Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
96/14.8T8VLG.P1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: LEONOR CRUZ RODRIGUES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DO RECORRENTE
PROVA GRAVADA
Data do Acordão: 02/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :

I – O ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 640º do Código de Processo Civil refere-se aos meios probatórios invocados como fundamento do recurso que tenham sido gravados conforme dispõe o nº 1, al. b), do mesmo preceito.

II – Invocados como fundamento do recurso meios probatórios que não foram gravados, nos quais se alicerçou e fundou a convicção do julgador para não dar como integralmente provada a factualidade reconhecidamente afirmada por testemunhas cujos depoimentos foram gravados, tal disposição não é aplicável.

Decisão Texto Integral:

Proc.º nº 96/14.8T8VLG.P1.S1

4ª Secção

LCR/JG/CM

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1 - Relatório (parcialmente elaborado com base nos Relatórios da sentença e do acórdão recorrido)

1. Os presentes autos de acção especial de acidente de trabalho iniciaram-se na sequência de “Participação de Acidente de Trabalho” comunicando um acidente, ocorrido no dia 28.8.2014, em ......, do qual resultou a morte do trabalhador, identificando como sinistrado AA e entidade patronal “EYP – Construções S.A.”.

2. Na fase conciliatória do processo, estando presentes advogada em representação da filha do sinistrado, BB, a filha do sinistrado CC, representantes do Fundo de Acidentes de Trabalho, da Entidade Seguradora “Liberty Seguros S.A.” e da entidade patronal “EYP – Construções, S.A.”, realizou-se a tentativa de conciliação a que alude o art. 108º do C.P.T, vindo a mesma a frustrar-se pelo facto de a seguradora, aceitando o acidente como de trabalho, bem como o nexo causal entre o mesmo e a morte do sinistrado e a transferência para si da responsabilidade pelo salário mensal auferido pelo sinistrado, não aceitar “pagar qualquer quantia seja a que título for, nos termos do artº 14º, nº 1, al. a), da Lei nº 98/09, de 4.9., nem aos beneficiários do sinistrado em título nem ao FAT”.
3. No auto de não conciliação foi consignado, além do mais, que o Ministério Público propôs o seguinte acordo:

“1. A filha BB e CC reconhecem que, em face do disposto no Artº 60 da Lei nº 98/09, de 04/09, não podem ser consideradas beneficiárias legais do malogrado sinistrado, seu pai, porquanto a filha BB contava já à data da morte do mesmo com 36 anos e a CC contava já com 22 anos e cinco meses de idade e não frequentava, esta, qualquer estabelecimento de ensino superior ou equiparado; e, Assim nada reclamam, ao abrigo da Lei 98/09, de 04/09, tando da Seguradora como da Entidade Patronal, por tal Lei, designadamente aquele normativo acima citado, não lhe conferir direito a qualquer prestação”.

Mais se consignou que, “Dada a palavra à Ilustre Mandatária da filha BB pelas mesmas foi dito: Aceita não ser beneficiária legal, nos termos propostos, pelo que nada reclama”, e que “Dada a palavra à filha CC pela mesma foi dito: Aceita não ser beneficiária legal, nos termos propostos, pelo que nada reclama”.

4. Frustrada a conciliação,  o FUNDO DE ACIDENTES DE TRABALHO intentou a presente acção especial emergente de acidente de trabalho contra "LIBERTY SEGUROS, COMPAÑIA DE SEGUROS Y REASEGUROS, S.A. - SUCURSAL EM PORTUGAL", com sede em Lisboa, pedindo que seja declarado como de trabalho o acidente sofrido por AA, e a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 45 297,00€.

Alegou para tal, em síntese, que AA foi vítima de um acidente de trabalho ocorrido no dia 28 de Agosto de 2014, quando se encontrava ao serviço da sua entidade empregadora numa obra que esta levava a cabo em ......, de que resultou a morte do mesmo.

À data da sua morte, o AA encontrava-se divorciado e não tinha familiares com direito a pensão por morte.

A empregadora do falecido AA tinha a responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a Ré.

5.  A Ré apresentou contestação, alegando que o acidente que vitimou o AA ocorreu por negligência grosseira deste e por violação das normas de segurança, pelo que não assume a responsabilidade pelo sinistro.

Concluiu, pedindo a improcedência da acção.

6. O Autor respondeu, impugnando a factualidade alegada pela Ré e concluindo como na petição inicial.

7. Na sequência de requerimento apresentado por BB, em representação de sua filha menor, DD, pedindo a declaração de nulidade de todo o processado subsequente à tentativa de conciliação  o Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 27º alínea a) do Código de Processo do Trabalho, determinou oficiosamente  a intervenção principal provocada de DD, menor de idade, representada por sua mãe, BB.
8. A Chamada apresentou petição inicial, pedindo que seja declarado como de trabalho o acidente sofrido por AA, e a condenação da Ré a pagar-lhe uma pensão anual, de valor igual a 15% da retribuição anual do Sinistrado, que à data do sinistro era de 2 264,85€ e na presente data é de 2 273,91€, actualizável anualmente nos termos legais, até que a Chamada perfaça 18 anos; ou até que perfaça 22 anos, enquanto frequentar o ensino secundário ou curso equiparado; ou perfaça 25 anos, enquanto frequentar curso de nível superior ou equiparado.
Alegou para tal, em síntese, ser neta do falecido AA. Este, à data da sua morte, quando se encontrava em Portugal residia na casa da sua filha BB, mãe da Chamada, em comunhão de mesa e habitação também com esta última e contribuindo para o sustento da mesma.

Mais alegou que o seu avô não teve qualquer culpa no acidente que o vitimou, pelo que não existe qualquer causa de exclusão da responsabilidade da Ré.
9. A Ré contestou, reiterando integralmente o que já havia alegado na primeira contestação.

Concluiu, pedindo a improcedência da acção, com a sua consequente absolvição do pedido formulado pela Chamada.

10. A Chamada respondeu à contestação da Ré, impugnando parcialmente os factos por esta alegados e concluindo como na sua petição inicial.

11. Proferido despacho saneador, fixada a base instrutória e realizada a audiência de discussão e julgamento, em 13.12.2019 foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a Ré dos pedidos formulados pelo Fundo de Acidentes de Trabalho e pela Chamada, tendo a mesma o seguinte dispositivo:
“Por tudo o exposto, é meu entendimento firme que tem de se concluir que o acidente se ficou a dever, em exclusivo, a negligência grosseira por parte do falecido Sinistrado, nos termos e para os fins constantes do artigo 14º nº 1 b) da Lei nº 98/2009, de 04/09.
Assim sendo, encontra-se verificado um dos pressupostos previstos na lei para a descaracterização do acidente, razão pela qual é de excluir a responsabilidade da Ré pela reparação do sinistro.
Em consequência, apenas resta julgar a improcedência integral da acção, com a consequente absolvição da Ré dos pedidos formulados (caindo por terra a necessidade de apreciar e decidir quaisquer outras questões)”.

12. Inconformada com a decisão dela interpôs recurso a Chamada DD impugnando a decisão sobre a matéria de facto, e de direito, sustentando não haver prova de que o acidente foi consequência exclusiva do comportamento do sinistrado, não se encontrando descaracterizado.

13. A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

14. Por acórdão de 18 de Maio de 2020, o Tribunal da Relação, apreciando o recurso da decisão sobre a matéria de facto quanto à resposta, impugnada, dada aos quesitos 1º, 2º , 3º, 7º, 9º e 10º, julgou-o procedente, considerando-os não provados. Quanto ao quesito 12º o Tribunal da Relação rejeitou a impugnação, com fundamento, em que a recorrente não deu cumprimento ao ónus imposto pelo nº 2, al. a), do artigo 640º do Código de Processo Civil, da indicação com exactidão das passagens da gravação em que funda o seu recurso.

Seguidamente, apreciando a questão da descaracterização do acidente foi entendimento do acórdão recorrido não ser possível concluir que o mesmo se encontra descaracterizado, concluindo pela existência de um acidente de trabalho indemnizável, tendo entendido, contudo, que a recorrente não é titular do direito a pensão, por se não ter provado que à data da morte do sinistrado se verificassem os requisitos previstos na al. e) do nº 1 do artº 57º da Lei nº 98/2009, de 4.9., vindo a final a julgar improcedente o recurso, condenando nas custas a recorrente.

 15. Deste acórdão interpõe a Chamada revista, insurgindo-se contra a rejeição da impugnação da decisão em matéria de facto no que respeita ao quesito 12º, invocando a violação do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 640ª do Código de Processo Civil, e requerendo a reforma da decisão quanto a custas, por violação do artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, formulando a final as seguintes conclusões:

“A. A impugnação, em sede de recurso de apelação, de resposta a um quesito ancorada na discordância da apreciação de meios de prova não gravados, invocados pelo Tribunal de primeira instância para fundamentar a decisão (e para não relevar a prova testemunhal produzida quanto a tal quesito que qualificara do seguinte modo: Todas estas testemunhas, de forma espontânea, mecânica e automática, confirmaram integralmente a factualidade em causa) não carece de cumprir o ónus previsto no número 2, do artigo 640.º do CPC, visto que a Recorrente não coloca em crise a apreciação da prova testemunhal.
B. No caso em apreço, a Recorrente, ao impugnar, em sede de alegação de recurso de apelação, a resposta dada pelo Tribunal de Primeira Instância ao Quesito 12.º da Base Instrutória:
a) identifica claramente os meios de prova que foram – do seu ponto de vista – erroneamente considerados e apreciados, e que conduziram à decisão de que discorda e que impugna: as declarações da mãe da Chamada, nos serviços do Ministério Público do Trabalho ......, a 12 de Novembro de 2014;
b) invoca outros meios de prova que deveriam ter sido analisados de forma concatenada com aquele primeiro depoimento, de modo a retirar do mesmo outra leitura que não a que o Tribunal de Primeira Instância concretizou: ou seja, as declarações da mãe da Chamada prestadas nos Serviços do Ministério Público do Juízo do Trabalho ..... e as declarações da irmã da mãe da Chamada, também a 18 de Março de 2015, nos Serviços do Ministério Público do Juízo do Trabalho .....;
c) Acompanha a apreciação feita pelo Tribunal de Primeira instância relativamente à prova testemunhal produzida quanto a esta quesito, ou seja, Todas estas testemunhas, de forma espontânea, mecânica e automática, confirmaram integralmente a factualidade em causa. (negrito e sublinhado nossos),

Pelo que, cumpre na íntegra o disposto no artigo 640.º, número 1 do CPC, não lhe sendo aplicável o disposto no número 2 do mesmo artigo.

C. Não estando a Recorrente obrigada a cumprir o disposto no número 2 do artigo 640.º do CPC, deveria o Tribunal da Relação .... ter apreciado a apelação da Recorrente relativamente à impugnação da resposta da primeira instância quanto ao quesito da Base Instrutória.

D. Não o tendo feito, violou o Tribunal a quo o disposto no artigo 640.º, número 1 e número 2 do Código de Processo Civil.

E. Pelo que se requer seja ordenada a baixa do processo ao Tribunal da Relação ......, para que o mesmo aprecie a impugnação da resposta ao quesito 12.º, e seja proferido Acórdão em conformidade com essa apreciação.

Sem prescindir,

F. Deve ser condenada no pagamento das custas do recurso de apelação a Ré Seguradora que, na sequência do mesmo, saia vencida, não porque a Recorrente tenha obtido procedência total do seu recurso, mas porque, da procedência parcial do mesmo resulta a revogação da decisão que havia descaracterizado o acidente de trabalho, e faz emergir a responsabilidade daquela no pagamento ao FAT da quantia prevista no artigo 63.º da Lei dos Acidentes de Trabalho.

G. Pelo que se requer a reforma do acórdão quanto a custas, nele cabendo a responsabilização da Ré Seguradora.

H. Ao não ter responsabilizado a Ré Seguradora pelo pagamento de custas, violou o Tribunal a quo o disposto no artigo 527.º, número 1 e número 2 do Código de Processo Civil”.

16. A Ré apresentou contra-alegações, nas quais, sem formular conclusões, invoca que ao abrigo do princípio da dupla conforme, uma vez que o Tribunal da Relação “confirmou a parte da sentença, leia-se matéria de facto, que fundamenta a absolvição da recorrida” o recurso não é admissível e pugna pela manutenção da decisão recorrida, concluindo a final da forma que segue:
“Excelentíssimos Senhores Doutores Juízes Conselheiros, a censura da recorrente ao Douto Acórdão do Tribunal da Relação ...... não merece as censuras que constam da respectiva motivação do recurso de revista.
Nem quanto à questão da alteração da resposta dada ao quesito 12°, nem tão pouco quanto à questão da fixação das custas, que, aliás, atendendo à parte decisória do Douto Acórdão em recurso, não poderia ser outra.
As conclusões do recurso não podem proceder, quer do ponto de vista formal, quer do ponto de vista material, ou substantivo.

Deverão, assim, ser julgadas improcedentes por não provadas as 8 conclusões do recurso de revista apresentado pela recorrente chamada, que representam, no geral, uma mera reprodução das alegações precedentes à conclusões”.

17. Entretanto, notificado do acórdão recorrido, o Autor Fundo de Acidentes de Trabalho arguiu a nulidade do mesmo, por omissão de pronúncia, pugnando pela condenação da Ré “Liberty , S.A.” a liquidar-lhe a quantia de € 45 297,00, ou, subsidiariamente, que fosse ordenada a baixa do processo à 1ª instância para apreciação do pedido por si formulado, face à alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, vindo o Tribunal da Relação, após resposta da Ré, por acórdão de 21.20.1010, apreciando a nulidade arguida, a decidir não conhecer da mesma, por entender que não podia ser arguida perante aquele tribunal pelo FAT que não interpôs recurso do acórdão recorrido, e decidindo não ser oportuno conhecer do pedido do FAT, da baixa do processo à 1ª instância para conhecimento do pedido que formulou na acção, antes de ser conhecida a decisão do recurso de revista.

18.  Cumprido o disposto no artº 87º, nº 3, do C.P.T., a Exma. Procuradora-Geral-Adjunta emitiu douto parecer no sentido da procedência da revista, parecer que, tendo sido notificado às partes, foi objeto de resposta pela Ré/recorrida.

Admitido o recurso com o adequado efeito e regime de subida, cumpre proferir decisão quanto ao seu mérito.

II

2. Delimitação objectiva do recurso

19. Delimitado o objecto do recurso pelas questões suscitadas pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nº 3, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação das que são de conhecimento oficioso, (artigo 608º, nº 2 do CPC), as questões jurídicas trazidas à apreciação deste Supremo Tribunal são as de saber se a Recorrente cumpriu os ónus estabelecidos no artigo 640º do Código de Processo Civil para a impugnação da matéria de facto e a da reforma do acórdão quanto a custas, que se declina em saber se é a recorrente a responsável exclusiva pelas custas da apelação, suscitando-se previamente a questão da admissibilidade do recurso aflorada pela Recorrida. 

III

3. Fundamentação de facto

20. O acórdão recorrido considerou provada a seguinte factualidade:

a) No dia 28 de Agosto de 2014 AA exercia funções inerentes à categoria profissional de “......” para a sociedade “EYP - Construções, SA”, sob as ordens, direcção e fiscalização desta, numa obra sita em ......, ....... (A)

b) O referido AA auferia então a retribuição anual global de 15 099,00€. (B)

c) Na data mencionada em a), a responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho do AA encontrava-se transferida da sua entidade empregadora para a 1ª Ré, através de contrato de seguro titulado pela apólice nº .......... (C)

d) Cerca das 13:25 horas do dia mencionado em a), no interior da obra aí também referida, o AA conduziu a viatura especial “Dumper”. (1º, 2º e D) (Eliminado)

e) A dada altura, tal veículo tombou, apanhando na queda o AA, o qual ficou por baixo do mesmo. (3º e D) (Eliminado)

d.e.) No dia e local mencionado em A), cerca das 13.30 horas, o AA foi encontrado debaixo de um veículo especial, de marca “......”. (D) (Aditado)

f) Em consequência do mencionado em e), o AA sofreu lesões crânio-encefálicas, que foram causa directa e necessária da sua morte imediata. (F) (Alterada, expressão sublinhada para “em d.e.)”)

g) A posição de condutor do referido veículo encontra-se envolta por uma cabine e está equipada com cinto de segurança. (7º) (Eliminado)

h) Aquando do mencionado em e), o AA não fazia uso do cinto de segurança. (9º) (Eliminado)

i) Se o AA tivesse colocado o cinto de segurança, ele teria permanecido dentro da cabine quando o veículo tombou, pelo que nunca teria ficado por baixo desse mesmo veículo. (10º e 11º) (Eliminado)

j) Na data mencionada em a) o AA era divorciado; e tinha duas filhas, a saber:

- BB, nascida em ../../1978;

- CC, nascida em ../../1992. (G)

k) A Chamada nasceu em ../../2011 e é filha de BB. (H)

l) O AA residiu durante alguns anos na habitação do agregado familiar da sua filha BB, sita na Rua ........., nº ..., ..., em ....... (12º)

m) Tal situação perdurou, pelo menos, até Junho de 2014, altura em que a sua filha mudou de casa. (12º)

n) Durante esse período, o AA tomava as suas refeições em conjunto com o agregado familiar da sua filha e contribuía monetariamente para as despesas da casa da sua filha. (12º e 14º)

o) O AA tinha uma ligação afectiva e emocional com a Chamada. (15º)”.

4. Fundamentação de direito

a) Da admissibilidade da revista

21. Invoca a Recorrida a inadmissibilidade do recurso, invocando a existência de uma situação de dupla conforme, porque “o Tribunal da Relação ...... confirmou a parte da sentença, leia-se, matéria de facto, que fundamenta a absolvição da recorrida”.

Vejamos:

A recorrente interpôs recurso de apelação da sentença de 1ª instância impugnado, além do mais, a decisão proferida em matéria de facto.

O Tribunal da Relação no acórdão recorrido rejeitou a impugnação da decisão em matéria de facto quanto ao quesito 12º, por a apelante não ter dado cumprimento ao ónus imposto pelo nº 2, al. a), do artigo 640º do Código de Processo Civil, sendo contra esta decisão que a recorrente se insurge, invocando a violação do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 640º do Código de Processo Civil.
De acordo com a jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal de Justiça sufragada, entre outros, nos acórdãos de 10.12.2020, Procº nº 4390/17.8T8VIS.C1.S1, 14.7.2020, Procº 1630/17.7T8VRL.G1.S1, disponíveis em dgsi.pt, e de 18.1.2018, Procº nº 668/15.3T8FAR.E1.S1, 19.10.2017, Procº nº 493/13.6TBCBT.G1.S1, e de 10.10.2017, Procº nº 541/13.OTVPRT.P1.S1, 9.6.2016, Procº 6617/07.5TBCSC.L1.S1,.17.12.2015, Procº nº 449/10.0TTVFX.P2.S1. e 10.12.2015, Procº nº 1497/08.6TVLSB.S1., quando, não obstante a sua impugnação, a Relação não tenha chegado a reapreciar a matéria de facto com fundamento no incumprimento do ónus de alegação previsto no artº 640º do C.P. Civil, a confirmação da sentença de 1ª instância não ganha relevância jurídica para permitir a aplicação da regra da irrecorribilidade do acórdão daquele tribunal com base em dupla conforme.

É entendimento, perfilhado nesses arestos, que, nesse caso, não existe verdadeiramente uma dupla conformidade, pois a matéria de facto não chegou a ser apreciada pela Relação não obstante a sua impugnação, sendo que a parte não pode considerar-se duplamente vencida, pois pretende alegar, pela primeira vez, um fundamento de recurso que não podia ter invocado na apelação interposta da decisão de 1ª instância.

22. Em suma, segundo esse entendimento e jurisprudência, quando se trata de saber se a Relação agiu dentro dos limites traçados pela lei processual não se verifica uma efectiva situação de dupla conforme, na medida em que tal violação é imputada apenas à Relação, não ocorrendo, nessa parte, coincidência com a decisão de 1ª instância.

A revista pode, assim, ter como fundamento a violação ou errada apreciação da lei processual, ao abrigo do artº 674º, nº 1, al. b) do Código de Processo Civil.

É, por conseguinte, de concluir pela admissibilidade do recurso.

b) Do (in)cumprimento pela recorrente dos ónus estabelecidos no artigo 640º do Código de Processo Civil para a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

23. Na Base Instrutória elaborada nos autos findos os articulados foi incluído, com o nº 12, um quesito em que se perguntava se “Desde o ano de 2006 que o AA residia na habitação do agregado familiar da sua filha BB, fazendo refeições conjuntas?”.
24. Decidindo sobre a matéria de facto a sentença de 1ª instância considerou provado apenas que: “l) O AA residiu durante alguns anos na habitação do agregado familiar da sua filha BB, sita na Rua ........., nº ..., ..., em ......;
m) Durante esse período, o AA tomava as suas refeições em conjunto com o agregado familiar da sua filha;
n) Tal situação perdurou, pelo menos, até Junho de 2014, altura em que a sua filha mudou de casa”.

A 1ª instância fundamentou a decisão proferida quanto a tal quesito da seguinte forma:

“Para prova dos artigos 12º a 15º da Base Instrutória, a Chamada arrolou três testemunhas, a saber: EE, padrinho da mesma; GG, mulher daquele e madrinha da irmã da Chamada; e HH, prima da mãe da Chamada.
Todas estas testemunhas, de forma espontânea, mecânica e automática, confirmaram integralmente a factualidade em causa.
Não obstante, existem elementos nos autos que nos suscitam algumas dúvidas e reservas quanto à veracidade integral dessa mesma factualidade.
Assim, e desde logo, há que tomar em consideração as primeiras declarações da mãe da Chamada, prestadas em Novembro de 2014 nos serviços do Ministério Público ......
Nessa altura, e como resulta claramente do teor de fls. 47, aquela foi peremptória em afirmar que “o seu pai vivia com a depoente na casa desta sita em ......, ......”. Contudo, nessa altura a mãe da Chamada já residia em ......, como consta da identificação da mesma. Aliás, como a própria depois esclareceu em Março de 2015, já nos serviços do Ministério Público de ...... (cfr. fls. 84), a alteração da residência terá ocorrido em Junho de 2014, ou seja, apenas dois meses antes da morte do pai.

Daqui resulta não haver dúvidas que o infeliz Sinistrado viveu efectivamente na casa da sua filha de ...... (aliás, era essa a morada que constava em todos os documentos de identificação do mesmo, aquando do acidente). Contudo, não existem elementos suficientes que permitam afirmar, com certeza e segurança, que em Junho de 2014 ele também tenha alterado a sua residência para ......”.

Inconformado com o assim decidido, no recurso de apelação interposto contra a sentença de 1ª instância impugnou a recorrente a decisão proferida quanto a esses - e outros relativamente aos quais a impugnação foi admitida e apreciada-  pontos da matéria de facto, pugnando para que o quesito 12º da ase Instrutória fosse dado como provado.
Para tanto, começando por questionar a qualificação pelo tribunal, com base na redução a escrito de tais declarações, a que não assistiu e não ouviu, por não se encontrarem gravadas, invocou a recorrente que as declarações da sua mãe foram complementadas, e esclarecidas, nos Serviços do Ministério Público do Juízo do Trabalho de ......, esclarecendo então a mesma que seu pai viveu consigo na Rua ........., nº ..., .... ....-... ......, desde o ano de 2006 a 2014 e que desde Junho de 2014 vivia consigo na Rua ........., nº …, ....-..., ......, que, no mesmo sentido foram as declarações da irmã da sua mãe, prestadas também a 18 de Março de 2015, e, por último, que o próprio tribunal, na fundamentação da decisão, referiu que as três testemunhas arroladas sobre essa matéria, “de forma espontânea, mecânica e automática, confirmaram integralmente a factualidade em causa”, concluindo que, tirando o facto de a 12 de Novembro de 2014, constar do auto de declarações prestadas pela sua mãe que o sinistrado residia com a mesma na casa ....., que explica pelo facto de â data a declarante se ter mudado muito recentemente, toda a prova constante dos autos vai no sentido de que o sinistrado residia em casa de sua filha BB, a recorrente e o seu pai.

25. O Tribunal da Relação rejeitou, quanto a esse concreto ponto da matéria de facto, a impugnação da decisão de facto, no entendimento de que “estando em causa quanto a este quesito 12º, cuja resposta vem impugnada, a produção de prova testemunhal gravada” a recorrente não cumpriu o ónus imposto pelo artigo 640º, nº 2, al. a), do Código de Processo Civil, por não ter indicado com exactidão as passagens da gravação em que fundada o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

A recorrente, dissentindo de tal entendimento, contrapõe que não põe em causa a apreciação feita pelo tribunal quanto à prova testemunhal produzida mas, ao invés, acompanha essa apreciação, impugnando antes a apreciação efectuada dos demais meios de prova de que se socorreu a 1ª instância para a tomada da decisão quanto a esse quesito, meios de prova esses que não foram gravados, concluindo que, não tendo sido invocada, para alteração da resposta ao quesito, nem prova que tivesse sido gravada, nem prova que tendo sido gravada tivesse sido, do seu ponto de vista, erroneamente apreciada, não é aplicável o disposto no nº 2 do artigo 640º do Código de Processo Civil.

26. Está em causa a questão de saber se a recorrente (in)cumpriu o ónus imposto pelo nº 2, al. a), do artigo 640º do Código de Processo Civil e se o Tribunal recorrido ao rejeitar a impugnação da decisão em matéria de facto violou as normais processuais relativas à modificabilidade da decisão de facto.

Os ónus impostos à parte que pretenda impugnar a matéria de facto constam do artº 640º do NCPC, nos termos do qual o recorrente deve especificar, sob pena de rejeição:
- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ( nº 1, al. a));
- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diferente sobre os pontos concretamente impugnados diversa da recorrida ( nº 1, al. b) , e,       
- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto (al. c)).

Nos casos previstos na alínea b) do nº 1 o nº 2, alínea a) do mesmo preceito determina que “quando os meios probatórios indicados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Sobre os ónus que recaem sobre o recorrente na impugnação da decisão da matéria de facto a é abundante a jurisprudência deste Supremo Tribunal, podendo a mesma ver-se sintetizada no acórdão de 6.11.2019, Procº nº 1092/08.0TTBRG.G1.S1., aresto no qual se encontra recenseada e citada tal jurisprudência, cujo sumário tem o seguinte teor:
“I. As coordenadas estabelecidas pelo Supremo Tribunal de Justiça no que concerne à interpretação do disposto no artigo 690.º do Código de Processo Civil, referente ao ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, visam evitar soluções que possam conduzir a uma repetição total do julgamento, em virtude de recursos genéricos contra uma decisão da matéria de facto alegadamente errada, observando-se assim a opção do legislador de viabilizar apenas uma reapreciação de questões concretas, relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente, permitindo deste modo um efetivo exercício do contraditório por parte do recorrido.
II. A verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, no que respeita aos aspetos de ordem formal, deve ser norteada pelo princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.
(…)”

Quanto ao ónus imposto pela alínea a) do nº 2 do artº 640º do CPC, como resulta do seu teor literal, respeita o mesmo à impugnação da decisão relativa à matéria de facto em que os meios probatórios indicados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, visando a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso aí prevista auxiliar o tribunal na audição desse meio probatório, quando o erro na apreciação da prova invocado como fundamento da impugnação da decisão em matéria de facto resulte, na alegação do recorrente, de depoimentos gravados, v.g. ou porque foram mal interpretados ou não foram considerados, assim possibilitando um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para apreciação da impugnação deduzida (cf. acórdão STJ,  de 29.10.2015, Procº nº 233/09.4T8BVNC.G1.S1.).

Sobre o cumprimento de tal ónus, quando está verdadeiramente em causa a reapreciação de prova gravada, não será despiciendo assinalar em reforço do anteriormente afirmado,  que tem sido igualmente entendimento deste Supremo Tribunal que a expressão “incumbe ao recorrente (…) indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso”, há-de ser compreendida no particularizado contexto em que é denunciado o erro de julgamento da matéria de facto e tendo sempre na devida conta o pormenorizado envolvimento do modo como é especificamente tratada e densificada a sua impugnação, isto é, relevando muito para esta exegese o modo como é proposta a alteração preconizada pelo recorrente, concluindo desta asserção que, como tal a recusa da reapreciação do julgamento da matéria de facto fundamentada na omissão da indicação com exactidão das passagens da gravação só será de materializar no caso de essa denotada anotação se tornar indispensável, ou seja, quando, da envolvência circunstancial conferida ao julgador, se patentear que só com um laborar comportamental acrescido e desmedido é que o juiz haverá de proceder ao exame da prova que lhe é deferido, e tal estorvo não ocorrerá sempre que esse peculiar e rogado discernimento jurisdicional, por parte do tribunal de recurso, seja susceptível de se concretizar sem o recurso a essa formal exigência normativa[1], v.g., quando o recorrente, ainda que omitindo a indicação do respetivo início e termo, por referência à gravação, limitando essa indicação ao início e termo do depoimento, faça uma indicação que possibilite à Relação o acesso, sem dificuldade, ao excerto da prova visado, designadamente com a transcrição das concretas passagens em causa, ou se se tratar de depoimentos de reduzida extensão”.

27. No caso sub judice a Recorrente impugnou a decisão relativa à matéria de facto quanto à resposta dada ao quesito 12º da Base Instrutória, em que se perguntava se o sinistrado residia na habitação do agregado familiar da sua filha BB, fazendo refeições conjuntas, invocando a afirmação, constante da fundamentação da decisão em matéria de facto, na qual o tribunal referiu que as três testemunhas arroladas e ouvidas sobre essa matéria depuseram “de forma espontânea, mecânica e automática, confirma[ndo] integralmente a factualidade em causa”.

A recorrente não questiona nem põe em causa tal  afirmação, de que resulta que as testemunhas declararam que o falecido sinistrado AA residia na habitação do agregado familiar da sua filha BB, que não só aceita como sublinha para questionar a convicção diferente, e conclusão que nela se fundou ao decidir pela resposta mais restrita dada ao quesito em causa, formada pelo tribunal no confronto entre o teor de tais declarações com declarações prestadas na fase conciliatória dos autos pela filha do sinistrado BB, sustentando que tais declarações, e bem assim as declarações prestadas pela filha CC também na fase conciliatória do processo, estas não consideradas na decisão sobre a matéria de facto em causa, não consentem a dúvida manifestada pela decisão recorrida quanto à factualidade afirmada pelas testemunhas cujo depoimento foi gravado relativamente ao período em que o sinistrado viveu com a filha e seu agregado familiar, e a consequente decisão proferida em matéria de facto.

O fundamento invocado para  a impugnação da decisão relativa à matéria de facto não é a errada apreciação e valoração de prova testemunhal gravada, de sorte que para a sua reapreciação se impusesse a audição da gravação da mesma, mas a errada, ou inexistente valoração, em confronto com aquela, de declarações prestadas na fase conciliatória reduzidas a escrito em autos que constam do processo, declarações essas que constituíram fundamento para alicerçar a convicção do julgador, já que suscitaram dúvidas e reservas quanto ao depoimento das três testemunhas arroladas pela recorrente, que a decisão sob recurso apreciou e mencionou e com base nas quais deu uma resposta mais restrita ao quesito em causa, .

No contexto em que é invocado o erro de julgamento alegado e tal como vem densificada a impugnação, afirmando o tribunal na fundamentação da decisão em matéria de facto que o depoimento das testemunhas ouvidas à matéria do quesito 12º confirmou integralmente a factualidade em causa, isto é, por outras palavras, que à data do acidente o sinistrado residia na habitação e com o agregado familiar da sua filha BB,  situando-se o erro de apreciação invocado na impugnação da decisão em matéria de facto, na errada apreciação e valoração de outros meios de prova, declarações produzidas na fase conciliatória do processo e nesta reduzidas a escrito, e não naquela prova testemunhal, invocada para corroborar o erro apontado à apreciação dos demais meios probatórios,  a convocação da gravação, com indicação  com exactidão das passagens pertinentes ou sua transcrição, revelar-se-ia desprovida de sentido ou efeito útil.

28. Neste caso, em que os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas não foram gravados, a disposição da alínea a) do nº 2 do artigo 640º do Código de Processo Civil não é aplicável.

De todo o modo, sendo inequívoco, como é, que a Recorrente concorda com a apreciação feita à prova testemunhal gravada, que o tribunal afirmou ter sido prestada “aos depoimentos das testemunhas prestados “de forma espontânea, mecânica e automática, confirma[ndo] integralmente a factualidade em causa”, só por excessivo formalismo se poderia exigir o cumprimento do ónus em causa, o que se não pode sufragar.

29. Deste modo, conclui-se que as alegações de recurso apresentadas pela recorrente respeitavam as exigências contidas no artigo 640º do Código de Processo Civil.

Procede, pois, o recurso.

Procedendo o recurso a apreciação da questão da reforma do acórdão recorrido quanto a custas encontra-se prejudicada.

IV - Decisão
Termos em que se acorda em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido e ordenando-se a remessa do processo à Relação a fim de, por intermédio dos mesmos Juízes, se possível, ser reapreciado o recurso interposto.

Custas pela parte vencida a final.
Anexa-se sumário do acórdão.

Nos termos e para efeitos do disposto no artigo 15º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de março (aditado pelo artigo 3º do Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de maio) consigna-se que o presente acórdão foi aprovado por unanimidade, sendo assinado apenas pela relatora.


Lisboa, 10 de Fevereiro de 2021


Leonor Maria da Conceição Cruz Rodrigues (Relatora)


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[1] Cf. Ac. STJ de 6.10.2016, Procº nº 1752/10.5TBGMR.A.G1.S1.