Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
170/22.7T8FND.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA RESENDE
Descritores: PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
INSOLVÊNCIA
PROCESSO URGENTE
ATO PROCESSUAL
PRAZO PERENTÓRIO
MULTA
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
PRORROGAÇÃO DO PRAZO
DIREITO DE AÇÃO
DIREITO DE DEFESA
Data do Acordão: 05/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :

I- O carácter urgente do processo de insolvência, e do mesmo modo, os processos especiais como o processo especial para acordo de pagamento, não se mostra incompatível com o regime previsto na lei processual civil para a prática do ato após o termo do prazo, conforme o previsto no art.º 139, n.º 5 e 6, do CPC.

II-  As disposições legais que regem o processo especial para acordo de pagamento não o afastam, como resulta do art.º 17, e do art.º 222-A, n.º 3, do CIRE.

III- Não deixando tal processo especial de ter a natureza de processo judicial, inexiste fundamento para a compressão dos direitos de ação e de defesa das partes, sem que tal resulte de modo claro da vontade do legislador.   

Decisão Texto Integral:


REVISTA n.º 170/22.7T8FND.C1.S1

ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

           

I - Relatório

1. AA veio ao abrigo do disposto nos artigos 222.º-A e seguintes do CIRE requerer a instauração de Processo Especial para Acordo de Pagamento.

1.1. Invoca encontrar-se numa situação económica difícil, por falta de liquidez que lhe permita cumprir pontualmente as suas obrigações reunindo os pressupostos normativos exigíveis para se apresentar a tal processo.

2. Foi admitido liminarmente o processo e nomeado o Administrador Judicial provisório.

3. Entendendo-se que o prazo de negociações terminara em 13.06.2022, e assim  ultrapassado sem que tivesse sido apresentado nos autos o acordo de pagamento ou o acordo de prorrogação do prazo, em 15.06.2022 foi declarado encerrado o processo negocial pelo decurso das negociações, sem aprovação do acordo de pagamento, e ordenada a notificação do Administrador Judicial Provisório para dar cumprimento ao subsequentemente estabelecido nos termos legais aplicáveis.

4. Na mesma data, 15.06.2022, o Administrador Judicial provisório e a Devedora, AA, consignando que tinham acordado na prorrogação por um mês, após o termino dos 60 dias, vieram requerer a prorrogação de um mês, tido por necessário para à conclusão das negociações encetadas com os credores da Devedora, conducente à aprovação do Plano de Recuperação que permitisse a revitalização económica.

  5. Por despacho proferido na mesma data, 15.06.2022, consignou-se que o acordo de prorrogação do prazo das negociações fora junto aos autos após o decurso do prazo fixado na lei para a conclusão das negociações, mais se considerou que sendo um prazo de caducidade, não lhe era aplicável o regime previsto no artigo 139, n.º 5 e 6 do CPC, e em conformidade foi indeferida a requerida prorrogação do prazo de negociações a que se reporta o n.º 5, do art.º 222-D, do CIRE.

6. Em 17.06.2022 a Devedora veio requerer o prosseguimento dos autos por ter apresentado o requerimento de prorrogação do prazo para a conclusão das negociações no 2.º dia útil seguinte ao termo do prazo inicial, nos termos do art.º 139, n.º 5 e 6, do CPC, juntando DUC relativo ao pagamento “da taxa de justiça devida pela apresentação do ato no 2.º dia útil, no quantitativo de 25% da taxa de justiça”, com o comprovativo do  pagamento.

7. O requerido pela Devedora foi indeferido, reiterando que o prazo em causa tem sido entendido como um prazo de caducidade, de natureza perentória e preclusiva que não admite qualquer prorrogação para além da que se encontra contemplado no CIRE e da que possa decorrer de justo impedimento, não sendo aplicável o regime previsto no art.º 139, n.º 5 e 6, do CPC.      

8. Inconformada, veio a Devedora interpor recurso de apelação, sendo proferido Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 22.11.2022, que confirmou o despacho recorrido.

9. Novamente inconformada, veio a Devedora interpor recurso de revista, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:

I - Pugna-se, em sede da presente revista a revogação da decisão do Acórdão proferido, porquanto, salvo o devido respeito por entendimento contrário, o mesmo profere entendimento contrário ao Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10-05-2016, processo n.º 1535/16.9T8CBR-B.C1, publicado na base de dados em www.dgsi.pt, proferido no domínio da mesma legislação e sobre as mesmas questões fundamentais de direito.

II. O douto Acórdão que ora se recorre, ao entender que “O prazo de negociações é um prazo de caducidade, contando-se nos termos do art.º 279º do CC, sendo continuo e sendo um prazo em meses, terminas às 24 horas do dia que corresponda dentro do último mês a essa data” e que “Tendo a natureza de prazo de caducidade e não de prazo processual, não se aplica o disposto nos números 5 e 6 do CPC”, decide de forma contraditória ao acórdão fundamento.

III. O acórdão-fundamento do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10-05-2016, processo n.º 1535/16.9T8CBR-B.C1, proferido no âmbito de um Processo Especial de Revitalização, sumariza o seguinte:

1. No âmbito do processo especial de revitalização, o prazo das negociações previsto no art. 17º-D, nº 5, do ClRE, é um prazo de caducidade.

2. Para haver prorrogação do prazo, nos termos do mesmo preceito, o acordo entre o devedor e o administrador judicial provisório tem de ser escrito e obtido previamente ao fim do prazo de negociações.

3. Apresentado requerimento de prorrogação do prazo para conclusão das negociações no 1º dia útil seguinte ao do termo do prazo inicial é de aplicar o regime legal emergente do art.º 139º, nº 5 e 6.”

IV. Pelo exposto, estando em clara oposição os mencionados acórdãos, estão reunidos os fundamentos para ser considerada a presente questão de importância fundamental. Logo, preenchido o requisito do n.º 1 do art.º 14.º do CIRE, é admissível a revista.

V.  No caso concreto, indo ao encontro da posição sustentada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo n.º 1535/16.9T8CBR-B.C1, 10-05-2016, apresentado requerimento de prorrogação do prazo para conclusão das negociações no 1º dia útil seguinte ao do termo do prazo inicial é de aplicar o regime legal emergente do art.º 139º, nº 5 e 6. (sublinhado nosso)

VI. Ou seja, a necessidade de pagamento da multa prevista na alínea a), ou a requerimento da parte ou oficiosamente pelo tribunal, pois o requerimento para prorrogação do prazo para conclusão das negociações foi apresentado em tribunal no 2º dia útil seguinte ao termo inicial do prazo.

VII. Tudo isto a significar que tendo sido apresentado requerimento de prorrogação do prazo para conclusão das negociações no 2º dia útil seguinte ao do termo do prazo inicial é de aplicar o regime legal emergente do artigo 139º, nº 5 e 6 do C.P.C.

VIII. Nestes termos, a prorrogação do prazo das negociações foi junto no 2º dia útil seguinte ao termo do prazo a que se refere o n.º 5 do artigo 222.º-D do CIRE, com o pagamento da multa devida, devendo ser revogado o acórdão recorrido e, consequentemente, o despacho que declarou encerrado o processo negocial.

10. Cumpre apreciar e decidir

 

II – Enquadramento facto-jurídico

A. Da factualidade.

A matéria relevante para o conhecimento do recurso consta do Relatório, para o qual se remete.

B. Do Direito.

1. Admissibilidade do recurso

Reportando os autos a um processo especial para acordo de pagamento, previsto nos artigos 222-A, e seguintes do CIRE, tem merecido consenso que quanto ao regime de recuros é aplicável o constante do art.º 14, n.º1, do CIRE[1].

Igualmente vem sido entendido por este Tribunal, que a admissibilidade da revista prevista no art.º 14, do CIRE, pressupõe que seja demonstrado pelo recorrente que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito, não tendo sido fixada pelo Supremo jurisprudência com ele conforme, exigindo também que se mostrem verificados os pressupostos gerais de admissão dos recursos previstos no art.º 629, n.º 1, do CPC, que não se questionam.

A oposição de acórdãos pressupõe que o acórdão recorrido esteja em contradição com algum acórdão anteriormente proferido pela Relação (ou STJ), o denominado acórdão fundamento, tendo ambos os acórdãos sido proferidos no domínio da mesma legislação, e sobre a mesma questão fundamental de direito, no sentido de neste último caso, se revelar essencial para a resolução do litígio em ambos os processos, e assim a contradição deve ser frontal, resultando expressamente e não de forma implícita, não bastando que se tenha abordado o mesmo instituto.

Na situação sob análise foi invocada pela Recorrente a contradição de julgados,  relativamente ao Acórdão da Relação de Coimbra, de 10.05.2016, processo n.º 1535/16.9T8CBR-B.C1, no âmbito de um Processo Especial de Revitalização, aplicando o regime legal do art.º 139, n.º 5 e 6 do CPC, diversamente do que foi considerado em sede do presente recurso.

Configurando-se, numa primeira análise, reportando os dois Arestos contrapostos, respetivamente a um processo especial para acordo de pagamento, e a um processo especial de revitalização, sem prejuízo do marcado paralelismo verificado, não nos moveríamos no mesmo plano fáctico-jurídico, pois estaremos face a modalidades processuais distintas prosseguindo fins igualmente distintos, afastando o conflito jurisprudencial.

No entanto, para além das especialidades de cada um dos processos, dirigidos ao devedor não empresa que estando em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, estabeleça negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento, art.º 222-A, e seguintes do CIRE, ou destinando-se a permitir à empresa que se encontre em situação económica difícil ou iminente insolvência, estabelecer negociações com os seus credores de modo a concluírem um acordo que revitalize a empresa, art.º 17-A, e seguintes do CIRE, numa melhor poderação não se pode deixar de atender que a questão realmente em causa, prende-se com a aplicabilidade do disposto no art.º 139, n.º 5, e decorrentemente do n.º 6, do CPC, à generalidade dos prazos do CIRE, salvo indicação contrária, tendo em conta o disposto no art.º 17, ou 17 n.º1 na redação do DL 79/2017, de 30.03 e para o qual remete o art.º 222-A, acima aludido, no seu n.º 3.

Eregida a admissibilidade da aplicação do regime do art.º 139, n.º 5, do CPC, como questão fundamental de direito a considerar, conclui-se existir contradição de julgados, permitindo a admissão do recurso.

2. Da aplicação do disposto no art.º 139, n.º 5, do CPC

2.1.No Acórdão recorrido considerou-se que estando em causa decidir se o pedido de prorrogação do prazo previsto no n.º 5, do art.º 222-D, do CIRE, isto é, o prazo de 60 dias para concluir as negociações encetadas, sendo tal prazo de caducidade, eram aplicáveis as normas do art.º 279, do CC.

Reportando às regras de contagem dos prazos processuais, constantes dos artigos 138.º a 142.º do CPC, não afastando a aplicabilidade relativamente a atos processuais a praticar nos incidentes declarativos do processo de insolvêncio e nos procedimentos de recuperação nele inseridos, já não o seriam às fases que devido à natureza hibrida do processo para acordo de pagamento e para recuperação de empresas, envolviam um misto de negocial e judicial, como no caso de negociações, verificando-se uma certa desjudicialização, pois o acordo de prorrogação era um ato a praticar fora do processo, embora tivesse de ser dado conhecimento do mesmo nos autos.

Assim tendo o prazo em causa natureza de prazo de caducidade e não de prazo processual, não era aplicável o disposto nos n.ºs 5 e 6, do art.º 139, do CPC.

No Acórdão fundamento, relativamente à prorrogação por um mês do prazo de negociações nos termos do art.º 17-D, n.º 5[2], do CIRE, considerando que o prazo mencionado de negociações era um prazo de caducidade, e sendo perentório, importava aplicar o regime legal emergente do disposto no art.º 139, n.º 5 e 6, do CPC, por força do art.º 17, do CIRE, e assim havia a necessidade de pagar a multa a requerimento da parte ou oficiosamente pelo tribunal, pois o requerimento para prorrogação do prazo para conclusão das negociações fora apresentado em tribunal no 1.º dia útil seguinte ao termo inicial do prazo, como era pretensão da ali recorrente.

2.2. Não se desconhece que não tem havido, nas Instâncias[3], uma resposta uniforme no que concerne à aplicação no disposto no art.º 139, n.º 5 e 6, do CPC, enquanto prazo de tolerância para a prática de atos processuais, permitindo uma flexibilização restrita, mostrada que seja o pagamento da multa aplicável.

A resposta negativa assenta sobre tudo na consideração da existência de prazos curtos, mas sobretudo nos casos como o dos autos, à existência de uma relativa desjusdicialização do processo, com carateristicas especiais, nomeadamente em termos do processo, numa imposta celeridade não comportando tal dilação, admitindo-se, ainda neste entendimento, uma aplicação seletiva, reportando-se essencialmente a atos judiciais, como a homologação ou não do plano ou acordo.

Diversamente, como tem sido considerado de modo uniforme por este Tribunal[4], em termos que se perfilha, adiante-se, o carácter urgente do processo de insolvência, e do mesmo modo, dos processos especiais como o em causa nos autos, não se mostra incompatível com o regime previsto na lei processual civil para a prática do ato após o termo do prazo, aliás as disposições de tais processos especiais não o afastam, nem de algum modo, o sugerem nalguma das suas disposições, como resulta do art.º 17, e do art.º 222-A, n.º 3, do CIRE, com a remessa genérica para a aplicação subsidiária do Código do Processo Civil, em tudo o que não contrarie o normativo constante do CIRE.

Sublinhe-se que a urgência que perpassa por todo este último diploma legal não é incompatível com a aplicação da possível dilação em causa, sendo certo que se aceita o seu normal atendimento em demais processos de natureza urgentes previstos na lei processual civil, e assim “Este prazo de condescendência, legalmente instituído, reveste abrangência geral e beneficia nos mesmos termos as partes em todos os processos, indiscriminadamente, não fazendo sentido retirá-lo, de forma seletiva e cirúrgica, deste tipo de ações, sem que o legislador – podendo fazê-lo – o tenha feito”[5].

Por outro lado é inquestionável que o processo especial para acordo de pagamento, assim como o processo especial de revitalização, não deixam de ter a natureza de processo judicial, ainda que haja uma referenciada desjusdicialização, com uma forte vertente de autonomia da vontade, e desse modo inexiste fundamento para a compressão dos direitos de ação e de defesa das partes, sem que tal resulte de modo claro da vontade do legislador que desenhou o modelo processual geral vigente, que conforme já se aludiu compaginou com a natureza urgente dos processos no mesmo previsto.

Acresce que não pode ser esquecido, que para além do invocado pendor da relevância da vontade das partes e a possibilidade de conformar o processo, em termos da aludida desjusdicialização, não deixa contudo de estar sujeito ao controle judicial, como resulta do encadeamento de atos previstos legalmente.

2.3. No presentes autos verifica-se que o pedido de prorrogação por um mês, formulado pelo Administrador Judicial Provisório e a Devedora, na sequencia de um invocado acordo nesse sentido, por se verificar ser necessário à conclusão das negociações com os credores, foi apresentado no segundo dia após o termo do prazo para tanto.

Desse modo, contrariamente ao decidido devia ter sido tomado em consideração o disposto no art.º 139, n.º 5 e 6, do CPC, e mostrando-se já paga multa, ser atendido o requerimento apresentado pelo Administrado Judicial Provisório, por tempestivo[6].

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III – DECISÃO

Nestes termos, decide-se conceder a revista, e assim revogar o Acórdão recorrido, o que tem como consequência a anulação do processado subsequente ao ato impugnado, cuja subsistência seja incompatível com a presente decisão, prosseguindo os autos a pertinente tramitação.

Sem custas, uma vez que a procedência da revista não é imputável a facto praticado por qualquer das partes.

Lisboa, 3 de maio de 2023

Ana Resende (Relatora)

Maria José Mouro

Amélia Alves Ribeiro

                                                          

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Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.

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[1] Cf. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição, pág. 674, Acórdãos do STJ de 9.04.2019, processo n.º 118/18.3T8STS.P1.S1 e de 11.07.2019, processo n.º 1819/17.9T8CHV-AG1.S2, in www.dgsi.pt.
[2] Ora n.º 7, pela redação dada pelo DL 79/2017, de 30.06.
[3] Cf. Acórdão do STJ de 22.06.2021, processo n.º 3985/20.7T8VNF.G1.S1, in www.dgsi.pt, com uma ampla referência jurisprudencial, mas também apontamentos doutrinários.
[4] Cf. Acórdãos do STJ de 22.06.2021, processo n.º 3985/20.7T8VNF.G1.S1, 12.01.2022, processo n.º 51º6/20.7T8VNG-B.P1.S1, de 15.03.2023, processo n.º 1687/22.9T8BRR-C.L1.S1, todos in www.dgsi.pt, no sentido da aplicação do disposto no art.º 139, n.º 5 e 6, ainda que reportados a momentos processuais diversos.
[5] Citando o Acórdão do STJ de 22.06.2021, já mencionado, e a cuja fundamentação se adere, e assim de muito perto se segue.
[6] No Acórdão recorrido consignou-se expressamenteEstá em causa, no recurso decidir se o pedido de prorrogação do prazo pode ser junto aos autos no prazo de três dias úteis seguidos ao termo do prazo, beneficiando do disposto no art.º 139, n.º 5, do CPC”.