facto 11).

Mas nem deste facto, nem de qualquer outro, é possível concluir que os herdeiros soubessem da existência de outros certificados de aforro titulados pelo seu falecido pai antes de “meados de 2019”.

Não há qualquer disposição legal que imponha aos herdeiros, a obrigatoriedade de diligenciar junto do IGCP para saber da eventual existência de certificados de aforro, nem o facto de o não fazerem se pode considerar comportamento negligente. (cfr. Acórdãos do STJ de 08.01.2019 e 25.02.2021, supra referidos).

A matéria de facto apurada não permite concluir que os herdeiros “incorreram em inércia negligente” .

Tendo-se provado que o Autor só tomou conhecimento, em 2019, da existência dos três certificados de aforro da série B, emitidos em 1990, 1991 e 1992, de que o seu pai era titular, não está prescrito o direito ao reembolso do valor desses títulos de crédito, pelo que a presente revista deve ser julgada procedente, não se podendo manter o acórdão recorrido.


Decisão.

Pelo exposto, acorda-se em julgar o recurso interposto procedente e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido para ficar a subsistir a sentença da 1ª instância.

Custas da revista pela Ré.


Lisboa, 11.05.2023


Ferreira Lopes (Relator)

Manuel Capelo

Nuno Ataíde das Neves