Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2140/06.3TAAVR-I.P1-A.S1-A-A
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: SÉNIO ALVES
Descritores: RECUSA
DISTRIBUIÇÃO
IMPARCIALIDADE
TRIBUNAL COLETIVO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 01/06/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ESCUSA / RECUSA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. O princípio do juiz natural, com consagração constitucional no artº 32º, nº 9 da CRP, encontra-se estabelecido em benefício e defesa do arguido e constitui uma garantia de que o processo - o seu processo - será julgado pelo juiz do tribunal determinado - por lei anterior - competente para o efeito.

II. Tal princípio só há-de ser arredado em situações extremas e, nomeadamente, naquelas em que o juiz natural não oferece as garantias de imparcialidade e de isenção, necessárias à função de julgar (naquele caso concreto, como é óbvio).

III. É manifestamente infundado o pedido de recusa de um Juiz Conselheiro quando se não alega facto algum que estabeleça uma ligação sua ao processo e que o possa determinar a decidir em determinado sentido, nem são alegados factos de onde se possa extrair uma justificada desconfiança da comunidade, relativamente à imparcialidade do Juiz recusado, sendo certo que uma interpretação do requerente sobre a (ir)regularidade da distribuição de um processo não é apta a configurar o motivo, ainda para mais sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz recusado.

Decisão Texto Integral:

Acordam, neste Supremo Tribunal de Justiça:



I. AA veio, por intermédio do seu ilustre Advogado, requerer a recusa dos Senhores Juízes Conselheiros BB (Presidente), CC (Relator), DD (Primeiro Adjunto) e EE (Segunda Adjunta), bem como do Tribunal Coletivo, por eles constituído para reunir, julgar e deliberar em Conferência, para julgamento do Processo de Recusa n.º 2140/06.3TAAVR-I.P1-A.S1, deduzido pelo aqui requerente, com os seguintes fundamentos:

«1. O Tribunal Coletivo foi constituído em violação do devido processo legal previsto e exigido nos artigos 204.º e 213.º do Código de Processo Civil (CPC) para a realização da distribuição nos tribunais superiores, aqui aplicável por força do artigo 4.º do CPP de harmonia com o processo penal, insistindo-se nos mesmos erros ou vícios apontados no requerimento de recusa à distribuição do processo aos Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação ... recusados através do Pedido de Recusa em Processo penal n.º 2140/06.3TAAVR-I.P1-A.S1:

a. Não contou com a assistência obrigatória do Ministério Público;

b. Não contou com a assistência de Advogado designado pela Ordem dos Advogados – que também era obrigatória caso tivesse sido possível, desconhecendo o Arguido se a mesma era ou não possível;

c. Não contou com a presença do advogado do Arguido;

d. Por falta da sua notificação para estar presente;

e. Não foi elaborada a ata desse ato jurisdicional;

f. E – mais grave e com influência decisiva na composição do Coletivo – os dois Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos não foram apurados aleatoriamente;

g. E não foi assegurada a não repetição sistemática do meso coletivo.

2. Estão em causa ilegalidades que violam o direito do Arguido ao Juiz Legal – direito, garantia e princípio constitucional fundamental consagrado no artigo 32.º, n.º 9 da Constituição;

3. Determinam a nulidade insanável da “Distribuição”;

4. Obrigam à realização de nova distribuição nos termos legais – em conformidade com o disposto nos artigos 119.º alíneas a) e e) e 122.º, n.º 1 do CPP e no artigo 213.º, n.º 4 do CPC

5. E à anulação dos atos posteriores.

Vejamos:

6. O artigo 213.º, n.º 3 do CPC dispõe o seguinte:

“É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 4 a 6 do artigo 204.º à distribuição nas Relações e no Supremo Tribunal de Justiça, com as seguintes especificidades:

a) A distribuição é feita para apurar aleatoriamente o juiz relator e os juízes-adjuntos de entre todos os juízes da secção competente, sem aplicação do critério da antiguidade ou qualquer outro;

b) Deve ser assegurada a não repetição sistemática do mesmo coletivo.

7. Os números 4 a 6 do artigo 204.º dispõem que:

“4. A distribuição obedece às seguintes regras”:

a) Os processos são distribuídos por todos os juízes do tribunal e a listagem fica sempre anexa à ata”;

b) Se for distribuído um processo a um juiz que esteja impedido de nele intervir, deve ficar consignada em ata a causa do impedimento que origina a necessidade de fazer nova distribuição por ter sido distribuído a um juiz impedido, constando expressamente o motivo do impedimento, bem como anexa à ata a nova listagem;

c) As operações de distribuição são obrigatoriamente documentadas em ata, elaborada imediatamente após a conclusão daquelas e assinada pelas pessoas referidas no n.º 3, a qual contém necessariamente a descrição de todos os atos praticados.

5. Os mandatários judiciais têm acesso à ata das operações de distribuição dos processos referentes às partes que patrocinam, podendo, a todo o tempo, requerer uma fotocópia ou certidão da mesma, a qual deve ser emitida nos termos do artigo 170.º;

6. Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, nos casos em que haja atribuição de um processo a um juiz, deve ficar explicitada na página informática de acesso público do Ministério da Justiça que houve essa atribuição e os fundamentos legais da mesma.”

8. E o artigo 213.º, n.º 2, acrescenta relativamente à distribuição nos tribunais de 1.ª instância e à exigência ou determinação legal da “assistência obrigatória do Ministério Público e, caso seja possível por parte da Ordem dos Advogados de um advogado designado por esta ordem profissional, (...),” o poder de os mandatários das partes estarem presentes, se assim o entenderem,

9. O que pressupõe e exige, necessariamente, a notificação aos mandatários das partes do dia e hora designado para o concreto ato judicial de distribuição em causa.

Ora,

10. O advogado signatário não foi notificado para essa distribuição, a que queria e tinha o direito de ter estado presente, por força da norma citada do artigo 213.º, n.º 2 do CPC e por se tratar de ato processual que diretamente diz respeito ao seu constituinte, tendo também o direito, por isso mesmo, de ter sido notificado para o efeito.

11. Não foi elaborada ata do ato judicial de distribuição deste processo, nem outro auto algum;

12. O Ministério Público não esteve presente;

13. Nem Advogado designado pela Ordem dos Advogados;

14. O advogado do Arguido também não foi notificado, nem teve possibilidade de ter conhecimento da respetiva data, e por isso tão pouco teve possibilidade de estar presente;

15. E não foi efetuado sorteio eletrónico para apurar aleatoriamente os dois Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos – apenas tendo sido sorteado o Senhor Juiz Conselheiro Relator.

16. Mostram-se, assim, violadas as regras antes citadas e transcritas dos artigos 213.º, n.ºs 2 e 3 e 204.º a 206.º do CPC – aqui aplicáveis por força do disposto e nos termos do artigo 4.º do CPP, de harmonia e com respeito pelos princípios gerais do processo penal.

Consequentemente,

17. Uma vez que estão em causa regras legais relativas ao modo de determinar a composição do Tribunal e regras legais relativas à atribuição da competência ao tribunal no caso concreto, a sua violação conduz aqui à nulidade absoluta deste processo de recusa desde a sua distribuição neste Supremo Tribunal de Justiça, nos termos e por força do disposto nas alíneas a) e e) do artigo 119.º do CPP, o que impõe a realização de nova distribuição nos termos legais – por força e nos termos conjugados do artigo 122.º, n.º 1 do CPP (que determina que “as nulidades tornam inválido o ato em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afetar”) e do artigo 213.º, n.º 4 do CPC (segundo o qual “quando houver erro na distribuição o processo é distribuído novamente”).

18. A este respeito, considera o Arguido que neste processo não podem aproveitar-se os vistos, uma vez que em processo penal, verificando-se a nulidade da distribuição por omissão do apuramento aleatório legalmente prescrito de algum dos Juízes que constituem o Coletivo (como se verifica nestes autos), o aproveitamento dos vistos consubstanciaria ou relevaria sempre de  interpretação normativa inconstitucional das normas conjugadas do artigo 4.º do CPP e do artigo 213.º, n.º 4 do CPC, por violação do direito, garantia e princípio fundamental do juiz legal consagrado no artigo 32.º, n.º 9 da Constituição – inconstitucionalidade que suscita nos termos, nomeadamente, dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b) e 72.º, n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional.

19. Já quanto ao entendimento de que as alterações determinadas pela Lei n.º 55/2021 não teriam entrado em vigor “por falta de regulamentação” (que parece estar por detrás destas graves ilegalidades e da nulidade insanável aqui arguida) o mesmo é a todas as luzes inaceitável:

20. Desde logo, porque viola diretamente o disposto nos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º daquela lei:

a. Viola a letra do artigo 3.º - que manda proceder à regulamentação daquela lei “no prazo de 30 dias a contar da data da sua aplicação; e que determina que essa regulamentação entre em vigor ao mesmo tempo que a lei;

b. E a própria letra da norma transitória do artigo 4.º - que pura e simplesmente dispõe que “a presente lei entra em vigor 60 dias após a sua publicação”, sem prever a dependência da dita regulamentação;

c. E viola, na verdade, toda a lei, porque a nova redação das normas dos artigos 204.º, n.º 4, alínea c) e 213.º, n.º 2 do CPC, por ela determinada, não carece de regulamentação alguma.

21. Viola também o disposto no artigo 137.º, n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo, uma vez que omite e viola a obrigação de tutela jurisdicional da exequibilidade desse acto legislativo, que impende sobre todos os Tribunais e também sobre este Supremo Tribunal Justiça e é expressamente acautelada nessa norma legal.

Acresce que,

22. O que está em causa é a exequibilidade da Lei n.º 55/2021, a exequibilidade desse ato normativo, legislativo, da Assembleia da República, emanado diretamente do próprio Poder Legislativo, o que significa que a omissão por parte deste Supremo Tribunal de Justiça da tutela jurisdicional da sua exequibilidade viola o Princípio da Separação e Interdependência de Poderes da República Portuguesa, essencial, indispensável e determinante da sua organização constitucional como Estado de Direito Democrático baseado na Soberania Popular, consagrado no artigo 2.º, no artigo 108.º, no artigo 110.º, no artigo 111.º, n.º 1, no artigo 112.º, n.º 5, no artigo 161.º, alíneas c) e o), no artigo 165.º, n.º 1, alíneas b) e p), no artigo 199.º, alínea c) e nos artigos 202.º e 203.º da Constituição; viola a constitucionalmente imposta sujeição dos Tribunais à Lei; viola a independência dos Tribunais e deste Supremo Tribunal de Justiça face ao Governo,

23. Parecendo significar, mesmo, inaceitável cumplicidade com o Executivo na violação da respetiva regulamentação.

A este propósito,

24. O Arguido suscita – designadamente nos termos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b) e 72.º, n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional – a inconstitucionalidade dos artigos 3.º e 4.º da Lei n.º 55/2021 e do artigo 137.º, n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo na interpretação normativa em que tal entendimento se traduz, no sentido de que as alterações determinadas pela referida Lei aos artigos 204.º e 213.º do CPC não teriam entrado em vigor por falta de regulamentação pelo Governo, por violação do disposto no artigo 18.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição, por violação do direito, garantia e princípio constitucional fundamental do processo equitativo, por violação do princípio da legalidade e da sujeição dos Juízes à lei, consagrado nos artigos 29.º e 203.º, por violação das garantias de ampla defesa e especialmente do direito, garantia e princípio constitucional fundamental do Juiz natural, consagrado no artigo 32.º, e por violação do Princípio da Separação e Interdependência de Poderes, da organização constitucional da República Portuguesa como Estado de Direito Democrático baseado na Soberania Popular e dos artigos 2.º, 108.º, 110.º, 111.º, n.º 1, 112.º, n.º 5, 161.º, alíneas c) e o), 165.º, n.º 1 alíneas b) e p), 199.º, alínea c) e 202.º e 203.º da Constituição.

Por conseguinte,

25. A distribuição deste Processo e todos os atos nele praticados desde então mostram-se viciados de nulidade insanável por violação das regras legais relativas ao modo de determinar a composição deste Tribunal e à competência deste Tribunal, nos termos do artigo 119.º, alíneas a) e e) do CPP:

a. Por ausência do advogado do Arguido, por falta de notificação para o ato;

b. Por ausência do Ministério Público;

c. Por ausência de Advogado designado pela Ordem dos Advogados;

d. Por inexistência ou omissão de documentação do ato através da formalização legalmente exigida;

e. Por tal inexistência ou omissão impedir a confirmação de como, quando (e mesmo se) esse ato efetivamente e concretamente se realizou;

f. Por este processo ter sido atribuído a este Coletivo e aos Excelentíssimos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos Doutor DD e Doutora EE para o exercício das suas funções jurisdicionais neste processo no âmbito deste Coletivo, sem distribuição, sem precedência quanto aos Senhores Juízes Adjuntos do sorteio eletrónico e aleatório legalmente exigido pela alínea a) do artigo 213.º, n.º 3 do CPC;

g. E por se verificar, ainda, e também consequentemente, a violação do dever previsto na respetiva alínea b), de ser assegurada a não repetição de coletivo.

26. O que tudo – como já disse – é causa de nulidade insanável do Processo e da incompetência do Tribunal Coletivo e de todos os Excelentíssimos Senhores Juízes Conselheiros que o constituem para a tramitação e julgamento do pedido de recusa em causa.

Acresce, sem prescindir:

27. As ilegalidades descritas consubstanciam, ainda, motivo de recusa e de escusa nos termos dos artigos 43.º e seguintes do CPP, dos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos Doutor DD e Doutora EE e de todo o Coletivo, uma vez que a intervenção dos referidos Senhores Juízes Conselheiros corre o risco de ser considerada suspeita por existir “motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade de todo o Coletivo – em resultado de todas as violações de lei antes detalhadas e, muito especialmente, a ausência de sorteio eletrónico e aleatório para designação de dois dos respetivos membros.

Com efeito,

28. A distribuição eletrónica e aleatória realizada nos exatos e rigorosos termos previstos na Lei é o primeiro e incontornável pressuposto do Princípio, Garantia e Direito Fundamental ao Juiz Legal, consagrado no artigo 32.º, n.º 9 da Constituição, do respeito pela Independência dos Tribunais e sua sujeição ao princípio da legalidade, à Lei e à Constituição - consagrados nos artigos 2.º, 29.º, 203.º e 204.º, por ser a primeira e incontornável garantia de imparcialidade dos Senhores Juízes no concreto exercício dessas funções jurisdicionais, porque em processo criminal só a estrita e rigorosa observância das normas e dos termos legais previstos para essa operação de escolha dos Senhores Juízes respeita ambos esses Princípios e Garantias e Direitos Fundamentais.

Ora,

29. Nenhuma dúvida tem o Arguido em afirmar que a exigência legal de um efetivo julgamento e de uma efetiva decisão colegial é imposta – ou é-o, seguramente, também – como garantia da imparcialidade dos Senhores Juízes e dos Tribunais.

Por isso,

30. Uma vez que neste processo essas normas e esses termos legais foram, pura e simplesmente, desprezados, ignorados e desaplicados - sem motivo legítimo e lícito conhecido que justifique a omissão do apuramento aleatório por sorteio eletrónico dos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos – antes pelo contrário, qualquer motivo que possa ter determinado ou conduzido a todas as apontadas ilegalidades, designadamente a essa omissão de sorteio, reforça e qualifica as invocadas suspeitas, parecendo indiciar, mesmo, tentativa de impor uma decisão singular ou monocrática, em desrespeito da exigência legal de decisão colegial inerente a um julgamento efetivo, verdadeiro, sério e imparcial, entende o Arguido que se verificou ainda neste caso violação da norma do artigo 12.º, n.º 4 do CPP (que prescreve que “as secções funcionam com três juízes”) e violação do próprio artigo 419.º, n.º 1 do mesmo código (que prevê a intervenção na conferência do presidente da secção, do relator e de dois juízes-adjuntos).

31. O Requerente entende que esta violação do devido processo legal da distribuição do processo aos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos constitui motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade de todo o Coletivo.

A este propósito,

32. Suscita – sempre nos termos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b) e 72.º, n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional – a inconstitucionalidade do artigo 43.º, n.º 1 do CPP na interpretação normativa de que a violação do devido processo legal da distribuição do processo por violação do disposto nas alíneas a) e b) do número 3 do artigo 213.º do CPC não constituiria motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade dos Juízes que compõem o Coletivo e não constituiria, por isso, fundamento de recusa, por violação do disposto no artigo 18.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição, por violação do direito, garantia e princípio constitucional fundamental do processo equitativo, por violação do princípio da legalidade e da sujeição dos Juízes à lei, consagrado nos artigos 29.º e 203.º, por violação das garantias de ampla defesa e especialmente do direito, garantia e princípio constitucional fundamental do Juiz natural, consagrado no artigo 32.º, e por violação do Princípio da Separação e Interdependência de Poderes, da organização constitucional da República Portuguesa como Estado de Direito Democrático baseado na Soberania Popular e dos artigos 2.º, 108.º, 110.º, 111.º, n.º 1, 112.º, n.º 5, 161.º, alíneas c) e o), 165.º, n.º 1 alíneas b) e p), 199.º, alínea c) e 202.º e 203.º da Constituição.

A este respeito, cita e transcreve:

Acórdão de 12 de março de 2015 do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do Processo n.º 4914/12.7TDLSB.G1-A.S1:

“De acordo com o artigo 43.º, n.º 1 do CPP, constitui fundamento da recusa de juiz que: a sua intervenção no processo corra o risco de ser considerada suspeita; por se verificar motivo sério e grave; adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, visando-se salvaguardar um bem essencial na administração da Justiça que é a imparcialidade, ou seja, a equidistância sobre o litígio de forma a permitir a decisão justa.

A perda de equidistância, que resulta da circunstância aleatória que é a distribuição processual, leva a entender que existem fundamentos para determinar a recusa dos magistrados em causa.”

Acórdão de 29 de março de 2012 da 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no Processo n.º 31/12.8YFLSB:

“Não basta que o juiz seja imparcial, é também necessário que o pareça.”

Acórdão de 22 de junho de 2005 da 3ª Secção do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do Processo n.º 1929/05:

“Para os efeitos do disposto no nº 1 do art. 43º do CPP – a existência de motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador – relevam, fundamentalmente as aparências.

Não é a exigida capacidade de imparcialidade do julgador que importa aqui acautelar, mas antes assegurar para o exterior, para os destinatários da justiça, a comunidade, essa imagem de imparcialidade.”

E o Acórdão de 15 de setembro de 2010, proferido no âmbito do Processo n.º 133/10.5YFLSB, da 3ª Secção, ainda do Supremo Tribunal de Justiça:

“A teleologia subjacente ao instituto da recusa passa por assegurar a conveniência e necessidade de preservar o mais possível a dignidade profissional e a erosão da imagem pessoal do magistrado e, como lógica decorrência, ainda lograr uma imagem reforçada da inevitável necessidade de administrar salutar justiça, revestindo-a da dignidade que merece, preservada de suspeitas de falta de isenção e rigor.

A estrutura da sociedade reclama cada vez mais rigor e transparência, exigindo exteriorização subjetiva e demonstração objetiva de probidade funcional, que é dever da administração pública e, por maioria de razão, da Magistratura Judicial.”

E, conforme igualmente antecipou,

33. A suspeita de parcialidade de um membro de Tribunal Coletivo estende-se a todos os restantes membros.

Neste sentido, decidiu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em Acórdão de 9 de maio de 2000 – processo Sander contra o Reino Unido, citado por Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 4ª Edição atualizada, 2011, p. 133 – “Tratando-se de um tribunal colectivo ou do júri, basta a parcialidade de um dos seus membros para inquinar toda a actividade do tribunal.”

34. Justifica-se, pois, que a suspeita relativamente a algum membro do Tribunal Coletivo, in casu, a dois dos seus membros, se estenda aos restantes.

TERMOS EM QUE, REQUER:

SE DIGNEM VOSSAS EXCELÊNCIAS DECLARAR A RECUSA DOS SENHORES JUÍZES CONSELHEIROS REQUERIDOS E DO TRIBUNAL COLETIVO POR ELES CONSTITUÍDO PARA REUNIR EM CONFERÊNCIA E PARA JULGAR O PEDIDO DE RECUSA EM PROCESSO PENAL N.º 2140/06.3TAAVR-I.P1-A.S1».


II. Por despacho da Exmª Juíza Conselheira de turno, procedeu-se à separação do requerimento inicial, respeitando a presente certidão à recusa do Exmº Juiz Conselheiro relator, Dr. CC, apenas sobre este cumprindo decidir.

O Exmº Juiz Conselheiro visado, através de despacho proferido nos autos, pronunciou-se, ao abrigo do disposto no art. 45.º n.º 3, do C.P.P., no sentido de o pedido de recusa em questão não ter fundamento legal:

«(…) o signatário ora recusado não interveio de qualquer modo na distribuição do processo de recusa que lhe foi distribuído vindo do TRP, não conhece nenhum dos intervenientes processuais (requerente arguido e Sr. advogado) nem vislumbra motivo algum, muito menos sério e grave que o possa impedir de julgar com imparcialidade a causa de recusa que lhe foi submetida, a qual presume ter-lhe sido distribuída efectivamente no quadro da lei em vigor, por sorteio electrónico aleatório, tal como se pode verificar no portal on line do STJ (distribuição) do dia em que ocorreu, portal esse acessível para consulta pública. (…)».


III. Realizada a Conferência, cumpre decidir.


Resulta do estatuído no nº 1 do artº 43º do CPP que “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”.

O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, “mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs 1 e 2” – nº 3 do artº 43º do CPP.

Tratando-se de juiz do Supremo Tribunal de Justiça, o pedido de escusa deve ser apresentado na secção criminal do mesmo – artº 45º, nº 1, al. b) do CPP.

O princípio do juiz natural, com consagração constitucional no artº 32º, nº 9 da CRP, encontra-se estabelecido em benefício e defesa do arguido e constitui uma garantia de que o processo - o seu processo - será julgado pelo juiz do tribunal determinado - por lei anterior - competente para o efeito.

Tal princípio só há-de ser arredado em situações extremas e, nomeadamente, naquelas em que o juiz natural não oferece as garantias de imparcialidade e de isenção, necessárias à função de julgar (naquele caso concreto, como é óbvio).

Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., 132 e segs, afirma – em anotação ao artº 43º do CPP - que a imparcialidade do juiz pode ser apreciada de acordo com um teste subjectivo ou um teste objectivo. “O teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. (…) A existência de relações pessoais do juiz com os sujeitos processuais não constitui necessariamente motivo de suspeição. (…) O teste objectivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade. (…) Tratando-se de um tribunal colectivo ou do júri, basta a parcialidade de um dos seus membros para inquinar toda a actividade do tribunal (acórdão do TEDH Sander v. Reino Unido, de 9.5.2000)”.

Porém, se é certo que basta a parcialidade de um dos membros do tribunal para “inquinar toda a actividade do tribunal”, ainda que colectivo, certo é igualmente que, como já ensinava Cavaleiro de Ferreira [1], “(…) naqueles casos em que a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é, fundadamente, periclitante, o juiz não pode funcionar no respectivo processo. O juiz pessoalmente, e não o tribunal, estará, então, impedido (judex inhabilis) de funcionar, ou pode ser considerado suspeito (judex suspectus)”.

Vale isto, então, por dizer que o incidente de recusa há-de ser deduzido contra um determinado juiz, nunca contra o tribunal.

Assim colocadas as coisas:

O requerente fundamenta a recusa invocando a alteração ao art. 213.º do CPC introduzida pela Lei n.º 55/2021, de 13 de agosto, aplicável ex vi art. 4.º do CPP, relativa às regras de distribuição de processos. E afirma que estas regras não foram respeitadas.

Ou seja: o único motivo de recusa apresentado pelos requerentes respeita a um (alegado) incumprimento das regras da distribuição.

Ora, como bem se refere no Ac. deste STJ de 27/7/2022, Proc. 189/12.6TELSB.P1-G.S1-B, relatado pela Srª Conselheira aqui 1ª adjunta,

«Da leitura do requerimento apresentado pelos arguidos requerentes resulta logo evidente que o pedido formulado se apresenta manifestamente infundado, o que implica a recusa imediata (do requerimento), nos termos do art. 45.º, n.º 4, do CPP. Assim sucede, face à absoluta inadequação do meio processual utilizado, o qual não tem como fundamento os motivos (únicos) aduzidos pelos requerentes.

(…)

Na verdade, de acordo com a disciplina do art. 43.° n.º 1 do CPP a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

E o n.º 2 (do art. 43.º do CPP) prevê como fundamento de recusa “a intervenção do juiz noutro processo, ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do art. 40º. O art. 40º trata dos “impedimentos por participação em processo”.

A jurisprudência tem sempre considerado, justamente e sem dissídio, que a recusa tem de ter na base um motivo (sério e grave) gerador de desconfiança ou suspeição sobre a imparcialidade do juiz, motivo que só conduzirá à recusa quando objectivamente diagnosticado no caso concreto. O motivo sério e grave apropriado a gerar a desconfiança, há-de resultar de concretização material, assente em razões objectivamente valoradas, à luz da experiência comum e conforme juízo de um cidadão médio. Impõe-se sempre a formulação de um diagnóstico positivo no sentido de que um cidadão médio possa fundadamente suspeitar de que o juiz deixe de ser imparcial por força da influência do facto concreto invocado no incidente de recusa.

Nenhum motivo que suscite a ponderação à luz da norma-critério – do critério legal e outro não cumpre considerar – é sequer alegado pelos requerentes.

Com efeito, a situação apresentada pelos requerentes não se integra nas previstas no art. 40.º do CPP, (impedimento por participação em processo). E também não é susceptível de configurar a previsão do n.º 1 do art. 43.º, pois o problema colocado não respeita à imparcialidade do juiz e do tribunal, não cumprindo sequer dele, mais em concreto, conhecer».

No sentido do acabado de referir, já havia decidido este Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão proferido em 26/7/2022, no Proc. 16017/21.9T8LSB-B.L1-A.S1-A-A [2]:

«Os motivos invocados não configuram qualquer base factual para a recusa, não constituem e não podem legalmente constituir fundamento de recusa e o pedido formulado apresenta-se como manifestamente infundado (art. 45, nº 4, do CPP).

Nem é posto em causa pelo requerente o lado subjetivo de o juiz se mostrar incapaz de afirmar a sua imparcialidade, nem é alegado qualquer facto que se prenda com a imparcialidade do juiz, não sendo este seguramente o meio de reação processual contra pretensos problemas de distribuição.

E também se não alega que, no domínio do subjetivo, os vícios da distribuição gerem esse risco.

Por outro lado, objetivamente, não se vê em que é que a confiança na imparcialidade da justiça sai abalada por uma alegada falha na ou vicissitude da distribuição processual.

Em suma, os fundamentos de suspeição assentam ou em relações de parentesco ou em relações de interesse ou em relações de inimizade ou em anteriores intervenções no mesmo processo. Ora, nada disto vem demonstrado no caso».

E é este, também, o nosso entendimento.

Com efeito, no caso em apreço o requerente não questiona a imparcialidade, o distanciamento do Exmº Juiz recusado para integrar o colectivo e relatar o acórdão no incidente de recusa onde foi, por sua vez, suscitada a sua recusa. Não alega facto algum que estabeleça uma ligação do Exmº Juiz ao processo e que o possa determinar a decidir em determinado sentido. De igual modo, não são alegados factos de onde se possa extrair uma justificada desconfiança da comunidade, relativamente à imparcialidade do Exmº Juiz recusado, sendo certo que uma interpretação sua sobre a (ir)regularidade da distribuição do processo não é apta a configurar o motivo, ainda para mais sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Exmº Juiz.

E não se vê de que forma tal interpretação viole qualquer preceito constitucional, nomeadamente os invocados no seu requerimento.


IV. Por tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em recusar, nos termos do art. 45.º, n.º 4 do CPP, o pedido de recusa apresentado pelo requerente AA, considerando-o manifestamente infundado.  

Fixa-se em 7 UC’s a importância a que se reporta o artigo 45.º n.º 7 do CPP.

Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3Ucs.

           

Lisboa, 6 de Janeiro de 2023 (processado e revisto pelo relator)

           

Sénio Alves (Juiz Conselheiro relator)

Ana Barata Brito (Juíza Conselheira adjunta)

Pedro Branquinho Dias (Juiz Conselheiro adjunto)

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[1] “Curso de Processo Penal”, I, 234.
[2] Acessível em www.dgsi.pt.