Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1946/09.6TJLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: TÁVORA VICTOR
Descritores: ACÇÃO INIBITÓRIA
AÇÃO INIBITÓRIA
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
INTERESSE EM AGIR
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
CONTRATO DE MÚTUO
CRÉDITO HIPOTECÁRIO
TAXA DE JURO
CONTRATO DE ADESÃO
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DO CONSUMO - CONTRATOS DE ADESÃO - CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS / ACÇÃO INIBITÓRIA ( AÇÃO INIBITÓRIA ).
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ( ATOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ) / CRÉDITO BANCÁRIO / MÚTUO.
Doutrina:
- Ana Prata, Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, Almedina, Coimbra, 2010, 593.
- Joaquim de Sousa Ribeiro, O Problema do Contrato. As Cláusulas Contratuais Gerais e o princípio da Liberdade Contratual, Almedina, Coimbra, 1999, 492, 496.
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 82.
- Miguel Teixeira de Sousa, O Interesse Processual na Acção Declarativa, 1989, 9/11.
Legislação Nacional:
D.L. N.º 446/85, DE 25-10 (LCCG): - ARTIGOS 25.º E 26.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 23/04/2002, PROCESSO N.º 01A3417, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 11/04/2013, PROCESSO N.º 403/09. 5TJLSB.L1.S1, SUMÁRIO EM WWW.STJ.PT .
Sumário :
I - A LCCG – DL n.º 446/85, de 25-10 – é um diploma que está imbuído do intuito de atenuar as desigualdades nos contratos de adesão celebrados entre as partes, nomeadamente quando uma delas, geralmente a proponente, difere da outra, a aderente, pela sua capacidade económica geradora de apoios logísticos e mobilizadores que aquela não possui.

II - A acção inibitória insere-se numa das plúrimas facetas do intervencionismo estatal constituindo de certa forma um precipitado do princípio da publicização do direito privado. A tal se reportam desde logo os artigos 25.º ss. do diploma supracitado podendo ler-se no primeiro normativo que “As cláusulas contratuais gerais, elaboradas para utilização futura, quando contrariem o disposto nos artigos 15.º, 16.º, l8.º, 19.º, 21.º e 22.º podem ser proibidas por decisão judicial, independentemente da sua inclusão efectiva em contratos singulares”.

III - No instrumento onde a ora ré celebrou o contrato com os particulares, mútuo com hipoteca, operava-se uma remissão para as cláusulas constantes do documento complementar elaborado pela ré, contendo, como pode ver-se dos factos provados, cláusulas que regem o contrato celebrado entre a ora ré e os mutuários que estão identificados na escritura. Trata-se pois de um contrato impresso e elaborado pela Ré onde, para além de normas específicas, figuravam outras, não negociadas, emergentes de uma proposta de adesão, que se integrava no todo contratual.

IV - O interesse em agir consiste “na necessidade de usar do processo de instaurar ou fazer seguir a acção; O interesse do autor em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual (e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela)”.

V - “A questão da utilidade das acções inibitórias não pode ser dissociada, de modo algum, da efectiva utilização dos clausulados contratuais gerais, que eventualmente violem a LCCG, por parte do predisponente, sendo certo que demonstrada a cessação daquela aplicação, e a sua substituição por novos clausulados, poderá ficar comprometida a respectiva apreciação judicial”.

VI - Estando a acção inibitória vocacionada para o futuro e tendo sido já legislado – cfr. DL 240/2006, de 22-12 – no sentido da proibição de cláusulas contratuais como aquela cuja nulidade está pedida não faz sentido que o tribunal se pronuncie sobre um perigo já prevenido por lei e como tal devidamente sancionado através de uma coima.

VII - A instância extinguir-se-á por falta de interesse em agir sendo a ré absolvida da instância.

Decisão Texto Integral:

1. RELATÓRIO

Acordam na 7ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça.

O Ministério Público veio, ao abrigo do disposto nos arts.º 25.º, 26.º, nº 1, al. c) e art. 27.º, n.º 2 do DL 446/85 de 25 de Outubro, propor acção declarativa, com processo sumário, contra AA, SA, BB (Sociedad Unipersonal) - Sucursal em Portugal, com representação na Av. ............., Torre ..., ....., Amoreiras, 1070-102 Lisboa, pedindo que:

1. Se declarem nulas as cláusulas 7ª, n.º 1, al. b) e 16ª n.º 1 do contrato, condenando-se a Ré a abster-se de se prevalecer delas e de as utilizar em contratos que de futuro venha a celebrar, especificando-se na sentença o âmbito de tal proibição (art. 30.º, n.º1, do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro).

2. Se condene a Ré a dar publicidade a tal proibição e a comprovar nos autos essa publicidade, em prazo a determinar na sentença respectiva, sugerindo-se que a mesma seja efectuada em anúncio a publicar em dois dos jornais diários de maior tiragem editados em Lisboa e no Porto, durante três dias consecutivos (art. 30.º, n.º 2, do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro), de tamanho não inferior a metade de uma página.

3. Se dê cumprimento ao disposto no art.º 34.º do aludido diploma, remetendo-se ao Gabinete de Direito Europeu certidão da sentença, para os efeitos previstos na Portaria n.º 1093, de 6 de Setembro.

Alegou o A., além do mais que aqui se dá por reproduzido, que:

A Ré é uma sociedade anónima que tem por objecto a actividade de concessão de empréstimos e de crédito, incluindo crédito ao consumo, crédito hipotecário e o financiamento de transacções comerciais.

No exercício de tal actividade comercial, a Ré concede crédito à habitação, celebrando com os interessados contratos de mútuo com hipoteca.

Nesses contratos, efectuava uma remissão para as «…cláusulas constantes do documento complementar elaborado…e que faz parte integrante desta escritura e se arquiva». Esse documento complementar contém «…CLÁUSULAS QUE REGEM O CONTRATO DE MÚTUO COM HIPOTECA CELEBRADO ENTRE A AA, SA, BB (SOCIEDAD UNIPERSONAL), SUCURSAL EM PORTUGAL, (ADIANTE DESIGNADA POR AA) E PELOS MUTUÁRIOS ORA IDENTIFICADOS NA ESCRITURA».

Trata-se de um clausulado impresso e previamente elaborado, em que os contratantes aderentes se limitavam a rubricar e assinar.

Dispõe a cláusula 7ª, n.º 1, al. b) do mencionado documento complementar: «A taxa resultante, arredondada para cima no quarto de ponto seguinte será, para todos os efeitos, considerada como a taxa nominal anual».

Esta cláusula é proibida em contratos deste tipo, porque viola «valores fundamentais do direito» defendidos pelo princípio da boa-fé (art. 15.º e 16.º do DL 446/85, de 25/10),

Com esta cláusula a Ré impunha ao aderente o arredondamento da taxa de juro sempre para valor superior, isto é, o ajustamento do valor ocorre sempre com prejuízo patrimonial do aderente, resultante do aumento por esta via, da taxa de juro contratada, com o consequente enriquecimento sem causa, obtido à custa desse empobrecimento do património do aderente, situação deveras estranha, porque é notório, há muitos anos, que as operações bancárias são realizadas por computadores que permitem um elevadíssimo grau de precisão. Estamos, pois, perante uma cláusula que provoca um desequilíbrio desproporcionado em detrimento do aderente, consubstanciado num prejuízo económico para este.

Estabelece, por outro lado, a cláusula 16ª, n.º 1, do referido documento complementar: «A AA poderá ceder a terceiro, na totalidade ou em parte, o crédito para si emergente do presente contrato, sem necessidade do consentimento dos MUTUÁRIOS, e sem prejuízo do disposto no artigo 578.º número 2 do Código Civil.». Tal cláusula é proibida num contrato deste tipo, nos termos do art. 18.º, al. l) do DL 446/85, de 25 de Outubro, já que atribui à Ré a possibilidade de ceder os seus direitos contratuais a terceiro, não concretamente identificado no contrato, sem o acordo do aderente.

Contestou a R., defendendo-se por excepção e impugnação.

Em sede de excepção, arguiu a incompetência do Tribunal, por competentes serem as Varas Cíveis de Lisboa.   Arguiu também a ilegitimidade do Ministério Púbico e falta de interesse processual (incluída naquele pressuposto).

Defendeu, ainda, a inutilidade da acção, face ao DL n.º 40/2006, de 22/12, que veio proibir os arredondamentos, o que sanciona com uma contra-ordenação, deixando de haver necessidade de prevenção subjacente à acção inibitória.

Em sede de impugnação, a Ré defendeu, além do mais, que aqui se dá por reproduzido, que as cláusulas em causa não são consideradas cláusulas contratuais gerais; que já não propõe aos seus potenciais clientes cláusulas de arredondamento como a que consta do contrato que motiva a presente acção e que – pelas razões que expõe – tais cláusulas não poderiam ser consideradas proibidas face às normas legais vigentes e, ainda, que a cláusula de cessão de créditos é também permitida, sucedendo que a própria lei prevê a possibilidade das instituições de crédito cederem os seus créditos sobre os devedores para titularização à sua completa revelia, podendo a cessão produzir os seus efeitos sem que estes venham alguma vez a ter conhecimento que os seus créditos foram cedidos a terceiros.

Concluiu da seguinte forma:

«a) Deve ser julgada procedente a excepção dilatória de incompetência relativa, devendo o processo ser remetido para as Varas Cíveis do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 111.º do CPC.

b) Devem ser julgadas procedentes as excepções dilatórias de ilegitimidade, sendo a Ré absolvida da instância relativamente à Cláusula 7.ª, n.º 1, alínea b) do Documento Complementar;

c) Deve a presente acção ser julgada totalmente improcedente, por as cláusulas em causa não serem contratuais gerais; caso assim não se entenda:

d) Deve a acção ser julgada improcedente, por as cláusulas em causa não serem proibidas nos termos do RCCG».

O Ministério Público respondeu conforme se retira de fls. 169 e segs., pugnando pela improcedência das excepções deduzidas.

Foi proferido despacho saneador, no qual, além do mais, se julgou o Tribunal Cível de Lisboa competente e as partes legítimas, considerando-se improcedentes as excepções invocadas.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento e foi proferida sentença, cuja conclusão foi a seguinte: «Destarte, o tribunal decide julgar a presente acção procedente, por provada, e consequentemente:

- Declarar nulas as cláusulas 7ª, n.º 1, al. b) e 16.º, n.º 1 do contrato de mútuo com hipoteca, condenando-se a Ré a abster-se de as utilizar em contratos que de futuro venha a celebrar e especificando-se na sentença o âmbito de tal proibição (artigo 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro).

- Condenar a Ré abster-se de utilizar estas cláusulas, na redacção transcrita, nas Condições Gerais dos contratos que de futuro venha a celebrar com os seus clientes;

- Condenar a Ré a dar publicidade a esta proibição e a comprová-la nos autos no prazo de 30 dias, através de anúncios em dois jornais diários de maior tiragem nacional, durante três dias consecutivos, de tamanho não inferior a ¼ da página;

Dê cumprimento ao disposto no art. 34.º do RCGG, remetendo à Direcção Geral da Política da Justiça do Ministério da Justiça certidão desta sentença”.

Inconformada com o decidido apelou a Ré, tendo a Relação de Lisboa decidido:

“Por tudo o que se deixou exposto, na parcial procedência da apelação:

- Mantém-se a declaração da nulidade, abstenção de utilização e publicidade, tudo nos termos definidos na sentença, apenas relativamente à cláusula 7ª, n.º 1, al. b) do contrato de mútuo com hipoteca.

- Julga-se improcedente a acção no que se refere à cláusula 16.º, n.º 1 (atinente à cessão de créditos), revogando-se o decidido na sentença no que a esta cláusula  respeita”.

A Ré interpôs recurso de revista ordinária que não foi aceite por este Tribunal, em virtude de se ter entendido haver dupla conforme.

Foi também interposto recurso de revista excepcional e subsidiariamente, recurso para uniformização de jurisprudência para o caso de não ser aceite o primeiro. Contudo a Formação a que alude o artigo 672.º n.º 3 do Código de Processo Civil recebeu a revista excepcional em análise pelo que ficou prejudicado o segundo que se referia a problemática de índole processual que ficava ultrapassada pelo dito recebimento. Tudo como se encontra documentado nos autos a fls.

Nesse recurso de revista interposto pela Ré AA e no termo de tudo quanto alegou, pediu que se emitisse decisão sobre legitimidade do Ministério Público na propositura da acção, com a absolvição da Ré da instância ou caso assim se não entenda deverá a mesma ser absolvida do pedido.

Foram para tanto apresentadas as seguintes,

Conclusões.

I - Decisão sobre legitimidade

1) O artigo 25.º do RCCG prevê que apenas podem ser objecto de acção inibitória as cláusulas "elaboradas para utilização futura", sendo este o pressuposto de legitimidade processual na vertente de interesse processual.

2) A acção inibitória tem assim como fim específico: impedir que venham a ser utilizadas, ou continuem a ser utilizadas cláusulas proibidas. Aliás, tal como afirma o Sr. Procurador-Adjunto João Alves, a acção inibitória apenas pode ter duas finalidades: a repressiva e a preventiva.

3) O MP age, na acção inibitória, em nome de interesses públicos. Se as cláusulas já não são utilizadas, a declaração de nulidade apenas pode beneficiar contratantes certos e determinados nos específicos contratos em que tais cláusulas foram utilizadas. Mas essas partes, querendo a nulidade, podem pedi-la em tribunal: nada impede que o façam; não necessitam, para isso, do Ministério Público.

4) O MP intervém não com o objectivo de obter a declaração de nulidade de contratos passados, mas para pôr termo a uma prática presente ou impedir uma prática futura - Algumas Notas sobre a Tramitação da Acção Inibitória de Cláusulas Contratuais Gerais", in Revista do CE/, VI, 2007, pp. 75-92, página 76.

5) A acção inibitória que, como a presente, aparentemente apenas pode visar contratos findos, revela uma instrumentalização do MP.

6) De facto, à data da instauração da acção, a cláusula de arredondamento da taxa de juro já não era utilizada em contratos pela Recorrente, nem o iria ser no futuro.

7) Com efeito, independentemente da qualificação dada à cláusula relativa aos arredondamentos ao abrigo do RCCG, a Recorrente não inclui tais cláusulas nos contratos, desde logo por IMPOSIÇÃO LEGAL.

8) Na verdade, o DL 240/2006 veio proibir os arredondamentos em alta da taxa de juro. A partir do momento em que a lei expressamente proibiu esta cláusula, sancionando fortemente o seu incumprimento, a mesma deixou de ser utilizada pela Recorrente, além de a mesma ter passado a ser nula por imposição legal. E, como tal, deixou de subsistir a necessidade de prevenção subjacente à acção inibitória.

9) Não se colocam assim problemas de incerteza jurídica quanto à validade da cláusula para o futuro, nem sequer existe a necessidade de prevenir, por via da acção inibitória, o incumprimento da proibição de aplicação desta cláusula: aquele incumprimento é sancionado de forma mais forte e eficaz através de direito penal secundário (contra-ordenação).

10) Não faz, assim, sentido, discutir se aquela cláusula é proibida à luz do RCCG quando a lei - seja qual for o fundamento que motivou a sua aprovação - o proibiu por Decreto-Lei expresso e precisamente destinado a este efeito.

11) Sendo uma cláusula declarada nula por lei, a presente acção inibitória não pode alcançar nenhum dos seus fins, seja ele o fim repressivo, seja ele o fim preventivo, pelo que o MP não tinha legitimidade para intentar a acção - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Abril de 2002 (processo n.º 1A3417) in Bases da DGSI.

12) Tentando contrariar a Recorrente, o MP defende que ainda que a presente acção não tenha significativo efeito no futuro, uma vez que a Recorrente deixou de usar aquelas cláusulas a partir de 2006; ainda assim possibilita que os consumidores possam reaver os montantes indevidamente recebidos com esta prática antes de 2006.

13) Contudo, esse argumento não justifica a propositura da presente acção. Aliás, como refere, mais uma vez, o já citado Procurador-Adjunto, JOÃO ALVES C): "As acções inibitórias não têm por fim reintegrar ou reparar o direito violado, logo, não se exige a ocorrência de prejuízos, visam somente, evitar que o acto ilícito venha a ocorrer, continue ou se repita."

14) Ora, o facto de terceiros poderem beneficiar com a declaração de nulidade destas cláusulas e, assim, reaver as quantias (alegadamente) pagas indevidamente, não pode ser o substrato que fundamenta a propositura desta acção, já que esse não é o seu fim primordial, mas somente um seu "beneficio colateral".

15) Consequentemente, o MP não está a utilizar a acção inibitória para o seu fim, repressivo ou preventivo, virado para o futuro, tendo sim em vista, pura e simplesmente, a defesa dos interesses de uma ou mais pessoas que tenham, no passado, celebrado contratos com essas cláusulas.

16) E acolher este entendimento, significa aceitar que o MP está ao serviço, não do interesse colectivo, mas dos interesses particulares dos cidadãos que, eventualmente, tenham sido prejudicados e se coíbem de propor a correspondente acção de nulidade almejando beneficiar dos resultados da acção proposta pelo MP (à custa dos recursos expendidos pelo erário público): acção esta proposta no interesse do cidadão individual e não da colectividade, que já está protegida pelo DL 240/2006, que proíbe o arredondamento em alta.

17) Assim, tendo em conta que as cláusulas visadas já foram retiradas do comércio jurídico por imposição legal, a acção inibitória não pode, de modo nenhum, alcançar qualquer dos seus fins (o repressivo ou o preventivo). "Algumas Notas sobre a Tramitação da Acção Inibitória de Cláusulas Contratuais Gerais", in Revista do CEI, VI, 2007, pp. 75-92, página 77.

18) Se o entendimento do tribunal recorrido fosse de seguir, então teríamos de aceitar uma conclusão absurda: que qualquer pessoa, que tivesse celebrado um contrato com cláusulas contratuais gerais, pode exigir ao MP que intente uma acção inibitória, ainda que essas cláusulas há muito que não sejam utilizadas!

19) Assim, o efeito previsto no n.º 2 do artigo 32.º não pode ser justificação suficiente para intentar uma acção inibitória. De outro modo, o MP terá que intentar acções inibitórias, quer as cláusulas tenham sido elaboradas para utilização futura, quer não tenham sido (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Abril de 2002, processo n.º lA3417, disponível em Bases da DGSI

20) Assim, é manifesto que o entendimento do tribunal recorrido contraria o disposto no artigo 25.° do RCCG, contraria o espírito da acção inibitória prevista no RCCG, e instrumentaliza a actuação do Ministério Público.

21) E também não se diga que existe perigo de reincidência; com efeito, a inutilidade superveniente não se deve apenas ao facto de a Recorrente, voluntariamente, ter abdicado de usar as cláusulas (caso em que, pelo menos em teoria, poderia reincidir), mas - acima de tudo - ao facto de tais cláusulas terem sido declaradas nulas por efeito de legislação superveniente.

22) De resto, a este problema (perigo de reincidência), respondem magistralmente vários acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente o Acórdão de 21 de Fevereiro de 2013 (processo n. 2839/08.0YXLSB.Ll.Sl) e o de Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Fevereiro de 2013 (processo n." 684/1 0.1 YXLSB.LLS 1), todos disponíveis em (ywwJ:igsiJ21).

23) A Recorrente vem também refutar a afirmação do Tribunal da Relação no Acórdão recorrido, segundo a qual "apenas mediante uma sentença se vinculará definitiva e inexoravelmente, o demandado, por força do caso julgado, facultando-se ao demandante o exercício dos direitos que, por força da proibição assim reconhecida, a lei lhe reconhece". É manifestamente evidente que o facto de o DL 240/2006 proibir a utilização dessas cláusulas é a máxima garantia que pode existir no nosso ordenamento jurídico nesse sentido, tornando a referida sentença pouco relevante neste contexto.

24) Em suma, sendo aquela cláusula declarada nula por lei (DL 240/2006) e tendo a Recorrente deixado de a utilizar em consequência disso, a presente acção não podia alcançar nenhum dos fins da acção inibitória, seja ele o fim repressivo, seja ele o fim preventivo.

25) Ainda que nos termos do artigo 32.° n. 2 do RCCG, um terceiro possa invocar incidentalmente a nulidade contida numa acção inibitória, este é um efeito útil da acção inibitória, mas que não pode ser o seu fim principal, único ou exclusivo - tal como tem reconhecido a mais recente jurisprudência: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Maio de 2011 (processo n. 1593.08. 0TJLSB. LLS1), o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Maio de 2011 (processo. 1593.08.0TJLSB.Ll.Sl), Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Fevereiro de 2013 (processo n.º 6841l0.1YXLSB.L1.SI), Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Abril de 2013 (processo n.º 403/09. 5TJLSB.Ll.Sl) e ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Abril de 2002 (processo n.º  1A3417), todos eles disponíveis em 1A3417) todos disponíveis nas Bases da DGSI.

26) Por último, a propósito desta pretensa garantia que o MP visa assegurar - de que a Recorrente, pela via da condenação em sede de acção inibitória, fica impedida de recorrer a estas cláusulas no futuro -, vale a pena citar, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23 de Abril de 2002, que ilustra de forma elucidativa o despropósito do argumento invocado pelo MP: "A garantia que se pretende nunca existe, não é esse o fim da acção inibitória, que até configure a possibilidade de não-cumprimento da decisão (art.º 33), sendo certo que a acção visa proibir cláusulas contratuais elaboradas para utilização e não impedir, antes da verificação dessas cláusulas, que alguém as possa imaginar ou perspectivar. (realçados nossos, processo n.º lA3 417, disponível nas bases da DGSI.

27) Assim, conforme resulta claro, deixou de se verificar o requisito previsto no artigo 25.° do RCCG, pelo que o MP não tinha legitimidade para intentar a acção. Da decisão sobre a natureza de cláusula contratual geral.

II – Decisão sobre a natureza da cláusula contratual geral.

28) No que se refere à natureza da cláusula como contratual geral, o ónus da prova (de que a cláusula não é contratual geral) cabe ao Réu.

29) Contudo, o referido quesito foi formulado na positiva, pressupondo assim que o ónus da prova cabe ao Autor na acção, ou seja o MP e não à Ré, aqui Recorrente.

30) Deste modo, dada a formulação do quesito a Recorrente não se pôde devidamente defender, pois não lhe foi dada a possibilidade de cabalmente provar que as cláusulas eram negociáveis - e assim demonstrar que não estavam em causa cláusulas contratuais gerais. Para isso, era necessário que o quesito tivesse sido formulado na negativa.

31) Não obstante, com a formulação dada ao quesito único e a resposta que ao mesmo foi dada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa não se pode inferir que, pelo facto de aquelas cláusulas não serem negociadas, não sejam negociáveis.

32) Aliás, uma interpretação a contrario da resposta dada ao quesito parece precisamente apontar no sentido de que aquelas cláusulas se inseriam num conjunto de cláusulas efectivamente negociadas fazendo, assim parte de um clausulado globalmente negociável, não constituindo, por isso, cláusulas contratuais gerais nos termos do artigo 1.º do RCCG.

33) Com efeito, contrariando o acórdão do Tribunal de Primeira Instância que desprezou o que foi dito pelas testemunhas em sede de produção de prova, o Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que se "pode concluir que, pelo menos, no que toca às cláusulas em discussão, o quesito deve ser dado como provado" (realçados nossos, cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa).

34) Deste entendimento do acórdão recorrido pode, com segurança, inferir-se que o Tribunal da Relação reconheceu que algumas cláusulas constantes do documento complementar eram negociadas, caso contrário não se teria socorrido da expressão "pelo menos" ou, no mínimo, à falta de mais prova sustentada, admitiu essa possibilidade.

35) Ora, se algumas cláusulas do documento complementar eram negociadas, isso significa que essas cláusulas eram, efectivamente, negociáveis, isto é, depois de apresentadas estas cláusulas aos consumidores estes podiam propor alterações no sentido de as alterar.

36) Seguindo este raciocínio importa insistir na distinção de cláusulas negociáveis e cláusulas, efectivamente, negociadas. É que, no caso das primeiras, como se disse, o contraente pode propor alterações para mudar as cláusulas em concreto; já no que se refere às cláusulas negociadas, o consumidor, pelo facto de poder propor alterações às cláusulas, propõem-nas e elas são, de facto alteradas. Ou seja, no primeiro caso trata-se de uma possibilidade e, no segundo, de uma concretização efectiva dessa mesma possibilidade.

37) Neste contexto, é importante frisar que além da pré-formulação e da generalidade, o que releva para efeitos de consideração de determinado clausulado como cláusulas contratuais gerais, para o efeito dos ns.º 1 e 2 do artigo 1.º do RCCG, é a possibilidade conferida ao contraente individual de poder influenciar no conteúdo da cláusula e não se essas cláusulas são, de facto, negociadas

38) A nova formulação da al., j) dos factos provados demonstra que o Tribunal da Relação aceita que, pelo menos, algumas das cláusulas do documento complementar eram negociadas, não obstante as que a presente acção visa não serem negociadas. Mas, conforme se referiu, o que releva é se essas cláusulas que não foram negociadas eram ou não negociáveis, pois só isso demonstra a sua eventual rigidez ou modificabilidade, imprescindíveis para que se considere determinada cláusula como cláusula contratual geral.

39) Manifestando-se o proponente disponível para negociar todas as cláusulas - conforme resultou evidente que foi o caso da Recorrente do que foi dito pelas várias testemunhas em sede de julgamento - não é pelo facto de o contraente individual não negociar algumas cláusulas em concreto, negociando outras do mesmo clausulado, que aquele não as pode negociar. Pode efectivamente negociá-las mas, por uma razão ou por outra, não o quis fazer; contudo, jamais esse facto pode implicar que se esteja perante cláusulas inegociáveis, antes pelo contrário neste contexto veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de Maio de 2014, processo n.º 001/12.7TJLSB.L2-6, disponível em Bases da DGSI.

III - Da decisão sobre a validade da cláusula de arredondamento.

40) Como se vem repetindo, o DL 240/2006 veio regular especificamente esta matéria, e, de acordo com o seu preâmbulo, o Governo veio regular o regime dos arredondamentos no que diz respeito ao crédito à habitação, não porque até aí os mesmos fossem abusivos, mas por um problema de percepção do custo associado.

41) É importante frisar que a razão fundamental pela qual estas cláusulas foram proibidas não se prende com o facto de gerarem desequilíbrios nas prestações, prejudicando os mutuários, mas sim com o receio de que em situações concretas, pudessem prejudicar o consumidor na comparação das taxas oferecidas pelos vários bancos e, em consequência, desvirtuar os benefícios da livre concorrência.

42) A opção pelo regime do DL 240/2006 não significa que aquele tipo de cláusulas era anteriormente proibido nos termos do RCCG ou que provocava, em abstracto, desequilíbrios desproporcionados. A prova disso é que o DL 240/2006 apenas proibiu os arredondamentos nos contratos em vigor a partir da primeira refixação da taxa juro após a sua entrada em vigor, e não imediatamente - além de não ter uma eficácia retroactiva, como bem reconhece o MP e a sentença ora recorrida.

43) Por outro lado, acresce que o DL 240/2006 apenas proibiu os arredondamentos para o crédito à habitação - só posteriormente, com o DL 171/2007, se estendeu esta proibição aos restantes contratos de crédito.

44) Aliás, se este tipo de cláusulas fosse, só por si, proibido à luz do RCCG, certamente que o DL 240/2006 teria estabelecido tal proibição imediatamente e para todo o tipo de contratos de crédito e não o fez. Ou teria sancionado, de alguma forma, aquelas cláusulas que, como se disse, e era notório, eram uma prática generalizada no mercado bancário português.

45) A prática generalizada de arredondamentos não beneficia os bancos em contraponto com os clientes. É que é preciso ter noção de que proibidas aquelas cláusulas, os bancos aumentam os spreads praticados por forma a compensar a perda resultante da ausência de arredondamento.

46) O arredondamento em alta aumenta o custo do spread, é certo. Mas esse custo adicional não é, por si só abusivo, porquanto para tal aferição seria necessário analisar a contraprestação correspondente.

47) Note-se que o DL 240/2006 não proíbe os arredondamentos. A Directiva também não proibia cláusulas de arredondamento. E mesmo admitindo que, num determinado caso concreto, uma cláusula de arredondamento, pela sua natureza, pudesse criar numa situação específica uma desproporção entre a remuneração e o capital mutuado, ainda assim a Directiva era inaplicável, pois claramente afasta do seu âmbito tal juízo de desadequação.

48) Acresce que também não está em causa qualquer violação do disposto no artigo 22.°, n.º 1, alínea c) do RCCG. Por um lado, o artigo 22.° n.º 2, alínea a) consagrava e consagra uma excepção a esta norma.

49) Por outro lado, e em bom rigor, do que se trata não é de uma alteração dos termos do contrato e/ou do preço, porquanto este é fixado logo no início do contrato pela fórmula: indexante + spead + arredondamento.

50) A fórmula mantém-se ao longo de toda a vida do contrato, o que vai variando são os seus diversos elementos. Mas também as condições de variação destes elementos estão também acordadas e fixadas desde o momento zero do contrato (ou mesmo antes).

51) Face a tudo o exposto, a Cláusula 7.ª n.º 1, alínea b) do Documento Complementar não poderia ser considerada proibida, e consequentemente nula, no período que antecedeu a entrada em vigor do DL 240/2006.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado integralmente procedente e, em consequência, deve a decisão do acórdão em análise ser revogada.

Contra-alegou o Ministério Público pugnando pela confirmação do julgado.

Corridos os vistos legais cumpre decidir.


*

2. FUNDAMENTOS.

O Tribunal da Relação deu como provados os seguintes,

2.1. Factos.

2.1.1. A Ré tem por objecto a actividade de concessão de empréstimos e de crédito, incluindo crédito ao consumo, crédito hipotecário e o financiamento de transacções comerciais;

2.1.2. No exercício de tal actividade comercial, a Ré concede crédito à habitação;

2.1.3. Consequentemente, celebra com os interessados, contratos de mútuo com hipoteca;

2.1.4. No escrito onde celebrava o referido contrato, efectuava-se uma remissão para “…as cláusulas constantes do documento complementar elaborado… e que faz parte desta escritura e se arquiva”.

2.1.5. Esse documento complementar contém “Cláusulas que regem o contrato de mútuo com hipoteca celebrado entre a AA, SA. BB(Sociedade Unipersonal), Sucursal em Portugal (adiante designada por AA) e pelos Mutuários ora identificados na escritura”;

2.1.6. Trata-se de um clausulado impresso;

2.1.7. E previamente elaborado pela Ré;

2.1.8. Dispõe a cláusula 7ª, n.º 1, al. b) do mencionado documento complementar:

“A taxa resultante, arredondada para cima do quarto ponto seguinte será, para todos os efeitos, considerada como taxa nominal anual”.

2.1.9. E estabelece a cláusula 16ª, n.º 1 do referido documento: “A AA poderá ceder a terceiro, na totalidade ou em parte, o crédito para si emergente do presente contrato, sem necessidade do consentimento dos mutuários, e sem prejuízo do disposto no art. 578.º, número 2 do Código Civil”.

2.1.10. Os contratantes interessados, pelo menos no que respeita às cláusulas do arredondamento e da cessão de créditos, limitavam-se a rubricar e assinar o documento complementar referido em e), aderindo ao seu conteúdo.


+                          

2.2. O Direito.

Nos termos do preceituado nos arts.º 608.º n.º 2, 635.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

- A questão da ilegitimidade do Ministério Público para intentar e prosseguir a presente acção. O interesse em agir.

- Da decisão sobre a natureza da cláusula como contratual geral.


+   

2.2.1. A questão da legitimidade do Ministério Público para intentar e prosseguir a presente acção. O interesse em agir.

O Ministério Público intentou contra a Ré AA, SA, BB (Sociedad Unipersonal) acção inibitória, nos termos do preceituado no artigo 25.º do DL n.º 446/85 ss – Diploma ao qual doravante pertencerão os restantes normativos a citar sem menção de origem - visando obter a declaração de nulidade e assim a exclusão das cláusulas 7ª, n.º 1, al. b) e 16ª, n.º 1 do contrato, condenando-se a Ré a abster-se de se prevalecer delas e de as utilizar em contratos que de futuro venha a celebrar, especificando-se na sentença o âmbito de tal proibição (art. 30.º, n.º 1, do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro).

 A Lei das cláusulas Gerais - DL n.º 446/85, de 25 de Outubro é um Diploma que se inscreve na corrente de moralização dos contratos, estando imbuído do intuito de atenuar as desigualdades nos contratos de adesão celebrados entre as partes, nomeadamente quando uma delas, geralmente a proponente, difere da outra, a aderente, pela sua capacidade económica geradora de apoios logísticos e mobilizadores que aquela não possui.

Insere-se pois a acção inibitória numa das plúrimas facetas do intervencionismo estatal, constituindo de certa forma um precipitado do princípio da publicização do direito privado. Uma das formas através das quais a lei visa atingir o aludido desiderato, no domínio dos contratos de adesão, é o da acção inibitória em causa. A tal se refere desde logo o artigo 25.º do Diploma supracitado onde se lê que “As cláusulas contratuais gerais, elaboradas para utilização futura, quando contrariem o disposto nos artigos 15.º, 16.º, 18.º, 19.º, 21.º e 22.º podem ser proibidas por decisão judicial, independentemente da sua inclusão efectiva em contratos singulares”.

O artigo 26.º por seu turno, confere a várias entidades legitimidade para intentar a acção entre as quais o Ministério Público, que aliás é Autor na presente acção.

Revertendo ao caso, está provado que a Ré tem por objecto a actividade de concessão de empréstimos e de crédito incluindo o crédito ao consumo, crédito hipotecário e o financiamento de transacções comerciais.

No instrumento onde a ora Ré celebrou o contrato com os particulares, mútuo com hipoteca, operava-se uma remissão para as cláusulas constantes do documento complementar elaborado pela Ré, contendo, como pode ver-se dos factos provados, cláusulas que regem o contrato celebrado entre a ora Ré e os mutuários que estão identificados na escritura. Trata-se pois de um contrato impresso e elaborado pela Ré onde para além de normas específicas figuram outras, não negociadas, emergentes de uma proposta adesão, que se integrava no todo contratual.

No instrumento em análise estão em causa duas cláusulas de adesão, 7ª, n.º 1, al. b) e 16ª, n.º 1 integrando o contrato de mútuo com hipoteca que a Ré havia celebrado e que o Ministério Público agora pretende ver excluídas de tal contrato.

Lê-se na cláusula 7ª n.º 1 alínea b) do aludido documento suplementar, que “a taxa resultante arredondada para cima do quarto ponto seguinte será para todos os efeitos considerada como taxa nominal anual.

Por seu turno pode ler-se na cláusula 16.º n.º 1 do referido documento: “A AA poderá ceder a terceiros, na totalidade ou em parte o crédito para si emergente do presente contrato sem necessidade do consentimento dos mutuários e sem prejuízo do disposto no artigo 578.º n.º 2 do Código Civil.

Como já vimos o Acórdão da Relação absolveu a Ré do pedido quanto à declaração de nulidade da cláusula 16.º n.º 1.

Há agora que indagar da legalidade da cláusula 7ª n.º 1 alínea b) do Diploma Complementar inserta no contrato celebrado, que prevê o arredondamento em alta.

Previamente à análise referida, há contudo que emitir decisão sobre a questão prévia que a Ré levanta no seu articulado e a que apelida de falta de legitimidade do Ministério Público para prosseguir a acção.

Entende a ora Ré AA que não faz sentido que o Ministério público continue na lide, já que a própria refere que deixou de utilizar a aludida cláusula do arredondamento. Na verdade essa cláusula deixou de ser utilizada pela Ré, como a própria refere. A isto acresce que, visando o legislador obviar aos inconvenientes que tal utilização comporta, produziu legislação aplicável ao caso em análise. É o que sucede com o DL 240/2006 de 22 de Dezembro que, nomeadamente no seu artigo 4.º e visando contrariar a prática que vinha sendo seguida, no sector bancário quanto ao arredondamento da taxa de juros para cima, regulamentou a forma que o mesmo poderá revestir bem como a respectiva incidência nos seguintes termos: “1 – O arredondamento da taxa de juro deve obrigatoriamente ser feito à milésima da seguinte forma:

a) Quando a 4ª casa decimal é igual ou superior a cinco, o arredondamento é feito por excesso;

b) Quando a 4ª casa decimal é inferior a cinco, o arredondamento é feito por defeito.

2 – O arredondamento deve incidir apenas sobre a taxa de juro, sem adição da margem (spread) aplicada pela instituição de crédito sobre uma taxa de referência ou indexante”.

O escopo do normativo em análise foi posteriormente alargado a outros créditos pelo DL 171/2007 em cujo preâmbulo se pode ler “(…) Sendo a prática do arredondamento em alta, que consiste em fixar unilateralmente um preço superior ao que é devido pela prestação de um serviço ou pela aquisição de um bem em resultado da realização de uma operação aritmética, também utilizada nos contratos de concessão de crédito e de financiamento para aquisição de serviços ou bens que não os referidos no parágrafo anterior, tais como os de aluguer de longa duração, factoring ou outros, justifica-se, por isso, a extensão do regime daquele Decreto-Lei a estes contratos.

 Assim, no sentido de uniformizar os critérios utilizados no arredondamento e no indexante da taxa de juro aos diversos contratos de crédito ou de financiamento, o Governo decide legislar no sentido de lhes aplicar o regime previsto no Decreto-Lei n.º 240/2006, de 22 de Dezembro, para o chamado «crédito à habitação»” .

Vejamos pois o reflexo que a legislação supra-apontada tem no caso vertente, o que constitui um elemento aferidor da legitimidade e do interesse em agir no caso em análise.

Nos termos do preceituado no artigo 25.º “As cláusulas contratuais gerais, elaboradas para utilização futura, quando contrariem o disposto nos artigos 15.º, 16.º, 18.º, 19.º, 21.º e 22.º, podem ser proibidas por decisão judicial, independentemente da sua inclusão efectiva em contratos singulares.

Por seu turno refere-se no artigo 26.º o seguinte:

1 – A acção destinada a obter a condenação na abstenção do uso ou da recomendação de cláusulas contratuais gerais só pode ser intentada:

a) Por associações de defesa do consumidor dotadas de representatividade, no âmbito previsto na legislação respectiva;
  b) Por associações sindicais, profissionais ou de interesses económicos legalmente constituídas, actuando no âmbito das suas atribuições.

c) Pelo Ministério Público, oficiosamente, por indicação do provedor de Justiça ou quando entenda fundamentada a solicitação de qualquer interessado.

2 – As entidades referidas no número anterior actuam no processo em nome próprio, embora façam valer um direito alheio pertencente, em conjunto, aos consumidores susceptíveis de virem a ser atingidos pelas cláusulas cuja proibição é solicitada.

Portanto de harmonia com o que vem dito desde a 1ª instância, o Ministério Público é manifestamente parte legítima, à luz do preceito que a confere. A legitimidade à luz do artigo 26.º n.º 3 do CPC de 1961 que vigorava à data da instauração do processo referia que “na falta de indicação da lei em contrário são considerados titulares do interesse relevante para efeitos de legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor”.

O que poderá na verdade questionar-se, é se o Autor continua ter “interesse em agir”, atentos os normativos aplicáveis. Como é sabido, embora a lei lhe não faça referência expressa, deve incluir-se nos pressupostos processuais, referentes às partes, traduzindo-se no interesse processual que “consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer seguir a acção; o interesse do Autor em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual (e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela): “O autor tem interesse processual se, da situação descrita, resulta que essa parte necessita da tutela judicial para realizar ou impor o seu direito”. Por outro lado, “além da necessidade de tutela judicial, o interesse processual também exige que a acção instaurada seja o meio processual mais rápido, económico e adequado para obter essa tutela[1].

A Ré entende que ao Ministério Público Autor falta já o interesse processual em agir ao contrário do que decidiram as instâncias. Propendemos para esta última posição da Ré. Tudo resta em saber se, no caso em análise, se encontra cumprido o escopo a que se destinaria a presente acção. Como se pode ler no Ac. do S.T.J. de 11-abr-2013 (P. 403/09. 5TJLSB.L1.S1)[2] – sumário in Bases da DGSI “(…) O escopo essencial, intencionalmente pretendido pelo legislador na LCCG, é o de fazer proibir, para o futuro, o uso de cláusulas contratuais gerais que atentem contra a boa-fé – arts. 16.° e 25.º, n.° 1 –, descrevendo e concretizando as cláusulas que são absolutamente proibidas (arts. 18.° e 21.°) e aquelas que se consideram relativamente proibidas (arts. 19.° e 22..º).

“(…) III - A questão da utilidade das acções inibitórias não pode ser dissociada, de modo algum, da efectiva utilização dos clausulados contratuais gerais, que eventualmente violem a LCCG, por parte do predisponente, sendo certo que demonstrada a cessação daquela aplicação, e a sua substituição por novos clausulados, poderá ficar comprometida a respectiva apreciação judicial.

IV - Não obstante o CPC não fazer referência expressa ao interesse processual ou interesse em agir, deve incluir-se o mesmo nos pressupostos processuais, referentes às partes. Trata-se de um pressuposto processual, autónomo e inominado. Inexistindo o interesse em agir, vedado está ao juiz o conhecimento do mérito da causa – arts.º 493.º, n.º 2, e 495.º, ambos do CPC”.

V - Destinando-se a acção inibitória a acautelar a utilização futura de cláusulas contratuais gerais nulas e tendo sido alegado pela Ré/recorrente que deixou de fazer utilização dessas cláusulas em data anterior à da propositura da acção (alegadamente, cerca de um mês antes), ter-se-á de investigar, em concreto, se subsiste o interesse em agir, por parte do MP, para propor a acção inibitória, nos precisos moldes em que a gizou, devendo delimitar-se, com precisão e rigor, a factualidade invocada pelo MP e impugnada pela parte contrária”.

Comentando o artigo 25.º, refere Ana Prata, “optou a lei por uma fiscalização abstracta judicial que ultrapassasse as limitações ou deficiências do controlo a posteriori dependente da iniciativa do aderente e circunscrito quanto aos efeitos ao concreto litígio[3]. O escopo da acção acaba por se traduzir, na obtenção de uma sentença de condenação do proponente em prestação de facto negativo, das cláusulas inquinadas, ou seja de as utilizar ou recomendar[4].

Sucede, porém, que intentada uma acção deste teor, pode ocorrer, que se verifique que a mesma deixou de ter interesse, o que gera a inutilidade superveniente da lide – artigo do Código de Processo Civil.

A acção inibitória visa proibir cláusulas contratuais gerais elaboradas para utilização futura, e não impedir, antes da verificação da situação concreta nelas prevista, que alguém as possa imaginar ou perspectivar.

Nesta conformidade tem entendido a Jurisprudência maioritária deste STJ que se “verifica a inutilidade superveniente da lide, numa acção inibitória, quando a Ré, no decurso da acção, retire dos contratos a celebrar as referidas cláusulas[5]. Por outro lado e, como já vimos, estando a acção inibitória vocacionada para o futuro e tendo sido já legislado – cfr. DL 240/2006 de 22 de Dezembro e - no sentido da proibição de cláusulas contratuais como aquela cuja nulidade está pedida não faz sentido que o Tribunal se pronuncie sobre um perigo já prevenido por lei e devidamente sancionado através de uma coima.

Mas quanto à abrangência dos contratos já celebrados, nomeadamente aquele a que se faz referência na petição inicial, diremos que a cláusula do arredondamento se mostra inserta no contrato; no momento em que o mesmo foi celebrado já vigorava o DL 446/85; poderia pensar-se haver possibilidade de sancionar por esta via o seu emprego de harmonia com o disposto nos artigos 15.º ss tomando em linha de conta que a cláusula em causa acaba por impor um benefício à mutuante, o que lesará o princípio da boa-fé. Só que não é esse o escopo das acções inibitórias a que alude o artigo 25.º, o qual se reporta exclusivamente à utilização de cláusulas para utilização futura não abrangendo os contratos celebrados antes da propositura da acção inibitória. Que é assim decorre igualmente da regulamentação da legitimidade activa a que se reporta o artigo 26.º da LCCG onde se vê, pela respectiva redacção, que mau grado actuem em nome próprio as entidades com legitimidade activa para intentar a acção inibitória fazem contudo valer um direito alheio, pertencente em conjunto aos consumidores susceptíveis de virem a ser atingidos pelas cláusulas cuja proibição é solicitada – n.º 2 do artigo imediatamente supracitado. Como refere Joaquim de Sousa Ribeiro “o objecto da tutela da acção de condenação ao cumprimento desse dever não é assim de uma determinada pessoa individual ou colectiva, mas o do interesse da generalidade dos contraentes a que apenas sejam utilizadas no tráfego cláusulas contratuais lícitas[6].

A acção inibitória não visa pois eliminar as cláusulas viciadas já insertas num determinado contrato, mas antes, apontando para o futuro, proibir a sua utilização em contratos ulteriores.

Muito embora não haja interesse para que o MP se ocupe do contrato já celebrado, poder-se-ia eventualmente defender que aquele subsistiria quanto à possibilidade de fazer seguir a acção para acautelar contratos futuros. Só que a introdução de cláusulas do teor da questionada está já prevista e vedada à luz dos dois Diplomas referidos. Sendo assim perde o Autor Ministério Público interesse em agir. Com efeito há que atentar que a legislação surgida, nomeadamente os DLs citados, concretizam por via legislativa e específica a nulidade de cláusulas como que se encontra inserta no contrato sob o n.º 7 e regem para futuro; o interesse em agir só cessa no que toca à inserção da cláusula do arredondamento nos contrato futuros uma vez que existe já lei específica que o contempla.

Por tais razões haverá que conceder a revista e assim revogar o decidido pela Relação no tocante à Cláusula 7ª nº 1 alínea b) do Documento Suplementar.

A titulo de sumário e conclusões teremos:

1) A Lei das cláusulas Gerais - DL n.º 446/85, de 25 de Outubro, é um Diploma que está imbuído do intuito de atenuar as desigualdades nos contratos de adesão celebrados entre as partes, nomeadamente quando uma delas, geralmente a proponente, difere da outra, a aderente, pela sua capacidade económica geradora de apoios logísticos e mobilizadores que aquela não possui[7]

2) A acção inibitória insere-se numa das plúrimas facetas do intervencionismo estatal constituindo de certa forma um precipitado do princípio da publicização do direito privado. A tal se reportam desde logo os artigos 25.º ss do Diploma supracitado podendo ler-se no primeiro normativo que “As cláusulas contratuais gerais, elaboradas para utilização futura, quando contrariem o disposto nos artigos 15.º, 16.º, 18.º, 19.º, 21.º e 22.º podendo ser proibidas por decisão judicial, independentemente da sua inclusão efectiva em contratos singulares”.

3) No instrumento onde a ora Ré celebrou o contrato com os particulares, mútuo com hipoteca, operava-se uma remissão para as cláusulas constantes do documento complementar elaborado pela Ré, contendo, como pode ver-se dos factos provados, cláusulas que regem o contrato celebrado entre a ora Ré e os mutuários que estão identificados na escritura. Trata-se pois de um contrato impresso e elaborado pela Ré onde, para além de normas específicas, figuravam outras, não negociadas, emergentes de uma proposta adesão, que se integrava no todo contratual.

4) O interesse em agir consiste “na necessidade de usar do processo de instaurar ou fazer seguir a acção; em fazer. O interesse do Autor em obter a tutela judicial de uma situação subjectiva através de um determinado meio processual (e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela”.

5) “A questão da utilidade das acções inibitórias não pode ser dissociada, de modo algum, da efectiva utilização dos clausulados contratuais gerais, que eventualmente violem a LCCG, por parte do predisponente, sendo certo que demonstrada a cessação daquela aplicação, e a sua substituição por novos clausulados, poderá ficar comprometida a respectiva apreciação judicial”.

6) Estando a acção inibitória vocacionada para o futuro e tendo sido já legislado – cfr. DL 240/2006 de 22 de Dezembro e - no sentido da proibição de cláusulas contratuais como aquela cuja nulidade está pedida não faz sentido que o Tribunal se pronuncie sobre um perigo já prevenido por lei e como tal devidamente sancionado através de uma coima.


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3. DECISÃO

Pelo exposto acorda-se em conceder a revista e assim revogar o decidido pela Relação na medida em que manteve a declaração da nulidade, abstenção de utilização e publicidade, tudo nos termos definidos na sentença, de 1ª instância apenas relativamente à cláusula 7ª, n.º 1, al. b) do contrato de mútuo com hipoteca, absolvendo a Ré do pedido.

Sem custas – artigo 4º nº 1 alínea a) do Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 6 de Outubro de 2016                  

Távora Vítor (Relator)                             

Silva Gonçalves

Fernanda Isabel Pereira                                     

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[1] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, “O Interesse Processual na Acção Declarativa, 1989, págs. 9/11. Manuel de Andrade “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, págs. 82, chama-lhe condição de acção.

[2] Do qual foi relator o Exmo. Conselheiro António Joaquim Piçarra, igualmente Adjunto na presente revista. 

[3] Cfr. A. citada, “Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais”, Almedina, Coimbra, 2010 pag. 593.

[4] Cfr. Joaquim de Sousa Ribeiro “O Problema do Contrato. As Cláusulas Contratuais Gerais e o princípio da Liberdade Contratual”, Almedina, Coimbra, 1999, pags. 492, citando Almeida Costa e Menezes Cordeiro

[5] Cfr. Acs. Deste Supremo Tribunal de Justiça de Ac. do S.T.J. (P. 01A3417) de 23-abr-2002;

[6] Cfr. A. e Obra supracitados pags. 496.