Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4303/20.0T8VIS.C1-A.S
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA RESENDE
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PROCESSO PENAL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
CRIME SEMIPÚBLICO
QUEIXA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
JUÍZO CÍVEL
TRIBUNAL CRIMINAL
Data do Acordão: 03/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :

I- A infração penal pode causar danos que se consubstanciam em lesões de direitos civis, com vista ao seu ressarcimento, resulta manifesta a opção do legislador no sentido da interdependência, ou adesão, que se carateriza essencialmente pela imposição da obrigatoriedade da dedução do pedido cível, resultante da prática de um ilícito penal, seja realizada no processo penal, que deste último conhece.


II- O lesado no âmbito de crimes semipúblicos tem duas opções: se opta, antes da queixa, pela ação cível em separado, impede o exercício da ação penal através da renúncia; se opta pela ação penal, então a ação civil, terá que ser deduzida por dependência, vigorando a regra da adesão obrigatória.


III- Deduzido procedimento criminal, com a instauração da ação criminal nos crimes semipúblicos e particulares, a ação cível em separado contemplando o pedido cível, daria lugar a uma duplicação de processos, contrariando frontalmente o princípio da adesão.


IV- A violação do princípio da adesão obrigatória acarreta a incompetência em razão da matéria do tribunal cível.

Decisão Texto Integral:

REVISTA n.º 4303/20.0T8VIS.C1-A.S1


ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I - Relatório


1. AA veio ao abrigo do disposto nos artigos 72.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, (CPP) e 483.º do Código Civil, (CC) deduzir pedido de indemnização cível contra BB, pedindo que o Demandado seja condenado a pagar ao Demandante, a quantia de 319,11€, a título de compensação pelos danos patrimoniais causados, e a quantia de 25.000,00€, a título de compensação pelos danos não patrimoniais causados.


1.1. Alega para tanto que está em causa um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido no art.º 143, do Código Penal, (CP) pelo que o ofendido pode deduzir o pedido de indemnização cível, em separado, no Tribunal Civil, no cumprimento dos pressupostos do art.º 72, n.º 2, do CPP, por se tratar de um crime de natureza semipúblico, dependente de queixa, e não o ter feito em sede de processo que correu termos no Juízo Central Criminal de ....


1.2. Por Acórdão de 13.07.2020, o Demandado foi condenado, entre outros, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, contra o Demandante, padecendo este de decorrentes danos patrimoniais e não patrimoniais, que pela sua gravidade merecem a tutela do direito.


1.3.Face à incapacidade temporária absoluta para o exercício da profissão decorrente das ofensas corporais sofridas teve perdas salariais, recorreu aos serviços hospitalares, estando ainda sujeito a várias consultas.


A conduta criminosa do Demandado afetou a saúde psíquica do Demandante, destabilizando a sua vida pessoal, familiar, social e pessoal, passando a padecer de uma perturbação depressiva e Transtorno Stress Pós-traumático, receando pela sua vida, com dificuldade de conciliar o sono, revoltado e triste.


2. Citado, veio o Demandado/réu contestar, alegando que ao Autor/Demandante foram dadas oportunidades no âmbito do processo penal para deduzir o pedido cível de indemnização pelos factos de que pretende ora ser ressarcido, não o tendo feito, inexistindo a possibilidade de deduzir o pedido de indemnização em separado, o que conduz à absolvição da instância por violação das regras de competência material, mais se verificando a caducidade do direito de ação, pronunciando-se ainda, sobre as lesões invocadas e os montantes pedidos a título indemnizatório.


3. O Autor veio responder, invocando que no caso dos autos se está perante uma situação em que o princípio da adesão pode ser derrogado com base no disposto na alínea c), do n.º1, do art.º 72, do CPP.


4. Em sede de saneador-sentença foi entendido que o Autor podia e devia, nos termos do art.º 71, do CPP, ter deduzido o pedido de indemnização cível, inexistindo qualquer exceção (nem a alínea c), nem a alínea d), do art.º 72, n.º1, do CPP) que legitimasse a instauração da ação, verificando-se uma exceção dilatória de incompetência em razão da matéria, com a absolvição da instância.


5. Inconformado veio o Autor interpor recurso de apelação, sendo proferido Acórdão da Relação de Coimbra que a julgou procedente, declarando o tribunal recorrido competente em razão da matéria, ordenando o prosseguimento dos autos.


6. Ora inconformado, o Réu veio interpor recurso de Revista, formulando nas suas alegações, as seguintes conclusões: (transcritas)


1. Interpõe-se Recurso Ordinário de Revista (versando sobre a matéria de direito) do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que julgou o recurso procedente e revogou a decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, declarando-se o Tribunal recorrido competente em razão da matéria, e ordenando-se o prosseguimento dos autos.


2. O acórdão é violador da norma prevista no art. 71.º do CPP e faz uma incorreta aplicação da alínea c) do n.º 1 do art. 72.º do CPP e do nº 2 do artigo 72º CPP.


3. O princípio da adesão, consagrado no art. 71.º do CPP, é um princípio estruturante do sistema jurídico-penal.


4. A exceção da alínea c) visa evitar o recurso obrigatório ao processo criminal para o lesado obter a indemnização pelos danos sofridos em virtude de ilícito criminal.


5. Está em discussão saber se, por efeito do princípio da adesão em processo penal, o tribunal cível é incompetente, em razão da matéria, para conhecer do pedido de indemnização resultante de ilícito criminal, com os fundamentos estabelecidos nas alíneas a) e b) do número 1 do artigo 674º do CPC.


6. Em sede de primeira instância, a propósito da exceção ao princípio da adesão prevista no art. 72º, nº 1, c), do CPP, na sentença proferida pelo tribunal de primeira instância, escreveu-se que: a conclusão a retirar é, pois, que o princípio da adesão in casu manteve-se incólume, devendo o autor ter deduzido no processo crime o seu Pedido de Indemnização Cível. A consequência da violação de tal princípio obrigatório substancia uma exceção dilatória de incompetência material passível de conhecimento oficioso – mas, no caso, tempestivamente arguida –, cujo momento próprio para a conhecer é o presente e que implica a absolvição do réu da instância e sem possibilidade de remessa para o Tribunal em que a ação deveria ter sido proposta atenta a caducidade (art. 77.º do Código de Processo Penal) do direito de deduzir o Pedido de Indemnização Cível (artigos 96°, alínea a), 97.º, n.º 2, 98.º, 99.º, n.º 2, 278.º, n.º 1, al. a), 576°, n.º 1 e n.º 2, 577.°, alínea a) e 578º, todos do Código de Processo Civil).”


7. O Tribunal da Relação de Coimbra, salvo o devido respeito comete uma violação da lei substantiva, ao aderir à tese do Autor, ali recorrente, quer ao nível de interpretação, como de aplicação, há erro evidente, nos termos das alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 674º do CPP.


8. Ressumando, cite-se o explanado no douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra: Ora, o crime que fundamenta o pedido de indemnização civil deduzido pelo recorrente é o crime de ofensa à integridade física simples, p.p., nos termos do art. 143º, do CP, e que depende de queixa. Pelo que, não tendo, o recorrente deduzido no processo-crime o pertinente pedido cível, podê-lo-ia fazer em 4.11.2020, quando a petição inicial deu entrada, em separado, perante o tribunal cível, enquadrando-se, tal circunstância, na apontada previsão da c).


9. De outro lado, vemos que o nº 2, do art. 72º, do CPP, ao estabelecer que no caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil, pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação, vale como renúncia a este direito, só significa que a prévia dedução do pedido antes da queixa ou acusação particular perante o tribunal civil, vale como renúncia a tal direito de queixa. Nada mais. Conclui que o recorrente nos termos da c), do nº 1, do art. 72º, do CPP, tinha e tem legitimidade para deduzir o pedido de indemnização cível nos tribunais civis e consequentemente não há lugar a qualquer incompetência material.”


10. O Tribunal a quo, ao revogar a decisão proferida em 1ª Instância, não fez errónea interpretação e aplicação do direito, impondo-se a sua revogação, por violação do princípio da adesão consagrado no art.º 72.°, n.° 1, al. c), do Código de Processo Penal, devendo, por isso, manter-se a decisão da 1ª Instância.


11. Como estabelece o artigo 71º do CPP, o nosso ordenamento jurídico, consagra a regra geral de adesão obrigatória, ou, usando outra terminologia, apelidada de enxerto, da demanda cível de indemnização, baseada na prática de factos que constituam crime, à ação penal respetiva.


12. Tendo vantagens, tais como a economia processual, dado que num mesmo e único processo se resolvem todas as questões atinentes ao facto criminoso, sem necessidade de fazer correr mecanismos diferentes e em sede autónomas, outrossim, por razões de economia de meios, uma vez que os interessados não necessitam de despender e dispersar custos, a par das razões de prestígio institucional, porquanto se evitam contradições de julgados, neste sentido, Leal Henriques e Simas Santos, apud, Código de Processo Penal anotado, 1º volume, páginas 378 e seguintes, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 2013 (Processo n.º 1718/02 da 3º Secção), in, www.dgsi.pt.


13. Num só Tribunal os mesmos factos, na sua essencialidade, importando uma análise global do acontecimento, quer na perspetiva penal, quer na perspetiva civil, afastando-se a possibilidade de contradição de julgados entre as duas Jurisdições, importando, pois, que o pedido de indemnização civil, tenha de ser deduzido no processo penal, tendo como factos jurídicos donde emerge a pretensão do lesado, os mesmos factos que são pressuposto da responsabilidade criminal do arguido.


14. O art.º 72º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal, que ao caso interessa, estatui uma exceção, consagrando que o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, as situações em que o processo penal dependa de queixa ou de acusação particular.


15. Corelacionado com este preceito legal está o nº 2 do artigo 72º do CPP.


16. A resolução da questão colocada a este Tribunal ad quem, passa pela interpretação conjunta das aludidas normas adjetivas que dispõem sobre esta matéria, concretamente, a consignada exceção ao princípio de adesão, contemplada na alínea c) do nº. 1 e n 2 do art.º 72º do Código de Processo Penal, face aos factos alegados, tidos por relevantes, decorrentes dos articulados apresentados pelo demandante.


17. Havendo ação penal, sem renúncia de queixa ou acusação, o pedido de indemnização cível tem, obrigatoriamente, de ser deduzido na ação penal.


18. A exceção da alínea c) tem como objetivo evitar o recurso obrigatório ao processo criminal, por parte do ofendido de crimes particulares e semi – públicos.


19. Resulta dos autos que o Autor apresentou participação criminal, nunca desistiu do procedimento criminal, foi notificado da acusação pública e de deduzir PIC, deduziu acusação particular, não deduziu pedido indemnização cível na ação penal, foi proferido acórdão e a ação cível que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu sob os presentes autos de processo foi instaurada posteriormente à condenação em sede criminal.


20. A sentença proferida na ação penal teve efeito de caso julgado sobre o pedido de indemnização deduzido separadamente.


21. Deveria o recorrido ter exercido o seu direito à indemnização nos prazos perentórios cominados no art. 77º do CPP, o que não fez, ficando definitivamente encerrada a possibilidade do exercício daquele direito, atenta a caducidade do direito de deduzir o pedido de indemnização cível (artigo 96º alínea a),97º, nº2, 98º, 99º, nº 2, 278º, nº 1, al.a), 576ºº, nº 1 e nº 2, 577º al. a) e 578º, todos do CPP.


22. Assim, a dedução de processo cível perante tribunal cível e fora do quadro em que o consente o artigo 72º do C.P.P., conduz necessária e irremediavelmente à absolvição da instância por violação das regras de competência material, o que expressamente se invoca.


23. Mais, ainda, a falta de alegação e prova dos factos consubstanciadores da alegada exceção ao princípio da adesão da ação cível à ação penal ou face a insubsistências de tais alegações, também conduzem necessária e irremediavelmente à improcedência do pedido por verificação da caducidade do direito de ação, o que igualmente se invoca com os devidos e legais efeitos.


24. Até porque, o decurso do prazo para a formulação do pedido cível na ação penal, sem que se encontrem verificadas as exceções que permitem a sua dedução em separado, configura uma situação de preclusão do direito respetivo e, consequentemente de caducidade do respetivo direito de ação, a qual, por respeitar a questões de interesse público e da pronta realização da justiça, é de conhecimento oficioso e importa igualmente a absolvição do pedido.


25. O acórdão da Relação, aqui recorrido, encontra-se em contradição com outros, referenciados na presente peça processual a negrito e sublinhado e aqui se reproduzem na íntegra para os devidos e legais efeitos, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.


26. O acórdão proferido violou as normas jurídicas previstas nos artigos 71º e 72º, nº 1, alínea c) e número 2, todos do Código Processo Penal.


Nestes termos, deverá ser dado provimento ao presente recurso ordinário de revista, com a consequente improcedência da ação.


7. Cumpre apreciar e decidir.


*


II – Enquadramento facto-jurídico

A. Da factualidade.

Em sede do Acórdão recorrido foram considerados provados os seguintes factos:

1. No dia 9 de Novembro de 2017, cerca das 12h:05m, AA estava no Parque ..., em ..., quando o aqui réu apareceu por trás, agarrou-o pelo ombro esquerdo, e desferiu-lhe um soco na cara atingindo-o na zona do maxilar.


2. Em consequência da força utilizada pelo arguido, naquelas circunstâncias, o aqui autor AA desequilibrou-se e caiu sobre uma estrutura metálica que ali estava.


3. Nesta altura, o réu desferiu-lhe um pontapé na zona lombar.


4. Em consequência direta e necessária da conduta do réu resultou “eritema circular com 2 a 3 cm de diâmetro na região fronto parietal esq+ eritema de 2-2,5 cm de diâmetro na reg. parieto occipital esquerda; tórx: na face esquerda anterior direita sobre grelha costal e ao nível da 3ª 4ª costela observa-se uma equimose de tom amarelo esverdeado com a 60 x 40 mm e terão determinado 10 dias para a cura sem afetação da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional”.


5. O réu sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e que incorria em responsabilidade criminal.


6. Na sequência de tal incidente, veio o ofendido AA a ser observado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e das Ciências Forenses – Gabinete Médico Legal em 13-11-2017.


7. Pelo factos constantes nos factos provados n.º 1 a 5 veio o Ministério Público (2.ª Secção do Departamento do Ministério Público de ...), em 12-10-2018, no âmbito do processo 1694/1..., deduzir acusação contra o aqui réu, imputando-lhe a prática de um crime de ofensa à integridade física simples previsto e punido pelo art. 143.º, n.º 1 do Código Penal.


8. A acusação foi notificada à Ilustre Mandatária do assistente AA, aqui autor, em 16-10-2018.


9. Na sequência de 7., em 26-10-2018, a Ilustre Mandatário de AA deduziu acusação particular imputando ao aqui réu um crime de injúria, mais deduzindo Pedido de Indemnização Cível contra aquele demandado.


10. No Pedido de Indemnização Cível peticionou o autor a quantia de 2.500,00€ a título de danos não patrimoniais causados pelo aqui réu.


11. Para o efeito, alegou o demandante AA que o aqui réu ofendera o seu bom nome e consideração, tendo passado, ademais, a viver, após o incidente referido em 1 a 4, com medo, receando pela sua integridade física, não dormindo ou tendo dificuldade em conciliar o sono.


12. Na sequência de despacho da Mm.ª Juiz de Instrução do Tribunal Judicial da Comarca de ..., veio o Ministério Público, em 14-05-2019, repetir a acusação referida em 8., imputando a BB, ademais, um crime de injúria agravada.


13. A acusação foi notificada ao autor em 21-05-2019 e à sua Ilustre Mandatária em 20-05-2019, nada tendo os mesmos requerido, designadamente, quanto ao Pedido de Indemnização Cível apresentado.


14. Por despacho de 13-11-2019 do Juízo Central Criminal de ... – Juiz ... do Tribunal Judicial da Comarca de ... veio a ser determinada a apensação do processo 1694/1... ao processo 65/1... a correr termos naquele Juízo Central.


15. Por acórdão de 13-07-2020, transitado em julgado em 20-09-2021, proferido no processo 65/1..., veio o Juízo Central Criminal de ... – Juiz ... do Tribunal Judicial da Comarca de ... a dar como provados a factualidade constantes nos factos 1 a 5, vindo o aqui réu a ser condenado pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples na pessoa de AA numa pena parcelar de nove meses de prisão.


16. Deu aquele acórdão como provado que por causa da conduta de BB, o aqui autor passou a recear pela sua integridade física e perdeu o sono, mais condenando, de forma equitativa, o aqui réu a pagar a AA, a título de danos não patrimoniais, 1.500,00€ (mil e quinhentos euros).


17. Na manhã de segunda-feira, dia 22 de Janeiro de 2018, após prévio contacto telefónico, AA e CC encontravam-se, por volta das 15H e 10M junto à Capela ..., na localidade de ....


18. Cerca de 30 a 40 minutos depois, aperceberam-se da chegada ao local de BB, aqui réu.


19. BB dirigiu-se exaltado ao arguido AA que agarrou pela camisola e desferiu-lhe vários muros de forma intensa e repetida, na zona da cabeça e indiscriminadamente por todo o corpo.


20. Em consequência necessária e direta da conduta do arguido BB sofreu AA, as seguintes lesões: Cabeça e face: equimose levemente arroxeada na região frontotemporal direita, com ligeiro edema subjacente, medindo 6cm de maior eixo por 3cm de menor eixo; equimose arroxeada bipalpebral direita, medindo 2,5cm de maior eixo por 2cm de menor eixo; equimose arroxeada bipalpebral esquerda, medindo 3cm de diâmetro; equimose arroxeada com orla esverdeada no pavilhão auricular esquerdo, medindo 1,5cm de maior eixo por 1cm de menor eixo; equimose arroxeada com orla amarelada no dorso do nariz, medindo 1,5cm de comprimento por l cm de largura, sem crepitação dos ossos próprios do nariz; alinhamento e ventilação nasal mantidos; equimose arroxeada com orla amarelada no lábio inferior, à esquerda da linha média, medindo 1,cm de maior eixo por 1 cm de menor eixo; Tronco: equimose arroxeada com orla amarelada no terço inferior da face lateral do hemitórax esquerdo, medindo 6cm de maior eixo por 3cm de menor eixo; equimose amarelada com orla arroxeada no flanco esquerdo, medindo 4cm de maior eixo por 3cm de menor eixo; Região genital: equimose arroxeada na região púbica, à esquerda, medindo 2cm de comprimento por 0,5 cm de largura; Membro superior direito: equimose arroxeada com orla amarelada na metade lateral do dorso da mão, medindo 2cm de maior eixo por 1,5cm de menor eixo; Membro superior esquerdo: escoriação com crosta cicatricial no terço distal do bordo radial do antebraço, medindo 2cm de diâmetro; equimose arroxeada na região dorsal da articulação metacarpofalângica do 4° dedo, medindo l cm de diâmetro; escoriação punctiforme com crosta cicatricial na articulação interfalângica distal do 4° dedo; escoriação com fundo eritematoso na articulação interfalângica distal do 5º dedo, medindo 0,5 cm de diâmetro; Membro inferior esquerdo: equimose arroxeada na face anterior do joelho, medindo 4cm de diâmetro.


21. Tais lesões determinaram 8 dias para a consolidação médico-legal, com afetação de capacidade para o trabalho geral (8 dias) e com afetação da capacidade de trabalho profissional (8 dias).


22. BB agiu ainda deliberada, livre e conscientemente, com o intuito concretizado de causar lesões corporais a AA molestando-o no seu corpo e na sua saúde sabendo a sua conduta ser proibida e punida pela lei penal.


23. Na sequência de tal incidente, veio o ofendido AA a ser observado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e das Ciências Forenses – Gabinete Médico Legal em 25-01-2018.


24. Pelos factos constantes nos factos provados n.º 16 a 21 veio o Ministério Público (1.ª Secção do Departamento do Ministério Público de ...) em 22-05-2019, no âmbito do processo n.º 71/1..., deduzir acusação contra o aqui réu, imputando-lhe a prática de um crime de ofensa à integridade física simples previsto e punido pelo art. 143.º, n.º 1 do Código Penal.


25. A acusação foi notificada à Ilustre Mandatária de AA, aqui autor, por notificação de ...-...-2019, não tendo sido deduzido qualquer Pedido de Indemnização Cível.


26. Por despacho de 13-11-2019 do Juízo Central Criminal de ... – Juiz ... do Tribunal Judicial da Comarca de ... veio a ser determinada a apensação do processo 71/1... ao processo 65/1... a correr termos naquele Juízo Central.


27. Por acórdão de 13-07-2020, transitado em julgado em 20-09-2021, proferido no processo 65/1..., veio o Juízo Central Criminal de ... – Juiz ... do Tribunal Judicial da Comarca de ... a dar como provada a factualidade constantes nos factos 16 a 21, vindo o aqui réu a ser condenado pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples na pessoa de AA numa pena parcelar de um ano e quatro meses de prisão.

B. Do Direito.

1. Como se sabe, o objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente, importando em conformidade decidir as questões nelas colocadas1, não estando o Tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que as partes indiquem para fazer valer o seu ponto de vista, sendo que, quanto ao enquadramento legal, não está sujeito às razões jurídicas invocadas pelas mesmas, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, artigo 5.º, n.º 3, também do CPC.


Por sua vez o recurso de revista é o recurso ordinário que cabe dos acórdãos do Tribunal da Relação, tendo assim como fundamento, art.º 674, n.º1, a violação da lei substantiva – nas modalidades de erro de interpretação, de aplicação, ou da determinação da norma aplicável -, ou a violação da lei processual, incluindo aquela de que possa resultar alguma nulidade de decisão prevista no art.º 615, ex vi art.º 666, do CPC, pelo que a competência deste Tribunal, Supremo Tribunal de Justiça (STJ) está assim confinada à matéria de direito, enquanto tribunal de revista, que aplica definitivamente o regime jurídico tido pelo o adequado ao factualismo que ao mesmo seja trazido, como alude o n.º1, do art.º 682, igualmente do CPC, não se questionando a admissibilidade da revista, por preenchido o disposto na alínea a) do n.º 2, do art.º 629, do CPC.


1.1. O objeto do presente recurso, tal como surge configurado, prende-se em aferir da competência material do Tribunal Cível para conhecer da pretensão do Autor.

2. Com efeito, as Instâncias divergiram no entendimento perfilhado.


Assim, em sede do saneador-sentença considerou-se que sendo o princípio da adesão nos termos do art.º 71, do CPP, obrigatório, comportava, contudo as exceções previstas no art.º 72, também do CPP, tendo o Autor/recorrido invocado como causal da sua pretensão a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido no art.º 143 do CP, importava aferir se mostrava consubstanciada a exceção da alínea c), do n.º1, do aludido art.º 72.


Tendo em conta que não houve desistência de queixa, e ocorrido a condenação invocada, mantinha-se incólume o princípio da adesão, até porque, e já reportando à alínea d) do mencionado n.º 2, do art.º 72, do CPP, os factos alegados na petição inicial eram os mesmos constantes do acórdão condenatório, pelo que sempre poderia o Autor peticionar em sede penal a indemnização ora pedida, pois tinha o conhecimento completo dos danos sofridos, em última análise recorrendo a um pedido genérico, concluindo, desse modo, pela violação do princípio da adesão, importando na exceção dilatória da incompetência material.


No Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, ora sob recurso, entendeu-se que o A. alegara na petição inicial os factos em que baseava a exceção ao princípio de adesão, reportados à prevista na alínea c), e não na constante na alínea d) que não foi invocada e como tal não podia ter sido conhecida.


Quanto à exceção prevista na alínea c), não fazendo a lei qualquer referência à dedução do pedido cível posteriormente à queixa-crime, isto é, não lhe atribuindo qualquer consequência ou cominação, não estava contemplada no n.º 2 do art.º 72, do CPP, pelo que sempre o Autor podia deduzir o pedido cível, nos tribunais cíveis, ao abrigo de tal alínea c), devendo os autos ali prosseguir.

1. Consigna-se no art.º 71, do CPP, sob a epígrafe, Princípio de adesão, que “ O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”, constando do art.º 72, também do CPP, sobre a epígrafe, pedido em separado, no n.º1, “ O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil quando: (…) c) O procedimento depender de queixa ou de acusação particular; d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos em toda a sua extensão; (…) 2- No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito.”.


2.1.Em termos breves, sabendo-se que uma infração penal pode causar danos que se consubstanciam em lesões de direitos civis, na articulação necessariamente a fazer dos mecanismos processuais com vista ao seu ressarcimento, resulta manifesta a opção do legislador vertida no aludido art.º 71, no sentido da sua interdependência, ou adesão, que se carateriza essencialmente pela imposição da obrigatoriedade da dedução do pedido cível, resultante da prática de um ilícito penal, seja realizada no processo penal, que deste último conhece.


São apontadas como razões para tanto, as de economia processual, permitindo que no mesmo tribunal e processo haja decisão sobre danos resultantes do mesmo facto jurídico, ainda que em termos penais se configure uma absolvição, promovendo, também, uma uniformização de julgados, e tida como a maior vantagem, uma realização mais rápida e eficaz do direito do lesado à indemnização, numa melhor e eficaz proteção da vítima2.


No entanto, como resulta dos normativos indicados, são contempladas exceções, caso das apontadas, e para o que nos agora interessa, sendo facilmente percecionada a resultante do art.º 72, n.º 1, alínea d), na impossibilidade do titular do direito que pretende fazer valer em juízo poder, tempestivamente, no sentido do momento processual próprio para tanto, delimitar o respetivo conteúdo na medida da extensão dos danos, até porque as indicadas vantagens decorrentes do conhecimento em sede do processo penal, maxime quanto à celeridade e eficácia do mesmo resultante, ficariam afastadas, com efeitos contrários, até quanto à decisão relativa ao ilícito penal.


Já a alínea c), do mesmo n.º1, do art.º 72, também referenciada, exige um maior esforço hermenêutico, porquanto importa a compatibilização com o previsto no n.º 2, do mesmo dispositivo legal.


Da conjugação dos dois preceitos resultará, assim, que “ no caso de crime semipúblico ou particular, as pessoas com direito de queixa e o lesado podem formular o pedido no tribunal civil, renunciando assim ao direito de queixa; porém, se tiverem exercido o direito de queixa e iniciado o procedimento criminal, valem as regras gerais da adesão, mas se, por qualquer motivo desistirem da queixa, o pedido civil não pode seguir se tiver já sido deduzido, e então os interessados devem recorrer aos tribunais civis3”.


Dito por outras palavras, conforme o Aresto deste Tribunal4 “(…) o lesado tem duas opções: se opta, antes da queixa, pela ação cível em separado, impede o exercício da ação penal através da renúncia; ou se opta pela ação penal, então a ação civil, fora dos casos das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 725, terá que ser deduzida por dependência, vigorando a regra da adesão obrigatória”, na adoção duma interpretação restritiva do elemento literal da alínea c) do n.º1, do art.º 71, que se partilha.


Na verdade, como se desenvolve no mesmo Aresto, retém-se a ponderação do elemento histórico, numa visão perfilhada no âmbito da aplicação dos artigos 29.º e art.º 30, do CPP de 29, sem desatender à alteração do art.º 72, n.º2, do CPP, DL 78/87, de 17.07, pela Lei 59/98, de 25.08, não legitimando uma interpretação no sentido de depois de formulada a queixa já seria permitido a dedução em separado dos pedidos cíveis, mas sobretudo teleológico, porquanto deduzido procedimento criminal, com a instauração da ação criminal nos crimes semipúblicos e particulares, uma possível ação cível em separado contemplando o pedido cível, daria lugar a uma duplicação de processos, contrariando frontalmente o princípio da adesão, o que não se evidencia que o legislador tenha pretendido.

2. Importa também não descurar, sem prejuízo do já enunciado, que a competência do tribunal, como medida da sua jurisdição6, é fixada em função dos termos em que a ação é proposta, considerando o pedido do autor, isto é, o direito a que se arroga e que quer ver reconhecido ou declarado judicialmente.


Assim, da estruturação da causa, tal como é estabelecida pelo autor ou requerente, nomeadamente do pedido formulado, e dos factos donde derivam o direito para o qual se pretende a tutela, resulta não só o tema a decidir, mas também a definição do âmbito da competência, não estando esta dependente de outros pressupostos processuais, dos termos da contestação ou oposição deduzida, e maxime da procedência da pretensão.


Com efeito, os pressupostos processuais constituem as condições, tidas por necessárias, para que possa ser formulado um juízo decisório sobre a pretensão formulada pela parte, variando a sua fundamentação em função do processualmente exigível, e desde logo no que concerne à competência do Tribunal, destina-se a garantir o adequado exercício da função jurisdicional7.


3. Revertendo estes considerandos para o caso sob análise, resulta do alegado pelo Autor, que o mesmo referenciou estar em causa um crime de ofensas à integridade física, um crime de natureza semipúblico, dependente de queixa, expressamente mencionando que não deduziu o pedido de indemnização cível no processo crime identificado, pretendendo agora fazê-lo, em separado, passando a enunciar os factos apurados na decisão penal donde decorria a conduta criminosa do Réu, originando os danos que elencou geradores da obrigação de indemnizar, nos termos dos artigos 483.º e 496.º, do CC, peticionando a quantia tida por devida para a compensação de tais danos.


Apenas tendo sido enunciados factos passíveis de enquadramento na alínea c), do n.º1, do art.º 72, de CPC, e assim tão só a atender, manifesto se torna, sem mais considerações, por despiciendas, que foi violado o princípio da adesão obrigatória que acarreta a incompetência material do tribunal cível.


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III – DECISÃO


Nestes termos, decide-se conceder a revista, revogando o Acórdão recorrido, julgando procedente a exceção da incompetência em razão da matéria do Tribunal Cível, absolvendo o Réu da instância.


Custas dos recursos pelo Autor.


Lisboa, 15 de março de 2023

Ana Resende (Relatora)

Maria José Mouro

Graça Amaral



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Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.



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1. Bem como as que forem de conhecimento oficioso, com exceção daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, artigos 635.º, 608.º, 663.º e 679.º, do CPC.↩︎

2. Cf. Henriques Gaspar, Código de Processo Penal, 3.ª edição, 2021, fls. 214 e segs., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 5.ª edição, fls. 131, e segs., Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 17.ª edição revista e atualizada, fls. 218 e segs.↩︎

3. Citando, Henriques Gaspar, obra referenciada, pág. 225. Cf. Ac. STJ de 30.04.2019, processo n.º 1286/18.0T8VCT-A.G1.S1, in www.dgsi.pt.↩︎

4. Acórdão do STJ, de 21.06.2022, processo n.º 25639/18.4T8LSB.L2.S1, acessível in www.dgsi.pt.↩︎

5. Nos termos da alínea a), no caso de o processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou se estiver sem andamento durante esse lapso de tempo, ou no caso da alínea b), o processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento.↩︎

6. Cf. Miguel Teixeira de Sousa, in A Competência Declarativa dos Tribunais Comuns, Lisboa, 1994, fls. 30, referindo que o tribunal será o competente para o julgamento de certa causa quando os critérios determinativos da competência lhe atribuem a medida de jurisdição que seja suficiente e adequada para essa apreciação.↩︎

7. Cf. Miguel Teixeira de Sousa, (MTS) Código de Processo Civil, online, (CPC online) versão de 2022.12, Introdução Geral, §4, 20, p5.↩︎