Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B3905
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: LIVRANÇA EM BRANCO
PROTESTO
AVALISTA
AVAL
AUTONOMIA
EXECUÇÃO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
INEXEQUIBILIDADE
Nº do Documento: SJ200904230039057
Data do Acordão: 04/23/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
1. Sendo a execução baseada numa livrança instaurada contra o avalista do subscritor, não é condição do exercício do direito de acção o protesto prévio.

2. Sendo a execução instaurada pelo beneficiário da livrança que lhe foi entregue em branco, e tendo o avalista intervindo na celebração do pacto de preenchimento, é-lhe possível opor a excepção de preenchimento abusivo.

3. A autonomia do aval obsta a que o oponente invoque como causa da respectiva nulidade a indeterminabilidade da obrigação que assumiu, com fundamento em ausência ou desconhecimento do pacto de preenchimento da livrança em branco.
Decisão Texto Integral:
Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA, avalista, deduziu oposição à execução instaurada por Banco C... P..., SA, beneficiário, com base em três livranças, nos valores de € 123.941,38, € 101.732,76 e € 49.424,84, subscritas por ISC I... e S... de C..., Lda., contra ela própria e os outros avalistas, BB e CC.
Sustenta, em síntese, a inexequibilidade dos títulos, por não terem sido apresentados a pagamento, nem à subscritora, nem aos avalistas; por terem as livranças sido subscritas e avalizadas em branco, sem intervenção ou consentimento (nem da própria, nem da subscritoras ou dos demais avalistas) no preenchimento, abusivamente feito pelo exequente. Trata-se de livranças de garantia ou de caução, destinadas a “eventual utilização oportuna e nos termos do acordo a celebrar”, nunca tendo intervindo em nenhum acordo para o respectivo preenchimento; ora, a falta de pacto de preenchimento conduz à nulidade dos avales, por ser “indeterminável, qualitativa e quantitativamente” a obrigação assumida.
O exequente contestou. Sustentou que, tratando-se de livranças de caução e tendo a oponente prestado consentimento ao preenchimento, “não é legalmente exigível a apresentação a pagamento”; que, sendo a oponente avalista, nem poderia invocar essa falta de apresentação; que na verdade a oponente foi interpelada para pagar e que, se não o tivesse sido, valeria como interpelação a citação na execução; que as livranças foram preenchidas conforme acordado; e que as obrigações avalizadas são determináveis.
A oposição foi julgada improcedente pelo saneador-sentença de fls. 151, confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de fls. 229.
Em síntese, a Relação entendeu que não é necessário protesto para accionar o avalista, que os avales não são nulos e que não procedia a excepção de preenchimento abusivo por não estarem alegados factos que pudessem revelar o abuso.

2. A oponente recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e o recurso foi recebido como revista, com efeito meramente devolutivo.
Nas conclusões das alegações que apresentou, a recorrente colocou as seguintes questões:
– Inexequibilidade dos títulos dados à execução, por não terem sido apresentados a pagamento. Em seu entender, “o artigo 32º [da LULL] limita-se (…), à semelhança do que fazem os artigos 9º e 15º (para, respectivamente, sacador e endossantes), a estipular os termos em que o avalista é responsável pelo pagamento das obrigações advenientes das letras e livranças (artigo 77º da LULL); mas para o portador invocar essa responsabilidade, após o incumprimento do aceitante, necessário se torna o protesto da livrança, conforme prescreve o artigo 53º da LULL.”;
– Preenchimento abusivo das livranças, sendo que “alegou factos suficientes para fundamentar a excepção de preenchimento abusivo que deduziu em oposição, dos quais resulta não existirem quaisquer pactos de preenchimento relativos às livranças dos autos, designadamente os juntos pela exequente em sede de contestação à oposição, tendo tais livranças sido abusivamente preenchidas” e que, a serem relevantes, a 1ª Instância deveria ter-lhe dado oportunidade de os provar; para além disso, “as livranças dos presente autos encontram-se no domínio das relações imediatas, uma vez que os títulos não entraram em circulação; no domínio das relações imediatas, pode ser discutida a relação subjacente, isto é, o negócio que subjaz à emissão do título”;
– Nulidade dos avales, porque a oponente “avalizou obrigações cuja extensão e elementos constitutivos ignorava”; “na ausência de pacto de preenchimento, a obrigação assumida pela recorrente é indeterminável, qualitativa e quantitativamente, pelo que as obrigações assumidas pela recorrente (...) são nulas, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 280º do C.C.”;
– Violação do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 510º do C.C.P. pelo tribunal de 1ª Instância, por ter conhecido do mérito da causa sem estar em condições de o fazer.
Concluiu sustentando que a oposição devia ser julgada procedente e, se assim se não entendesse, que o processo deveria voltar à 1ª Instância “para prosseguimento da oposição deduzida, com selecção da matéria de facto e elaboração da base instrutória, prosseguindo os autos os seus termos”.

3. A matéria de facto que vem provada é a seguinte (transcreve-se o acórdão recorrido):
«1. O exequente, “Banco Comercial Português, Sa” intentou a acção executiva com o nº 7137/04.5YYLSB contra CC, AA e BB, munido dos documentos nos quais se inscrevem, respectivamente, as frases:
- “no seu vencimento pagarei(emo)s por esta única via de livrança ao Banco C... P... ou à sua ordem a quantia de cento e vinte e três mil novecentos e quarenta e um euros e trinta e oito cêntimos”;
- “no seu vencimento pagarei(emo)s por esta única via de livrança ao Banco C... P.... ou à sua ordem a quantia de cento e um mil setecentos e trinta e dois euros e setenta e seis cêntimos”,
- “no seu vencimento pagarei(emo)s por esta única via de livrança ao Banco C... P... ou à sua ordem a quantia de quarenta e nove mil quatrocentos e vinte e quatro euros e oitenta e quatro cêntimos”,
com datas de emissão em 15.10.2001, 21.12.2000, 22.2.1999 e 15.4.2002 e de “vencimento” de 15.9.2003 (docs. de fls. 23, 24 e 25 dos autos de execução) (…)
2. Em cada um dos documentos referidos em 1., no espaço destinado ao nome do “subscritor”, encontra-se inscrito ”ISC I... S... C... Ldª, Avª. ... ..., ...-... Estoril”, constando um carimbo desta, com uma assinatura, no local destinado à “assinatura do subscritor”.
3. Nos versos dos documentos referidos em 1. encontra-se aposta, transversalmente, a assinatura da ora oponente AA, sob a expressão “bom por aval à firma subscritora”»
Está ainda provado, por acordo, que não houve protesto por falta de pagamento e que a livrança foi subscrita e avalizada em branco; e, por confissão (no contexto da oposição, trata-se de um facto desfavorável), que a oponente “nunca interveio em qualquer acordo para o preenchimento das referidas livranças” (ponto B.8 do requerimento inicial).

4. Cumpre então conhecer do objecto do recurso.
E, antes de mais, cabe afastar a alegação de que, ao julgar a oposição no saneador, a 1ª Instância infringiu o disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 510º do Código de Processo Civil, e que a recorrente liga à circunstância de não ter tido a oportunidade de provar os factos que, em seu entender, lhe permitiriam demonstrar o preenchimento abusivo das livranças.
Na verdade, tendo a 1ª Instância considerado que a recorrente, sendo avalista, não podia discutir se o pacto de preenchimento tinha sido respeitado, era inútil qualquer produção de prova com esse objectivo.
Note-se que, nem a Relação, nem o Supremo Tribunal de Justiça ficaram impedidos de determinar a ampliação da matéria de facto, se a considerassem necessária (artigos 712º, nº 4 e 729º, nº 3, do Código de Processo Civil, na redacção anterior à que resultou do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto).

5. Ultrapassada essa questão, cabe determinar se era ou não condição do exercício do direito de acção por parte do exequente o prévio protesto por falta de pagamento. A alegação de falta de apresentação a pagamento, neste contexto, não tem relevância autónoma, porque a citação na acção executiva sempre valeria como interpelação.
De acordo com o disposto no artigo 53º da Lei Uniforme das Letras e Livranças, aplicável às livranças nos termos prescritos pelo artigo 77º da mesma Lei, o portador de uma letra perde “os seus direitos de acção contra os endossantes, contra o sacador e contra os outros co-obrigados, à excepção do aceitante” se deixar passar o prazo “para (…) fazer o protesto (…) por falta de pagamento”.
Este Supremo Tribunal tem entendido que, da conjugação daquele artigo 53º com o artigo 32º, I, sempre da LULL, segundo o qual o avalista do subscritor responde “da mesma maneira” que ele, decorre a desnecessidade de protesto para o accionar, tal como seria desnecessário para accionar o subscritor. Vejam-se, por exemplo, os acórdãos de 20 de Novembro de 2002, 11 de Abril de 2004 ou 9 de Setembro de 2008, disponíveis em www.dgsi.pt como procs. nºs 03A3412, 04B3453 e 08A1999, e a jurisprudência neles citada.
É esta jurisprudência que aqui se reitera. Apesar das diferenças que separam o aval da fiança, decorrentes em particular da sua autonomia quanto à relação garantida (cfr. artigo 32º, II, da LULL), certo é que a responsabilidade do avalista do aceitante se define, nas diversas dimensões relevantes, por aquela que incide sobre o aceitante.

6. Relativamente à alegação de preenchimento abusivo, cabe lembrar que, como este Supremo Tribunal tem admitido, sendo a execução instaurada pelo beneficiário da livrança (que lhe foi entregue em branco) e tendo o avalista intervindo na celebração do pacto de preenchimento (o que permite situá-lo ainda no domínio das relações imediatas), tal como o subscritor, é-lhe possível opor ao beneficiário a excepção material de preenchimento abusivo do título (assim, por exemplo, os acórdãos de 19 de Junho de 2007, 4 de Março de 2008, 17 de Abril de 2008, disponíveis em www.dgsi.pt como procs. nºs 07A1811, 00A727, 07A4251, ou de 9 de Setembro de 2008, já citado). Cabe-lhe então, como o Supremo Tribunal de Justiça também já repetidamente observou, o ónus da prova em relação aos factos constitutivos de tal excepção, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 342º do Código Civil (assim, por exemplo, os acórdãos de 24 de Maio de 2005, 14 de Dezembro de 2006, disponíveis em www.dgsi.pt como procs. nºs 05A1347 e 06A2589 ou o já citado acórdão de 17 de Abril de 2008).
Indispensável é que tenham sido alegados no processo factos suficientes para o efeito.
É certo que a recorrente afirmou, no requerimento de fls. 146, que os documentos juntos pelo exequente com a contestação aos embargos não respeitam aos contratos que tiveram por base as livranças dadas a execução. No entanto, esta afirmação não equivale a alegar que o preenchimento das livranças subscritas e avalizadas em branco não respeitou o que, expressa ou tacitamente, foi acordado com o subscritor.
Com efeito, ao celebrar o negócio subjacente à emissão do título e ao subscrever uma livrança em branco, sem estabelecer expressamente os termos em que será preenchida, o subscritor está tacitamente a autorizar o beneficiário a acrescentar os elementos em falta, em termos concordantes com aquele negócio (cfr. acórdão de 17 de Abril de 2008 citado). Invocar e provar o preenchimento abusivo significa alegar e provar que o beneficiário se afastou de tal autorização – por exemplo, quanto à data do vencimento, ou ao montante em dívida nessa altura (cfr. acórdão de 9 de Setembro de 2008).
Tendo a recorrente afirmado que não interveio em nenhum pacto de preenchimento em relação às livranças em que a presente execução se baseia, está desde logo afastada a sua legitimidade para invocar o respectivo preenchimento abusivo; mas mesmo que assim não fosse, sempre subsistiria a dificuldade resultante de não terem sido trazidos ao processo factos que, a serem provados, demonstrariam esse mesmo abuso.

7. Por fim, não procede a alegação de nulidade dos avales.
Efectivamente, a autonomia do aval obsta a que a oponente invoque como causa da respectiva nulidade a indeterminabilidade da obrigação que assumiu, indeterminabilidade que resultaria da “ausência de pacto de preenchimento” e que se fundaria no artigo 280º do Código Civil.
Do ponto de vista da responsabilidade do avalista, é irrelevante, quer a sua intervenção no pacto de preenchimento (porque está vinculado ao que obriga o subscritor e porque este, como se viu, quanto mais não seja ao celebrar o negócio subjacente e ao subscrever e entregar a livrança em branco, autorizou o exequente a completá-la em conformidade), quer o seu acordo ao posterior preenchimento.
Assim sendo, não pode uma eventual ignorância dos termos acordados para o preenchimento ser invocado como motivo de indeterminabilidade do aval. Como se escreveu no acórdão de 3 de Junho de 2007 acima citado, “a data do vencimento, o local do pagamento e o valor (no caso então julgado) não constavam da livrança aquando da emissão dela e do aval, mas ficaram determinados com o completo preenchimento do título de crédito, sendo irrelevantes as relações extracartulares”. O mesmo se deve entender no caso presente.

8. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 23 de Abril de 2009

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora)
Lázaro Faria
Salvador da Costa