Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2314/20.4T8PTM.E1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: CESSÃO DE QUOTA
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
PRAZO CERTO
JUROS DE MORA
PAGAMENTO DIFERIDO
TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
NEGÓCIO FORMAL
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
DECLARAÇÃO TÁCITA
PRAZO RAZOÁVEL
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
Data do Acordão: 03/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :
Corresponde à adequada aplicação dos arts. 236º, 1, e 238º, 1, do CCiv. (interpretação de declarações em negócios formais) interpretar uma cláusula de pagamento e juros de negócio de cessão onerosa de quotas, na qual se convenciona o vencimento de juros a partir do segundo ano após a cessão e se difere o pagamento dessa parcela final de pagamento até ao prazo máximo de dez anos após a cessão, como sendo uma cláusula em que se acorda uma obrigação de prazo certo (decurso do segundo ano), sujeita ao pagamento de juros moratórios anuais após o tempo devido de cumprimento (arts. 804º, 1 e 2, 805º, 2, a), 806º, 1, CCiv.), e se declara tacitamente por acordo, com fixação antecipada e dispensa de interpelação admonitória superveniente, o prazo razoável concedido pelo credor para ser realizado o pagamento, sob pena de incumprimento definitivo, nos termos do art. 808º, 1, do CCiv.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 2314/20.4T8PTM.E1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação de Évora, ...

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. ... e ... propuseram acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra ..., pedindo o pagamento deste a pagar-lhes a quantia de € 200.447,94, sendo € 22.500,00, a título de sinal; € 3.000,00, a título de reforço de sinal; € 100.000,00, a título de cláusula penal indemnizatória; € 74.947,94, a título de juros vencidos, à taxa convencionada de 4%, calculados sobre o valor de € 350.000,00, desde 19/9/2015 até 26/10/2020; e juros vincendos, à taxa civil supletiva legal, (i) sobre o valor de € 125.500,00, calculados desde a citação do Réu, até ao pagamento integral de tal valor em dívida, e (ii) sobre o valor de € 350.000,00, calculados desde 27/10/2020, até ao pagamento integral do valor peticionado.

2. O Réu apresentou Contestação, por excepção e impugnação, arguindo a excepção dilatória da ilegitimidade activa dos Autores e pugnando pela improcedência da acção e absolvição do Réu do pedido.

Os Autores apresentaram Resposta, pugnando pela improcedência da referida excepção dilatória e demais excepções peremptórias invocadas pelo Réu, pedindo a condenação do Réu como litigante de má fé em multa e indemnização, a favor dos Autores, em valor não inferior a € 10.000.

O Réu apresentou Resposta, pugnando pela não admissão da peça anteriormente aludida e pela improcedência do pedido de litigância de má fé.

3. Realizou-se audiência prévia e foi proferido despacho saneador, no qual se indeferiu a excepção dilatória de ilegitimidade activa dos Autores.

4. Após realização da audiência final, o ... do ... proferiu sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, decidiu:

a) Condenar o réu ... a pagar aos autores ... e ... a quantia de € 25 500 (vinte cinco mil e quinhentos euros), acrescida de juros legais contados desde 3 de novembro de 2020 até integral pagamento, absolvendo quanto ao mais;

b) Condenar o réu como litigante de má fé (…) em multa de € 816 (oitocentos e dezasseis euros) e na indemnização aos autores a fixar, após notificação nos termos do art. 543.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (…).

           

5. Em despacho proferido subsequentemente, foi fixada a indemnização pela litigância de má fé em € 800.

6. Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora (TRE).

O Réu apresentou contra-alegações e recurso subordinado quanto à decisão sobre a litigância de má fé e do despacho subsequente, ao qual responderam os Autores.

Identificadas as questões a decidir – “interpretação das declarações negociais vertidas na cláusula 9.ª do ‘Acordo de Promessa de Permuta e Cedência de Participações Sociais’”; “interpretação das declarações negociais vertidas na correspondente escritura pública de cessão de quotas”; “condenação do apelado como litigante de má fé” –, o TRE proferiu acórdão no qual se julgou parcialmente procedente a apelação, julgando:

- “revogar a sentença apelada no segmento em que absolveu o apelado do pedido de condenação da quantia de € 74.947,94 e no segmento em que condenou apelado/recorrente subordinado como litigante de má-fé em multa e indemnização”;

- “condenar o apelado a pagar aos apelantes a quantia de € 74.947,94, a título de juros vencidos, à taxa convencionada de 4%, calculados sobre o valor de € 350.000,00, desde 19 de Junho de 2015, até 26 de Outubro de 2020”;

- “manter, no mais, a sentença apelada”.

7. Após requerimento dos Autores tendo por base o art. 614º do CPC, veio o TRE ainda proferir acórdão, em conferência, no qual se julgou “deferir parcialmente o requerimento apresentado pelos apelantes e rectificar o antecedente acórdão, acrescentando-se ao último parágrafo da apreciação da segunda questão solvenda “e vincendos até 19.06.2023, se antes desta data a tranche de € 350.000,00 não tiver sido paga aos apelantes” e no segundo item do segmento decisório “e vincendos até 19.06.2023, se antes desta data a tranche de € 350.000,00 não tiver sido paga aos apelantes”.”

8. Sem se resignar, o Réu interpôs recurso de revista para o STJ nos termos do art. 671º, 1, do CPC, visando a revogação do acórdão recorrido na parcela em que julgou parcialmente procedente o recurso de apelação.

Os Autores Réus apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido, integrado pelo acórdão rectificado proferido em conferência.

9. O Recorrente apresentou as seguintes Conclusões:

“I. Recorrente e Recorridos celebraram um Acordo de Promessa de Permuta e Cedência de Participações Sociais a 26/04/2013 e a respectiva escritura a 19/06/2013.

II. No ponto dois da referida escritura (celebrada entre Recorrente e Recorridos) datada de 19/06/2013 prevê “… Que pela presente escritura e pelo preço total de quatrocentos mil euros, os primeiros outorgantes cedem aos segundos outorgantes asuaquota-parte nas referidas quotas:

…c) O restante valor de trezentos e cinquenta mil euros serão pagos até dez anos, após a cessão e vencerá juros de quatro por cento a partir do segundo ano.

Que decorrido o prazo de dez anos, mencionado na alínea c) antecedente, sem que o segundo outorgante tenha pago o montante referido, acrescido dos juros devidos, este compromete-se a fazer a entrega aos primeiros outorgantes, a título de dação em pagamento, da parte ou direito de que é titular nos seguintes imóveis” (sublinhado nosso).

III. Ou seja, o Recorrido está obrigado ao pagamento do capital de 350.000,00 € mais juros, após 10 anos, ou seja até 19/06/2023.

IV. E sobre tal, não existem dúvidas, que a partir de Junho de 2015 começaram-se a ser computados juros de 4%, sobre o capital de 350.000,00 €, conforme acordado.

V. Aquando a celebração de o acordo e consequente escritura, a verdadeira declaração de vontades foi a de o capital acrescido dos juros ser pago pelo Recorrido até 19/06/2023, ou caso contrário, o Recorrido terá que fazer entrega aos Recorrentes a título de dação em pagamento, da parte em que é titular dos prédios sitos em ..., ..., ..., inscritos na matriz rústica sob os n.os 92, 93 e 89, todos da secção L.

VI. A declaração negocial foi no sentido de o Recorrido ter um prazo de 10 anos para pagar aos Autores o valor de 350.000,00 € acrescido de juros.

VII. O aqui Recorrente, ao celebrar o acordo, não se obrigou ao pagamento concreto dos juros anualmente, mas sim de pagar a totalidade dos juros devidos, juntamente com o capital devido, até Junho de 2023.

VIII. Foi essa a interpretação e a verdadeira pretensão do aqui Recorrente.

IX. Os Recorridos, sempre interpelaram o Recorrente a suscitar as mais variadas questões, que correspondiam a situações que os Recorridos consideravam em falta por parte do Recorrente.

X. No entanto, sobre o caso em apreço, desde 2016 nunca os Recorridos interpelaram o Recorrente a pagar tais juros, visto que ainda não estamos no ano de 2023!

XI. Bem sabem os Recorridos, que o Recorrente tem um prazo com término em Junho de 2023, para pagar em simultâneo o capital devido de 350.000,00 €, mais os juros devidos à data.

XII. Bem se fez prova, das inúmeras cartas enviadas pelo Recorrente ao Recorrido, no entanto, em nenhuma missiva pede o pagamento de tais juros! Pois sabia o Recorrente que apenas teria direito a receber o pagamento total de capital e juros, em Junho de 2023.

XIII. Faz o Tribunal da Relação de Évora uma apreciação errónea e desajustada, de toda a situação!

XIV. Não teria que ser o Recorrente interpelado, porque não era sua obrigação pagar somente juros, na data em que o Recorrido lhe apeteceu!

XV. Não teria que ser o Recorrente interpelado, porque não está em falta para com os Recorridos.

XVI. O Tribunal de 1.ª instância fez, e bem, uma análise de toda a situação, e verificou como o Recorrido procedia quando considerava que o Recorrente estava em falta.

XVII. Sendo certo que, na presente situação, o Recorrido nunca instou o Recorrente para proceder a tal pagamento.

XVIII. O que vai ao encontro da versão do Recorrente, mostrando a verdadeira e expressa vontade declaratória das partes aquando a celebração do acordo e outorga de escritura.

XIX. E tal se confirma, face ao texto da referida escritura de “CESSÕES DE QUOTAS; RENÚNCIA À GERÊNCIA E CONSTITUIÇÃO DE HIPOTECA” (doc. 6 junto com a P.I.), “(…) Que em qualquer caso, a título de garantia da mencionada dívida de trezentos e cinquenta mil euros e respectivos juros, o segundo outorgante constitui a favor dos primeiros hipoteca sobre a quota parte de que é titular nos imóveis acima identificados;”.

XX. Sendo certo que, os juros de 4% sejam computados ao ano, é certo que, o Recorrente só estará obrigado ao seu pagamento em Junho de 2023, e não agora, como os Recorridos querem fazer crer.

XXI. Está o Recorrente obrigado ao pagamento dos juros em simultâneo com o pagamento do capital de 350.000,00 €, até Junho de 2023.

XXII. Pelo que, a Meritíssima Juiz do Tribunal do tribunal de 1.ª instância, julgou e decidiu bem, em considerar que os juros só serão devidos a final, isto é, quando o capital se vencer, em Junho de 2023.

XXIII. Ou antes, se o capital for pago antes de Junho de 2023.

XXIV. Nem o acordo prevê a possibilidade de perante o facto de serem pagos os juros em singelo, e não ser pago o capital devido, como se resolveria a entrega dos prédios hipotecados a título de dação em pagamento.

XXV. Não prevê tal situação, nem a devolução dos juros hipoteticamente pagos.

XXVI. Não prevê, porque não era essa a real intenção de Recorrente e Recorridos, aquando a celebração do acordo e consequente escritura.

XXVII. Dúvidas não existem que a vontade real de declarante e declaratário, era a de prever o pagamento de um valor de 400.00,00 €, mais juros, a pagar em três tranches, para aquisição definitiva das quotas sociais que os Recorridos detinham sobre a Empresa Hoteleira ... e ...

XXVIII. Sendo a última tranche de 350.000,00 € a ser paga até 19 de Junho de 2023, mais os juros devidos à data, sendo este calculados à taxa de 4 %, computados desde Junho de 2015.

XXIX.“Trata-se de proceder à interpretação da cláusula contratual para o que contribui o disposto art. 236.º do Código Civil e principio geral da boa fé”.

XXX. O Acórdão recorrido violou por erradas interpretação e aplicação as disposições legais anteriormente citadas, e as mais ao caso aplicáveis, o que constitui fundamento da revista, conforme prevê o art. 674º, nº 1, al. a) do Código de Processo Civil.

(…)”

Cumpre apreciar e decidir, uma vez consignados os vistos nos termos legais.

II) APRECIAÇÃO DO RECURSO

1. Objecto do recurso

A questão submetida a apreciação deste STJ incide sobre o seguinte segmento do dispositivo decisório do acórdão recorrido (após rectificação):

“condenar o apelado a pagar aos apelantes a quantia de € 74.947,94, a título de juros vencidos, à taxa convencionada de 4%, calculados sobre o valor de € 350.000,00, desde 19 de Junho de 2015, até 26 de Outubro de 2020[,] e vincendos até 19.06.2023, se antes desta data a tranche de € 350.000,00 não tiver sido paga aos apelantes”.

A questão consiste em saber se se julgou adequadamente quanto ao momento de vencimento e exigibilidade dos juros convencionados no que respeita ao valor devido de € 350.000 (obrigação pecuniária constante de negócio oneroso de cessão de quotas, prometida e depois celebrada por escritura pública).

2. Factualidade assente nas instâncias (tal como ordenada pelo acórdão recorrido)

1. O aqui autor e réu iniciaram uma parceria de negócios em 1998. Devido a desde sempre se mostrar mais hábil para os negócios e especialmente por ter um poder económico superior ao autor, foi sempre o réu quem liderou os negócios que ao longo de cerca de 15 anos autor e réu tiveram em conjunto, até Abril de 2013.

2. A sociedade comercial “..., Lda.”, ..., tem como sócios, os ora autores e gerente o autor (arts. 1.º e 2.º da petição inicial).

3. O réu é sócio e gerente da “..., Lda.”.

4. Em 30 de Novembro de 2007, foi celebrado “contrato promessa de compra e venda e recibo de sinal”, entre ..., ... e ..., na qualidade de primeiros contratantes e de promitentes vendedores, e o ora réu, ... e a sociedade comercial “..., Lda.”, na qualidade de segundos contratantes e de promitentes compradores, contrato-promessa esse que tinha por objecto o imóvel, prédio rústico com a área total de 5.500 m2, sito em ..., ..., ..., descrito na ..., ..., inscrito na respectiva matriz predial ..., Secção N da referida ..., adiante indicado apenas “prédio 13 N”.

5. Na cláusula terceira de tal acordo, consta a previsão de que a título de sinal e princípio de pagamento, na data da assinatura de tal documento, os aí segundos contratantes (compradores) entregariam aos aí primeiros contraentes, o valor de €45.000, sendo que o remanescente do preço (€205.000), seria pago na data da escritura de compra e venda.

Na cláusula quarta no mesmo contrato promessa, consta a previsão de que a escritura pública de compra e venda, devia ser agendada pelos aí segundos contratantes, o ora réu e ..., Lda., “(…) no prazo de 15 dias, depois de ter transitado em julgado a sentença que supra o consentimento da mulher do Promitente Vendedor ... (…)”, uma vez que a mulher do promitente vendedor ... não tinha intervindo no acordo, o que terá vindo a acontecer.

6. O referido contrato promessa de compra e venda foi objecto de um aditamento, em 3 de junho de 2011, sendo as partes as mesmas, com excepção de .... Nesse aditamento, foi manifestado pelos subscritores que mantêm o seu interesse na celebração do contrato definitivo, mas “(…) alterando-lhe a Cláusula Quarta, que passará a ter a redação seguinte:

Cláusula quarta

1 – A escritura pública de compra e venda será marcada pelos Segundos Contraentes, no prazo de quinze dias, após estes venderem qualquer dos imóveis de que são comproprietários, desde que o produto de tal venda seja suficiente para pagar o resto do preço.

2 – Logo que a venda de tal bem seja efetuada, os Segundos Contraentes deverão comunicá-lo aos Primeiros Contraentes, a fim de estes entregarem aos Segundos todos os documentos necessários à instrução da referida escritura pública”. Ainda foi acordado nesse Aditamento um reforço de sinal por conta do pagamento do preço final, sendo que os aí Segundos Contratantes, conjuntamente e em partes iguais, entregaram ao Primeiro Contratante: ... (adiante indicado por ...) a quantia de €4.000,00 e ao Primeiro Contratante: ... (adiante indicado por ...) igualmente conjuntamente e em partes iguais, a quantia de €2.000.

7. Além do sinal de € 22500, “..., Lda.” entregou aos vendedores (..., ... e ...), €3.000,00, a título de reforço de sinal. Os € 6 000 entregues pelo lado dos promitentes compradores como reforço do sinal foram satisfeitos pelo réu, mas € 3 000 foram imputados a dívida do autor.

8. Em 2013, foi levada ao registo a aquisição (provisório por natureza) a favor de ... e da “..., Lda.” (que também usa “...”) ... de 2013/02/21.

9. A escritura de compra e venda do imóvel 13 N prevista no contrato-promessa não foi celebrada (art. 34.º da petição inicial).

10. Os autores, o réu e a “..., Lda.”, celebraram em 26 de abril de 2013, “Acordo de Promessa de Permuta e Cedência de Participações Sociais”, sendo que, nos termos desse acordo, o réu era o primeiro outorgante; os autores, os segundos outorgantes e a referida sociedade comercial, a quarta outorgante.

No Considerando E) desse Acordo, consta a seguinte redacção:

“Considerando ainda que o primeiro Outorgante, em conjunto com a Quarta Outorgante celebraram promessa de compra de um terreno, sito na ..., designado terreno do ..., ..., Secção N, da ..., tendo o Primeiro Outorgante entregue a quantia de €30.000,00 e a Quarta Outorgante a quantia de €22.500,00, ambas a título de sinal;”.

Prevê o n.º 1, da cláusula terceira do referido Acordo, que:

“O Segundo Outorgante promete vender ao Primeiro, pelo preço de €250.000,00, as suas participações sociais, mencionadas no Considerando C, detidas na sociedade E..., Lda. e pelo preço de €150.000,00, as participações sociais que detém na .... ..., com sede na ..., ...:

a) O pagamento do preço será feito do modo seguinte:

i. €30.000,00 com a celebração dos contratos de cessão de quotas;

ii. €20.000,00 no prazo de até dois anos, após a cessão, vencendo este montante juro à taxa de 4%, findo o primeiro ano, até integral pagamento;

iii. O restante do preço, isto é, €350.000,00 será pago até 10 anos, após a cessão e vencerá juros de 4%, a partir do 2º ano”.

Ainda prevê a clausula sétima de tal Acordo que:

“O Primeiro e Segundo Outorgante, no que se refere ao terreno rústico n.º 24-N, sito na ..., acordam que se manterá em compropriedade em partes iguais, comprometendo-se ambos os Outorgantes a aliená-lo, desde que o seu preço total de venda atinja os €150.000,00”

Ainda e relativamente àqueloutro imóvel, prevê a clausula nona de tal Acordo, que:

“1. Quanto à promessa de compra do terreno sito em ..., designado “...”, a situação contratual mantém-se, mostrando-se ambos os outorgantes disponíveis para ceder a sua posição contratual, seja a quem for, desde que recebam, respetivamente, aquilo que entregaram aos promitentes vendedores a título de sinal e, por outro lado, esta cedência seja feita em conjunto com a alienação do terreno mencionado na Cláusula Sétima. 2. Sem prejuízo dos aqui Outorgantes promoverem a venda destes dois terrenos, ambos se comprometem, no prazo de 30 dias, após a outorga deste contrato, a conferir procuração para poder vender, a favor de Mandatário da sua mútua confiança e mantê-la válida até à escritura pública de alienação dos prédios mencionados no número que antecede, sob pena de indemnização à outra parte do montante de € 100.000,00 (cem mil euros)”.

11. Foi em 19 de junho de 2013, emitida a procuração, referida em 10., a favor de ..., a quem foram conferidos poderes para “(…) ceder a sua posição contratual no contrato promessa de compra e venda do terreno sito em ... designado “...”, seja a quem for, desde que por valor igual ou superior ao entregue aos promitentes vendedores a título de sinal”.

12. A promessa de cessão que configura o acordo supra foi celebrado em 26 de abril de 2013, tendo a respetiva escritura sido celebrada em 19 de junho de 2013, no ... sob o título “cessões de quotas; renúncia à gerência e constituição de hipoteca”.

Prevê o ponto dois da escritura, datada de 19 de junho de 2013, que:

“(…) Que pela presente escritura e pelo preço total de quatrocentos mil euros, os primeiros outorgantes cedem ao segundo outorgante, a sua quota-parte nas referidas quotas;

Que o pagamento do preço será feito do seguinte modo:

a) trinta mil euros na presente data;

b) vinte mil euros no prazo de até dois anos, a contar de hoje, vencendo este montante à taxa de quatro por cento, findo o primeiro ano, até integral pagamento;

c) O restante valor de trezentos e cinquenta mil euros serão pagos até dez anos, após a cessão e vencerá juros de quatro por cento, a partir do segundo ano (…)

Mais acordaram o seguinte:

“que decorrido o prazo de dez anos, mencionado na alínea c) antecedente, sem que o segundo outorgante [...] tenha pago o montante referido, acrescido dos juros devidos, este compromete-se a fazer entrega aos primeiros outorgantes [... e mulher ...], a título de dação em pagamento, da parte ou direito de que é titular nos seguintes imóveis:

(…) Que em qualquer caso, a título de garantia da mencionada dívida de € 350 000 e respetivos juros, o segundo outorgante constitui a favor dos primeiros hipoteca sobre a quota parte de que é titular nos imóveis (…) o montante máximo de capital e acessórios é de € 392 000 (…)”.

13. O réu pagou aos autores os valores previstos nas als. a) e b) da cláusula terceira, do Acordo, correspondentes às als. a) e b) do ponto dois da escritura, datada de 19 de junho de 2013, não lhes tendo pago mais qualquer outro valor.

14. O réu nunca pagou aos autores qualquer montante a título dos juros previstos no acordo de 2013 (art. 128.º da petição inicial).

15. Os autores não interpelaram o réu para pagar os juros que consideravam vencidos (art. 32.º da contestação).

16. Em carta, datada de 6 de abril de 2015, recebida a 20 de abril de 2015, a promitente contratante ..., interpelou a “..., Lda.”, informando-a de que não aceitava o aditamento a tal contrato promessa, além de “(…) interpelar V. Exª para marcar a escritura num prazo de 45 dias, que reputo mais que suficiente para o efeito, tendo contratualmente ficado fixado que a escritura seria marcada por V. Exªs. Caso não seja marcada neste período, atendendo ao tempo que já passou, 8 anos, perderei completamente o interesse na venda”.

17. Nessa sequência, o autor, enviou carta registada com AR, ao réu, datada de 21 de abril de 2015, na qual escreveu “(…) Venho comunicar o recebimento em 20/04/2015, de uma carta registada por parte da senhora ..., irmã do ..., notificando-me para a realização da escritura num prazo de quarenta e cinco dias, do terreno da ..., por nós sinalizado, aquando a realização do contrato de promessa de compra e venda. Presumo que tenhas recebido uma carta enviada pela mesma senhora, com igual teor. No sentido de se encontrar uma solução para esta situação que agora se nos depara, agradeço a tua comparência nas instalações da ..., Lda., em ..., na próxima terça feira pelas 18:00 horas (…)”, a qual foi remetida para a morada conhecida do réu, tendo-a ele recebido em 22 de abril de 2015.

18. Contudo, o ora réu não compareceu à reunião, nem nada disse ao autor.

19. A mesma ..., agora representada por ..., em 10 de maio de 2017, enviou nova carta a “..., Lda.”, na qual escreveu “(…) Venho em representação da senhora D. ..., promitente vendedora do prédio acima referenciado, enviar as cópias dos documentos necessários para instruir a escritura de compra e venda (…) Todos os vendedores estão de acordo em assinar a venda, e pelas cartas que recebi de V. Exª e do outro promitente comprador, também mostraram a mesma vontade. (…) A escritura deverá ser marcada até 10 de Junho do corrente ano, agradecendo que nos seja comunicada a marcação com pelo menos 8 dias de antecedência, bem como aos restantes vendedores. Mais informo que enviei uma carta igual ao outro promitente comprador. (…)”.

20. Na sequência de tal missiva, a “..., Lda.”, remeteu ao ora réu, nova carta registada, datada de 24 de maio de 2017, com o seguinte teor “(…) Como também deverá ter acontecido consigo, recebemos de uma senhora D. ..., procuradora da D. ..., uma carta pedindo a marcação da escritura do terreno por nós conhecido como do “...”, até ao próximo dia 10 de Junho. (…) Como igualmente sabe, ainda temos um acordo de compra de prédios, utilizando crédito bancário, ao abrigo do qual fizemos vários negócios. Assim, para se resolver de vez este assunto, propomos-lhe adquirir este prédio, novamente a coberto do mencionado acordo e nos mesmos termos e condições dos anteriores negócios. A alternativa, em caso de não aceitação desta proposta, seria a de adquirirmos o prédio, pagando V. Exª a totalidade do preço em dívida e compensando a nossa parte em igual parte do crédito, que o nosso sócio gerente, Sr. ... ainda detém sobre V. Exª em consequência do acordo, acima mencionado, que, assim o libertaria do correspondente montante em dívida à pessoa do referido sócio gerente e do pagamento dos respetivos juros vincendos (4%/ano). (…) agradecemos a v/ resposta em prazo não superior a dez dias (…)”, a qual foi remetida para a morada conhecida do ora réu e aí recebida, em 26 de maio de 2017.

21. O ora réu nunca respondeu ao autor.

22. A “..., Lda.”, face ao silêncio do réu, remeteu à D. ... a carta datada de 8 de junho de 2017, na qual escreveu: “(…) esta empresa não pode cumprir o acordado com a sua representante e demais promitentes vendedores, desacompanhada do outro promitente comprador, o senhor .... Com o propósito de lograr o cumprimento do contrato promessa, fizemos várias propostas ao mencionado Sr. ..., todas até aqui sem resposta. Pelo exposto, não pode esta empresa responder positivamente ao conteúdo daquela vossa aludida carta, sendo, porém, certo, que se encontra na disposição de honrar todos os compromissos assumidos a este respeito, assim o esteja o outro referido promitente comprador. (…)”, a qual foi remetida para a morada conhecida da destinatária, tendo sido por ela recebida em 9 de junho de 2017.

23. A “..., Lda.”, escreveu ainda nova carta ao ora réu, datada de 6 de julho de 2017, na qual consta: “(…) Parece-nos seguro que teremos de cumprir o contrato promessa de compra e venda do terreno “...” e devemos fazê-lo conjuntamente, ou seja, esta empresa e V. Exª, tal como, aliás, nos comprometemos no dito contrato. (…) À nossa carta de 24/05/2017 não deu V. Exª qualquer resposta. Deste modo, serve a presente para o notificar que, se da vossa inação resultar algum prejuízo para esta empresa, não deixaremos de responsabilizá-lo por isso e de exigir-lhe o ressarcimento de todos os danos daí resultantes (…)”, a qual foi remetida para a morada conhecida do réu, tendo sido por ele recebida, em 7 de julho de 2017.

24. A esta missiva o réu não respondeu.

25. Por carta datada de 24 de julho de 2017, dirigida à ..., Lda., ..., mais uma vez em representação da ..., resolveu o contrato-promessa em causa, com os fundamentos seguintes “(…) tendo fixado o prazo final para a realização da escritura para 10 de Junho do corrente ano. (…) Se há problemas entre os compradores, é algo que é completamente alheio à minha representada, que está desde 2007 (há 10 anos) à espera de uma solução, que nunca apareceu, apesar de insistir no cumprimento do contrato. Venho assim informar que, não tendo sido marcada a escritura no último prazo fixado, a minha representada, perdeu por completo o interesse na venda do prédio, ficando assim com o sinal que lhe foi pago (…)”.

26. Em 16 de outubro de 2017, a “..., Lda.”, recebeu notificação judicial avulsa, remetida pelo ora réu, mediante a qual, tendo por objeto para o referido imóvel com o artigo n.º 13-N, afirma “Com a presente notificação, pretende o Requerente fixar a data para outorga da escritura pública, para o dia 31 de outubro de 2017, pelas 14h, no Cartório Notarial Dra. ..., em ....”. Do conteúdo de tal Notificação Avulsa, foram igualmente notificados os promitentes vendedores para comparecerem à escritura agendada, para o dia 31 de outubro de 2017, tendo igualmente por objecto o mesmo imóvel.

27. A essa convocatória compareceram, os promitentes compradores: o ora autor, na qualidade de sócio gerente de “..., Lda.”, o réu e os promitentes vendedores: ... e ..., tendo faltado à mesma ..., não tendo sido celebrada a escritura pública.

28. Em 17 de novembro de 2017, terá celebrado entre o ora réu e ... e Venda”, tendo aquele, a qualidade de promitente comprador e este, a qualidade de promitente vendedor. O objeto deste contrato promessa é o quinhão hereditário, por morte de ..., mãe do promitente vendedor, do qual fazia parte, o seguinte prédio “(…) Prédio rústico, descrito na ... ..., com o ... da secção N, ... (…)”.

29. Em 4 de janeiro de 2018, foi celebrado entre o ora réu e ... e Venda”, tendo aquele, a qualidade de promitente, comprador e este, a qualidade de promitente vendedor. O objeto deste contrato promessa, tal como se alcança da conjugação dos teores das clausulas primeira e segunda é também o quinhão hereditário por morte de ..., mãe do promitente vendedor, do qual faz parte, o seguinte prédio “(…) Prédio rústico, descrito na ... ..., com o ... da secção N, .... (…)”.

30. Em 17 de abril de 2019, por escritura pública, foi celebrada a favor do réu, a “...”, quinhão esse que integra o prédio rústico em causa e inscrito na matriz sob o artigo 13-N, sendo vendedor ..., pelo preço de €83.333,33, no que foram contabilizadas as quantias antes entregues.

31. Foi também, em 22 de março de 2019, celebrada escritura, a favor do réu, da “Cessão de Quinhão Hereditário”, pelo preço de €63.333,33, sendo vendedor .... Dessa escritura consta “(…) Que do património, que constitui a respetiva herança, não fazem parte quaisquer bens móveis, sendo apenas composta pelos seguintes imóveis: a) Prédio rústico, inscrito na matriz predial, da ..., ..., ... da secção N, com o valor patrimonial de €339,37, (…)”.

32. Os autores tiveram conhecimento da celebração do réu com ... e ... de contrato promessa de quinhão hereditário, por óbito da mãe destes, ... e posteriores escrituras públicas.

33. No dia 9 de maio de 2019, ..., na qualidade de procurador da “..., Lda.”, vendeu à “...” o prédio 24 N.

34. Na sequência das referidas escrituras do imóvel com o artigo n.º 13-N, foram efetuados os registos na ... (...), sob a ... de 2018/01/10 (quinhão hereditário comprado pelo réu a ...) e sob a ... de 2018/01/10 (quinhão hereditário comprado pelo réu a ...).

35. Na ação n.º ... o aqui réu demanda ... nos seguintes termos: Deve a presente ação ser julgada procedente por provada, sendo a RÉ condenada pelo incumprimento do contrato promessa de compra e venda e recibo de sinal, celebrado em 30/11/2007, sendo proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial da Ré faltosa. (…)

36. Em 14 de Junho de 2019, foi celebrado “contrato de cessão de créditos”, entre a “..., Lda.”, na qualidade de cedente e o autor, na qualidade de cessionário, mediante o qual e relativamente ao imóvel, sito em ..., ..., ..., prédio rústico inscrito na matriz predial ..., secção N, descrito na ... ..., denominado por terreno de “...”, a cedente, no ponto 07, cede ao cessionário “(…) todos e quaisquer créditos, que já possua ou venha a possuir, qualquer que seja a sua natureza, causa ou origem, decorrentes do contrato mencionado em 01 e acordo, aludido em 03 e respeitantes ao contrato promessa e terreno de “...”. A finalidade dos autores era a de vir a extinguir a empresa.

37. Em 17 de junho de 2019, a “..., Lda.”, comunicou por carta registada, ao ora réu, o referido contrato de cessão de créditos e não comunicou aos promitentes vendedores nem estes prestaram “consentimento”.

38. Na carta de 17 de junho de 2019, a “..., Lda.”, comunicou ainda ao ora réu, além do referido contrato de cessão de créditos conforme fls. 28 v./29/29 v./30 o seguinte: “(…) Vim a saber recentemente que V. Exa. tinha adquirido ao Sr. ... e ao irmão, ..., os respetivos direitos às heranças abertas por óbito de ..., mãe de ambos. Tais direitos englobam precisamente a quota parte dos mesmos no prédio, sito em ..., inscrito na matriz predial rústica ..., secção N e descrito na ... ...- ..., sobre o qual V. Exa. e a sociedade ..., Lda., tinham um contrato promessa de compra e venda e tinham constituído um sinal, em partes iguais para cada promitente comprador de 45.000,00 €, ou seja, 22.500,00€ cada um. Nesta circunstância torna-se inviável a realização da prometida compra. Os créditos da ..., Lda., decorrentes deste negócio, foram-me cedidos por acordo datado de 14/06/2019, cessão nesta data notificada a V. Exa.. Daí que, na qualidade de cessionário, venha solicitar o pagamento do que aquela sociedade tinha direito, ou seja a devolução da sua parte no sinal, bem como a compensação de todos os danos e prejuízos causados com a provocada inviabilidade do negócio – ainda não apurados – mas estimados apenas para efeitos de acordo e se pagos dentro do prazo abaixo assinalado em 125.000,00 € (…)”, a qual foi remetida para a morada conhecida do réu e por ele recebida, em 18 de junho de 2019.

39. A esta carta o réu não deu resposta (art. 78.º da petição inicial).

40. Os autores não receberam do réu o valor de €22.500 do sinal pago aos promitentes vendedores, a título de sinal, nem os posteriores reforços de sinal.

41. O valor relativamente elevado do prédio rústico (artigo 13-N) sempre se deveu ao facto de ele confinar com o imóvel com o artigo n.º 24-N e a área de ambos os prédios formar uma superfície ideal para a edificação de um empreendimento urbanístico. A partir de certa altura, já em 2015, o réu passou a ter interesse em concretizar o negócio sem o autor e “..., Lda.”, que mantinham interesse no negócio, o que justificou o seu comportamento, como o silêncio relativamente às cartas enviadas.

42. No dia 11 de novembro de 2019, a pedido de ... e mulher, foi decretado o arresto de diversos bens.

43. Após citação e oposição de ..., por decisão de 2 de setembro de 2020, esse arresto veio a ser reduzido para garantia de € 137 500 e facultada a sua substituição por caução em depósito naquele montante, efetivamente prestada.

3. Direito aplicável

3.1. No que respeita à questão decidenda, argumentou o acórdão recorrido:

“Entendem também os apelantes que se interpretaram erroneamente as estipulações contratuais vertidas na cláusula terceira do “Acordo de Promessa de Permuta e Cedência de Participações Sociais” e na escritura que formalizou a cessão de quotas.
Ali, respectivamente, estipulou-se que:


“O Segundo Outorgante promete vender ao Primeiro, pelo preço de €250.000,00, as suas participações sociais, mencionadas no Considerando C, detidas na sociedade E..., Lda. e pelo preço de €150.000,00, as participações sociais que detém na .... ..., com sede na ..., ...:
a) O pagamento do preço será feito do modo seguinte:
i. €30.000,00 com a celebração dos contratos de cessão de quotas;
ii. €20.000,00 no prazo de até dois anos, após a cessão, vencendo este montante juro à taxa de 4%, findo o primeiro ano, até integral pagamento;
iii. O restante do preço, isto é, €350.000,00 será pago até 10 anos, após a cessão e vencerá juros de 4%, a partir do 2º ano”. (…)”.

E que:


“(…) Que pela presente escritura e pelo preço total de quatrocentos mil euros, os primeiros outorgantes cedem ao segundo outorgante, a sua quota-parte nas referidas quotas;
Que o pagamento do preço será feito do seguinte modo:
a) trinta mil euros na presente data;
b) vinte mil euros no prazo de até dois anos, a contar de hoje, vencendo este montante à taxa de quatro por cento, findo o primeiro ano, até integral pagamento;
c) O restante valor de trezentos e cinquenta mil euros serão pagos até dez anos, após a cessão e vencerá juros de quatro por cento, a partir do segundo ano (…)
Mais acordaram o seguinte:
“que decorrido o prazo de dez anos, mencionado na alínea c) antecedente, sem que o segundo outorgante [...] tenha pago o montante referido, acrescido dos juros devidos, este compromete-se a fazer entrega aos primeiros outorgantes [... e mulher ...], a título de dação em pagamento, da parte ou direito de que é titular nos seguintes imóveis:
(…) Que em qualquer caso, a título de garantia da mencionada dívida de € 350 000 e respetivos juros, o segundo outorgante constitui a favor dos primeiros hipoteca sobre a quota parte de que é titular nos imóveis (…) o montante máximo de capital e acessórios é de € 392 000 (…)”.

Decidiu-se, a este respeito, na sentença apelada:
“Nenhuma das partes questiona que o réu está obrigado ao pagamento do capital de 350.000,00 após 10 anos, ou seja, até 19/06/2023, e que a partir de junho de 2015 começaram a vencer juros de 4%. E que se o capital acrescido dos juros não for pago pelo Réu até 19/06/2023, o Réu terá que fazer entrega aos Autores a título de dação em pagamento, da parte em que é titular dos prédios sitos em ..., ..., ..., inscritos na matriz rústica sob os n.ºs 92, 93 e 89, todos da secção L.
As partes não estão de acordo sobre a data de vencimento dos juros computados desde junho de 2015: vencem-se desde junho de 2015 e em cada ano ou vencem-se apenas ao fim de 10 anos, em junho de 2023?
Trata-se de proceder à interpretação da cláusula contratual para o que contribui o disposto no art. 236.º do Código Civil e o princípio geral da boa fé. (…)
que ter em conta o contexto do acordo (cfr. o contrato-promessa de 26 de abril de 2013 e a escritura de 19 de junho de 2013) e a cláusula em que as partes previram quer a hipoteca para garantia de pagamento, quer a possibilidade de não pagamento dos montantes ali previstos e, nesse caso, a solução será (note-se que a quantia de 350 000 se vence em 2023) a dação em pagamento de vários prédios ali identificados. A garantia e a possível dação incidem sobre o capital e os juros: os contraentes não distinguem, figurando os juros, a serem computados desde 2015, como uma forma de remunerar o facto de os 350 000 poderem vir a ser entregues dez anos depois do contrato.
Acresce que está assente que os autores não interpelaram o réu para qualquer pagamento de juros desde 2015 e ate à propositura da ação em 2020, comportamento que reforça a interpretação defendida pelo réu de que os juros, sendo computados, são efetivamente devidos a final, isto é, quando o capital se vencer, em 2023.”

Saliente-se, em primeiro lugar, que os apelantes laboram manifestamente em erro ao considerarem (conclusão LXVIII) que “A obrigação de o recorrido pagar aos recorrentes valores de juros à taxa anual de 4%, sobre o valor de €350.000,00, calculados desde 19 de junho de 2015 até 19 de junho de 2023, não necessita de interpelação.”. Com efeito e como decorre das restantes alegações a este respeito produzidas, é precisamente o recurso a elementos auxiliares da interpretação – como sejam a vontade conjectural das partes e até a prescrição – que os habilita a sustentar o entendimento que preconizam.
Em segundo lugar, atente-se que a escritura em apreço corporiza o contrato de cedência de quotas prometido, pelo que, primordialmente, cabe atentar nas suas estipulações negociais, já que é delas que evolará o direito creditício invocado pelos apelantes. As estipulações constantes do antecedente contrato promessa servirão como mero elemento auxiliar de interpretação, já que o escopo desse acordo de vontades é, apenas, a vinculação a uma prestação de facere, qual seja a futura celebração do contrato definitivo.
Esclarecido este aspecto e lançando mão dos critérios acima enunciados, alcança-se que o preço da cessão de quotas foi dividido em três parcelas com diferentes datas de vencimento. A primeira, no valor de € 30.000,00 deveria ser liquidada de imediato. A segunda, no valor de € 20.000,00 no prazo de dois anos a contar da data da cessão (i.e. da celebração da escritura pública que a concretiza), vencendo-se juros após o primeiro ano e até integral pagamento. A terceira, no valor de € 350.000,00 até ao termo do prazo de 10 anos após a celebração da escritura, vencendo-se juros após o segundo ano.

Atentando que, no que respeita às últimas tranches, os juros apenas se vencem, respectivamente, após o decurso do primeiro ano e do segundo ano, cabe concluir que cada uma dessas prestações em que se fraccionou o pagamento do preço da cessão eram, respectivamente, exigíveis no primeiro ano e no segundo após a data da celebração da escritura pública. Esses eram os prazos de vencimento “ideais” (i.e. sem o acréscimo de juros) de cada uma delas.
Por isso, é viável considerar que, à semelhança do segundo ano (no que respeita à segunda tranche) os oito anos subsequentes ao segundo consubstanciam uma tolerância que o credor – os Autores – concederam ao devedor na liquidação daquela última tranche.
Desse modo, é seguro notar que estamos em presença de juros de cariz moratório, os quais constituem uma reparação pelos prejuízos resultantes do atraso no cumprimento da obrigação (cfr. n.º 1 do art. 804.º e n.º 1 do art. 806.º, ambos do Cod. Civil). O recurso, nos termos contratados, à taxa de juro legal de mora das obrigações civis confirma esta asserção, a qual é ainda corroborada pelos termos do contrato-promessa.
Arrancando desta constatação, podemos começar a concluir que os juros acordados se vencem anualmente, desde 19 de Junho de 2015, i.e. o segundo ano após a data da celebração daquele acto notarial (cfr. al. c) do art. 279.º do Cod. Civil). Na verdade, a letra do acordo, considerado na sua globalidade, evidencia que os juros sobre a parcela em dívida se vencem após aquela data com essa periodicidade e não apenas em 19 de Junho de 2023. À semelhança do que se constata a respeito da segunda parcela, não se trata de remunerar o retardamento da exigibilidade, mas antes de o sancionar com o pagamento anual de juros.
A referência aos “respectivos juros” que constam da sequente constituição de hipoteca corrobora essa asserção, na medida em que, como resulta desta última, se considerou um montante máximo próximo daquele que é o correspondente aos juros correspondentes a 8 anos. Também a menção a “juros devidos” até essa data que figura da sequente promessa (condicional) de dação em pagamento inculca essa noção, já que o sentido possível extraível dessa expressão é, precisamente, a referência aos juros vencidos ao longo dos oito anos anteriores.
Neste seguimento, é irrelevante a ausência de interpelação para o pagamento de juros. O pagamento da terceira tranche constitui uma obrigação sujeita a prazo certo, pelo que a mora no respectivo cumprimento ocorre independentemente de interpelação (al. a) do n.º 2 do art. 805.º do Cod. Civil).
Assim sendo e na confluência destas conclusões, não se alcança qualquer razão – e muito menos uma que se filie na boa-fé negocial – para deferir para 15 de Junho de 2023 o pagamento dos juros vencidos até à data da propositura da acção, tanto mais que remanesce em dívida a dita prestação de preço.
De resto, se fosse esse o caso, caberia ao tribunal a quo fazer uso do preceituado no disposto no art. 610.º do CPC e não simplesmente absolver do pedido.

Procede, neste segmento, a apelação, devendo, pois, o apelado ser condenado a pagar aos recorrentes a quantia de € 74.947,94, a título de juros vencidos, à taxa convencionada de 4%, calculados sobre o valor de € 350.000,00, desde 19 de Junho de 2015, até 26 de Outubro de 2020[,] e vincendos até 19.06.2023, se antes desta data a tranche de € 350.000,00 não tiver sido paga aos apelantes.”.

3.2. O cerne da questão remete-nos para a correcta aplicação ao caso do art. 236º, 1, e 238º do CCiv.

Em causa está a interpretação das cláusulas do negócio oneroso de cessão de três quotas, representativas do capital social de duas sociedades comerciais por quotas, sendo os Autores os cedentes e o Réu o cessionário, celebrada por escritura pública em 19/6/2013, em cumprimento de anterior promeessa convencionada em 26/4/2013 – cfr. factos provados 10. e 12; a saber:

“Que pela presente escritura e pelo preço total de quatrocentos mil euros, os primeiros outorgantes cedem ao segundo outorgante, a sua quota-parte nas referidas quotas;

Que o pagamento do preço será feito do seguinte modo:

a) trinta mil euros na presente data;

b) vinte mil euros no prazo de até dois anos, a contar de hoje, vencendo este montante à taxa de quatro por cento, findo o primeiro ano, até integral pagamento;

c) O restante valor de trezentos e cinquenta mil euros serão pagos até dez anos, após a cessão e vencerá juros de quatro por cento, a partir do segundo ano;”.

Mais em particular, o que aqui se discute é o sentido interpretativo a fixar para a cláusula específica do pagamento do preço relativo à parcela correspondente ao montante de € 350.000 e aos respectivos juros cujo vencimento se convencionou a partir do segundo ano apos a cessão (tal como sublinhado), correspondente a essa alínea c).

3.3. A averiguação do sentido juridicamente decisivo dessa cláusula faz convocar as regras exegéticas de interpretação da declaração negocial, orientadas pelo critério geral da impressão do destinatário (art. 236º, 1) e pela exigência de «um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso» (art. 238º, 1, CCiv., em conjugação com o art. 228º, 1, do CSC, sem prejuízo de as partes terem observado forma mais solene para a cessão de quotas).
Para isso, no entanto, é necessário que estejam disponíveis para uso do intérprete um conjunto de elementos que possam ajudar a decifrar o que corresponde ao que um declaratário normal, medianamente instruído, diligente e perspicaz, colocado na posição do(s) declaratário(s) concretos no negócio, atribuiria com razoabilidade e perspicácia a essa declaração negocial, ainda que imperfeita, de pagamento do preço e correspondente vencimento de juros, sem que os intervenientes no negócio pudessem deixar de contar com esse sentido como acessível à sua compreensão. Ou destinados a, antes disso, encontrar a vontade real conhecida e aceite por ambos os contraentes (vontade comum subjectiva), de acordo com o art. 236º, 2, do CCiv. (falsa demonstrativo non nocet).
É pacífico que o intérprete-julgador terá que, se possível, levar em linha de conta as circunstâncias atendíveis para chegar ao sentido negocial decisivo – por ex., “os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as precedentes relações negociais entre as partes; os hábitos do declarante (de linguagem ou outros); os usos da prática, em matéria terminológica, ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais os especiais (próprios de certos meios ou profissões)”[1]; “a totalidade do comportamento negocial e as conexões entre as várias parcelas desse comportamento”[2]; “os modos de conduta por que posteriormente se prestou observância ao negócio concluído”[3].

3.4. No caso concreto, temos que olhar em primeiro lugar para os termos concretos com que a cláusula foi expressa e redigida.
As partes convencionaram que (i) o pagamento dos € 350.000 seria feito até 19/6/2023 (art. 279º, c), CCiv.), ao mesmo tempo que acordaram o vencimento de juros à taxa de 4% (correspondente à taxa legal supletiva para as dívidas civis[4]) a partir da data correspondente ao segundo ano após a cessão das quotas – logo, a partir de 19/6/2015.
Se foram convencionados juros a tal taxa, estamos perante juros moratórios, correspondentes à «obrigação de reparar os danos causados ao credor» (art. 804º, 1, CCiv.), «a contar do dia da constituição em mora» (art. 806º, 1, CCiv.: obrigação pecuniária).
E, se de mora se entende serem os juros, o devedor constitui-se em mora quando, por causa que lhe é imputável, a prestação não se encontra efectuada «no tempo devido»: art. 804º, 2, do CCiv.
Logo, procurando decifrar o sentido da cláusula de pagamento e juros, não merece censura que se considere, atendendo à forma como se expressou a declaração negocial das partes, que um declaratário normal, entendido em abstracto como uma pessoa medianamente diligente, razoável, esclarecida e experiente, colocado na posição do declaratário real cessionário, não pudesse contar com o entendimento de uma cláusula em que se convenciona uma obrigação de prazo certo – em 19 de Abril de 2015, dois anos depois da cessão –, com juros moratórios exigíveis a partir dessa data (o «tempo devido»), como é regra, com a contagem como taxa anual, que é própria.
           
3.5. Por outro lado, também os interesses de tutela dos credores-cedentes concorrem nesse sentido.
Note-se que o pagamento deveria ser feito no prazo máximo de dez anos após a cessão. O diferimento não significa que o montante em dívida só se tornaria exigível e deveria ser pago no fim desse prazo, pois esta compreensão não joga com a exigibilidade de juros moratórios, que indemnizam o incumprimento, a partir do momento em que se conclui o segundo ano após a cessão das quotas (o referido prazo certo fixado pelas partes: “exigibilidade forte”). Significa que o devedor está em mora até esse prazo máximo e declara-se tacitamente (art. 217º do CCiv.: «quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam»), fixando-se por acordo, com antecipação e dispensando-se interpelação admonitória superveniente, tal prazo máximo como prazo razoável (suplementar e peremptório) concedido pelo credor para ser realizado o pagamento, sob pena de incumprimento definitivo, nos termos do art. 808º, 1, do CCiv. (legitimando-se a partir daí a fase executiva ou indemnizatória)[5].
Aliás, só assim se compreende a cláusula seguinte do contrato de cessão, em que, após o decurso desse prazo de dez anos, avança uma dação em pagamento de imóveis (ou de dação “pro solvendo” com entrega desses imóveis) pelo devedor-cessionário para extinguir a obrigação definitivamente incumprida, acrescida dos juros devidos: arts. 837º/840º CCiv. – cfr. facto provado 12.
E também se compreende a antecipação desse prazo de incumprimento definitivo para momento anterior, sendo clausulado que esse momento corresponderá à data em que, no decurso do prazo desses 10 anos (e, em coerência, após o decurso do prazo de dois anos após a cessão), o devedor cessionário “fizer qualquer venda do seu património, por valor igual ou superior a quinhentos mil euros”, “sob pena de ter que entregar logo aos primeiros outorgantes a parte ou direito nos prédios acima descritos” (consulta da escritura pública constante dos autos).

3.6. Por fim, temos um comportamento ulterior (na integralidade de condutas ponderáveis) constante da factualidade assente que merece ponderação: os Autores, cedentes das quotas, não interpelaram o Réu, cessionário, em face da falta de pagamento de qualquer montante a título de juros, tal como convencionados, para pagar os juros que consideravam vencidos – cfr. facto provado 15.
Porém, como salientou o acórdão recorrido, tal falta de interpelação não revela como comportamento contraditório com o que vem de ser aferido como sentido a dar à cláusula em causa: “O pagamento da terceira tranche constitui uma obrigação sujeita a prazo certo, pelo que a mora no respectivo cumprimento ocorre independentemente de interpelação (al. a) do n.º 2 do art. 805.º do Cod. Civil)”.

3.7. No mais, adere-se à restante fundamentação do acórdão recorrido, para o qual se remete, nos termos habilitados pelo art. 663º, 5, 2ª parte, ex vi arts. 679º, do CPC.

           

Conclui-se, pois, pela improcedência das Conclusões do Recorrente.

III) DECISÃO

Em conformidade, julga-se improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido no que foi julgado como “2.ª questão solvenda” e decidido no segundo segmento do respectivo dispositivo.

Custas da revista pelo Recorrente.

STJ/Lisboa, 15 de Março de 2023

Ricardo Costa (Relator)

António Barateiro Martins

Luís Espírito Santo




SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).


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[1] V. MANUEL DE ANDRADE, Teoria geral da relação jurídica, vol. II, Facto jurídico, em especial Negócio Jurídico, Almedina, Coimbra, reimp. 1992, nt. 1 – pág. 313.
[2] MARIA RAQUEL REI, “Artigo 236º”, Código Civil comentado, I, Parte geral (artigos 1.º a 396.º), coord.: António Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 695.
[3] RUI DE ALARCÃO, “Interpretação e integração dos negócios jurídicos. Anteprojecto para o novo Código Civil”, BMJ n.º 84, 1959, pág. 334, referindo-se à doutrina italiana de Emilio Betti, e seguido por CARLOS MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed. por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pág. 447, assim como por CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Contratos, IV, Funções. Circunstâncias. Interpretação, Almedina, Coimbra, 2014 (reimp.: 2017),  pág. 283.
[4] V. arts. 806º, 2, e 559º, 1, do CCiv., e art. 1º da Portaria 291/2003, de 8 de Abril («A taxa anual dos juros legais e dos estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo é fixada em 4%.»).
[5] V., elucidativos, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO/ANTÓNO BARRETO MENEZES CORDEIRO, “Artigo 805º”, págs. 1036-1037, 1037-1038, “Artigo 808º”, pág. 1044 (“o ‘prazo razoável’ pode resultar de uma declaração unilateral do credor ou, ainda de uma declaração do próprio devedor ou de um acordo entre as partes, expresso ou tácito”: sublinhado nosso), Código Civil comentado, I, Parte geral (artigos 1.º a 396.º), coord.: António Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 1044.