Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P2043
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARMÉNIO SOTTOMAYOR
Descritores: HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
UNIÃO DE FACTO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ACORDÃO DA RELAÇÃO
DECISÃO QUE NÃO PÕE TERMO À CAUSA
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
RECURSO DA MATÉRIA DE DIREITO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
VÍCIOS DO ARTº 410 CPP
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
FRIEZA DE ÂNIMO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Nº do Documento: SJ200806190020435
Data do Acordão: 06/19/2008
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :

I - É irrecorrível, conforme estabelece a al. c) do n.º 1 do art. 400.º, por referência à al. b) do art. 432.º, ambos do CPP, a decisão da Relação tomada em recurso que, tendo absoluta autonomia relativamente às demais questões suscitadas, não pôs termo à causa por não se ter pronunciado sobre a questão substantiva que é o objecto do processo. Para efeito da recorribilidade, mostra-se indiferente a forma como o recurso foi processado e julgado pela Relação, isto é, se o recurso foi processado autonomamente ou se a decisão se encontra inserida em impugnação da decisão final (cf. o Ac. do STJ de 09-01-2008, Proc. n.º 2793/07 - 3.ª, e o Ac. de 21-05-2008, Proc. n.º 414/08 - 5.ª).

II - Este entendimento respeita a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição e encontra-se em perfeita sintonia com o regime traçado pela Reforma de 1998, e mantido na Reforma de 2007, para os recursos para o STJ: sempre que se trate de questões processuais ou que não tenham posto termo ao processo, o legislador pretendeu impedir o segundo grau de recurso, terceiro de jurisdição, determinando que tais questões fiquem definitivamente resolvidas com a decisão da Relação.

III - O reexame pelo Supremo Tribunal da matéria de direito exige a prévia definição pela Relação dos factos provados, se estes tiverem sido impugnados, ficando com a decisão da Relação esgotados os poderes de apreciação da matéria de facto, a menos exigindo a lei, para a prova de certo facto, determinada espécie de prova ou que fixando a força de determinado meio de prova, estes comandos não tenham sido respeitados.

IV - Fora das hipóteses previstas no art. 410.º do CPP, cujo fundamento é oficioso, não podendo servir de fundamento ao recurso, o STJ não pode investigar se o tribunal de 1.ª instância proferiu uma decisão justa no campo da matéria de facto.

V - O tipo legal fundamental dos crimes contra a vida encontra-se descrito no art. 131.º do CP, sendo desse preceito que a lei parte para, nos artigos seguintes, prever as formas agravada e privilegiada, fazendo acrescer ao tipo-base, circunstâncias que qualificam o crime, por revelarem especial censurabilidade ou perversidade ou que o privilegiam por constituírem manifestação de uma diminuição da exigibilidade.

VI -A especial censurabilidade ou perversidade, sendo conceitos indeterminados, são representadas por circunstâncias que denunciam uma culpa agravada e são descritas como exemplos-padrão. A ocorrência destes exemplos não determina, todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime; assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos. (Ac. de 07-07-2005, Proc. n.º 1670/05 - 5.ª).

VII - O comportamento do arguido encontra-se compreendido no exemplo-padrão da então al. i) – que após a revisão operada pela Lei 59/2007, de 04-09, tomou a letra j) – do n.º 2 do art. 132.º: agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas.

VIII - Frieza de ânimo é uma circunstância relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, reconduzindo-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução, em suma, um comportamento traduzido na “firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução criminosa” (cf. Ac. de 15-05-2008, Proc. n.º 3979/07 e jurisprudência ali citada).

IX -“O abandono do lar conjugal por parte de um dos cônjuges, sem justificar de modo algum a supressão do direito à vida do outro ou maus tratos, é, segundo as regras da experiência comum, fonte de grave perturbação pessoal e, como o divórcio, à luz das concepções sociais dominantes, nem sempre é por todos bem aceite, e é, igualmente, produtor, por vezes, de reflexos socialmente negativos para o atingido” (Ac. de 16-02-2005, Proc. n.º 3131/04 - 3.ª).

X - Se esta circunstância pudesse, de algum modo, servir de explicação – que nunca de justificação – para a conduta do arguido, o seu pretenso valor atenuativo seria de todo anulado pelo facto de ter sido “em virtude de agressões sofridas por esta levadas a cabo pelo arguido” que a ofendida pôs fim ao relacionamento, sendo esse comportamento violento nas relações com a companheira especialmente patente nas lesões na face e no pescoço descritas no relatório de autópsia.

XI -Em casos em que, na origem do homicídio, se encontram razões sentimentais, em que, quantas vezes, o amor se transforma em ódio, e em que o despeito constitui por regra o móbil do crime, a actividade delituosa é muitas vezes desenvolvida em circunstâncias de obnubilamento que levam a que se deva considerar que ocorre um abrandamento da medida da culpa, a qual constitui limite inultrapassável da pena concreta, nos termos do disposto no art. 40.º, n.º 2, do CP.

XII - A pena aplicada ao recorrente revela-se desproporcionada quando comparada com outras que têm sido aplicadas pelo STJ, devendo ser corrigida na sua duração, para 19 anos de prisão, por competirem ao STJ funções de uniformização de critérios da medida da pena, com vista a um tratamento tão igualitário quanto possível dos diversos casos.

Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. AA, identificado nos autos, foi julgado pelo tribunal colectivo do 1º Juízo da comarca da Covilhã e condenado, como autor material de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 131º e 132º nºs 1 e 2 al. i) do Código Penal, cometido na pessoa de BB, na pena de 21 anos de prisão. Foi ainda condenado na pena de 10 meses de prisão pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples, do art. 143º nº 1 do Código Penal, em que foi ofendida a referida BB. Em cúmulo, foi aplicada ao arguido a pena única de 21 anos e 6 meses de prisão.
Inconformado, recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, de facto e de direito. Na sua motivação, dando cumprimento ao disposto no nº 4º do art. 412º do Código de Processo Penal declarou manter interesse nos dois recursos interlocutórios interpostos no debate instrutório, a fls. 1049 e 1051, no recurso interposto da decisão instrutória e nos recursos interpostos nas actas de audiência de discussão e julgamento dos dias 26 e 27 de Fevereiro de 2007, motivados pelo requerimento apresentado em 15 de Março de 2007.
Respondeu o Ministério Público, pronunciando-se pela improcedência dos recursos.
Por acórdão de 5 de Março de 2008, a fls. 2546-2585, o Tribunal da Relação de Coimbra julgou todos os recursos improcedentes.
Mantendo-se irresignado, o arguido recorre ao Supremo Tribunal de Justiça, suscitando as seguintes questões:
- a problemática da distribuição do inquérito com vista à prática de actos jurisdicionais;
- a realização de perícia médico-legal à sua personalidade por quem havia sido seu médico;
- o indeferimento da junção de um carta escrita pelo arguido aoseu médico psiquiatra;
- a intenção de matar;
- a integração, ou não, do comportamento do arguido na alínea i) do nº 2 do art. 132º do Código Penal.

O Ministério Público no Tribunal da Relação de Coimbra, em resposta, defendeu a improcedência do recurso.
Remetidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público limitou-se a apor visto.
Não tendo sido requerida a realização da audiência para discussão oral da temática do recurso, este será julgado em conferência.

2. Nas conclusões 1 – 18, o recorrente suscita a questão do que designa como sendo inexistência de distribuição para efeitos de interrogatório judicial de arguido detido, circunstância que teria determinado a inexistência ou nulidade de todos os actos jurisdicionais praticados no inquérito.
Esta questão constituiu objecto de recurso interlocutório, que o arguido, no ponto 51 das conclusões de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, identificou do seguinte modo: O recurso interposto no debate instrutório a fls. 1051 sobre a decisão proferida que julgou improcedente a arguida inexistência ou nulidade de todos os actos jurisdicionais praticados nos autos face à inexistência de distribuição dos mesmos autos
E as conclusões 19 – 43 incidem sobre a validade das perícias realizadas pelo Centro Hospitalar da Cova da Beira, na Covilhã, e pelo Instituto de Medicina Legal, em Coimbra, bem como sobre o indeferimento relativo à junção duma carta escrita pelo arguido, em 3 de Outubro de 2006, ao perito médico Dr. V... S... e ao Director do Departamento de Psiquiatria daquele Centro Hospitalar, aspectos que foram também objecto de recursos interlocutórios dirigidos ao Tribunal da Relação de Coimbra, a que o arguido, no ponto 51 das conclusões do recurso da decisão final, se referiu pela seguinte forma: Os recursos interpostos nas actas de audiência de discussão e julgamento dos dias 26 e 28 de Fevereiro de 2007 quer no que diz repeito á arguidas irregularidades das perícias quer á nulidade das mesmas bem como à não admissão da junção aos autos, pelo arguido, de um documento, todos eles motivados pelo requerimento feito juntar aos autos no dia 15 de Março de 2007.

O acórdão do Tribunal da Relação julgou improcedentes ambos os recursos.
Para tanto considerou, quanto ao primeiro, que a substituição do Mmº Juiz do 1º Juízo, aquando do 1º interrogatório judicial do arguido, não determina a inexistência ou a nulidade de todos os actos jurisdicionais praticados, por não constituir qualquer nulidade insanável ou dependente de arguição (valendo em processo penal o princípio de numerus clausus em matéria de nulidades). E, ainda que de irregularidade se tratasse, tendo o arguido e a sua defensora estado presentes no acto, ficou a mesma sanada, porque não arguida no prazo previsto no art. 123º, n.º 1 do CPP.
Quanto ao segundo, julgou “devidamente fundamentada a Perícia e o Relatório do IML de Coimbra, relatório que também foi elaborado de acordo com o disposto no art. 157º do CPP. E, tendo-se concluído pela validade da Perícia e Relatório realizados na Covilhã, não ficaram a Perícia e o Relatório do IML de Coimbra inquinados com algumas referências que tenham feito àqueles.” Considerou ainda que “dispondo o arguido de duas perícias médico-psiquiátricas válidas, realizadas em estabelecimentos diferentes, não se vislumbra da necessidade de realização de uma terceira, que a acontecer teria de pertencer à circunscrição médico-legal de Coimbra, e não ao INML de Lisboa ou do Porto, como seria pretensão do recorrente.” E entendeu quanto à carta que, “Como salienta o Magistrado do MP na sua resposta “No decurso destas perícias o examinado disse o que quis, apresentou tudo o que entendeu (de forma verbal e escrita, podendo apresentar a carta em causa que já tinha escrito antes da perícia da Covilhã), e teve possibilidade de se fazer acompanhar de pessoa de família, ou por pessoa que sobre ele pudesse prestar declarações, para entrevistas subsidiárias”. Na verdade, como resulta de fls. 1577, foi o arguido notificado para, querendo, comparecer acompanhado na Delegação de Coimbra do IML. (sublinhado nosso).

Dada a natureza das questões, a decisão da Relação, no que à parte transcrita refere, tomada em recurso, não pôs termo à causa, uma vez que não se pronunciou sobre a questão substantiva que é o objecto do processo, tendo, por outro lado, absoluta autonomia relativamente às demais questões suscitadas no recurso. É, por consequência, irrecorrível, conforme estabelece a alínea c) do nº 1 do art. 400º, por referência à alínea b) do art. 432º, ambos do Código de Processo Penal, sendo indiferente para efeito da recorribilidade a forma como o recurso foi processado e julgado pela Relação, isto é se o recurso foi processado autonomamente ou se a decisão se encontra inserida em impugnação da decisão final (cfr., neste sentido, o ac. do ST.J, de 09-01-2008 - proc. n.º 2793/07-3, bem como o ac. de 21-05-2008 - proc. nº 414/08-5, este último com o mesmo relator).
Tal entendimento, além de respeitar a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição, encontra-se em perfeita sintonia com o regime traçado pela Reforma de 1998, e mantido na Reforma de 2007, para os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça. Sempre que se trate de questões processuais ou que não tenham posto termo ao processo, o legislador pretendeu impedir o segundo grau de recurso, terceiro de jurisdição, determinando que tais questões fiquem definitivamente resolvidas com a decisão da Relação.
Respeitando o recurso do recorrente, nesta parte, a decisões irrecorríveis, tem de ser rejeitado neste segmento, conforme determinam as disposições combinadas dos arts. 400º nº 1 al. c) e 417º nº 6 al. b) do Código de Processo Penal, o que se decide.

3. Nas três últimas conclusões da sua motivação, a que atribuiu os nºs 44 a 46, que a seguir se transcrevem, encontram-se sintetizadas as questões directamente respeitantes à prática do crime de homicídio, acerca das quais, na óptica do recorrente, o Supremo Tribunal de Justiça se deve pronunciar:
44 - … o douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra aplica erradamente a alínea i) do nº 2 do art° 132° do C. Penal;
45 - Efectivamente, não só, como resulta da matéria dos autos e fundamentalmente dos relatórios periciais - tendo estes os vícios que têm, o que sem conceder se refere – não houve intenção de matar bem como, da matéria de facto dada como provada não se pode concluir a existência de qualquer reflexão sobre os meios empregados;
46 – Não pode resultar da existência de uma faca e de pão na mala do carro do arguido que este reflectiu sobre a faca como meio para tirar a vida à infeliz vítima.
4. Previamente à apreciação do recurso, importa conhecer a matéria de facto fixada pelas instâncias:
Factos Provados;
1.- O arguido viveu maritalmente, durante cerca de um ano, com BB. Dessa relação existe uma filha chamada CC, nascida a 08.05.2003.
2.- A relação marital entre o arguido e BB cessou em Setembro de 2003, em virtude de agressões sofridas por esta levadas a cabo pelo arguido. Foi então regulado o poder paternal relativo à menor CC. Por acordo de ambos, homologado judicialmente, a menor ficou à guarda e cuidados de sua mãe. No entanto, o arguido não aceitou de bom grado a separação, tendo pressionado a BB para voltarem a viver em conjunto, o que ela não aceitou.
3.- Na noite de 30 para 31.03.2005, o arguido conseguiu que a BB o deixasse dormir na sua residência, sita na Av.ª General Humberto Delgado, n.º ..., 6.º B, em Belas, concelho de Sintra. Cerca das 8,30 Horas, o arguido levantou-se à casa de banho e reparou que a menor CC se encontrava destapada e que tinha a fralda cheia de urina. Então, agrediu a BB com vários socos na cara, desferindo-lhe um pontapé na perna direita.
4.- Em consequência das agressões levadas a efeito pelo arguido na pessoa da BB, esta sofreu dores e as lesões que foram causa directa e necessária de 10 dias de doença, sendo os 4 primeiros dias de incapacidade para o trabalho (ver auto de exame médico de fls. 237 e 238).
5.- Em consequência da perturbação que o arguido lhe causava na sua vida privada, com constantes telefonemas e e-mails e tentativas de contactos pessoais, a BB, que trabalhava no Serviço de Finanças do Cacém, pediu transferência para o Fundão, por ser natural daquele concelho e ali ter familiares. Como não houvesse vaga no Serviço de Finanças daquela cidade, pediu a transferência para a Covilhã, tendo obtido colocação no Serviço de Finanças da Covilhã – 1, em Junho de 2005. A BB veio, pois, trabalhar para a Covilhã, tendo em vista evitar os contactos com o arguido, ou, pelo menos, reduzi-los ao mínimo indispensável. Este, porém, é que nunca aceitou uma tal situação.
6.- Em data que não foi possível apurar, mas que se sabe ter sido entre 28 de Outubro de 2005 e 2 de Novembro de 2005, o arguido deslocou-se da sua residência sita em Rua José Cardoso Pires, em Lisboa, para esta cidade da Covilhã, no veículo de marca Volkswagen, modelo “Polo” e matrícula ...-...-GD.
7.- No dia 02 de Novembro de 2005, por volta das 08H00, o arguido dirigiu-se à rampa de acesso às garagens do prédio n.º ... e Ginásio “Muscle Gym”, sita junto a Avenida Frei Heitor Pinto, em Covilhã, local onde a BB normalmente estacionava o veículo automóvel em que se deslocava diariamente para o seu local de trabalho (Serviço de Finanças da Covilhã – 1).
8.- Aí aguardou que a BB chegasse e estacionasse o veículo (um Fiat Punto, de matrícula ...-...-FD). Quando ela se encontrava fora do veículo e se preparava para retirar a filha dela e do arguido (CC) para a levar para o Infantário “Bolinha de Neve”, a qual se encontrava sentada em banco próprio colocado no banco traseiro do veículo, o arguido segurou a BB com uma das mãos e com uma faca que tinha empunhada na outra mão vibrou vários golpes no pescoço da vítima. Além disso, agrediu-a ainda na face, no abdómen e membros inferiores. A vítima, ao tentar proteger-se dos golpes desferidos pelo arguido, sofreu ainda um corte no polegar direito, um corte profundo no dedo médio da mão esquerda e um corte no polegar desta mesma mão.
9.- Os golpes desferidos pelo arguido provocaram na BB as lesões que se encontram descritas no relatório de autópsia de fls. 506 a 510 dos autos, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais, dele constando, nomeadamente, as seguintes:
Face: Esfacelo da face com arrancamento da derme em toda a região do maxilar inferior à esquerda até à linha média com deslocamento dos tecidos. Corte no lóbulo da orelha esquerda. Pescoço: Ferida corto perfurante na linha média com cerca de 2 cm. Ferida anfractuosa abrangendo toda a região cervical média bilateral com corte de todas as estruturas anatómicas, incluindo a coluna cervical onde penetramos em toda a extensão da região anterior do corpo e lateral direita abrangendo a medula, com cerca de 1,5 cm de profundidade. Corte de direcção transversal na região da traqueia abaixo das cordas vocais, abrangendo toda a parte anterior bilateral com a parte posterior integra em 1,5 cm. A 1 cm deste corte existe um outro de direcção transversal abrangendo praticamente toda a traqueia, laringe, e esófago, somente preso por 1 cm da parte posterior. Abdómen: escoriação com equimose na região inguinal esquerda. Membros superiores: Feridas em ambas as mãos. Membros inferiores: Pequena escoriação na face lateral externa do pé esquerdo. Duas escoriações no joelho esquerdo. Fractura do osso hioide, secção do externo cleido mastoideu à direita e à esquerda.
10.- Cerca das 08H45, após a prática de tais factos, aos quais assistiu a filha do arguido e da vítima – CC – que chorava convulsivamente e chamava pela mãe, o arguido fugiu do local. Cerca das 15H30 desse mesmo dia, o arguido apresentou-se na Esquadra da Polícia de Segurança Pública, tendo ali perguntado pelo estado das vítimas.
11.- As lesões infligidas pelo arguido à BB foram causa directa e necessária da morte da vítima, nesse próprio dia, conforme se apurou no relatório de autópsia (documento de fls. 505 a 510), cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais.
12.- O arguido não trabalhou em 31 de Outubro de 2005, atenta a dispensa dada pela empresa, tendo-se deslocado à Covilhã em vista a preparar e executar a prática dos factos que originaram a morte da BB. O arguido praticou tais factos na presença da menor sua filha, mostrando frieza e determinação na execução do seu plano. O arguido executou os factos tendo para tanto ponderado todas as circunstâncias, nomeadamente, o instrumento, o local e a data para os executar e reflectiu na forma mais expedita de conseguir os seus intentos. O período de tempo que mediou entre a sua tomada de decisão de matar a vítima e a execução dos factos foi muito superior a 24 horas.
13.- O arguido pretendeu com a sua actuação causar a morte da BB, resultado que logrou obter. Sabia que o seu comportamento era proibido e punido pela lei penal. Agiu voluntária, livre e conscientemente. É primário. Trabalha para a Siemens auferindo € 1850,00/mês; Tem Licenciatura em Engenharia Electrotécnica e Comunicações; nunca aceitou a separação e andava transtornado e nervoso pelo facto de a BB o ter abandonado.
14.- A falecida, que nasceu em 7.12.1967, vivia, desde Junho de 2005 com sua filha e seus pais, em casa destes, na Vila de Silvares; eram felizes, unidos por laços de entreajuda, afecto e amor; a menor chorava convulsivamente pela mãe, sentindo esta e seus pais (os assistentes J...B... e M... Z...) um profundo desgosto, tristeza e abalo com a morte da BB; após a separação do “casal” o arguido não manteve qualquer tipo de relação com a menor CC, sendo a falecida que a acarinhou, protegeu, amparou e educou; à data do óbito a BB trabalhava no Serviço de Finanças da Covilhã, auferindo mensalmente € 1.062,00, sendo com esta quantia que fazia face às despesas da menor, em nada contribuindo o arguido; com a realização do funeral de sua mãe a assistente despendeu € 1.670,00 com a agência funerária; € 100,00 com inumação e abertura da campa paga à Junta de Freguesia de Silvares; € 15,00 pagos à Igreja Paroquial de Santa Ana de Silvares, referentes à missa de funeral de 7.º dia e € 50,09 referentes a publicação de anúncio no Jornal do Fundão; com a outorga da escritura de habilitação de herdeiros, efectuada no cartório do Fundão, a quantia de € 237,30; a menor CC frequenta o Jardim Infantil “O Girassol” em Silvares;
*
Factos não provados;
1. Na noite de 30 para 31.03.2005 o arguido agarrou a BB pelos cabelos e conduziu-a, à força, à casa de banho, onde lhe lavou o sangue da cara. A dado momento, a filha de ambos começou a chorar, tendo o arguido ido para junto da menor, o que levou a que a BB se dirigisse para a porta para pedir socorro. Então o arguido impediu-a de abrir a porta, tapou-lhe a boca para que não gritasse e torceu-lhe o pescoço;
2. Quer à data da prática dos factos, quer hoje, o arguido padece de anomalia psíquica e/ou de transtorno de personalidade, que o torna incapaz de avaliar a ilicitude desses factos ou de se determinar de acordo com essa avaliação;
3. A BB esteve dependente das drogas, consumindo haxixe e cocaína, tendo relacionamentos escandalosos, tendo dito ao arguido que teve uma relação com um anterior patrão; em meados de 2004 a BB disse ao arguido que não queria ser sua amiga, fazendo tudo para o “arrasar” psicologicamente e fisicamente; o arguido era forçado a submeter-se à vontade da BB para poder estar com a filha; não deixou levar a filha consigo; a CC tinha aversão a sua mãe, chorando sempre que o arguido a entregava; a BB negligenciava a educação e formação da CC, alimentando-a mal, chegando a estar muito “queimada da urina”; na semana de 31.10.2005 a 4.11.2005 o arguido resolveu tirar férias por se sentir bastante “abatido”; aquando da prática dos factos inseridos no Ponto 8 dos Factos Provados, a BB mordeu nos dedos das mãos do arguido.

5. Embora o que consta das conclusões 45 e 46 seja o desenvolvimento da afirmação feita na conclusão 44, segundo a qual o Tribunal da Relação “aplica erradamente a alínea i) do nº 2 do art. 132º do C. Penal”, na motivação, o recorrente autonomiza, como “a quarta questão”, matéria que diz respeito directamente à intenção de matar.
Depois de afirmar que não põe em causa que o tipo de ferimentos sofridos pela vítima sejam de molde a presumir, médico-legalmente, a intenção de matar, o recorrente suscita directamente algo que respeita à matéria de facto, a saber: que tinha a intenção de pregar um susto à infeliz vítima para obter maior flexibilidade dela na conferência de regulação do poder paternal marcada para a semana seguinte no Tribunal do Fundão; que na conversa com a vítima se descontrolou, praticando então os actos que levaram à morte dela; que esses factos constavam da sua alegação e que o tribunal omitiu pronúncia sobre eles; que o tribunal, ponderando todos os elementos deveria ter concluído pela existência dum conflito sério, a partir de meados do ano de 2005, quando a vítima veio trabalhar para a Covilhã, por existir indisponibilidade por parte da vítima para que o arguido pudesse visitar a filha CC em condições de normalidade. Acrescenta que o tribunal deixou de se pronunciar sobre as consequências que o comportamento da vítima teve no arguido, atenta a sua personalidade, desequilibrando-o e levando a que a mera ameaça se tivesse transformado em ofensas corporais de que resultou a morte. Tudo para concluir que não só não se está perante uma situação de frieza de ânimo, como não se está perante uma reflexão sobre os meios empregues, nem perante uma premeditação.

Ou seja, no seu recurso para este Supremo Tribunal, o arguido acaba por pôr em causa a matéria de facto.
Trata-se, porém, de questão que deve ser considerada como definitivamente resolvida pela Relação
O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça é um recurso de revista, visando exclusivamente a matéria de direito, conforme estabelece o art. 432º do Código de Processo Penal. O reexame pelo Supremo Tribunal da matéria de direito exige, portanto, a prévia definição pela Relação dos factos provados, se estes tiverem sido impugnados. Ora, conforme se afirmou no ac. de 14-12-2006 - proc. n.º 4356/06-5.ª Secção, relatado pelo Conselheiro Carmona da Mota, “tendo os recorrentes ao seu dispor a Relação para discutir a decisão de facto do Tribunal colectivo, vedado lhes ficará pedir ao Supremo Tribunal a reapreciação da decisão de facto tomada pela Relação. E isso porque a competência das Relações, quanto ao conhecimento de facto, esgota os poderes de cognição dos tribunais sobre tal matéria, não podendo pretender-se colmatar o eventual mau uso do poder de fazer actuar aquela competência, reeditando-se no STJ pretensões pertinentes à decisão de facto que lhe são estranhas, pois se hão-de haver como precludidas todas as razões quanto a tal decisão invocadas perante a Relação, bem como as que o poderiam ter sido”. Só assim não é quando se verifique uma omissão na apreciação dessa questão por parte da Relação, ou quando se tenha decidido apoiado em prova proibida, ou contra prova vinculada.
A 2ª instância, no recurso que para ela foi interposto, teve oportunidade para examinar a argumentação do arguido contida na tese de que foi feita prova da existência de um conflito sério entre aquele e a vítima quanto à regulação do poder paternal da menor Carla, conflito a que o tribunal não fez referência, violando a obrigação do nº 2 do art. 374º do Código de Processo Penal. Não obstante – diz – , esse facto foi usado na aplicação do direito, o que provoca a nulidade da sentença, como prevêem as als. a) e c) do nº 1 do art. 379º.
A respeito desta questão, a Relação de Coimbra pronunciou-se nos seguintes termos:
Alega o recorrente que a decisão recorrida enferma de nulidade, por não ter mencionado na matéria de facto a existência de um conflito entre o arguido e a vítima, sobre a regulação do poder paternal da menor.
Contudo, não tem razão.
Antes de mais, convém recordar que foi dado como provado que, após ter cessado a relação marital entre o arguido e a vítima, foi regulado o poder paternal da menor, por acordo de ambos.
Não resulta dos autos qualquer conflito sobre a aludida questão, nem o arguido a suscitou na sua defesa, aquando da apresentação da contestação para julgamento, tendo-se limitado a fazer breves referências sobre o assunto, durante as suas declarações em audiência de julgamento, como resulta da transcrição das mesmas.
De qualquer forma, ainda que não tenha sido dado como provado, tomou o tribunal conhecimento de que fora requerida a alteração da regulação do poder paternal da menor pela a id. BB, tendo os progenitores sido notificados para uma conferência de pais, a realizar naquele mês de Novembro de 2005, conforme documentos apreendidos e juntos aos autos, a fls. 45 e 70; sendo certo que o pedido de alteração da regulação do poder paternal, não significa necessariamente a existência de conflito.

Decidido o recurso pela Relação, ficam esgotados os poderes de apreciação da matéria de facto, tornando-se esta definitivamente adquirida, a menos que a lei exija para a prova de certo facto exija determinada espécie de prova ou que fixe a força de determinado meio de prova, os quais não tenham sido respeitados. Ou seja, o Supremo Tribunal de Justiça deve aceitar a matéria de facto tal como foi fixada pelas instâncias e exorbitaria dos poderes que lhe são próprios se se dispusesse a alterá-la.
Fora das hipóteses previstas no art. 410º do Código de Processo Penal, o Supremo Tribunal de Justiça não pode investigar se o tribunal de 1ª instância proferiu uma decisão justa no campo da matéria de facto, conforme se decidiu no ac. de 21-04-1999 – proc. 107/99-3ª. Por outro lado, a jurisprudência tem entendido a possibilidade de tal uso como válvula de segurança, e, como tal, a utilizar excepcionalmente, apenas nos casos em que os factos, tal como foram apurados pelas instâncias, não puderem servir de suporte a uma correcta decisão de direito, em virtude de a matéria de facto se revelar ostensivamente insuficiente, ou fundada em erro de apreciação, ou assente em premissas contraditórias. Desse carácter excepcional resulta que o apuramento pelo Supremo da existência de tais vícios é oficioso, não podendo servir de fundamento de recurso, que é restrito à matéria de direito.
Contudo, tais vícios, quando ocorrem, têm de resultar do texto da decisão recorrida, encarada em si ou com recurso às regras gerais da experiência, sem que se possa lançar mão de elementos extrínsecos à decisão, não podendo ser confundidos, como frequentemente sucede, com erro de julgamento, resultante de errada apreciação da prova produzida ou de insuficiência desta para fundamentar a decisão recorrida. É que o recurso, como observa Germano Marques da Silva, “tem por objecto a decisão recorrida e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida” (Curso de Processo Penal, III, pág. 339) sendo certo que, conforme se decidiu no acórdão de 19.12.1990, “o que do inquérito, da instrução ou das declarações em julgamento consta pode ter sido posteriormente alterado ou esclarecido pelos próprios intervenientes, sendo, por isso, inoperante referir, na motivação do recurso, o que eles afirmaram.”
De entre os vícios do art. 410º º 2 importa atentar especialmente, para o caso dos autos, no da al. a). A insuficiência da matéria de facto ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito, porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar relativamente a factos relevantes para a decisão da causa, alegados pela acusação ou pela defesa, ou que resultaram da audiência ou nela deviam ter sido apurados por força da referida relevância para a decisão. (cfr., por todos, o Acórdão de 3-07-2002, Proc. n.º 1748/02-3ª). Ora, da análise da decisão recorrida e da respectiva fundamentação não resulta a existência de tal vício, sendo a matéria de facto adquirida suficiente para uma segura decisão de direito, ou seja para se encontrar a solução jurídica do caso sub judice nas várias vertentes relevantes possíveis, nomeadamente a condenação ou a absolvição, tendo presentes os factos alegados pela acusação e pela defesa e os resultantes da discussão da causa.
Aliás, o recorrente na contestação não refere a versão dos factos que veio a sustentar nos recursos, assim como, antes o não tinha feito no requerimento para abertura de instrução.

6. O tribunal colectivo condenou o arguido por um crime de homicídio qualificado, previsto nos arts. 131º e 132º nº 1 e 2 al. i) do Código Penal, o que veio a ser confirmado pela Relação.

No presente recurso, mantém o arguido a sua irresignação quanto à qualificação dos factos, defendendo que não estão verificados os pressupostos para a qualificação do crime, por não existir intenção de matar, nem reflexão sobre os meios empregados.

O tipo legal fundamental dos crimes contra a vida encontra-se descrito no art. 131º do Código Penal, sendo desse preceito que a lei parte para, nos artigos seguintes, prever as formas agravada e privilegiada, fazendo acrescer ao tipo-base, para tanto, ou circunstâncias que qualificam o crime, por revelarem especial censurabilidade ou perversidade ou que o privilegiam por constituírem manifestação de uma diminuição da exigibilidade, .
Refere o Prof. Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense ao Código Penal,, I, pág. 26) que “a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a «especial censurabilidade ou perversidade» do agente.” E esclarece que a lei pretendeu imputar “à «especial censurabilidade» aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas e à «especial perversidade» aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas”.
Acerca dos conceitos de censurabilidade e perversidade diz Teresa Serra (Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 63): “Dominantemente, entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelam especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto.
A ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No art. 132º, trata-se duma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. Nesta medida, pode afirmar-se que a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativas ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.
“Importa salientar” – continua esta autora – “que a qualificação de especial se refere tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete. No homicídio qualificado o que está em causa é uma diferença essencial de grau que permite ao juiz concluir pela aplicação do art. 132º ao caso concreto, após a ponderação da circunstância indiciadora presente ou de outra circunstância susceptível de preencher o chamado Leitbild dos exemplo-pradão.”

Sendo conceitos indeterminados, a especial censurabilidade ou perversidade são representadas por circunstâncias que denunciam uma culpa agravada e são descritas como exemplos-padrão. A ocorrência destes exemplos não determina, todavia, por si só e automaticamente, a qualificação do crime; assim como a sua não verificação não impede que outros elementos possam ser julgados como qualificadores da culpa, desde que sejam substancialmente análogos aos legalmente descritos. Conforme se afirmou em acórdão deste Supremo Tribunal, relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa (ac. de 07-07-2005, proc. 1670/05 – 5ª secção): “é preciso que, autonomamente, o intérprete se certifique de que, da ocorrência de qualquer daquelas circunstâncias resultou em concreto a especial censurabilidade ou perversidade. Como inversamente, não será um maior desvalor da acção do agente ou um aspecto especialmente desvalioso da sua personalidade documentado no facto que dará origem ao preenchimento do tipo de culpa agravado, sendo necessário que essa atitude se concretize em qualquer dos exemplos-padrão ou em qualquer circunstância substancialmente análoga. É que estes são elementos típicos, embora atinentes ao tipo de culpa e não ao tipo de ilícito e daí que, mesmo no caso de ocorrência de outra circunstância que não a exactamente prevista, esta tenha de assentar numa estrutura valorativa correspondente à do respectivo exemplo-padrão.”

De harmonia com a decisão recorrida, o comportamento do arguido encontra-se compreendido no exemplo-padrão da então al. i) – que após a revisão operada ela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, tomou a letra j) – do nº 2 do art. 132º: agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas.
Segundo o Comentário Conimbricense do Código Penal, “a al. i) … dá efeito de exemplo-padrão qualificador à tradicionalmente chamada circunstância da premeditação, mas cujo conceito é agora omitido. Circunstância esta que em alguns ordenamentos jurídico-penais é por excelência, quando não unicamente, a determinante de um homicídio agravado”. Sob esse conceito foram reunidas no Código Penal a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que a frieza de ânimo é uma circunstância relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, reconduzindo-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução, em suma, um comportamento traduzido na “firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução criminosa” (cfr. ac. de 15-05-2008 - proc. 3979/07 e jurisprudência ali citada).
Apesar de referir a que esta é circunstância, por excelência, a determinante dum homicídio agravado, o Prof. Figueiredo Dias reconhece, por outro lado, que “a hipótese da presente alínea será uma daquelas em que mais frequentemente poderá ser ilidido o efeito qualificador do exemplo-padrão”.
Uma vez que a Relação, duma forma assaz sintética e conclusiva, considerou que “a factualidade dada como provada integra indiscutivelmente a prática de um crime de homicídio qualificado”, atentemos na forma como a primeira instância tratou esta matéria.
Depois de ter delimitado o conceito de frieza de ânimo em absoluta consonância com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça a que se fez referência, afigurou-se ao tribunal colectivo que “o meio empregue, a região atingida e a «brutalidade utilizada pelo arguido» e as circunstâncias que rodearam o evento, revelam intensidade na decisão de matar. Estas circunstâncias reflectem que o arguido agiu a sangue frio, de caso pensado, de forma insensível, com indiferença pela vida humana (neste particular vejam-se as fotografias que estão a fls. 18 a 23)
Relembremos a matéria de facto provada, elegendo os elementos mais eficazes para efeito da qualificação jurídico-criminal dos factos “Quando ela [a vítima BB] se encontrava fora do veículo e se preparava para retirar a filha dela e do arguido (CC) para a levar para o Infantário “Bolinha de Neve”, a qual se encontrava sentada em banco próprio colocado no banco traseiro do veículo, o arguido [que ali aguardara a vítima] segurou a BB com uma das mãos e com uma faca que tinha empunhada na outra mão vibrou vários golpes no pescoço da vítima. (facto nº 8). O arguido … deslocou-se à Covilhã tendo em vista a preparar e executar a prática dos factos; praticou tais factos na presença da menor sua filha, mostrando frieza e determinação na execução do seu plano; executou os factos tendo para tanto ponderado todas as circunstâncias, nomeadamente, o instrumento, o local e a data para os executar e reflectiu na forma mais expedita de conseguir os seus intentos. O período de tempo que mediou entre a sua tomada de decisão de matar a vítima e a execução dos factos foi muito superior a 24 horas” (facto nº 12).
É certo que “o arguido não aceitou de bom grado a separação, tendo pressionado a BB para voltarem a viver em conjunto, o que ela não aceitou” (facto nº 2) que “veio trabalhar para a Covilhã, tendo em vista evitar os contactos com o arguido, ou, pelo menos, reduzi-los ao mínimo indispensável; este, porém nunca aceitou uma tal situação (facto nº 5); nunca aceitou a separação andava transtornado e nervoso pelo facto de a BB o ter abandonado” (facto nº 13).
Como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal de 16-02-2005 - proc. n.º 3131/04-3, ainda que a respeito de outra circunstância agravante, “o abandono do lar conjugal por parte de um dos cônjuges, sem justificar de modo algum a supressão do direito à vida do outro ou maus tratos, é, segundo as regras da experiência comum, fonte de grave perturbação pessoal e, como o divórcio, à luz das concepções sociais dominantes, nem sempre é por todos bem aceite, e é, igualmente, produtor, por vezes, de reflexos socialmente negativos para o atingido”.
Todavia, se esta circunstância pudesse, de algum modo, servir de explicação – que nunca de justificação – para a conduta do arguido, o seu pretenso valor atenuativo seria de todo anulado pelo facto de ter sido “em virtude de agressões sofridas por esta levadas a cabo pelo arguido(facto nº 2) que a ofendida pôs fim ao relacionamento. Esse comportamento violento nas relações com a sua companheira, é bem evidente no episódio da noite de 30 para 31 de Março de 2005, quando o arguido “reparou que a menor CC se encontrava destapada e tinha a fralda cheia de urina; então agrediu a BB com vários socos na cara, desferindo-lhe um pontapé na perna direita”. E é especialmente patente nas lesões na face e no pescoço descritas no relatório de autópsia, que constam do ponto 9 dos factos provados:Face: esfacelo da face com arrancamento da derme em toda a região do maxilar inferior à esquerda até à linha média com deslocamento dos tecidos. Corte no lóbulo da orelha esquerda. Pescoço: Ferida corto perfurante na linha média com cerca de 2 cm. Ferida anfractuosa abrangendo toda a região cervical média bilateral com corte de todas as estruturas anatómicas, incluindo a coluna cervical onde penetramos em toda a extensão da região anterior do corpo e lateral direita abrangendo a medula, com cerca de 1,5 cm de profundidade. Corte de direcção transversal na região da traqueia abaixo das cordas vocais, abrangendo toda a parte anterior bilateral com a parte posterior integra em 1,5 cm. A 1 cm deste corte existe um outro de direcção transversal abrangendo praticamente toda a traqueia, laringe, e esófago, somente preso por 1 cm da parte posterior.”
O arguido pretendeu com a sua actuação causar a morte da BB, resultado que logrou obter (facto nº13), tendo a sua conduta tido lugar na presença da filha, (factos nº 10 e 12), então com 2 anos e meio de idade.

A conduta do arguido integra-se no exemplo padrão da actual al. j) do nº 2 do art. 132º, sendo reveladora de uma especial censurabilidade. O que integra “indiscutivelmente”, como diz a Relação de Coimbra, um crime de homicídio qualificado.
Deste modo, improcede, também nesta parte, o recurso do arguido.

7. O recorrente não impugna a medida da pena.
Embora aceite que a morte da vítima resultou da sua conduta, o arguido sustenta que não teve intenção de matar, o que significa, ainda que não expressamente, que, na sua óptica, deverá ser uma outra, que não o homicídio agravado, a qualificação jurídica a levar a efeito, à qual, necessariamente, iria corresponder uma moldura penal bem mais atenuada.
Agindo em benefício do recorrente, se apreciará, ainda que brevemente, a questão da medida da pena.
Ao fixar a pena pelo crime de homicídio qualificado em 21 anos de prisão, a 1ª instância aproximou a pena do seu limite máximo – 25 anos de prisão. A Relação confirmou tal pena.
Em casos em que, na origem do homicídio, se encontram razões sentimentais, em que, quantas vezes, o amor se transforma em ódio, e em que o despeito constitui por regra o móbil do crime, a actividade delituosa é muitas vezes desenvolvida em circunstâncias de obnubilamento que levam a que se deva considerar que ocorre um abrandamento da medida da culpa, a qual constitui limite inultrapassável da pena concreta, nos termos do disposto no art. 40º nº 2 do Código Penal.
As penas fixadas pelo Supremo Tribunal de Justiça para caso de homicídios qualificados na pessoa do cônjuge ou companheiro rondam os 17 anos de prisão, ressalvados os casos em que a ilicitude dos factos se revela de gravidade excepcional, situações em que a pena atingiu ou ultrapassou muito ligeiramente 20 anos de prisão, quando a culpa o consentiu (cfr. acs. de 26-03-2008 - proc. 292/08-3 e de 02-04-2008 - proc. 4730/07-3).
Acresce que competem ao Supremo Tribunal de Justiça funções de uniformização de critérios da medida da pena, com vista a um tratamento tão igualitário quanto possível dos diversos casos.
Por tudo isso, a pena aplicada ao recorrente revela-se desproporcionada quando comparada com outras que tem sido aplicadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, devendo ser corrigida na sua duração, para 19 anos de prisão.

8. Alterada a medida da pena pelo crime de homicídio qualificado, há que proceder a novo cúmulo jurídico.
A lei (art. 77º nº 1 C.P.) determina que ao fixar a pena única o tribunal atenda, em conjunto aos factos e à personalidade do agente, referindo a doutrina que se deve atender à imagem global do facto.
Assim, em conformidade com o critério legal, fixa-se a pena única em 19 anos e 3 meses de prisão.

DECISÃO
Termos em que acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso quanto às questões suscitadas nas conclusões 1 – 43, julgando-o improcedente quanto às questões que se referem as als. 44 – 46, excepto quanto à medida da pena pelo crime de homicídio qualificado, que se fixa em 19 (dezanove) anos de prisão, alterando-se, em conformidade, a pena única, para 19 (dezanove) anos e 3 (três) meses de prisão.
Custas pelo recorrente, com 6 UC de taxa de justiça

Lisboa, 19 de Junho de 2008

Arménio Sottomayor (relator, com voto de vencido quanto à medida da pena, conforme declaração de voto, segundo a qual “diferentemente do decidido, manteria a pena de 21 anos aplicada pelas instâncias, a qual se me afigura plenamente suportada pela medida da culpa. Ponderei, para tanto, a elevadíssima ilicitude da conduta, bem patente nas lesões que o arguido provocou na vítima, o dolo da conduta, de grau muito intenso, os motivos do crime, o comportamento anterior e posterior ao crime, designadamente a sua apresentação voluntária à autoridade policial, a quem confessou a materialidade dos factos. A circunstância de ser primário aparece fortemente desvalorizada pelo comportamento conjugal de violência, que deu causa ao rompimento com a vida em comum por parte da vítima. A conduta do arguido é bem reveladora de uma personalidade incapaz de respeitar o seu semelhante, aparecendo agravada pela circunstância de possuir instrução superior. Acresce que tal pena não destoa das mais recentes aplicadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, cujas decisões foram indicadas no texto do acórdão e é aquela que melhor se harmoniza com os ditames da política criminal, em que tem sido notório o combate contra a violência doméstica (…)”)

Souto Moura

Carmona da Mota (Presidente da Secção, com voto de desempate quanto à medida da pena parcelar pelo crime de homicídio)