Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4436/03.7TBALM.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: USUCAPIÃO
POSSE
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
TRADIÇÃO DA COISA
PROMITENTE-COMPRADOR
ANIMUS POSSIDENDI
DIREITO DE PROPRIEDADE
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
REGISTO PREDIAL
HIPOTECA
OPONIBILIDADE
EXTINÇÃO
Data do Acordão: 09/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :

I - A usucapião depende de dois elementos essenciais: a posse, por um lado, e o decurso de certo lapso de tempo, por outro, o qual varia conforme a coisa seja móvel ou imóvel.
II - A posse boa para usucapião é somente a que for pública e pacífica, ou seja, a exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados e adquirida sem coacção física ou moral, nos termos do art. 255.º do CC (cf. arts. 1261.º, 1262.º e 1297.º do CC).
III - Os restantes caracteres da posse – o ser de boa ou má fé, titulada ou não e registada ou não – influem no prazo necessário para a aquisição por usucapião, mas não na aquisição propriamente dita.
IV - Iniciando-se a posse a partir da tradição material operada na sequência de um contrato-promessa, dum modo geral o promitente-comprador deve ser havido como um mero detentor ou possuidor precário, nos termos do art. 1253.º, al. c), do CC, uma vez que possui em nome do promitente-vendedor até à realização do contrato definitivo.
V - Por si só, o contrato-promessa não é susceptível de transmitir para o promitente-comprador a posse, já que o que normalmente sucede é o contrato-promessa transmitir apenas o elemento material (corpus), mas não o elemento psicológico (animus) da posse verdadeira e própria.
VI - Em determinadas hipóteses, contudo, a posse exercida pelo promitente-comprador que detém a coisa é uma posse boa para usucapião e susceptível, portanto, de levar à aquisição do direito de propriedade, por se mostrar em concreto revestida do mencionado elemento psicológico, isto é, da intenção de agir como dono da coisa.
VII - Considerando que, na sequência do contrato-promessa, o promitente-vendedor entregou aos réus a fracção autónoma que prometeu vender-lhes, para que a utilizassem como coisa sua, e que os réus praticam desde Outubro de 1977, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, actos demonstrativos, no seu conjunto, de que se consideram (e são considerados) donos da fracção, tendo pago as despesas de reparação e manutenção do imóvel, as quotas do condomínio e arrendado a fracção a sucessivas pessoas, somente a ausência da licença de habitação tendo impedido a realização do contrato prometido, verifica-se que os réus adquiriram por usucapião o imóvel em causa.
VIII - O registo cede perante a aquisição por usucapião, dado que esta inutiliza por si as situações registrais existentes, não sendo prejudicada pelas vicissitudes de que neste aspecto o imóvel tenha sido objecto.
IX - A hipoteca é uma garantia especial das obrigações (e, simultaneamente, um direito real de aquisição, logo, oponível erga omnes) que a lei só considera validamente constituído após o registo nos livros da conservatória – art. 687.º do CC; a sua extinção, por consequência, não pode ser ordenada à inteira revelia do credor hipotecário, que necessariamente terá de ser convencido, em acção contra ele (também) movida, que à data da constituição da hipoteca o imóvel não pertencia ao seu devedor, mas a terceiro.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Resumo dos termos essenciais da causa e do recurso

AA propôs uma acção ordinária contra BB e CC, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia global de 31.314,78 €.

Em resumo, alegou que em 10/7/87, intitulando-se falsamente senhorios, os réus deram-lhe de arrendamento para habitação a fracção autónoma que identificam, como se esta lhes pertencesse, mantendo-se o arrendamento durante dezasseis anos. A autora pagou as rendas acordadas, que os réus fizeram suas. Entretanto, foi por eles demandada numa acção de despejo, o que a obrigou a gastar quantias em honorários de advogado e em deslocações ao tribunal e deu causa a danos morais que descreve e quantifica em 25.000,00 €.

Os réus contestaram e deduziram reconvenção, pedindo que se reconheça o seu direito de propriedade sobre a fracção ajuizada e se declare nula a respectiva compra feita a terceiro pela autora - que deverá ser condenada a reconhecer que se mantém válido o contrato de arrendamento - ordenando-se ainda o cancelamento de todos os registos por ela efectuados na conservatória do registo predial. Para o caso de assim não se entender, pediram que se reconheça o seu direito de retenção sobre o imóvel até que sejam pagas as quantias relativas ao incumprimento do contrato promessa relativo à fracção, no montante de 8.649,45 €.

Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os réus do pedido, e parcialmente procedente a reconvenção, nos seguintes termos:

1) Declarou adquirido por usucapião o direito de propriedade a favor dos réus/reconvintes sobre a fracção designada pela letra “M”, correspondente ao 2° andar direito-frente do prédio urbano, situado no n°... da Rua ............, Q........, Sobreda da Caparica, concelho de Almada, descrito na CRP de Almada com o n° 0000000 do Livro B - sessenta e sete, ordenado o cancelamento da inscrição da propriedade a favor da autora/reconvinda pela Ap. 0000000;

2) Declarou nulo, nos termos do art° 892° do Código Civil [1], o contrato de compra e venda outorgado entre a autora e DD, Ldª, por escritura pública de 27/1/03, realizada no 2° Cartório Notarial de Almada;

3) Condenou a autora a reconhecer o direito de propriedade dos réus sobre a fracção referida em 1) e a manutenção do contrato de arrendamento que a teve por objecto, celebrado entre autora e réu.

Ambas as partes apelaram.

Por maioria, a Relação concedeu provimento parcial ao recurso da autora, julgando a reconvenção improcedente, e negou provimento ao dos réus.

Mantendo-se inconformados, estes recorreram para o STJ, sustentando a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que, além de repôr a sentença da 1ª instância, ordene ainda o cancelamento de todos os registos incompatíveis com o registo da aquisição dos reconvintes, designadamente o da hipoteca que a autora constituiu.

Para o efeito formularam as seguintes – e resumidas – conclusões úteis:

1ª) Os factos provados caracterizam a posse dos reconvintes com todos os caracteres necessários à aquisição do imóvel ajuizado por via da usucapião;

2ª) Essa posse foi-lhes conferida, não pelo contrato promessa em si mesmo considerado, mas pela entrega das chaves da fracção e subsequente actuação sobre ela ao longo de mais de vinte anos como se fossem seus donos, à vista de toda a gente, sem interrupção e sem oposição de ninguém;

3ª) O acto de transmissão e registo do imóvel a favor de terceiros não transforma a posse dos recorrentes em posse precária, nem põe em causa a usucapião, impedindo a sua eficácia;

4ª) A procedência do presente recurso deverá ter por consequência o cancelamento da hipoteca registada, uma vez que a autora carecia de legitimidade para alienar a fracção e decorre da lei que só quem puder alienar o bem tem legitimidade para o hipotecar;

5ª) Tal hipoteca é nula porque não foi constituída validamente;

6ª) Sem prejuízo das normas processuais que possam sobrepôr-se caso a revista proceda, os factos constantes da contestação/reconvenção sob os artºs 10º, 11º, 15º, 19º, 27º, 30º, 53º e 55º a 59º têm interesse para a boa decisão da causa, pois não são conclusivos ou matéria de direito, antes respeitando a matéria de facto necessária á boa decisão da causa.

Tudo visto, cumpre decidir.

II. Fundamentação

a) Matéria de Facto

A Relação considerou provados os seguintes factos:

1) Por escrito datado de 10/7/87 BB, como senhorio, declarou dar de arrendamento a AA, que por sua vez declarou aceitar mediante a renda de 12.000$00, a fracção autónoma designada pela letra "00, correspondente ao .......... - Frente, do prédio sito na Rua A................, n° ..., na Quinta ....., Sobreda da Caparica (A);

2) Os réus receberam rendas no valor de 4.818,39 € (B);

3) Pela Ap. 000000000, encontra-se registada a favor de “DD, Ldª, a propriedade da fracção “M”, por compra a EE e sua mulher FF;

4) Pela Ap. 0000000000, encontra-se registada a favor de AA a propriedade da fracção “M” por compra a “DD, Ldª (D);

5) No dia 7/1/98 BB e sua mulher CC intentaram acção de despejo contra AA, a qual correu termos no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Almada com o n° 0000000 (E);

6) Em 8/11/77 foi outorgada escritura de compra e venda de duas fracções, isto é, “J” e “H”, não tendo sido feita a escritura da fracção “M” (F);

7) Os réus casaram um com o outro no dia 26/4/79 (G);

8) Na acção a que se alude em 5) foi proferida sentença que a julgou procedente e declarou resolvido o contrato de arrendamento tendo por objecto a fracção “M”, condenando a aqui autora a pagar aos aqui réus a quantia correspondente às rendas vencidas desde 12/1/93 até à propositura da acção e as vincendas até à efectiva entrega do locado. Revogando em parte em parte esta decisão, a Relação declarou a caducidade do direito dos aqui réus ver resolvido o contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas: consequentemente, não decretou o despejo  e condenou a ora autora a pagar aos ora réus a quantia correspondente às rendas vencidas desde 1/2/93 até à data da propositura da acção e as vincendas até à cessação dos efeitos do contrato de locação, bem como reconhecer-lhes o direito de fazerem seu o montante em euros correspondente a 234.000$00. Por acórdão de 13/5/03 que transitou em julgado, o STJ confirmou a decisão da Relação (H);

9) O valor a que se alude em 1) não sofreu qualquer alteração (I);

10) A autora, quando celebrou o contrato de arrendamento, ficou convencida de que o réu era o dono daquela fracção (1°);

11) Com a acção aludida em 5) a autora teve de pagar ao seu mandatário a título de honorários a quantia de € 1.496,39  (3°);

12) A autora ficou angustiada perante a eventualidade de ser despejada, enquanto a acção de despejo esteve pendente (4°);

13) Em 16/10/73 o réu, BB, declarou prometer comprar à firma “GG, Ldª”, que por sua vez declarou prometer vender, entre outras, a fracção autónoma identificada em 1) - (5°);

14) Na data da escritura a que se alude em 6) a promitente vendedora entregou ao réu as chaves da fracção “M” - (6°);

15) Para que o réu a utilizasse como coisa sua (7°);

16) Tendo em vista a outorga da futura escritura, o réu passou a agir com a convicção de ser o dono da fracção “M” – (8°);

17) Desde Outubro de 1973 que o réu tem pago as despesas com as reparações e manutenção da fracção “M”, bem como as quotas de condomínio, no valor de 1.237,31 € (9°);

18) A partir da data referida em 6), e tendo em vista a outorga da futura escritura, a ré passou a agir com a convicção de ser dona da fracção “M” (10°);

19) Os réus deram de arrendamento a fracção "M" a sucessivas pessoas e receberam as respectivas rendas (11°);

20) Praticam tais actos há mais de vinte anos (12°);

21) À vista de toda a gente e também da autora (13°);

22) Sem interrupção e oposição de ninguém (14°);

23) No acordo a que se alude em 13) o réu entregou à promitente vendedora a quantia de 500.000$00, correspondente a quatro fracções (15°);

24) O acordo referido em 1) foi efectuado através de uma terceira pessoa, que se intitulou procuradora do réu, não tendo a autora tido qualquer contacto com aquele (16°);

25) A autora sempre esteve convencida que o réu era o dono da fracção (17°).

b) Matéria de Direito

No presente recurso apenas está em causa a matéria respeitante ao pedido reconvencional, que a 1ª instância acolheu com excepção da parte relativa ao cancelamento da hipoteca registada sobre o imóvel ajuizado e a Relação rejeitou na totalidade, julgando-o improcedente; no que se refere ao pedido da autora (acção), transitou em julgado o decidido logo na 1ª instância ao declarar-se a sua total improcedência.

Quanto à questão da hipoteca, considerou-se não haver “fundamento para ordenar o cancelamento da hipoteca registada para garantia de um contrato de mútuo cuja validade não foi objecto de apreciação nos presentes autos, nem a nulidade do contrato de compra e venda acarreta como consequência directa a nulidade do contrato de mútuo outorgado entre a autora e a Caixa Económica Montepio Geral. Pretendendo obter o cancelamento de tal registo deverão os réus intentar outra acção que vise concretamente a apreciação desse facto inscrito”. Este segmento da sentença não foi reapreciado pela Relação face à procedência parcial da reconvenção decretada no acórdão recorrido, que ponderou essencialmente o seguinte para justificar a sua rejeição na parte restante:

“....

Nos termos do artº 1290º do C. Civil os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título. A inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.

O acto de transmissão, pelo promitente vendedor, do direito de propriedade para a sociedade Capaul, que procedeu ao registo da propriedade a seu favor em 1985, demonstra que os Réus não exerciam sobre a fracção poderes de facto correspondentes ao direito de propriedade, sendo apenas possuidores precários, detendo a fracção e fruindo-a por mera tolerância do dono (art. 1253º do C. Civil), que embora lhes tenha entregue a fracção para fazerem dela coisa sua, antes de ter decorrido o prazo de usucapião continuou a exercer os poderes sobre a fracção correspondentes ao direito de propriedade.

Nos termos do artº 1290º do C. Civil os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse.

Assim, propriedade da fracção não foi adquirida pelos Réus por usucapião”.

Logicamente, o julgamento da presente revista terá de se iniciar por esta última parte, uma vez que da solução que lhe for dada depende o conhecimento da primeira questão a que aludimos (cancelamento do registo da hipoteca).

E importa desde já dizer que não podemos acompanhar a posição adoptada pela Relação.

O problema consiste em saber se, sim ou não, os réus adquiriram por usucapião o direito de propriedade sobre a fracção autónoma ajuizada. Nos termos do artº 1287º do CC, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação. Nisto consiste a usucapião, cuja ocorrência, assim, depende de dois elementos essenciais: a posse, por um lado, e o decurso de certo lapso de tempo, por outro, o qual varia conforme a coisa seja móvel ou imóvel. A posse boa para usucapião é somente a que for pública e pacífica, ou seja, a exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados e adquirida sem coacção física ou moral, nos termos do artº 255º - cfr. artºs 1261º, 1262º e 1297º. Os restantes caracteres da posse - o ser de boa ou má fé, titulada ou não e registada ou não - influem no prazo necessário para a aquisição por usucapião, mas não na aquisição propriamente dita.

Ora, olhando para os factos apurados, designadamente para os relatados sob os números 13) a 25), não temos qualquer dúvida em afirmar que os réus adquiriram por usucapião o imóvel identificado no processo: isto porque exerceram sobre ele posse pública e pacífica, nos termos acima definidos e durante mais de vinte anos ininterruptos até à propositura desta acção, já que o promitente vendedor entregou-lhes a fracção para que a utilizassem como coisa sua, o que efectivamente veio a suceder desde 1977. Decerto, a posse iniciou-se a partir da tradição material operada na sequência de um contrato promessa, sendo exacto que em tal caso, e dum modo geral, o promitente comprador deve ser havido como um mero detentor ou possuidor precário, nos termos do artº 1253º, c), uma vez que possui em nome do promitente vendedor até à realização do contrato definitivo; por si só, o contrato promessa não é susceptível de transmitir para o promitente comprador a posse, já que, consistindo esta no “poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real” (artº 1251º), o que normalmente sucede é o contrato promessa transmitir apenas o elemento material (corpus), mas não o elemento psicológico (animus) da posse verdadeira e própria. Simplesmente, há muito que vem sendo aceite pela doutrina e pela jurisprudência que em determinadas hipóteses a posse exercida pelo promitente comprador que detém a coisa é uma posse boa para usucapião e susceptível, portanto, de levar à aquisição do direito de propriedade, justamente por se mostrar em concreto revestida do mencionado elemento psicológico, isto é, da intenção de agir como dono da coisa (neste sentido: Antunes Varela, RLJ Ano 124º, pág. 348; Vaz Serra, RLJ Ano 109º, pág. 314; Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, 11ª edição, pág. 231, nota 55, e acórdãos do STJ de 9/9/08 (Pº 08A1988), de 12/3/09 (Pº 09A0265) e 5/6/12 (Pº 4944/04.2TVPRT.P1.S1). E é essa a situação que se verifica no caso sub judice, pois os réus praticam desde Outubro de 1977, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, os actos que se provaram, demonstrativos, no seu conjunto, de que se consideram (e são considerados) donos da fracção ajuizada: tal a qualificação jurídica que merece o facto de nessa data as chaves da fracção terem sido entregues pela promitente compradora ao réu a fim de a utilizar como coisa sua e de a partir de Outubro de 1973 terem pago as despesas de reparação e manutenção do imóvel, as quotas do condomínio e arrendado a fracção a sucessivas pessoas, tudo aliado à circunstância, de igual modo provada, de  a autora sempre ter estado convencida de que o réu era o respectivo dono, bem como ao facto, reputado assente pela julgadora (cfr. a fundamentação das respostas à base instrutória - fls 427), de somente “razões burocráticas” ausência da licença de habitação terem impedido a realização do contrato prometido.

Contrariamente ao que diz a Relação, não vem ao caso apelar para o artº 1290º, segundo o qual os possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse. É que, na verdade, a posse exercida pelos réus na sequência da tradição material do imóvel foi desde o seu início, como se vê dos factos salientados, uma posse na acepção rigorosa do termo - em nome próprio, com corpus e com animus, tal como o artº 1251º a define; uma posse, se assim nos podemos exprimir, logo destacada ou autonomizada do contrato promessa que esteve na sua origem e que, por isso mesmo, pôde conduzir à aquisição originária do direito de propriedade através da usucapião; originária, isto é, sem qualquer laço ou relação com posse ou posses anteriores e assente exclusivamente na natureza intrínseca dos poderes efectivamente exercidos, bem como no decurso do lapso de tempo legalmente imposto. Por outro lado, como diz o artº 1265º, a inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía, ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse. É manifesto, todavia, que no caso presente não está em causa nenhuma destas situações, visto que se trata tão somente de qualificar a posse exercida pelos réus, decidindo se conduziu à aquisição do domínio por usucapião; e é certo que só a firma GG, Ldª, que foi quem em 1973 prometeu vender aos réus a fracção ajuizada, não a autora (facto 13), poderia ser alvo, precisamente enquanto promitente vendedora, do acto ou actos de oposição praticados pelos réus, se porventura fosse isso - mas não é, como já se disse - que estivesse em questão.

Portanto, e em conclusão, mesmo que se considere a posse exercida pelos réus de má fé em virtude de não ter sido ilidida a presunção estabelecida pelo artº 1260º, nº 2, é absolutamente certo que pelo menos em Outubro de 1997 - artº 1296º - se tornaram donos do imóvel arrendado à autora, de nada valendo a esta ter inscrito em Novembro de 2002 a aquisição que fez a Capaul, Ldª (facto 4), já que o registo cede perante a aquisição por usucapião; como é geralmente aceite por toda a doutrina e jurisprudência, a usucapião inutiliza por si as situações registrais existentes, não sendo prejudicada pelas vicissitudes de que neste aspecto o imóvel tenha sido objecto (cfr, por exemplo, os acórdãos deste Tribunal de 4/12/03 e 4/12/05, nos Procºs 3448/03 e 4787/05). No nosso direito, só excepcionalmente o registo predial assume carácter constitutivo (é o caso da hipoteca). A presunção decorrente do registo não prevalece sobre a decorrente de posse anterior (art.º 1268º do CC); e se esta, mesmo que não registada, se revestir das características que se acima puseram em relevo, demonstrando a parte interessada que exerce sobre a coisa imóvel os poderes de facto integradores do “corpus” da posse com o “animus” correspondente ao direito de propriedade, sem violência e à vista de qualquer possível interessado, segue-se que ocorre a aquisição do direito de propriedade no prazo máximo de vinte anos. No ordenamento jurídico português a prevalência é a da usucapião sobre o registo, como tem sido repetidamente enfatizado pela jurisprudência e pela doutrina. O Prof. Oliveira Ascensão, a este propósito, escreveu o seguinte (Direitos Reais, 5ª edição, pág. 382): “É preciso não esquecer que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião. Esta em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais; vale por si. Por isso, o que se fiou no registo passa à frente dos títulos substantivos existentes mas nada pode contra a usucapião”.

Nesta parte, por consequência, procedem as conclusões da revista, impondo-se a revogação do acórdão recorrido e a reposição da sentença.

Já no que respeita à questão da hipoteca registada sobre a fracção discutida no presente processo entende-se que o recurso não pode proceder, mostrando-se acertada, também neste ponto, a decisão da 1ª instância e a respectiva fundamentação. É certo que, invocada a usucapião, os seus efeitos retroagem à data do início da posse – artº 1288º; todavia, a hipoteca é uma garantia especial das obrigações (e, simultaneamente, um direito real de aquisição, logo, oponível erga omnes) que a lei só considera validamente constituído após o registo nos livros da conservatória – artº 687º; a sua extinção, por consequência, não pode ser ordenada à inteira revelia do credor hipotecário, que necessariamente terá de ser convencido em acção contra ele (também) movida que à data da constituição da hipoteca o imóvel não pertencia ao seu devedor, mas a terceiro.

III. Decisão

Nos termos expostos acorda-se em conceder parcialmente a revista pedida pelos réus, revogando-se o acórdão recorrido para que fique a subsistir a sentença da 1ª instância.

 

Lisboa, 11 de Setembro de 2012

Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira

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[1] Salvo indicação em contrário, pertencerão a este diploma legal todos os artigos mencionados no texto.