Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
86/18.1GBTCS.C1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: SENTENÇA
MATÉRIA DE FACTO
LENOCÍNIO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
UNIÃO DE FACTO
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 11/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – JULGAMENTO / SENTENÇA / REQUISITOS DA SENTENÇA.
DIREITO PENAL – CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL / LENOCÍNIO.
Doutrina:
- Michael Pawlik, Configuración de la Norma y Equilibrio en la Identidad, Sobre la Legitimación de la Pena Estatal, Edicões Atelier, Barcelona, 2019, p. 15;
- Nuno Brandão, A Tutela Especial Reforçada da Violência Doméstica, Revista Julgar, n.º 12, Ano 2010, p. 15.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 374.º, N.º 2.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 169.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 11-09-2019, PROCESSO N.º 60445/16.1T9LSB.S1;
- DE 30-10-2019, PROCESSO N.º 39/16.4TRGMR.S2, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I.- Tendo ao arguido sido imputados, no requerimento formulado para julgamento, factos con-substanciadores e incriminativos dos ilícitos-típicos de lenocínio e violência doméstica, executados no âmbito de comunhão de união de facto, estabelecida entre vítima e arguido, e em que as acções distintivas e especificadoras de cada um dos ilícitos não são passíveis de ser fragmentadas e delimitadas, pela natural e corrente sequenciação e efectivação dentro de um quadro espácio-temporal de vivência comum, torna-se impossível ao tribunal, na descrição da factualidade adquirida em julgamento, proceder a um joeiramento de cada um dos singulares e individualizados factos que devam constituir o substrato objectivo de subsunção jurídico-penal;

II. – Cumpre o cominado no artigo 374º, nº 2 do Código de Processo Penal a descrição dos factos provados operada mediante a narração de acções compósitas e interpenetradas de elementos (fácticos) identificadores de cada um dos ilícitos, ainda que sem uma dependência concreta e confinada de individualização/especificação típica;

III. – Integra a materialidade típica do artigo 169º do Código Penal o sujeito que vivendo em situação de comunhão e trato conjugal com outra pessoa a oferece a outros homens para, mediante retribuição monetária, com ela manterem relações sexuais, apropriando-se da retribuição obtida pela prestação sexual dessa pessoa para satisfação das suas próprias e pessoais necessidades.

IV. – A censura do injusto ético-jurídico que conleva das acções de alguém que durante cerca de 25 anos humilha, por menoscabo da pessoa com quem partilha a comunhão de vida familiar, do passo que avilta e depreda, por «coisificação» do ente pessoal que com ele convive, não pode deixar de se situar num patamar próximo do limite máximo.  

Decisão Texto Integral:

I. – RELATÓRIO.


1. - Em requerimento (acusatório), o Ministério Público impetrou o julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal Colectivo, de AA, com a identificação constante de fls. 257 a 262, imputando-lhe facticidade consubstanciadora da prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, de:

. 5 (cinco) crimes de violência doméstica agravada, ilícito criminal previsto e punido pelos artigos 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1, e 152º, nºs 1, alíneas b), c), d), 2, 4, 5 e 6, todos do Código Penal; e

. 1 (um) crime de lenocínio agravado, ilícito criminal previsto e punido pelos artigos 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1, e 169º, nºs 1 e 2, alíneas a), b), c) e d), todos do Código Penal.

2. - Mais requereu, ao amparo “do disposto no artigo 82.°-A, do Código de Processo Penal, ex vi artigo 21º, nºs 1 e 2, da Lei nº 112/2009, de 16-09, atendendo aos factos supra elencados, promoveu-se a atribuição, a título de reparação, à vítima BB, de um montante de cômputo geral não inferior a €25.000,00 (à razão de não menos de €1.000,00 por ano de vida em comum), e às vítimas CC, DD, EE e FF, de um montante não inferior a €2.000,00 a cada um (cfr. fls. 261 verso)”;

3. - O arguido não apresentou contestação escrita, nem arrolou testemunhas ou requereu qualquer produção probatória, tendo quedado silente à notificação que lhe foi endereçada para os efeitos do disposto nos artigos 21º, nºs 1 e 2 da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, e 82º-A, nº 1 do Código de Processo Penal;

4. - Foi determinada uma alteração não substancial dos factos aí descritos (fls. 374 a 377);

5. - Após realização da audiência de discussão e julgamento, veio o tribunal a ditar veredicto no sequente sentido (sic): “o Tribunal julga parcialmente procedente a acusação pública deduzida e, em consequência, decide:

- absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, em concurso efetivo real, de dois crimes de violência doméstica agravada, ilícito criminal previsto e punido pelos artigos 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1, e 152º, nºs 1, alíneas b), c), d), 2, 4, 5 e 6, todos do Código Penal, visando FF e EE;

- condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, em concurso efetivo e real com os restantes ilícitos, de um crime de violência doméstica agravada, ilícito criminal previsto e punido pelos artigos 14.°, nº 1, 26º 30º, nº 1, e 152.°, nºs 1, alíneas b), c), d), 2, 4, 5 e 6, todos do Código Penal, visando BB, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;

- condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, em concurso efetivo e real com os restantes ilícitos, de um crime de violência doméstica agravada, ilícito criminal previsto e punido pelos artigos 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1, e 152º, nºs 1, alíneas b), c), d), 2, 4, 5 e 6, todos do Código Penal, visando CC, na pena de 3 (três) anos de prisão;

- condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, em concurso efetivo e real com os restantes ilícitos, de um crime de violência doméstica agravada, ilícito criminal previsto e punido pelos artigos 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1, e 152.°, nºs 1, alíneas b), c), d), 2, 4, 5 e 6, todos do Código Penal, visando DD, na pena de 3 (três) anos de prisão;

- condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, em concurso efetivo e real com os restantes ilícitos, de um crime de lenocínio agravado, ilícito criminal previsto e punido pelos artigos 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1, e 169º, nºs 1 e 2, alíneas a), c) e d), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, absolvendo-o da agravação decorrente da al. b) do n.° 2 do art. 169º do CP que lhe estava também imputada;

- operando o competente cúmulo jurídico destas condenações, decide-se condenar o arguido AA na pena única de 7 (sete) anos de prisão;

-condenar o arguido nas penas acessórias de proibição de contacto com BB; CC e DD, pelo período de 5 anos, incluindo o afastamento das suas residências e local de trabalho, proibição que deve ser fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância sempre e quando o arguido esteja em liberdade (devendo o TEP e o EP competentes ser alertados especificamente para o efeito);

- condenar o arguido na pena acessória de proibição de uso e porte de armas, pelo período de 5 (cinco) anos;

- condenar o arguido na pena acessória de obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica;

- condenar o arguido na pena acessória de inibição do exercício do poder paternal (atuais responsabilidades parentais), por um período de 7 (sete) anos;

- condenar o arguido a pagar € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) a BB, a título de arbitramento de reparação pelos prejuízos sofridos por esta, cfr. arts. 82.°-A, nº 1, do CPP e nº 1, do art. 21º da Lei nº° 112/ 2009 de 16 de setembro;

- condenar o arguido a pagar €2.000,00 (dois mil euros) a CC, a titulo de arbitramento de reparação pelos prejuízos sofridos por esta, cfr. arts.º 82 º-A, nº 1, do CPP e nº 1, do art. 21º da Lei nº 112/ 2009 de 16 de setembro;

- condenar o arguido a pagar €2.000,00 (dois mil euros) a DD, a título de arbitramento de reparação pelos prejuízos sofridos por esta, cfr. arts. 82º-A, nº 1, do CPP e nº 1, do art. 21º da Lei nº 112/ 2009 de 16 de setembro;

- declara-se perdida a favor do Estado a faca apreendida nos autos, cfr. fls. 144. Após trânsito, deve esta faca ser depositada à guarda do Comando Distrital da P.S.P. (caso ainda o não tenha sido) que promoverá o seu destino (arts.° 109.° do Código Penal e art. 78º da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro com as alterações introduzidas pela Lei 17/2009, de 6 de maio);

- condenar o arguido no pagamento das custas criminais do processo, nomeadamente em taxa de justiça que se fixa em 3UC's, nos termos dos artigos 513º, nº1 do Código de Processo Penal e artigo 8º do Regulamento das Custas Processuais e respetiva tabela anexa.

Faz agora parte integrante do nosso ordenamento jurídico o registo de identificação criminal de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor.

Conforme resulta do art. 1º do anexo à Lei 103/2015, de 24.08, o sistema de registo de identificação criminal de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor constitui uma base de recolha, tratamento e conservação de elementos de identificação de pessoas condenadas por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor.

No caso dos autos, atendendo ao disposto nas als. a) e c) do nº 2, do art. 2º deste diploma, uma vez transitada em julgado esta decisão, importará proceder à integração dos arguidos no sobredito registo.

Todavia, conforme decorre claramente do art. 8º deste diploma, a inscrição no registo de identificação criminal de condenados por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor é promovida pelos serviços de identificação criminal da Direção-Geral da Administração da Justiça, após o registo dos boletins do registo criminal.

Tendo em conta tal procedimento, após trânsito, remetam-se boletins à DSICC (artigo 374º, nº 3, al. d) do CPP).

Lido, vai o presente acórdão ser depositado na secretaria deste Tribunal - cfr. artigos 372°, nº 5 e 373º, nº 2 do CPP.

Notifique e oportunamente comunique nos termos do art. 37º da Lei nº 112/2009, de 16.09 (não descurando as vitimas}.

Após trânsito, comunique e notifique nos termos do art. 90º da Lei 5/2006, de 23/02.

Após trânsito comunique a presente decisão a eventuais processos tutelares de menores pendentes e diligencie pelo respetivo registo civil, cfr. arts. 1º, nº 1, al. g) e 69º, nº 1, al. f), ambos do Código do Registo Civil.

Decorre do disposto no nº 2 do art. 8º da Lei nº 5/08, de 12.02, que "A recolha de amostra em arguido condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída, com a consequente inserção do respetivo perfil de ADN na base de dados, é sempre ordenada na sentença".

Não obstante a clareza deste normativo têm sido frequentes as decisões que ora confirmam o carácter automático desta recolha nos casos expressamente referidos neste nº 2 do art. 8º, ora entendem que o mesmo pressupõe um juízo que vai variando entre uma prognose negativa, a gravidade dos factos julgados provados ora ainda "receios relevantes que possam ou permitam inferir a necessidade daquela recolha e subsequente conservação" (cfr. entre outros, o Ac. da R. de Lisboa de 11.10.2011, Proc. n.°721/10.0P….L1-…, inwww.dgsi.pt), sejam eles quais forem.

Por nossa parte não podemos deixar de acompanhar, pela sua clareza, o referido no Ac. da R. de Évora de 15.05.2012 (in www.dgsi.pt) donde "O nº 2 do art. 8º da Lei n.° 5/2008, de 12 de fevereiro, na interpretação refletida na decisão recorrida, ou seja, no sentido que a recolha de amostra biológica ali prevista, para inserção na base de dados de perfis de ADN, depende apenas dos requisitos de natureza formal mencionados naquele nº 2, não é materialmente inconstitucional.

Assim, o tribunal recorrido não tinha que fundamentar materialmente a sua decisão na parte em que ordenou a recolha de amostra biológica e subsequente inserção na base de dados de perfis de ADN, após trânsito em julgado do acórdão condenatório, pelo que não se verifica a invocada nulidade de sentença por falta de fundamentação - art. 379º, nº 1 a) e 374º, nº 2, do CPP".

Acompanhando integralmente o decidido no Ac. do Tribunal Judicial de Ponta Delgada de 13.06.2014 (in https://www.cfbdadosadn.pt/pt/estudosjurisprudencia/Documents/A cordaaoTJPontaDelgada-PedroaAlbergariaADN.pdf): "I. Contrariamente ao que sucede noutras legislações congéneres estrangeiras, o legislador nacional assumiu inteiramente a responsabilidade de estabelecer, com preclara sageza, a linha delimitadora a partir da qual os dados genéticos de um condenado devem passar a constar da base de dados, e são eles: os condenados em pena de prisão igual ou superior a três anos, ainda que suspensa na sua execução. II. A pena concreta de três anos de prisão está muito por cima de qualquer bagatela penal e também, indubitavelmente, acima do que é normalmente expectável na criminalidade de baixa intensidade. Por tudo isto não sobram dúvidas que também neste aspeto o legislador foi criterioso, a ponto de se não afigurar razoável ver aqui um atropelo desproporcionado aos direitos pessoais do condenado. III. Assim, verificado aquele condicionalismo legal (pena concreta igual ou superior a três anos de prisão, ainda que esta seja suspensa na sua execução), o juiz ordenará, mediante despacho (a cumprir apenas após trânsito em julgado da decisão condenatória), a recolha de amostras no condenado (artigo 8.°, n.° 2), cabendo-lhe apenas determinar a efetivação da recolha das amostras. Não deve (rectius: não pode) o juiz substituir-se ao legislador e alterar a regra fixada por este. IV. Se o fizer extravasa do seu papel de aplicador da lei ao caso concreto, violando o principio da separação de poderes, porque neste caso o intérprete não se estaria movendo, ainda, no plano da interpretação jurídica, mas antes no da correção das opções legislativas, o que é inconstitucional de acordo com o principio da separação de poderes logo enunciado no artigo 2.° da CR. V. Defronte de uma norma com um sentido que exprime uma vontade inequívoca do legislador, mas inconstitucional, não cabe ao aplicador moldá-la aos ditames da Lei Fundamental - cabe apenas desaplicá-la por inconstitucional (artigo 204.° da CR); e ao legislador cabe prescindir dela ou alterá-la de modo a expurgar a maleita da inconstitucionalidade"'.

Como se decidiu no Ac. da R. de Lisboa de 5.05.2015 (Proc. n.° 241/11.5J….L1-…, in www.dgsi.pt) "Da leitura dos nºs 1 e 2 do art. 8º da Lei 5/08 de 12.2, resulta que a recolha de ADN é automática, não dependendo de qualquer pressuposto, que a Lei não impõe (com excepção da condenação por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída) e sendo certo que pode ser ordenada logo após a constituição de arguido.

A automaticidade da recolha resulta ainda da previsão do n° 6 daquele art. 8º, que prevê a possibilidade de ser dispensada a recolha da amostra, mediante despacho judicial, sempre que não tenham decorrido cinco anos desde a primeira recolha e, em qualquer caso, quando a recolha se mostre desnecessária ou inviável. Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, a possibilidade de dispensa é que terá que ser determinada por despacho fundamentado, não a recolha.

A intenção do legislador terá sido a de determinar a recolha de ADN como determina a recolha de impressões digitais e, de facto, não se vê como aquela recolha pode restringir direitos fundamentais do arguido, entendendo-se, outrossim, que essa determinação não viola qualquer preceito constitucional".

Perante tal clareza, quer da norma, quer dos argumentos acima enunciados, não nos parece legal ou constitucionalmente possível qualquer outra interpretação.

Assim, uma vez verificado o trânsito em julgado do acórdão que antecede, determina-se a recolha ao arguido do perfil de ADN (ácido desoxirribonucleico) para fins de investigação (nºs 1 e 2 do art. 8º da Lei nº 5/2008, de 12.02).

Antes da recolha deverá ser cumprido o direito à informação do arguido (als. a) a e) do art. 9º da Lei nº 5/2008 de 12.02).

O perfil deverá ser incluído na base de dados de perfis de ADN (nº 3 do art. 18º da Lei nº 5/2008).

6. – Do veredicto decretado pelo tribunal de 1ª instância, discreparam, tanto o arguido, como o Ministério Público, pelo que accionaram a via recursiva, visando a reapreciação do julgado. Para o efeito estruturaram a respectiva argumentação concluindo com a sinopse que a seguir queda extractada. (Cfr. fls. 466 a 480 – referente ao recurso do Ministério Público – e 481 a 483 - referente ao recurso do arguido)


I.a). – QUADRO CONCLUSIVO.


i) – Do recurso interposto pelo Ministério Público.

1 – A discordância do Ministério Público com o douto acórdão proferido nos autos limita-se à medida das penas parcelares aplicadas aos crimes de violência doméstica agravada e de lenocínio agravado, de que é ofendida BB e, ainda, à medida da pena única que resultou do concurso de crimes, entendendo que, em face das elevadas exigências de prevenção geral e especial e das particulares circunstâncias da prática dos factos pelo arguido, quer as mencionadas penas parcelares quer a pena única são insuficientes para alcançar as finalidades da punição, devendo ser agravadas.

2 - Resulta dos factos provados que ao longo dos 25 anos de vida em comum do arguido com a ofendida BB, o arguido conquistou um forte ascendente sobre a companheira, impondo sempre a sua vontade nos vários aspetos da vida do casal, controlando todas as dimensões da vida desta ofendida; levou BB a prostituir-se – os proventos da prostituição eram praticamente o único rendimento da família - obrigando-a a dedicar-se a manter com caracter regular a atividade de prostituição, nos locais que ele indicava e também com as pessoas que ele angariava para o efeito, designadamente com o próprio pai do arguido – o que causava especial sofrimento na ofendida, como ela relatou – e, ao longo de toda o período de vida em comum, infligiu-lhe ameaças, ofensas verbais, agressões físicas e todo o tipo de humilhações.

3 - Dos factos provados resulta que, desde o início da vida em comum, o arguido exerceu uma posição de domínio e controle sobre a pessoa da ofendida, o que conseguiu, para além do mais, com a prática reiterada de ofensas verbais, ameaças, humilhações e agressões físicas contra a pessoa da vítima e aproveitando-se sempre da especial fragilidade e vulnerabilidade da ofendida, decorrentes da falta de suporte familiar.

4 - O arguido instrumentalizou a pessoa da ofendida BB à satisfação dos vícios dele; agiu sobre esta vítima como se ela fosse uma “coisa” do arguido, da qual dispunha, de acordo com a vontade dele, para obter elevados rendimentos para satisfação dos vícios do próprio arguido.

5 - Em nosso entender, a conduta do arguido AA para com a vítima BB, que ficou provada nestes autos, quer quanto aos factos integradores do crime de violência doméstica agravada quer quanto ao crime de lenocínio agravado, apresenta-se especialmente grave pela sua reiteração ao longo de um período de 25 anos, mas também, pela concreta relevância e intrínseca gravidade objetiva dos factos que ficaram provados, praticados pelo arguido contra a pessoa de BB.

6 - No que se refere ao crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado e de que é vitima BB, importa salientar, em nosso entender, o ascendente que o arguido logrou obter sobre a vítima, a posição de absoluto domínio do arguido sobre a vontade e o agir da vítima ao logo de 25 anos de vida em comum; a reiteração e persistência das ofensas físicas e verbais, das ameaças e humilhações desde o início da vida em comum, no caso, desde os 15 anos até aos 40 anos de idade da vítima, sendo que a partir do momento que existiram os filhos, as ofensas foram perpetradas pelo arguido presença dos filhos menores da ofendida e contra a progenitora de descendestes comuns.

7 - Sobressai ainda dos factos provados uma especial gravidade das condutas do arguido, lesivas dos mais elementares direitos da pessoa da ofendida BB. Desde os 15 anos de BB, o arguido sempre lhe infligiu maus tratos físicos e psíquicos e sexuais, sempre se soube aproveitar do seu ascendente pessoal, de género e de idade, do isolamento da vítima, da fraca auto-estima e fragilidade emocional da vítima, da mesma ter sido criada em instituições e não ter família que a apoiasse, ameaçando-a de ficar sem os filhos; obrigava BB a relatar-lhe os pormenores mais íntimos, dos encontros com os clientes, fazendo-a reviver aqueles momentos, o que a humilhava, obrigava-a a prostituir-se mesmo quando ela se encontrava grávida ou mais debilitada e dava-lhe murros, bofetadas e pontapés em diversas partes do corpo e empurrava contra a parede – o que acontecia designadamente quando ela não queria prostituir-se – ameaçava-a dizendo-lhe que faria com ela fosse novamente para uma instituição, que ia perder os filhos, ameaçava-a de morte, empunhando facas que bramia na direção da companheira, injuriava e humilhava a companheira, nos termos descritos nos pontos 22 e 23 dos factos provados. Por sua vez, os episódios reportados aos dias 08.08.2018 e 30.08.2018, que culminaram na separação do casal e detenção do arguido, revelam também a existência de situações de violência muito acentuada do arguido para com esta vítima, na presença dos filhos menores.

8 - Na sequência do episódio de 8.08.2018, a ofendida saiu de casa com os filhos menores e foi acolhida numa instituição. O arguido, com a mediação da proteção de menores, convenceu a ofendida que ele não regressaria a casa, de modo que ela e os filhos voltaram para a casa onde antes habitavam. No entanto, após a ofendida regressar a casa com os filhos, o arguido forçou a entrada em casa, tendo para o efeito partido o vidro da porta e com o uso de uma navalha para afastar a companheira e um filho, conseguiu abrir a porta, entrar e ameaçar a ofendida.

9 - Este último episódio, revela que, mesmo depois da situação de violência doméstica ter sido denunciada pela ofendida perante a Guarda Nacional Republicana e ter sido instaurado o competente procedimento criminal, o arguido não conseguiu aceitar a vontade da ofendida de se afastar do arguido e, através do recurso à violência, forçou o reatamento da vida em comum com a ofendida.

10 - Ficou provada a prática pelo arguido de uma multiplicidade de atos ofensivos para a pessoa da ofendida BB integradores do crime de violência doméstica agravada com uma importância objetiva muito significativa que, em nosso entender, justificam a condenação do arguido em pena de prisão um pouco mais elevada que a aplicada pelo Tribunal recorrido.

11 - No que especificamente se refere ao crime de lenocínio agravado, verifica-se que a conduta criminosa que foi subsumida a este tipo legal de crime desenvolveu-se numa multiplicidade de atos que, de per si e analisados individualmente, poderiam integrar incontáveis crimes de lenocínio. Logo que iniciou a vida em comum com a vítima, aos quinze anos desta, o arguido deixou o emprego, numa churrascaria, e passou a viver dos réditos da prostituição da ofendida, obrigando-a, se necessário através da violência física, e levando-a a desenvolver aquela atividade inicialmente em …, depois em …, em …, nas imediações do Estabelecimento Prisional … e ainda em … . O arguido obrigou ainda BB a participar em dois filmes pornográficos para auferir os montantes da contrapartida que foi paga a esta ofendida.

12 - No crime de lenocínio agravado, pelo qual o arguido foi condenado, executado ao longo de 25 anos, estão exauridas uma multiplicidade de condutas típicas que, em nosso entender, impõem que a dosimetria da pena seja encontrada num ponto mais próximo do limite máximo a moldura legal.

13 - Compulsados os factos provados não conseguimos vislumbrar qualquer circunstância que milite a favor do arguido, nem no douto acórdão se refere alguma circunstância, que de algum modo, atenuante ou justificativa da conduta do arguido.

14 - O arguido não reconheceu a prática dos factos que o Tribunal considerou como provados, integradores dos crimes pelos quais foi condenado; adotou uma postura de vitimização, imputando à companheira e às filhas a responsabilidade pela existência do presente processo.

15 - O arguido nunca teve hábitos de trabalho, não beneficia de inserção social, familiar nem profissional. Não mantém relacionamento com os seus familiares, mesmo no Estabelecimento Prisional não recebe nem estabelece contacto com ninguém, nem mesmo com a família de origem.

16 - O Tribunal recorrido condenou o arguido pelo crime de violência doméstica de que é vítima BB na pena de quatro anos de prisão e pelo crime de lenocínio agravado na pena de três anos de prisão.

17 – Em nosso entender, estas penas, aplicadas pelo Tribunal recorrido, atenta a seriedade dos factos provados, apresentam-se demasiado brandas e, assim, incapazes de alcançar as finalidades da punição.

18 - Tendo em consideração os critérios legais de determinação da medida concreta da pena, entendemos que, no que se refere aos crimes de violência doméstica e de lenocínio agravado de que é vítima BB, a situação concreta demonstrada nos autos impõe a aplicação de penas parcelares um pouco acima do ponto fixado pelo Tribunal.

19 - Em nosso entender, o Tribunal não valorou corretamente a personalidade evidenciada pelo arguido - que não obstante o já considerável período de reclusão, propicio a um exercício de reflexão - não revelou ter interiorizado o desvalor da sua conduta, não pretendeu assumir a sua responsabilidade nem tão pouco conseguiu expressar qualquer sentimento de empatia para com as vítimas, culpabilizando-as, antes, pela sua atual situação nem a gravidade intrínseca dos factos provados.

20 - O arguido, ao longo de 25 anos, cometeu factos integradores dos crimes de violência domestica e de lenocínio agravado contra a ofendida BB sem que, durante todo esse tempo e até à data presente, tenha ponderado e interiorizado o desvalor e as consequências dos seus atos ou procurado alterar a sua conduta, o que revela uma absoluta impreparação do arguido para adotar uma conduta conforme ao direito, em especial no que diz respeito ao tipo de crimes contra as pessoas mais vulneráveis, o que determina um considerável acréscimo das exigências de prevenção especial.

21 - Com a prática dos crimes a que temos vindo a fazer referência, o arguido violou os mais elementares direitos da pessoa humana; o arguido agiu sobre a pessoa de BB, companheira e mãe dos seus filhos, como se BB fosse uma “coisa” ao serviço dos vícios e ensejos do arguido.

22 - Em nosso entender, a medida das penas parcelares aplicadas, acima referidas, estão significativamente abaixo da culpa do arguido e penas assim brandas - naturalmente, em face da especial gravidade dos factos - apresentam-se insuficientes para alcançar as finalidades da punição quer em termos de prevenção geral quer de prevenção especial e muito particularmente para restabelecer a confiança da comunidade na validade das normas violadas.

23 - No que se refere ao crime de lenocínio agravado, de que foi vítima BB, atentos os critérios legais de determinação da pena, em nosso entender, o arguido deverá ser condenado na pena de seis (6) anos de prisão.

24 - Por sua vez, no que se refere ao crime de violência doméstica de que também foi vítima BB, em nosso entender, o arguido deverá ser condenado na pena de quatro (4) anos e seis (6) meses de prisão.

25 - Importa ter presente que o arguido foi condenado pela prática de três crimes de violência doméstica que visaram a companheira e duas filhas do arguido e da primeira ofendida e ainda pela prática de um crime de lenocínio agravado que visou a mesma companheira.

26 - De acordo com o disposto no n.º 1, do artigo 77º, do Código Penal, na medida da pena do concurso são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, pelo que, na determinação da pena única, importa considerar a personalidade do arguido e muito especialmente a propensão que o mesmo revela para a prática de crimes contra as pessoas, concretamente contra pessoas a quem incumbia proteger e respeitar, mas que o arguido submeteu à sua vontade, absolutamente indiferente aos direitos e ao bem-estar dos membros do seu agregado familiar (esposa e filhas), com ofensas reiteradas ao longo de uma imensidão de dias e anos.

27 - Acompanhando o douto Acórdão do TR de Coimbra de 16.06.2015, processo 627/14.4PBCBR, relatado pelo Exmo. Senhor Desembargador Vasques Osório, “o elemento aglutinador dos vários crimes em concurso que vai determinar a pena única é a personalidade do agente”. “Por isso, impõe-se a relacionação de todos os factos entre si, de forma a obter-se a gravidade do ilícito global, e depois, relacionar cada um deles, e todos, com a personalidade do agente, a fim de determinar se estamos perante uma tendência criminosa, caso em que a acumulação de crimes deve constitui uma agravante dentro da moldura proposta ou se, pelo contrário, tal cumulação é uma mera ocasionalidade que não radica na personalidade do agente.”

28 - No caso em apreço, o arguido revela claramente uma tendência criminosa, que deve ser valorada como agravante da pena única do concurso e que, em nosso entender, não está refletida na medida da pena única.

29 - A prática dos quatro crimes em apreço, que constituem uma reiteração de condutas típicas integrando múltiplas ofensa dos direitos da personalidade da companheira e das filhas CC e DD apenas ao arguido poderá ser imputada e revela uma personalidade especialmente insensível aos comandos da ordem jurídica e social e ao respeito que o seu semelhante lhe deve merecer.

30 - Em face do supra exposto, mesmo que se mantenha a condenação nas penas parcelares aplicadas pelo Tribunal recorrido, afigura-se-nos que a pena concreta do concurso de crimes se mostra excessivamente baixa e, em nosso entender, deverá ser fixada em medida não inferior a dez anos e seis meses de prisão.

32 - Na procedência do segmento do presente recuso relativo à dosimetria de duas penas parcelares, em nosso entender, deverá o arguido ser condenado numa pena única que, observando os princípios acima enunciados, seja fixada em medida não inferior a doze anos de prisão.

(….) entendemos que o douto acórdão recorrido deverá ser parcialmente revogado, nos termos supra expostos, elevando-se duas penas parcelares e a pena única aplicadas ao arguido AA, nos termos supra expostos.”


ii). – Do recurso interposto pelo arguido.

“1. O arguido foi condenado na pena de 4 anos de prisão por violência doméstica sobre BB,

2. E na pena de 3 anos por lenocínio sobre a mesma BB,

3. No entanto, emerge da estrutura do douto acórdão que os factos subsumíveis em cada um dos tipos incriminadores não se encontram devidamente separados,

4. Levando à conclusão de que vários deles foram duplamente valorados, na medida em que foram considerados em cada uma das condenações,

5. Devendo a decisão ser substituída por uma outra que, separando de forma clara cada um dos factos integradores da conduta que levaria à condenação por cada um dos crimes,

6. Aplique, em homenagem aos princípios que limitam a medida das penas e que emergem dos Artigos 40.º e 71.º do Código Penal, penas parcelares inferiores às fixadas em cada um dos crimes e, consequentemente,

7. Reduzindo a pena única em que o arguido foi condenando.

(…) deve o presente recurso merecer provimento nos termos peticionados e, em consequência, ser a pena de prisão em que o arguido foi condenado reduzida (…)

iii). – Em resposta ao pretendido pelo arguido, argumenta o Ministério Público junto da comarca, que (sic): “1 – O recorrente AA pretende que o Tribunal recorrido separe de forma mais clara os factos que serviram para integrar o crime de violência doméstica agravada e de lenocínio agravado e, em face dessa separação, proceda à redução das penas parcelares aplicadas a cada um dos crimes.

2 - Da fundamentação de direito da douta decisão recorrido, concretamente da análise dos crimes de violência doméstica de que é vitima BB e de lenocínio, em nosso entender, resulta perfeitamente esclarecido quais os factos dados como provados que o Tribunal subsumiu a cada um dos crimes.

3 - No caso em apreço, ocorre a circunstância de a pessoa ofendida pelo crime de violência doméstica agravada ser a mesma que é ofendida pelo crime de lenocínio agravado.

4 - No entanto, aceitando-se que algumas condutas que integram o crime de lenocínio podem relevar no crime de violência doméstica, ficaram provadas outras condutas que apenas integram o crime de violência doméstica e que justificam a condenação, em concurso real, pela prática dos crimes de violência doméstica agravada e de lenocínio agravado.

5 - Do facto da pessoa de a pessoa da vítima coincidir nos dois crimes em apreço, não decorre que a conduta do arguido se apresente menos grave ou, de alguma forma, menos merecedora de tutela penal. Em nosso entender, esta circunstância agrava, em muito, a conduta do arguido e deve ter reflexos na determinação da medida concreta das penas parcelares e da pena única – elevando-as.

6 - Atendendo ao contexto em que o arguido praticou os dois crimes em apreço, designadamente a razão de o mesmo se aproveitar da especial vulnerabilidade em que colocou a vítima, decorrente da prática ofensas físicas e psicológicas, para a levar à prática da prostituição, constituiu uma fator que deve influenciar em desfavor do arguido a medida da pena

7 - Por outro lado, o facto de o arguido praticar o crime de lenocínio agravado na pessoa da ofendida BB, ciente que mantem com a ofendida uma relação como se marido de mulher se tratasse e ainda que a vítima é a progenitora de três descendentes em comum com o arguido, é especialmente censurável e justificativo de especial rigor punitivo.

8 - A medida concreta das penas parcelares e da pena única aplicadas ao recorrente AA apresenta-se muito branda e deve, em nosso entender, ser aumentada, nos termos expostos no recurso apresentado pelo Ministério Público.

Termos em que deve o recurso apresentado pelo arguido AA ser julgado improcedente, nos termos acima expostos.”

iv). – Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público, opina que (sic): “(…) Do parecer.

A Magistrada recorrente pugna pela elevação da pena parcelar quanto ao crime de lenocínio agravado, de 3 anos para 6 anos de prisão. E pela elevação da pena parcelar quanto ao crime de violência doméstica agravado de que também foi vítima BB, de 4 anos para 4 anos e seis 6 meses de prisão.

Nos termos do art. 77º nº1 do CP, considera que “o arguido revela claramente uma tendência criminosa, que deve ser valorada como agravante da pena única do concurso, a qual, não está refletida na medida da pena única aplicada.”

 E pugna no sentido de, caso sejam mantidas as penas parcelares aplicadas pelo Tribunal recorrido, que a medida da pena única não deverá ser inferior a 10 anos e 6 meses de prisão.

Caso as penas parcelares venham a ser elevadas, como propõe, que a medida da pena única não deverá ser inferior a 12 anos de prisão.

Nos termos do art. 432º nº1- c) do CPP, recorre-se para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito.

No caso dos autos, o arguido foi condenado em penas parcelares inferiores a 5 anos de prisão, sendo apenas impugnável para o STJ a medida da pena única, fixada em 7 anos de prisão.

E sempre se dirá, subsidiariamente, afigurar-se correctamente subsumida a factualidade imputada ao arguido à tipicidade de crimes pelos quais foi condenado, pelos fundamentos aduzidos na resposta do MºPº, supra aludida.

Nos termos do art. 77º nº1 do CP, tendo como ponto de análise a imagem global do facto, reveladora da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do arguido, pelos fundamentos aduzidos nas conclusões 25 a 29 do recurso interposto pelo MºPº, afigura-se adequado e proporcional ao grau de culpa com que o arguido atuou a aplicação de pena única de 10 anos de prisão.”

I.b). – QUESTÕES A MERECER SOLUÇÃO NO RECURSO.

A inferência permitida das sínteses conclusivas que se deixaram extractadas possibilitam a disquisição das sequentes questões:

a). – Imprecisa e entretecida narração factual e indefinição no enquadramento e delimitação dos factos referentes a cada um dos ilícitos por que o arguido foi acusado e condenado.

b). – Individualização judicial da medida das penas, parcelares e conjunta. (Tratando-se de recurso a ser conhecido directamente pelo Supremo Tribunal de Justiça (cfr. artigo 432º do Código de Processo Penal), este Supremo Tribunal na observância da jurisprudência uniformizada deverá conhecer não só da pena única mas igualmente das penas parcelares («A competência para conhecer do recurso interposto de acórdão do tribunal do júri ou do tribunal coletivo que, em situação de concurso de crimes, tenha aplicado uma pena conjunta superior a cinco anos de prisão, visando apenas o reexame da matéria de direito, pertence ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, do CPP, competindo-lhe também, no âmbito do mesmo recurso, apreciar as questões relativas às penas parcelares englobadas naquela pena, superiores, iguais ou inferiores àquela medida, se impugnadas.» - Acórdão de Uniformização de  Jurisprudência nº 5/2017, de 27 de Abril de 2017, proferido no processo nº 41/13.8GGVNG-B.S1, publicado no Diário da República nº 120, Serie I, de 23 de Junho de 2017)


II. FUNDAMENTAÇÃO.

II.A. – DE FACTO

Os recorrentes acolhem e aceitam a factualidade que foi apurada pelo tribunal recorrido – para além da acoimada imprecisão e indefinição narrativa apontada pelo arguido – e não se vislumbrando necessidade de intervenção oficiosa deste Supremo Tribunal de Justiça, para remedeio de vícios que pudessem advir de erros de julgamento (cfr. artigo 410º do Código de Processo Civil), haverá que ter por firme a adquirida a factualidade que a seguir queda extractada.

1. O arguido e BB, ele nascido em … .10.1960 e ela em … .02.1978, vivem em comunhão de mesa, leito e habitação, em termos de estabilidade, comportando-se ambos como se efetivamente de marido e mulher se tratassem, desde que esta tinha aproximadamente 15 anos de idade.

2. BB encontrava-se institucionalizada desde os 5/6 anos de idade -tendo ingressado no sistema de acolhimento residencial anteriormente a ingressar na escola primária, com a mãe falecida pouco tempo depois (por suicídio), situação em que se encontrava até ao inicio da relação com o arguido, com o qual passou então a viver.

3. BB tem cinco filhos: GG, de 23 anos e residente em … com a avó paterna; CC, nascida a … .10.1996; DD, nascida a … .08.2001; EE, nascido a … .10.2013; FF, nascido a … .11.2004, sendo os quatro primeiramente referidos também filhos do arguido.

4. O jovem FF nasceu com espinha bífida, condição que determina o seu acompanhamento médico constante, no CH..  .

5. O arguido, BB e os filhos CC, DD, FF e EE viviam juntos, tendo como última morada em comum a Rua …, no Bairro do …, nº …, em … .

6. Desde o início da vida em comum que o arguido era violento e controlador para com BB, postura que posteriormente manteve em relação aos filhos.

7. Assim, o arguido, desde que BB tinha 15 anos de idade, sempre lhe infligiu maus tratos, físicos e psíquicos e sexuais, pois que sempre se soube aproveitar, quer do seu ascendente pessoal, quer de género e de idade, quer, sobretudo, do isolamento, fraca autoestima e fragilidade emocional daquela, pelo facto da mesma ter sido criada em instituições e não ter família que a apoiasse, dizendo-lhe, inúmeras vezes, que "ela sem ele não era nada" e que caso o denunciasse às autoridades ou o abandonasse iria "ficar sem os filhos".

8. Quer BB, quer o arguido nunca exerceram qualquer atividade profissional legítima durante a vida em comum.

9. Com efeito, depois do início da relação, o arguido despediu-se do emprego que então tinha, na churrasqueira onde se conheceram, em …, e passaram a ter como único rendimento os proventos advenientes da prostituição de BB, atividade a que o arguido a levou.

10. Com efeito, o arguido levou BB a prostituir-se em diversos locais, desde um estabelecimento em …, em …, às imediações do Estabelecimento Prisional …, cidade onde se conheceram, sitio onde ficava, sentado num banco, à espera que esta "trabalhasse" e lhe desse o dinheiro que os clientes pagavam.

11. Posteriormente, já no ano 2000, o casal resolveu vir viver para … para a residência dos progenitores do arguido, cidade onde o arguido continuou a forçar BB a prostituir-se, tanto fazendo-a ir aos fins-de-semana para … trabalhar nos locais habituais e dando-lhe o dinheiro que angariasse ao regressar a casa, como organizando encontros entre esta e clientes angariados pelo próprio nesta zona e que levava ao encontro de BB, entre eles o próprio pai do arguido, bem como HH, II e JJ, entre outros clientes não concretamente identificados.

12. O arguido também obrigava BB a relatar-lhe, de forma detalhada e com os pormenores mais íntimos, os encontros com clientes, assim a humilhando, já que a fazia reviver esses momentos e sentir-se como se fosse "lixo" e "para ser usada".

13. Pouco depois de se mudarem para …, decidiram arrendar casa, mas como não possuíam liquidez para pagar a renda e o depósito, o arguido obrigou a companheira BB a participar em dois filmes pornográficos, com que foi obtida a quantia de €1.000,00, por cada um, que BB entregou ao arguido.

14. Os pagamentos dos "clientes" de BB ou eram feitos pelos "clientes" ao arguido ou à própria, sendo que nesse caso ela depois dava o dinheiro ao arguido para que este dispusesse do mesmo como quisesse, conseguindo apenas por vezes esconder alguns montantes daquele para alimentar os filhos.

15. O dinheiro que BB obtinha de tal atividade, o qual chegou a ascender a cerca de €4 00,00 por dia, era gasto pelo arguido em álcool, tabaco, jogo e outros vícios, tendo o arguido hábitos alcoólicos e fumando bastante.

16. Mesmo quando BB diligenciou para que o agregado passasse a beneficiar de RSI, como o valor do mesmo rondava os €400,00 mensais e não era suficiente para satisfazer os vícios do arguido, este continuou a obrigar a vítima BB a prostituir-se, sempre contra a vontade desta.

17. A prioridade familiar era responder aos vícios do arguido, pelo que as despesas com os vícios do próprio sobrepunham-se às demais, mesmo as concernentes à alimentação e vestuário das crianças, e o agregado passava por carências económicas e dependia, nomeadamente, da boa vontade de terceiros para angariar alimentos, assim como de montantes que BB pedia a alguns clientes e que estes lhe davam para além dos pagamentos habituais entregues ao arguido, ou que esta escondia do arguido, para assim poder adquirir comida.

18. Quando BB se negava a prostituir-se, por se estar a ressentir em termos físicos e/ou emocionais, "com a autoestima muito em baixo", ou quando não conseguia angariar ou pelo menos entregar ao arguido, os montantes que este entendia serem adequados, em particular quando passaram a residir em … e a atividade de BB passou a ser menos "lucrativa", o arguido dava-lhe bofetadas com as mãos abertas, murros com a mãos fechadas, e pontapés em diversas partes do corpo, e empurrava-a contra as paredes, com o que causava dores e hematomas àquela.

19. Nessas ocasiões, o arguido também ameaçava a companheira BB.

20. Nomeadamente, dizia à companheira que ia conseguir que esta voltasse a ser institucionalizada e que ia perder os filhos porque estes também seriam institucionalizados, hipóteses que sabia configurarem o maior receio daquela.

21. O arguido também ameaçava BB de morte, por diversas vezes, empunhando facas de cozinha, que exibia e bramia na direção da companheira.

22. Nessas ocasiões, o arguido também chamava BB de "puta", "filha da puta", "cabra de merda", "vaca", "porca de merda", e dizia-lhe "não vales nada" e "não preciso de ti para nada".

23. O arguido também dirigia à sua companheira frases como "ainda bem que o teu irmão morreu de sida, a próxima tens de ser tu a matar-te, ou então fode sem preservativo sua puta de merda", referindo-se ao irmão mais velho de BB, o único familiar com o qual esta tinha contacto e de quem era próxima, entretanto falecido, e cujo desaparecimento prematuro, contando com pouco mais de 20 anos de idade, tinha causado especial sofrimento a esta vítima.

24. Estas ocorrências sucediam, nomeadamente, na residência do agregado familiar, diante dos filhos que estivessem em casa, e mesmo quando BB se encontrava grávida.

25. O arguido só parava as agressões a BB com a intervenção dos filhos.

26. Em virtude de o arguido bramir facas de cozinha do modo supra descrito, os filhos residentes com o casal, em particular a referida filha mais velha CC, adquiriram o hábito de esconder as facas de cozinha, com o fito de proteger a mãe.

27. Por outro lado, as filhas CC e DD, após o nascimento dos irmãos mais novos, e enquanto irmãs mais velhas, procuravam "dividir tarefas" quando ocorriam situações de tal cariz, mais concretamente, enquanto uma procurava proteger a mãe e separar os pais, a outra tentava acalmar os irmãos FF e EE.

28. O arguido também dirigia às filhas epítetos como "puta" nessas ocasiões.

29. BB não dava conhecimento destes factos às autoridades, ou, quando tal sucedia inicialmente, remetia-se posteriormente ao silêncio e chegava a negá-los, com medo de represálias por parte do arguido, tanto dos castigos físicos supra descritos, como de que este levasse a cabo as ameaças que proferia, em especial, que conseguisse que BB fosse de novo institucionalizada, situação que o arguido sabia que esta receava e, sobretudo, que os filhos lhe fossem retirados e também eles institucionalizados, como tinha sucedido à própria, hipótese que o arguido sabia ser o maior receio desta mãe.

30. Nomeadamente, no mês de agosto de 2013, quando BB se encontrava grávida do filho EE, em cenário de gravidez de risco, para evitar mais agressões físicas por parte do arguido na sequência de uma discussão, BB, acompanhada dos filhos que estavam presentes, CC, DD e FF, saíram de casa descalços, durante a noite, para procurar refúgio em casa de terceiras pessoas, no caso, do vizinho KK.

31. Mais recentemente, no dia 08.08.2018, pelas 23h00, no interior da residência do agregado, no nº …, da Rua …, no Bairro …, em …, ocorreu mais uma discussão entre o casal, diante dos filhos residentes.

32. Nessa ocasião, o arguido dirigiu à filha DD, que à data contava 16 anos de idade, epítetos como "puta", "és uma criança", "estou farto de ti" e "vais ter o mesmo destino que a tua mãe", quando esta procurava acalmar o irmão EE, que "não parava de gritar" assustado, chorando e vomitando, e contava à data 4 anos de idade.

33. O arguido desferiu, igualmente, um pontapé em BB e um empurrão e um murro em DD, que a atingiu na cabeça, batendo depois com a cabeça num armário.

34. Quando a filha CC acorreu para tentar acalmar o pai, o arguido disse-lhe "ah sua filha da puta, estás a empurrar-me" e investiu contra esta a correr, fazendo-a fugir com receio de também sofrer agressões físicas por parte do pai.

35. Na sequência de tal episódio, o agregado deixou de residir por algum tempo em casa, tendo BB e os filhos mais novos, FF e EE, saído de casa para uma instituição, enquanto o arguido foi residir para casa dos progenitores, tendo pouco depois BB e os dois filhos mais novos regressado a casa, após acordo com o arguido mediado pela proteção de menores, de que este último não voltava àquela casa e não os contactaria.

36. No dia 30.08.2018, pelas 12h00, o arguido voltou à residência familiar, após ter consumido bebidas alcoólicas, procurando voltar para a companheira e para exigir a BB que esta lhe desse dinheiro para os seus consumos, nomeadamente, de tabaco e álcool.

37. Depois de BB lhe ter comprado uma garrafa de uma bebida alcoólica num café próximo, o arguido, que a tinha acompanhado, tentou regressar a casa com ela.

38. BB procurou passar à frente do arguido para se fechar dentro de casa, a salvo do arguido.

39. BB conseguiu entrar em casa antes e fechar a porta, mas o arguido procedeu a tentar abri-la para entrar, com BB e FF a tentar segurar a porta, do lado de dentro, para que o arguido não entrasse.

40. Para conseguir entrar, arguido partiu o vidro da porta e pela abertura assim conseguida inseria a mão, empunhando uma navalha que abanava, para afastar BB e FF e conseguir abrir a porta e entrar.

41. Com tal atuação, o arguido causou a BB dores e desconforto, e as seguintes lesões, as quais determinaram em condições normais 8 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho: na mão direita, uma escoriação com 1,5 centímetros, 3 escoriações no braço esquerdo, com 0,5 centímetros, 0,2 centímetros e no cotovelo com 3 centímetros, e no antebraço esquerdo uma escoriação linear com 4,5 centímetros.

42. Por seu turno, o arguido causou a FF, cora a descrita atuação, dores e desconforto, e as seguintes lesões, as quais determinaram em condições normais 8 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho: no antebraço esquerdo, uma escoriação linear com 1 centímetro, e, no dorso da mão esquerda, uma escoriação linear com 4 centímetros.

43. O arguido conseguiu assim que ambos se afastassem da porta e logrou entrar era casa, e BB e FF fugiram para a varanda da residência, e gritaram a pedir ajuda.

44. Estavam então em casa BB e os filhos FF e EE, tendo este último também assistido ao desenrolar dos acontecimentos, e ficando ambos os menores aterrorizados com a situação.

45. Pouco depois, compareceram no local uma patrulha do Posto da GNR … e outra patrulha do Posto da GNR …, cujos elementos procuraram estabelecer diálogo com o arguido, enquanto este dizia que "estava barricado".

46. Aproveitando uma distração do arguido, FF e EE fugiram para a rua, permanecendo na residência, cora o arguido, apenas BB.

47. Nessa altura, o arguido impedia que BB saísse da varanda, onde a tinha encurralado num canto, a agarrá-la por vezes pelos braços e a imobilizá-la com o peso do próprio corpo, com o semblante muito alterado e a espumar da boca, ao mesmo tempo que lhe dirigia frases como "já trato dos dois e fica tudo resolvido" e "sua filha da puta vamos lá para dentro que um de nós fica aqui", posto o que agarrou BB e a arrastou para o interior da residência, onde foi de imediato imobilizado por militares da GNR.

48. Na sequência do último episódio relatado, BB, assim como os filhos FF e EE, foram conduzidos ao Hospital …, na … .

49. O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, contra BB, sua companheira e mãe dos seus quatro filhos biológicos e do jovem FF, sabendo que lhe incumbia o especial dever de manter um são relacionamento, baseado no respeito mútuo e, não obstante, valendo-se dessa proximidade afetiva e aproveitando-se das múltiplas fragilidades daquela, das quais era conhecedor, nomeadamente, da idade, do isolamento e do percurso de vida, para assim ganhar e posteriormente garantir um forte ascendente sobre a mesma, procurou controlar todas as dimensões da vida daquela, o que logrou, mantendo-a sob o seu controlo e determinando todas as dimensões da vida da companheira, o que logrou, impondo-se sistematicamente através de uma reiterada violência física, psíquica e sexual, nomeadamente, no interior da residência comum do casal e na presença dos filhos menores, causando a esta sofrimento a nível físico e psíquico pelas humilhações, objetificações, constrangimentos, desgostos e medos a que a sujeitou, ao tratá-la da forma supra relatada, e prejudicando-a na sua liberdade de determinação, mais querendo e sabendo que por meio de tal controlo fomentava, favorecia e facilitava o exercício da prostituição pela sua companheira, contra a vontade desta.

50. Também agiu o arguido contra CC e DD, por um lado, sabedor das idades de todas, de que eram suas filhas biológicas e, por outro, consciente de que lhe incumbia um especial dever de proteção de todas e que lhes devia respeito e consideração, e, não obstante, quis infligir-lhes maus-tratos psíquicos e físicos, sujeitando-os às situações supra relatadas, o que também conseguiu, a que assistiram também EE e FF, sendo o arguido sabedor das idades destes, de que o primeiro era seu filho biológico e que FF tinha uma condição de saúde delicada.

51. Mais sabia o arguido que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Mais se provou,

52. BB rejeita qualquer hipótese de reconciliação com o arguido, evidenciando fragilidade emocional e sentimentos de medo relativamente ao mesmo, tal como as filhas.

Quanto às condições pessoais do arguido,

53. O arguido nasceu em … .10.1960, em …, onde o pai cumpria serviço militar, sendo o segundo de 5 filhos do casal, mas a sua infância decorreu em …, onde o pai foi colocado como agente da PSP, tendo beneficiado de ambiente familiar equilibrado, existindo da parte dos pais preocupações educativas e investimento afetivo; veio para Portugal aos 15 anos de idade, com a mãe e irmãos, para fugir à guerra, ficando o pai em … .

54. As dificuldades de adaptação no início foram superadas graças ao apoio de familiares paternos, residentes em … (…), tendo o pai regressado mais tarde (prosseguido a carreira na PSP até ao posto de comissário), sendo que o percurso escolar do arguido foi iniciado em …, num colégio de cariz religioso, onde concluiu o ensino primário, e em … continuou os estudos até ao antigo 5º ano do liceu que não completou, tendo optado por se candidatar ao serviço militar.

55. Referindo ter trabalhado entretanto num posto de abastecimento de combustíveis, em …, afirma ter ingressado no Corpo de … em 1980, onde permaneceu integrado dez anos, sendo que nesse período se colocou em situações consideradas como deserção, o que originou o cumprimento de prisão no presidio militar …; no período seguinte viveu em …, onde diz ter trabalhado como segurança cerca de 2 anos e posteriormente numa churrasqueira.

56. Afirmando ter sido casado em duas ocasiões, a primeira teria cerca de 18 anos, com uma namorada a quem engravidou, sendo que a união, da qual resultou uma filha, terá sido imposta pela família e teve curta duração e uma fraca ligação à descendente, com que apenas contactou de forma esporádica; do segundo casamento tem um filho, com quem também não mantém relação, imputando a desestruturação da sua vida familiar aos condicionalismos da vida militar.

57. Havendo registo de um período de 7 meses de reclusão do arguido no EP …, em 1993, mais tarde, com cerca de 32 anos conheceu, em …, BB (à data com 15 anos de idade), a qual era órfã de mãe e tinha fugido da instituição onde estava acolhida há anos, referindo que gostou dela e quis ajudá-la (a sair de uma vida que disse ser de rua e prostituição) encetou uma união, nos termos referidos em 1., sendo que vivenciavam uma situação económica difícil porque ele não tinha trabalho certo (laborou na … e depois dedicou-se à pintura … para venda) tendo residido na casa de amigos, em pensões e em casa de um irmão da companheira na …, sendo que a mãe do arguido nunca aceitou a relação deste com BB.

58. A primeira filha do casal (GG, atualmente com 23 anos) desde bebé ficou aos cuidados dos avós paternos em …; nos anos seguintes o casal viveu em … e noutros locais até se fixarem em …, há cerca de 16/17 anos; sendo que no período a que se referem os factos em causa nos autos, o arguido vivia em … com BB e 4 filhos mais novos - CC, DD, FF e EE, que atualmente têm 22, 17, 14 e 5 anos de idade, respetivamente.

59. FF tem problemas de saúde (espinha bífida) e não é filho biológico do arguido, sendo fruto de um outro relacionamento da mãe; a filha mais velha vive em …, com a avó paterna; o agregado residia em casa arrendada (pagavam 200€ de renda) com adequadas condições de habitabilidade, eram beneficiários do Rendimento Social de Inserção (cerca de 440€/mês), das prestações familiares dos menores (240€) e ainda da pensão de sobrevivência (120€) atribuída ao menor FF, FF; a filha CC iniciou entretanto estágio profissional remunerado numa …, sendo esse dinheiro essencialmente gerido pelo arguido, nos termos acima provados.

60. AA não exercia atividade laboral, apenas se dedicando à pintura … que comercializava, não se tendo logrado apurar se dai retirava algum rendimento, afirmando o arguido que durante três anos, não sabe precisar quando, foi porteiro/segurança em casas de alterne na … (…), acrescentando que até o pai falecer recebia apoio económico dos pais e mesmo após enviuvar a mãe também o ajudou algum tempo, sendo que o arguido sempre se mostrou cordato junto dos técnicos do RSI, ainda que indisponível para trabalhar.

61. No que se refere à dinâmica familiar, para além do acima provado, verificaram-se algumas desavenças desde a fase que ainda viviam em …, que o arguido justifica com a dificuldade da ex-companheira em se desvincular de certos hábitos, concretamente o relacionamento com outros homens e de episódios de abandono do lar, levando os filhos, que o arguido diz ter perdoado porque se preocupava com o seu bem-estar e sobretudo com o dos filhos e queria a família unida.

62. O arguido aceitou e sempre tratou o FF como seu próprio filho, mas aquela situação deixou marca na relação, afirmando o arguido que procurou manter a normalidade do relacionamento familiar e preservar a imagem da mãe perante os filhos.

63. O arguido foi consumidor de substâncias psicoativas há alguns anos atrás e de bebidas alcoólicas até à sua detenção, por vezes em excesso, que o tornavam mais reativo e violento, sendo que nunca assumiu essa questão como um problema, nem procurou tratamento médico.

64. A CPCJ de … teve intervenção junto da família em 2008, após sinalização da PSP de …, por incidentes entre BB e o pai biológico de FF; em 2011 o processo foi reaberto por denúncias de suspeitas de exposição dos menores à prática de prostituição por parte da mãe, mas o processo foi arquivado no mesmo ano verificando-se que os filhos se apresentavam cuidados e equilibrados, sendo a mãe considerada zelosa e afetuosa.

65. Após o sucedido em agosto 2018, a CPCJ abriu de novo processo aos três filhos ainda menores, que foi arquivado em dezembro, à exceção do menor FF tendo em conta a necessidade de maior vigilância devido à sua problemática de saúde.

66. Quer em …, quer em … (aldeia onde viviam os pais do arguido, que ali se deslocava e onde residiu temporariamente após a morte do pai), era publicamente comentado que BB se prostituía, com conhecimento e aceitação pelo arguido (sem prejuízo do demais provado neste particular).

67. Junto da comunidade o arguido é considerado um individuo sem hábitos de trabalho, pontualmente consumidor de bebidas alcoólicas em excesso, que lhe suscitavam alguma reatividade comportamental, e junto da GNR local foi referenciado, entre o mais, há anos por crimes de condução sem habilitação legal e por queixas de maus tratos por parte da companheira que ela não formalizava, sendo considerado um individuo conflituoso e sem grandes relações sociais.

68. Preso preventivamente à ordem dos presentes autos no EP … desde …/08/2018, AA tem mantido bom comportamento e procurado manter-se ocupado em atividades ligadas às artes (…, …) e formações de curta duração; mantém-se inativo; não reconhece hábitos aditivos, afirmando que apenas bebia às refeições; nunca recebeu visitas, nem estabelece ou recebe contactos telefónicos do exterior, nem mesmo da família de origem, referindo não manter boa relação com os irmãos e supor que a mãe desconhece a sua reclusão dado estar em … .

69. Abstratamente, relativamente a crimes da natureza idêntica aos que estão em causa afirma considerá-los de extrema gravidade e repudiar quem os pratica; adota uma postura de vitimização, afirmando-se incapaz de perceber a atitude de BB e das filhas.

70. Na sequência do sucedido e desde que foi preso não voltou a haver qualquer contacto entre o arguido e BB, sendo que este assegura que não pretende retomar a relação mas espera poder recuperar o convívio com os filhos, particularmente com os rapazes a quem se sente afetivamente mais ligado.

71. O arguido afirma a intenção de se fixar em … (…), na casa de seus pais.

72. O arguido já foi condenado, por decisão transitada em julgado em 8.03.2013, por factos praticados em 6.02.2013, pela comissão de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.° 3º, ns. ° 1 e 2 do DL n. ° 2/98, de 3.01, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €5,15, depois substituída por 59 horas de trabalho a favor da comunidade e foi também condenado, por decisão transitada em julgado em 22.11.2013, por factos praticados em 10.10.2013, pela comissão de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.° 3º, ns.° 1 e 2 do DL n.° 2/98, de 3.01, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €5,50.


II. 2. Factos não provados,

Não se provou que:

Da acusação,

a) o referido em 9. ocorreu cerca de uma semana depois do início da relação;

b) o arguido fumava não menos de 3 maços de tabaco por dia;

c) o referido em 26. ocorresse quotidianamente;

d) nas circunstâncias referidas em 33. e para além do aí mencionado o arguido desferiu, igualmente, pontapés em DD e murros com a mão fechada em BB, tendo atingido ambas em diversas partes do corpo;

e) nas circunstâncias referidas em 35. o arguido foi residir com os progenitores;

f) nas circunstâncias referidas em 37. o arguido fez a companheira regressar a casa com ele;

g) também agiu o arguido contra EE e FF e quis infligir-lhes maus-tratos psíquicos e físicos, o que também conseguiu.

Quanto ao demais vertido na acusação, em particular a alusão a "união de facto" inicialmente ali vertida, por se tratar de um conceito essencialmente de direito, sobre o mesmo não pôde recair qualquer juízo probatório, tendo o Tribunal concretizado, em face da prova produzida, factualmente, o mesmo.


II. - 3. Motivação

Fundou o Tribunal a sua convicção no conjunto das declarações e depoimentos produzidos em audiência de julgamento e no teor da prova documental e pericial junta aos autos, analisada de forma crítica, conjugada com regras de experiência comum (cfr. art. 127º e 163º do CPP).

Assim e relativamente à prova documental e pericial junta aos autos e considerada para a formação da convicção, do Tribunal, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzida, relevou:

- o auto de notícia de fls. 4 e ss. (original a f Is. 20 e ss. ) e respetivos aditamentos a fls. 16 e 17 (original a fls. 32 e 33) e 93 e ss. (original a fls. 141 e ss.);

- o auto de apreensão da navalha aludida na acusação, a fls. 144;

- a cópia do relatório institucional de episódio de urgência relativo à assistência hospitalar prestada em 30.08.2018 à BB, junto a fls. 145;

- a cópia do relatório institucional de episódio de urgência relativo à assistência hospitalar prestada em 30.08.2018 a FF, junto a fls. 146;

- a cópia do relatório institucional de episódio de urgência relativo à assistência hospitalar prestada em 30.08.2018 a EE, junto a fls. 147;

- o relatório fotográfico realizado à casa de habitação do casal e navalha, por reporte ao sucedido no dia 30.08.2018, junto de fls. 151 a 157 (e depois de f Is. 220 a 223), onde é bem visível o estado em que a habitação ficou e a altura da varanda em que terminou o protagonizado pelo arguido;

- a informação da DGRSP junta a fls. 188;

- o relatório pericial de avaliação do dano corporal em direito penal realizado a BB, junto a fls. 191 e 192;

-o relatório pericial de avaliação do dano corporal. em direito penal realizado a EE, junto a fls. 195 e 196, embora este tenha sido inclusivo;

- o relatório pericial de avaliação do dano corporal em direito penal realizado a FF, junto a fls. 199 e 200;

- a missiva dirigida pelo arguido à companheira BB junta de fls. 211 a 215, onde sobressai a solicitação de dinheiro àquela e outros favores, sem existir qualquer referência, ainda que indireta, a arrependimento dos atos que praticou;

-os assentos de nascimento de EE, a fls. 245; FF, a fls. 250; DD, a fls. 251 e CC, a fls. 252;

- a informação fiscal de fls. 263;

- o resultado da pesquisa nas bases de dados da Segurança Social de fls. 264;

- quanto à inserção socioeconómica do arguido, para além das declarações que o próprio prestou a respeito, relevou o relatório social junto de fls. 354 a 356 e 357 a 360;

- foi ainda considerado, a nível documental, o certificado de registo criminal do arguido, junto de fls. 60 a 65 e 306 a 311.

Incidindo agora sobre a demais prova produzida, nomeadamente as declarações do arguido, os depoimentos e seu relacionamento com os elementos que antecedem, importa reter que a apreciação de todos estes elementos, que redundam no juízo fáctico acima concretizado, teve sempre presente a especial natureza dos factos em causa e suas especificidades (estando em causa factos reportados, grosso modo, ao contexto doméstico, sem outras testemunhas que os membros da família)"."

Feita esta ressalva e principiando pelas declarações do arguido, AA, cumpre referir que o mesmo negou a prática de todas as ofensas, físicas e verbais, bem como ameaças que lhe são imputadas no libelo acusatório, confirmando apenas o vertido nos primeiros parágrafos da acusação (nomeadamente o vertido de 2. a 5.) e a existência de discussões com a companheira.

Assim, e no que se refere à dinâmica familiar o arguido começou por afirmar que sempre manteve uma relação harmoniosa com a companheira BB, considerando-a uma boa mãe, cuidadosa e atenta aos filhos (embora depois critique vários aspetos da sua conduta e os utilize para justificar alguns comportamentos), negando quaisquer agressões aos filhos e afirmando que sempre procurou incutir à companheira e aos filhos disciplina e valores e que por vezes adotava um discurso duro, mas sem recurso a violência.

Referindo que conheceu BB quando esta teria 16 ou 17 anos, estando fugida da instituição que a acolhia (desde o suicídio da mãe), ao qual voltou, sendo que "houve um dia em que a foi buscar ao colégio" (expressão bem reveladora de uma ideia de posse) tendo começado a viver juntos, ainda esta não era maior de idade.

Afirmando ter tido vários trabalhos na zona de …, embora nenhum com particular estabilidade (aludiu a várias ocupações como transporte de lixo e participação nas "obras …", onde disse ter estado dois anos), disse que veio para … quando a filha GG tinha 4 anos, onde passou a pintar quadros para vender e realizou trabalhos como porteiro em dois bares, contando com a ajuda do pai que faleceu há 5 anos [[1]].

Invocando que trouxe bastante dinheiro quando veio com a companheira para … (o que não se mostra verosímil atentas as declarações desta, no sentido de que teve de continuar a prostituir-se para assegurar a sobrevivência da família), referiu que também trabalhou na construção de um prédio na … ...

Note-se que o arguido referiu ainda ter chegado a receber mais de mil euros mensais provenientes dos abonos, pensão do filho FF e outros subsídios (o que associado à principal fonte de rendimentos conhecida daquele agregado e às dificuldades económicas pelos seus membros experienciadas permite concluir que não existiam poupanças ou uma gestão minimamente responsável daqueles dinheiros pelo arguido, que como veremos tudo gastava em álcool, tabaco, jogo e bares), dinheiro que o próprio afirmou perentoriamente ser quem o administrava.

Não obstante estas declarações, as dificuldades económicas do agregado familiar do arguido eram de tal ordem que, mais adiante nas suas declarações, este reconhece ter mandado a filha DD e o FF apanhar-lhe piriscas para a rua que pudesse fumar pois já nem tinha dinheiro para tabaco.

Perguntado sobre a razão de, em face dos subsídios, apoios e trabalhos que invoca, em abstrato capazes de providenciar pelas necessidades da família, se aludir reiteradamente na acusação à prostituição pela companheira, quer em …, quer depois em …, o arguido limitou-se a referir que esta sempre fez da prostituição a sua vida, sendo que foi para a afastar da prostituição que a trouxe para … (?!).

Questionado sobre o motivo de mesmo em … e até à sua detenção se referir que tal prática não cessou (como se verá de vários depoimentos Infra aludidos), o arguido referiu que ela sempre se dedicou à prostituição e que inclusive prostituía-se nas suas costas...

Afirmando que soube que o filho FF não era seu 3 ou 4 anos depois daquele ter nascido, o arguido justificou a manutenção do relacionamento com a indicação de que depois do nascimento da criança passaram a viver em quartos separados.

Não só tal justificação não colhe em face do por si referido (só anos depois soube que não era pai), como é contrariado pelo número de filhos que depois tiveram, como se tornou evidente, em face da prova testemunhal mobilizada nos autos, que existia uma dependência do arguido dos rendimentos que a prostituição da companheira lhe proporcionava e lhe permitiam não trabalhar.

Aliás, tendo negado qualquer prática de prostituição da companheira em … (onde apenas foi beber um copo com os amigos), embora reconhecendo que esta se prostituía junto ao EP …, o arguido chegou a afirmar que em … foi feliz com a companheira, sendo que esta ali nunca se prostituiu.

Não podia o arguido faltar mais à verdade, na medida em que, como veremos, não só tal aconteceu, como acontecia com grande frequência, sempre com o conhecimento e com "clientes" angariados pelo próprio arguido.

Neste sentido o arguido afirmou igualmente que é impossível que a companheira se tenha prostituído para o seu pai (dele), dizendo depois (ao contrário da negação inicial) não saber se as pessoas indicadas na acusação foram "clientes" da companheira, bem como afirmou desconhecer a participação desta em qualquer filme pornográfico mediante remuneração.

Como veremos, todos estes "desconhecimentos" foram amplamente contrariados pela demais prova produzida, que apontou claramente o arguido como o protagonista e fomentador de muitos destes acontecimentos.

Instado sobre o estado anímico e debilitado da companheira provocado por anos de prostituição e as agressões descritas no libelo acusatório com aquele a instava a tal prática, o arguido voltou a negar qualquer agressão, admitindo apenas que em algumas discussões a terá empurrado ou afastado com cuidado, igualmente negando quaisquer insultos ou ameaças como os que lhe são imputados nos autos, referindo que é tudo inventado.

Admitindo apenas algumas desavenças com a ex-companheira, desde a fase que ainda viviam em …, decorrentes da dificuldade desta em se desvincular de certos hábitos, concretamente o relacionamento com outros homens e de episódios de abandono do lar, levando os filhos, o arguido motiva a acusação deduzida como uma vingança da companheira, que não o perdoa por ter posto a filha CC na rua (o que assim indiretamente admite), quando apenas lhes pretendia incutir valores...

Neste particular insiste que a companheira e a filha CC mentem à GNR, sendo que as discussões não eram frequentes e os filhos terão presenciado apenas algumas, todavia quando discutiam refere o arguido que a companheira tinha a "mania" de sair de casa e ir para a casa do vizinho KK, que era uma pessoa amiga, que os ajudava.

Apenas com base nas declarações do arguido não se percebe a razão de, por causa de discussões esporádicas e ordeiras, com ou sem a presença dos menores, a companheira sair de casa com os filhos para ficar em casa de um vizinho.

Precisamente quando perguntado sobre o sucedido em agosto de 2013, o arguido confirmou que se tratou de uma discussão e a companheira e os filhos foram para casa do KK.

Já quando confrontado com o alegadamente sucedido a 8.08.2018 afirmou que tal nunca ocorreu, sendo que mais adiante referiu que o filho EE estava a ter um ataque e vomitava, devido ao excesso de uso de telemóvel (!), para o qual já tinha chamado a atença à mãe, sendo que estando a companheira com ele ao colo no quarto ali entrou a DD, tendo o arguido se limitado a mandá-la sair.

Assim, e sem qualquer explicação lógica ou sustentada fornecida pelo arguido, este afirma que saiu de casa cerca de 15 dias depois dessa ocasião, para a família para ali voltar (pois tinham saldo na sequência do sucedido a 8.08.2018), tendo para o efeito combinado com a proteção de menores e facultado as chaves da habitação em …, tendo ido morar para a aldeia dos pais.

Questionado sobre o sucedido a 30.08.2018 referiu que tinha combinado com a companheira ir ver os filhos e ir com estes tirar fotos para matriculas, tendo ido com o EE a uma loja chinesa comprar um brinquedo quando foi reiteradamente abordado pela GNR (na sua versão em 5 ocasiões) no sentido de saberem se havia problemas, o que o levou a ir atrás da companheira para a confrontar (?! ) .

Dizendo que estava sobre grande tensão, afirmou que queria entrar em casa (onde havia combinado que não entraria) e a companheira não deixava, pelo que partiu o vidro da porta com a ponta da navalha que trazia, tendo logrado abrir a porta e entrar, deixando a navalha em cima da mesa da cozinha (referindo ainda que a companheira encostou a perna à porta para evitar que este entrasse em casa).

Confrontado com as lesões pericialmente atestadas na sequência do sucedido o arguido refere que se a companheira ou algum dos filhos se feriu foi se escorregaram nos vidros...

Ainda sobre o sucedido na ocasião que culminou com a sua detenção o arguido afirma que entrando em casa mandou a companheira chamar as filhas, tendo esta ao invés chamado a GNR, isto enquanto os filhos saíram bem de casa, sem lesões ou confusões (o que, como veremos não tem correspondência com o descrito pelos demais presentes).

Referindo que a companheira vai para a varanda e ele vai atrás dela, para a buscar, tendo-a a agarrado na varando, mas sem a ameaçar, sendo que quando a traz para o interior da casa a GNR já está na sala e ai é detido.

Ficando sem se perceber, na sua versão, da razão da detenção, o arguido todavia reconhece que depois de entrar em casa, e já com a GNR no local, lhes diz estar "barricado"

No mais, esclareceu a sua história de vida, com dois casamentos anteriores e dois filhos dessas uniões, assim como descreveu a sua inserção sócio económica, dando uma ideia de trabalho que, como veremos, não corresponde à realidade.

Embora não atendendo à sua ordem cronológica de produção em audiência de julgamento, atendendo à sua relevância, iremos começar por analisar os depoimentos da companheira e das filhas do arguido, relevantes para a convicção positiva do Tribunal.

Assim, e porque determinantes para a formação da convicção positiva do Tribunal, foram consideradas as declarações prestadas por BB, nascida a …/02/1978; solteira; dona de casa; residente em …; que perguntada nos termos do art. 348º, nº 3 do CPP, disse ter vivido com o arguido desde os 15 anos, e sendo depois advertida para os efeitos do disposto no art. 134º do mesmo diploma legal, disse pretender prestar depoimento, nada a impedindo de dizer a verdade.

A testemunha de forma emotiva e espontânea corroborou a factualidade vertida na acusação relacionada com os comportamentos do arguido e sua reiteração, tendo feita uma descrição, desde o início até ao final, da sua relação com o arguido, nos termos acima dados como provados, onde apenas houve um interregno de 3 ou 4 meses em que esteve com o pai do filho FF.

Mostrando-se objetiva, esta descrição, depois corroborada depois pelas filhas, a testemunha afirmou que a sua relação com AA, iniciada quando tinha 15 ou 16 anos, quando se conheceram numa churrasqueira e viu nele alguém que a podia ajudar (tencionando casar), foi pautada por conflitos desde o início, referindo ter sido vítima de violência verbal, física e sexual em diversas ocasiões, sempre aproveitando-se do seu ascendente sobre a mesma.

Não obstante em várias ocasiões tenha fugido de junto do arguido, numa questão de dias acabava por voltar por causa dos filhos e da pressão que ele fazia.

Na sequência de episódios em que foi vítima de violência recorreu em algumas ocasiões, como na última em causa nos autos, a tratamento hospitalar e solicitou intervenção da GNR …, contudo acabava por não formalizar as queixas.

Explica esta atitude pelo medo que o arguido lhe incutia, através de ameaças, sobretudo visando a possibilidade dos filhos lhe serem retirados e institucionalizados (o que lhe causa particular impacto pois a sua mãe se suicidou porque os filhos foram para instituições).

BB afirmou que nesta ocasião decidiu seguir com o procedimento em frente porque ele bateu nas filhas e as tinha posto na rua.

Mais descreveu como, ao longo da vivência em comum, foi obrigada a prostituir-se pelo arguido, que a vigiava e ficava com as receitas daí resultantes, gastando-as em proveito próprio, em álcool e no jogo.

Tal começou a ocorrer na zona de …, depois em … (…), onde estiveram uns tempos, e posteriormente em …, sendo que já nesta localidade continuou a deslocar-se regularmente (aos fins-de-semana) a … para esse fim, acompanhada pelo arguido, assim como chegou a participar em filmes pornográficos.

Neste particular precisou que começou a prostituir-se porque o AA lhe dizia que era a única maneira de conseguirem arrendar uma casa e ela ficar com ele (pois nessa altura ele já não tinha deixado a churrasqueira), tendo sido o arguido quem lhe arranjou, através de um amigo, os primeiros "clientes".

Quando passado algum tempo, quando soube que estava grávida da GG quis deixar a prostituição mas o arguido não o admitiu e começou a ser agredida por ele, o que se repetia sempre que esta se recusava a prostituir-se.

Explicou que as agressões consistiam em pontapés e murros desferidos no corpo, sendo que de forma reiterada era ameaçada de morte pelo arguido, que aludia frequentemente ao sucedido à mãe (que se havia suicidado) e ao irmão (falecido na sequência de contrair HIV), sendo que após a morte deste último (durante a gravidez da DD) as agressões agravaram-se pois aquele protegia-a por vezes, tendo atingido o nível mais grave no último ano antes da detenção.

Neste particular aludiu a murros, pontapés, puxões de cabelo e ameaças com facas, a que as filhas mais velhas tentavam obstar, sendo frequente a DD sair de casa com os irmãos e a CC vir em sua defesa, tentando evitar que o pai continuasse com as agressões, sendo que ambas, a partir de certo momento, sempre cuidavam de esconder as facas quando o pai começava a dar sinais de estar exaltado (mas ele tinha sempre navalhas).

De notar que a testemunha ressalvou que o arguido poupava os meninos a estas agressões, referindo que estes nunca foram agredidos.

Também ao nível verbal descreveu nos termos acima provados as expressões e insultos que o arguido lhe dirigia, com alusões recorrentes à morte do irmão, assim como também chamava "puta"; "putas de merda" e "cabras" às filhas, embora mais à CC, dizendo para a DD que ia ser uma puta como a mãe.

Tais factos tinham lugar maioritariamente em casa e ocorreram igualmente durante os vários períodos em que esteve grávida.

Sem qualquer reserva ou hesitação a testemunha afirmou que era da sua atividade como prostituta que o casal viveu, durante anos, até que o arguido foi detido, pois que os subsídios e benefícios de que foram beneficiando eram usados por ele nos seus vícios.

Reiterando que o dinheiro que ganhava (chegando a ganhar €400,00 por dia) era entregue ao arguido, tendo todavia por vezes que colocar algum de parte, escondendo-o do arguido, por forma a conseguir alimentar os filhos, pois que nem a alimentação das crianças era acautelada pelo arguido, que tudo gastava nos vícios acima referidos (precisando depois que nem- o RSI, enquanto o recebeu, chegava, e chegou a ir ao talho em … pedir restos para o cão, que depois cozinhava para os filhos...).

Note-se que BB refere que o arguido, sendo um consumidor compulsivo de tabaco, foi consumidor de substâncias psicoativas há alguns anos atrás e de bebidas alcoólicas até ao presente, por vezes em excesso, que o tornavam mais reativo e violento, o que nunca assumiu como um problema, nunca procurando tratamento médico ou outro.

Na descrição que fez dos vários anos em que coabitou com o arguido, sempre de forma sofrida, destacamos, por reporte ao objeto dos autos, o relato que fez do sucedido após terem vindo para o interior, em 2000, em que estava iludida que iria deixar a prostituição, o que o arguido nunca aceitou, e quando começou a ser maltratada pelos pais daquele, e inclusive o pai do arguido teve relações sexuais com ela, sem o seu consentimento.

Sucede todavia que quando contou o sucedido ao arguido, procurando que este a protegesse e colocasse fim a tais abusos do "sogro", o mesmo decidiu combinar com o pai um montante que este lhe devia entregar sempre que quisesse ter relações consigo, o que passou a ocorrer com frequência, ficando o arguido com o dinheiro que o pai lhe entregava.

Confrontada com as demais pessoas que segundo a acusação lhe pagavam em troca de relações sexuais confirmou a sua identidade, salientando que estes eram "clientes" fixos, sendo que outros eram indicados pelo arguido de entre pessoas que conhecia na noite.

Aliás, mais adiante no seu depoimento explicou que era o arguido quem lhe dizia o que devia cobrar, sendo que muitos "clientes" se aproveitavam dessa circunstância e tentavam baixar o preço junto do arguido, o que muitas vezes conseguiam, pois ao AA só lhe interessava ter tabaco e até por €20,00 chegou a prostituir-se.

A testemunha confirmou ainda que o arguido a obrigava a contar, com detalhe, o que sucedia durante com os seus encontros sexuais com terceiros, o que lhe custava muito e fazia sentir humilhada.

Especificamente quanto à sua intervenção em filmes pornográficos, para além do referido na acusação, precisou que os responsáveis pelo filme eram amigos do arguido de …, sendo que entrou em dois filmes, recebendo €1.000,00 por cada um, acrescentando que fez mais um filme com os mesmos sujeitos, sem que o arguido tenha descoberto, porque precisava do dinheiro para alimentar a família.

A gestão do arguido era de tal forma ruinosa que por falta de pagamento das rendas tiveram três vezes que mudar de casa.

Explicou que após a detenção do arguido não mais se prostituiu, vivendo dos apoios e subsídios que descreveu e do dinheiro que a filha que trabalha traz para casa, percebendo-se que com a gestão dos rendimentos afastada do arguido passou a ser possível atender às necessidades básicas do agregado familiar.

Instada sobre os episódios mais recentes descritos na acusação descreveu-os em termos conformes à acusação, contextualizando o sucedido, sendo que nesta medida explicou que após a sogra "embirrar" consigo o arguido começou a bater-lhe, o que a levou a sair de casa, à noite, em agosto de 2013, envergando apenas uma t-shit e descalça, juntamente com os filhos, e a procurar abrigo em casa do referido KK, onde passaram a noite.

Quanto ao sucedido em 8 de agosto de 2018 explicou que tudo começou com o arguido, já embriagado, a protestar com o EE que estava a chorar e vomitava (dizendo "o caralho do miúdo"), dizendo que a culpa era do tempo que o menino passava com o telemóvel.

Tendo chamado as filhas para a ajudarem, o arguido queria bater-lhe e chegou a pontapeá-la quando a mesma se dirigia para a cozinha, tendo empurrado a DD e desferido um murro na cabeça daquela, que foi embater no guarda-roupa, sendo que em ato continuo a CC foi ao posto da GNR, tendo ainda investido contra a referida CC, mas sem sucesso pois aquela fugiu.

Note-se que a testemunha explicou que quando regressou do posto da GNR onde foi ainda nessa ocasião o arguido a agrediu com murros, como se "estivesse a bater num homem".

Explicando as circunstâncias em que voltou a casa depois de ter estado algum tempo numa instituição, com a garantia que o arguido lhe deu de deixar a casa e não os incomodar, descreveu o sucedido nos dias 28, 29 e 30 de agosto do ano passado, quando o arguido quis ver os meninos.

Especificou, entre o mais, que no dia 28 foi levar os meninos à proteção de menores para ele os ver e o arguido começou com uma conversa de que tinha mudado e queria voltar para casa, o que aquela não aceitou, sendo que no dia seguinte os levou ao café a pedido do arguido, assim como no dia 30, ocasião em que também era necessário o EE tirar fotos para a matrícula.

Nesse dia em que o arguido acabou detido a testemunha referiu que foi abordada em casa pelo mesmo, tendo ido na companhia daquele comprar-lhe vinho esperando que assim a deixasse em paz e no regresso conseguisse livrar-se dele e chamar a GNR. Todavia tudo se precipitou no regresso, em que consegue antecipar-se ao arguido a entrar em casa, sendo que depois de fechar a porta, mesmo com a chave, e esperando a chegada da GNR (que tinha conseguido chamar no café, sem que o arguido se apercebesse) AA começou a dizer que partia a porta se a testemunha não a abrisse.

Nesta sequência refere que o arguido acaba por partir o vidro da porta, por cima da fechadura, com a garrafa que trazia, e manobrando a navalha para que não se aproximasse da porta consegue entrar em casa, sendo nessa altura em que lhe causa as escoriações, acrescentando que o FF e o EE estavam em casa naquela ocasião, ambos aflitos com o que sucedia, tendo o FF também se magoado nas mesmas circunstâncias.

Uma vez no interior e depois de a ter pontapeado, refere que o arguido lhe disse "um de nós tem que ficar aqui", confirmando depois as expressões enunciadas no libelo acusatório, sendo que entretanto tinha deixado a navalha que trazia na cozinha.

É neste contexto que diz ter-se refugiado na varanda, para fugir do arguido, o qual depois ali vai ter consigo e com o braço ou com o corpo não a deixa mover-se, tendo então ameaçado que a matava e à filha CC, pois não tinham nada que chamar a GNR.

Afirmou que, como o arguido espumava da boca e estava tão exaltado, pensou que ia morrer até porque o arguido repetia que só um deles saía dali, até que o arguido a agarrou e arrastou para o interior onde estava a GNR e o deteve.

Este sofrido depoimento foi corroborado por uma descrição não menos sofrida das filhas do arguido, sendo que neste último episódio também referiu ter ligado para a CC.

Assim, CC, nascida a …/10/1996; solteira; trabalhadora numa …; residente em …; que aos costumes disse ser filha do arguido e depois de advertida nos termos e para os efeitos do art. 134° do CPP, afirmou pretender prestar depoimento, o que fez de forma objetiva, detalhada e sustentada nos demais depoimentos produzidos.

Descrevendo o pai como uma pessoa "horrível", que nunca tratou bem a companheira ou os filhos, batendo constantemente na mãe e nas filhas, fazendo-as passar fome e apenas comer frango com a forma como gastava o dinheiro de que dispunham apenas com os seus vicios (passando os dias a beber e a fumar).

Numa descrição que não deixa de impressionar perante a indiferença demonstrada pelo arguido perante o sofrimento e necessidades que provocava na família, a testemunha protagonizou um relato pormenorizado dos factos vertidos na acusação e outros, onde pontua o sacrifício que a testemunha fazia em se colocar em frente ao pai quando este batia na mãe (o que acontecia com uma frequência semanal); a circunstância de com 10 ou 12 anos o pai a ter empurrado das escadas por não lhe ter ido comprar uma cerveja; os empurrões e murros, também na cabeça, que o pai lhe desferia, bem como à mãe e à irmã DD; os insultos e expressões que o arguido lhe dirigia, bem como à mãe e à irmã, onde se contam, entre outros, os constantes da acusação e acima dados como provados; o lhe ter dito certa vez que tinha arranjado uns ciganos para lhe partirem o pescoço; ter chegado a emprestar €500,00 ao pai para tabaco, provenientes do seu trabalho, para não ser agredida; a circunstância do arguido chegar a dizer, quando o EE chorava, que este devia morrer...

Afirmando que estas agressões eram produzidas sempre que o arguido era contrariado, a testemunha descreveu com detalhe o sucedido no dia 8.08.2018, nos termos acima dados com provados, em que após as agressões produzidas esta fugiu para casa de uma amiga para o pai desta a levar ao posto da GNR para pedir auxilio, tendo a DD lhe contado que mesmo depois desta sair o pai ainda a agrediu mais.

Precisou que nesse dia o pai não mais a deixou voltar a casa, sendo que ao regressar da GNR o pai tinha tirado tudo o que a testemunha tinha e colocado o interior do seu quarto à porta de casa...

Descreveu depois da mesma forma o sucedido no dia 30 do mesmo mês, em que estando aquela a trabalhar foi alertada pela mãe para o fato do pai a ter abordado em casa e a testemunha ficou ainda a ouvir o que sucedia, percebendo que o pai batia na mãe e o EE gritava, pelo que logo ligou para a GNR.

Explicou que nesse dia, quando chegou, o vidro da porta já estava partido e a mãe estava na varanda e o pai chamava-a, sempre a ameaçá-la de morte e dizendo que estava barricado, até que foi detido.

Aduziu que o EE estava aterrorizado, sendo que depois soube que o pai ao tentar entrar cortou a mãe e o irmão FF.

Numa descrição em que não faltou a referência à falta de comida que semanalmente se fazia sentir em casa, precisando a testemunha que o pai quando recebia o RSI ia para o café pagar copos aos amigos e, para além de comprometer as necessidades básicas da família, nesse dia invariavelmente chegava embriagado a casa e batia na mãe.

A testemunha afirmou que desde sempre o pai nunca trabalhou, a mãe tinha de se prostituir para fazer face às necessidades dos filhos e eles (filhos) eram descriminados na escola.

Semelhante descrição foi protagonizada pela irmã desta testemunha, DD, nascida a …/08/2001; solteira; …; residente em …; que dizendo aos costumes ser filha do arguido, tão pouco quis recusar-se a depor por tal motivo.

De forma clara a testemunha começou por afirmar que sempre viveu com receio, com discussões constantes e muitas vezes nem tinham o que comer para o pai ter tabaco e vinho.

A forma crua e direta, à semelhança da irmã, com que esta jovem descreve a sua difícil vivência até ao dia da detenção, mercê do comportamento do arguido, não deixa dúvidas quanto à veracidade do seu relato.

Sendo despiciendo repetir as descrições da testemunha, em tudo semelhantes às protagonizadas pela irmã e pela mãe, importa salientar a preocupação denotada pela mesma em proteger os irmãos em cada discussão, cabendo à CC proteger a mãe; as várias ocasiões que, com a mãe e os irmãos, foram expulsos de casa, por vezes à noite e até num Natal; que estando a mãe com uma gravidez de risco (do EE) o pai expulsou-os e foi atrás da mãe depois com um pé de cabra na mão; o episódio ocorrido em agosto, por causa do EE estar a vomitar, à noite, e esta após intervir para o pai se acalmar foi agredida por este com murros e chapadas contra o armário; os pontapés que o pai lhe desferiu na barriga, estando esta no chão, 5 anos antes; a ocasião em que estando em casa com o EE e porque o reprendia o pai aparece e deu-lhe um murro que a levou a bater com a cabeça na parede e teve de faltar às aulas; os murros e empurrões que o pai dava à CC, precisando uma ocasião em que, com 8 anos, viu o pai empurrar a CC pelas escadas abaixo quando esta tentada defender a mãe; os insultos que o pai lhe dirigia, entre outros "vadia"; "galdéria"; "puta" e "cabra", entre outros com que igualmente apelidava a mãe e a irmã CC.

É particularmente demonstrativo do tipo de vivência proporcionado pelo arguido à testemunha a circunstância desta lembrar que o pai a obrigou, bem como ao seu irmão FF, a andar na rua à procura de piriscas que ele pudesse fumar.

No essencial da conjugação destes depoimentos e da forma como foram prestados resulta uma descrição homogénea e coerente daquilo que foi uma vivência tormentosa, marcada pela violência e privação protagonizada pelo arguido, não restando dúvidas ao tribunal de que os factos se passaram nos termos dados com provados.

Neste sentido apontam também os demais depoimentos prestados nos autos.

Com efeito, LL, nascido a …/05/1968; militar da GNR, agora no Posto …; dizendo conhecer o arguido do exercício das suas funções, pois na altura dos factos estava na GNR de …, veio descrever o sucedido no dia 8.08.2018, quando elaborou o auto de notícia junto aos autos, sendo que confrontado com fls. 20 confirmou o seu teor, lembrando que a filha do arguido disse que a mãe e a irmã eram vitimas de agressões físicas e verbais perpetradas pelo pai, assim como a própria.

Referindo que recebeu naquele dia uma chamada relatando distúrbios na casa do arguido, por parte da filha do mesmo (conforme fez constar), abordaram-no no local {onde nem se quis identificar} e este negou que algo se passasse para além de uma "discussão familiar", sendo que a companheira aparentava estar temerosa mas não lhes confirmou qualquer problema.

Explicou que, mais tarde, é a filha CC que vai ao posto apresentar queixa, à qual se segue a BB pedindo que protejam a filha do arguido, pois não tinham mais ninguém.

A testemunha MM, nascido a …/10/1980; militar da GNR em …; que disse conhecer o arguido apenas das suas funções, veio transmitir o que sabia do sucedido no dia 30.08.2018, na sequência de várias chamadas para a GNR informando que o arguido estaria a tentar forçar a entrada na casa onde estava BB, ali se deslocou e descreveu o que encontrou, destacando a queixosa e os dois filhos na varanda, pedindo socorro, em pânico, tendo a companheira do arguido marcas de sangue.

Explicou que passados segundos apareceu o arguido também na varanda, bastante exaltado, e eles ficaram mais assustados, sendo que, tendo tentado falar com ele, o mesmo recusava qualquer diálogo, tendo-o todavia distraído e os meninos conseguiram fugir para o interior da casa e daí foram para o carro patrulha.

Referindo que o arguido dizia que ia por fim à situação e que ia resolver aquilo, confirmou as expressões imputadas na acusação ao arguido naquela ocasião, precisando que nessa altura já só estava com a BB na varanda, tendo os garotos saído, e o arguido falava para ela e em todas as direções, enquanto a empurrava de forma a que ela não conseguisse dali sair, precisando depois que ele a segurou com as mãos.

Apenas recordando que a queixosa pedia ajuda e estava em pânico e o arguido berrava, revoltado, referiu que porque a porta por fora não abria, terá sido o filho que saiu do carro e lhes abriu a porta, por forma a entrarem e procederam à detenção, quando ele entrava na sala com a queixosa segura, não tendo sido oferecida resistência.

Tendo chamado o INEM, porque ela aparentava ferimentos, a testemunha reiterou que a queixosa e os filhos estavam em pânico, já no dia 8 tinham ido para uma casa abrigo e foi a BB quem lhe trouxe a navalha, que disse estar aberta, de cima da mesa da cozinha.

Instado sobre cinco abordagens ao arguido naquele dia negou tal situação, referindo que só houve uma abordagem da patrulha na pastelaria, na sequência de uma chamada da filha CC, tendo então a companheira do arguido dito que estava tudo bem, e mais tarde aquela ocorrência.

Confirmando o aditamento de fls. 141 dos autos, também esta testemunha afirmou que nunca viu o arguido trabalhar ou mesmo ter qualquer ocupação profissional.

Outro elemento da GNR inquirido foi NN, nascido a …/07/1975; colocado em …; que disse conhecer o arguido, assim como a companheira e os filhos deste, das suas funções.

Fazendo um relato do que presenciou no dia 30.08.2018, grosso modo semelhante ao da anterior testemunha, precisou que o arguido estava fora de si, muito nervoso, enquanto a sua companheira e os filhos estavam em pânico.

Após um primeiro momento onde o arguido estava ao cimo das escadas e a companheiro e os filhos na varanda que dava para a rua, reúnem-se depois na varanda e mais tarde um dos filhos que consegue sair é quem lhes abre a porta para entrarem, permitindo assim que procedam à detenção do mesmo e assegurassem a situação.

Referindo ter ouvido o arguido gritar, sendo que quando entraram o mesmo estava a agarrar a queixosa, confrontado com fls. 151 e 152 dos autos reconheceu o local e explicou na medida do que recorda o sucedido por reporte aos registos fotográficos.

Também esta testemunha afirmou que nunca viu o arguido trabalhar ou ter qualquer ocupação.

Com uma razão de ciência reportada ao sucedido no início de agosto de 2018, a testemunha OO, nascido a …/06/1981; comandante do Posto da GNR de …; que disse conhecer o arguido, assim como a companheira e os filhos, do exercício das suas funções; veio descrever a queixa que a filha do arguido apresentou e a circunstância da mãe desta ter comparecido no posto, com os filhos, chorando e dizendo que tinha tomado coragem queria apresentar queixa contra o companheiro, pois este tinha agredido a filha e também pelo que lhe fazia há anos.

A testemunha foi confrontada com fls. 32 dos autos, confirmando o seu teor, referindo que a BB então lhe disse que já tinha apresentado queixa mas tinha depois desistido por receio de voltar para uma instituição, sendo coagida e ameaçada pelo arguido que lhe tirava os filhos.

Precisou que naquela altura teve a iniciativa de a retirar para uma casa de acolhimento, tendo então por um certo período abandonado a habitação onde viviam com o arguido, conforme resulta acima provado.

Foi ainda considerado o depoimento de KK, nascido a …/09/1940; viúvo; … (…/trabalhou nas obras); residente no Largo …, …, …; o qual disse ser amigo do arguido há cerca de 10 anos, e não pareceu querer compromete-lo com o seu depoimento.

Dizendo que eram visita de casa um do outro, afirmou que nunca deu conta que o arguido tratasse mal a BB ou lhe batesse, não soube depois explicar o motivo de, conforme reconheceu, a ter acolhido e aos filhos quando estava em fuga de casa...

Em nítida contradição com o primeiramente alegado desconhecimento de quaisquer maus-tratos ou mesmo problemas entre o casal, a testemunha reconheceu ter acolhido a queixosa e os filhos, por duas vezes, no espaço de um ano, sendo que ela lhe apareceu a chorar, dizendo que o arguido a tinha posto fora de casa, mas não explicava porquê...

Precisou depois que a última vez que sucedeu foi há 3 anos e a primeira vez um ano antes.

Dizendo nada saber ou ter ouvido falar de qualquer prostituição da queixosa, claramente faltando à verdade pois tal era, como ficou claro no julgamento, do conhecimento geral da comunidade (e como tal o vizinho que com ela privava não o poderia desconhecer), não deixou de referir que acontecia ela queixar-se de dificuldades em alimentar os filhos.

Mais teve de reconhecer que o arguido nunca trabalhou, que o mesmo tenha dado conta, e que ajudava o casal com batatas e feijões que podia dispensar.

Num relato mais franco que este, a testemunha HH, nascido a …/10/1955; casado; …; residente em …, …; que disse ser amigo do arguido há 7/8 anos, conhecer a companheira e os filhos (tendo ido várias vezes a sua casa beber uns copos), veio confirmar e descrever a prática de prostituição por parte da queixosa, com amplo conhecimento, anuência e incentivo por parte do arguido.

Explicou que as relações sexuais, mediante remuneração, que manteve com a queixosa começaram porque num dia o arguido lhe disse que se quisesse a mulher "fazia um jeito", na medida em que precisavam de dinheiro (ficando bem ilustrada a forma como aquele angariava "clientes" para a companheira, sendo o preço €50,00, que deveria entregar ao arguido.

A testemunha referiu que uns tempos mais tarde, em casa do arguido, onde habitualmente ocorriam os encontros sexuais com a companheira daquele, aquela lhe pediu um adiantamento que precisava para comida que não tinha em casa, especificando que nas primeiras ocasiões eram €50,00, depois passou para €30,00, sendo ela quem dizia que o arguido queria assim.

Descreveu como decorriam os encontros, nos quais por vezes não via o arguido, embora tenham chegado a ter relações com o arguido também em casa, sendo que este ficava na cozinha ou no quarto e eles iam para qualquer lado, mas nunca na presença de outras pessoas.

Questionado sobre alguma violência entre o casal referiu que a BB nunca se queixou para si, sendo inclusive o arguido quem fazia a comida (sem que se alcance a relação que a testemunha estabelece entre uma coisa e outra).

Mais referiu que esta situação durou um ano ou dois, sem que possa precisar, sendo que eles nunca discutiram diante de si.

Outro sujeito que se relacionou desta forma com a queixosa foi a testemunha II, nascido a …/05/1946; casado; …; residente em …; que disse conhecer o arguido há muitos anos, assim como a esposa e os filhos, nada o impedindo de dizer a verdade.

A testemunha, de forma clara e objetiva, afirmou que manteve relações sexuais remuneradas com a BB algumas vezes, desde há uns anos (precisando depois que 7, sendo a última vez há 2 anos), tendo começado no café, em que lhe propôs por €50,00 e esta aceitou, sendo que o arguido estava presente, mas pensa que não ouviu a conversa (o que atentas as circunstâncias e outros relatos não nos parece particularmente credível).

Explicando que tinham relações na sua …, afirmou que nunca se apercebeu da presença do arguido naquelas ocasiões, sendo que lhe dava sempre € 50,00, sendo que ela nunca lhe disse para quem era o dinheiro, assim como nunca lhe falou mal do arguido.

Referiu depois que também foi algumas vezes a casa do arguido com a companheira, tendo cuidado de levar um garrafa de vinho que dava ao arguido.

Afirmando desconhecer se o arguido controlava a atividade da companheira, deixou todavia claro que nunca o viu trabalhar.

É evidente que a circunstância da testemunha referir que nunca assistiu a problemas entre o casal em nada contende com os depoimentos que antecedem, desde logo atendendo à circunscrita razão de ciência da testemunha, desconhecedora da dinâmica doméstica do casal.

Curioso foi o depoimento de JJ, nascido a …/04/1974; casado; …; residente em …, …; que disse ser amigo do arguido há muitos anos, mais de 10, assim como a companheira deste, e ter tido um relacionamento que reputou como "esporádico" e "amoroso'".

Numa descrição do sucedido bem distinta das situações relatadas pelas anteriores testemunhas, JJ veio dizer ao Tribunal que tendo sido uma vez abordado em conversa com o arguido e a companheira o tema de "sexo a três" lhes disse que tinha "uma queda para isso", e daí combinaram e mais tarde aconteceram esses encontros a três, na casa do arguido e noutros locais, que começaram há 4 anos e com uma periodicidade semestral.

Tendo a última ocasião ocorrido ainda anates da detenção do arguido referiu que nas primeiras vezes não lhe pediram dinheiro, mas ele depois começou a ajudar, sempre com o AA a dizer "eu não tenha nada a ver com isso"...

Instado explicou depois que o AA lhe começou a ligar pedindo cigarros e vinho, que este lhe levava, sendo que nunca ouviu a BB queixar-se do AA ou dizer que este a obrigava, tendo corrigido e aludido a uma situação em que esta lhe ligou dizendo que o arguido estava maluco e bêbado e tinha posto toda a gente fora de casa, mas sem especificar.

Temos relatos e descrições amplamente esclarecedores sobre a factualidade que provada ficou, não deixando qualquer dúvida ao tribunal quanto aos factos acima assim considerados, e ficando antes evidente que a vivência deste agregado terá sido ainda mais conturbada do que o vertido no libelo acusatório.

Note-se que a circunstância de, como se refere no relatório social (embora extravasando a nossos ver o propósito de tal peça), "No que concerne a situações de violência doméstica, e até aos incidentes de Agosto 2018, não terão transparecido para a comunidade; segundo algumas pessoas contactadas o casal transmitia uma aparência de normalidade na sua relação. BB nunca terá referenciado queixas aos técnicos que acompanhavam a família em sede de RSI e CPCJ", rigorosamente em nada contende com a realidade percebida das descrições a que acima aludimos.

Bem pelo contrário, perante a prova produzida em audiência, onde necessariamente se ouviu uma fração do tecido social que envolve este agregado familiar, não ficam dúvidas de que tais segmentos do mencionado relatório não correspondem, minimamente, à realidade, bastando para tal coligir os elementos documentais e periciais juntos aos autos.

Assim, do cotejo da prova recolhida e, sopesando os sobreditos considerandos, entende o Tribunal poder concluir com segurança nos estritos moldes de facto acima enunciados, inexistindo elementos probatórios que, com a segurança exigível, nos permitam concluir pela demais factualidade vertida no libelo acusatório.

Com efeito, e em particular devido à inexistência de qualquer depoimento direto que os ateste, não se reuniram elementos probatórios que permitissem concluir pela verificação da factualidade acima vertida de a) a g).

Quanto a este último aspeto em particular, todos os relatos são unânimes no sentido de que os menores EE e FF nunca foram diretamente visados pelas condutas do arguido, descritas na acusação e comprovadas nos autos.

Se em verdade sofreram de forma reflexa destas condutas do arguido, o que não é de somenos, não podemos concluir ter-se produzido prova no sentido de que quis infligir maus-tratos, físicos ou psíquicos, aos menores em causa.

Exceção feita às consequências indiretas da sua conduta para estas crianças, nomeadamente quando a mãe as levava consigo de casa e as dificuldades porque esta passava para atender a todas as necessidades das mesmas como resultado da gestão que o arguido fazia do dinheiro do casal, não se provaram condutas do arguido com impacto, físico ou psicológico direto nos mesmos, ao contrário do que amplamente resultou provado relativamente às irmãs.

Quanto aos factos de Índole subjetiva dados como provados, haverá apenas que sublinhar, para além do acima considerado, o recurso às regras de presunção natural, uma vez que os factos objetivos dados como provados permitem e impõem concluir pela sua verificação.

Com efeito, no que concerne aos factos atinentes à intenção e motivação do arguido, convém recordar a lição de Cavaleiro Ferreira (Curso de Processo Penal, vol. I, 1981, pág. 292), quando refere que existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica, aos quais apenas se poderá aceder através de prova indirecta (presunções naturais não jurídicas) , a extrair de factos materiais comuns e objectivos dados como provados, o que sucedeu in casu (cfr., a propósito, Malatesta "A Lógica das provas em matéria Criminal", pág. 172 e ss.)

Importa ainda uma última, e breve, nota relativamente ã" ausência de qualquer confissão por parte do arguido, na medida em que esta, para ser processualmente válida terá que ser integral, livre e sem reservas (o que manifestamente não sucedeu in casu), sendo que mesmo no que respeita ao sucedido no dia 30.08.2018, o arguido não confirma ou assume todo o contexto acima dado com provado.

Assim, não se formulou o juízo probatório supra com menores exigências de prova atendendo às dificuldades probatórias que usualmente é costume associar a este tipo de julgamento, mas antes se ponderaram os vários elementos carreados aos autos, e se avaliou a segurança, convicção, coerência e detalhe dos relatos de quem teve, sobre a factualidade em causa, conhecimento direto e indireto.


II.B. – DE DIREITO.

II.B.i). – Imprecisa e entretecida narração factual e indefinição no enquadramento e delimitação dos factos referentes a cada um dos ilícitos por que o arguido foi acusado e condenado.

Acoima o arguido/recorrente que o acórdão não procede a uma narração/descrição especificada e detalahada dos factos atinentes a cada dos ilícitos por que o arguido foi acusado, e acabaria por vir a ser condenado (“Conclusões 3 a 5: “(...) emerge da estrutura do douto acórdão que os factos subsumíveis em cada um dos tipos incriminadores não se encontram devidamente separados; - levando à conclusão de que vários deles foram duplamente valorados, na medida em que foram considerados em cada uma das condenações; - devendo a decisão ser substituída por uma outra que, separando de forma clara cada um dos factos integradores da conduta que levaria à condenação por cada um dos crimes.

A sentenças devem ser estruturadas segundo cânone ajaezado no artigo 374º do Código de Processo Penal. No segmento concernente à fundamentação prescreve o citado preceito que da mesma consta (i) “a enumeração dos factos provados e não provados“; (ii) bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal“.

A falta ou a deficiência (obstativa e/ou incongruente com uma compreensão de sentido e dos fins insertos nos apontados cânones e, consequentemente, da sentença) é passível de ocasionar uma nulidade, total ou parcial, da sentença.

Factos, no sentido naturalistico, são precipitações/realizações do fazer ou realizar humano e pessoal incidente sobre a realidade, fisica e material, e susceptível de influir, determinar e modificar um estado/situação historicamente existente. São estas realizações/concretizações do acontecer e sentir humano e pessoal que devem ser apreendidos pelo tribunal, por compreensão e percepção apresentado, produzido e discorrido pelo feixe de provas que o devir processual lhe propicie e que se constituirá a subsistência da convicção do julgador e formará a decisão indutora do veredicto a ditar. («Na sua sua qualidade de expressão de personalidade, uma acção é, a uma vez, um acontecer comunicativo e, com isso, social» - Michael Pawlik, in „Configuración de la Norma y Equilibrio en la Identidad. Sobre la Legitimación de la Pena Estatal“, Edicões Atelier, Barcelona, 2019, pág. 15.

Os factos, porque empreendiemntos da acção do indivíduo (histórico) que  age sobre uma rea-lidade complexa, multifacetada, irregular e móvil nem sempre – ou quase nunca – se configu-ram como singelos, unipolares e solipsos, Antes, porque desencadeados pela acção (plúrima, continuada e dispersa) do homem e/ou apreendidos pela sua capacidade cognitiva, os factos se apresentam com uma configuração acumulada de sentidos, congregada de factores diversos e de dimensões de compreensão variadas. Daí que se torne dificil, para quem toma conhecimen-to dessa realidade produzida e transmitida de forma mediada – com origem em prova testemunhal, documental ou pericial – concentrar, cognitivamente, esse acontecido real, processá-lo intelectual e racionalmente e posteriormente descrevê-lo e narrá-lo numa fraseolo-gia singular, segmentada e especificada.

A agregação, numa proposição frásica, de uma ideia compósita e de conteúdo plural não pode constituir uma deficiência de composição/elaboração de um acto judicial, antes deverá ser entendido como uma procura de explicitação de sentido e de projecção de uma realidade que por não ser, ou se constituri, como unívoca e singular deve ser narrada e descrita de foma sedimentada.

Tanto mais, evidencie-se, que os cimes em tela de juízo se configuram interpenetáveis e simbióticos. O comportamento do arguido, ao obrigar a companheira a prostituir-se, configurava uma situação de violência intepessoal e paraconjugal susceptível de representar um estado de violência, porque utilizando o seu ascendente pessoal sobre a ofendida a determinava/obrigava, mediante uma imposição psicológica e social, a ter eelações sexuais com outros homens. A violência pessoal e familiar, no caso, assumia uma dúplice variável ou componente, por um lado mediante a humilhação e subjugação pessoal e fisica da fendida, no interior da esfera/círculo familiar, com menoscabos e depeciações pessoais, e por outro, mediante a utilização/“coisificação“ – a que alguns autores aludem quando  o ser humano, mercê da mercantilização a que é sujeito, deve ser considerado como uma «coisa» – que sujeitva a ofendida quando a «oferecia» aos amigos para com ela terem relações sexuais remuneradas (remuneração de que ele se apropriava). Neste duplo sentido de violência – interpessoal/doméstica e externa (imposição de relacionamentos sexuais com outros individuos) – não é exigivel ao tribunal efectuar uma destrinça, ou atomização, de acções, condutas e comportamentos que substanciem «factos» turiferados numa assepsia e pureza jurídico-conceptual. Os factos decorrentes de um contexto, e/ou sinopse denotativa e categorial, num caso como aquele que coube ao tribunal recorrido apreciar, avaliar e julgar, não podem ser apreendidos e vertidos numa decisão judicial com um balizamento tal que se deva levar ao acrisolamento proposional-fáctico que a doutrina recomenda.

A violência, no caso que ocupou o tribunal recorrido, pela realização continuada e pela multifacetação dos influxos pessoais e familiares, tanto no plano interno (intrafamiliar) como externo (imposições relacionais-sexuais injungidas à ofendida), que comportam e concitam, não são capacitadores de uma precisão e concisão fáctica excludentes de interpenetrações activas individuadas/consumadas. Daí que não seja exigível um maior e mais acrisolado nível de concentração factual do que foi operada na decisão sob impugnação.                   

Diversa seria a situação se, a acusação ou a sentença, contivessem imputações genéricas, imprecisas e dispersas. Em casos similares, a juisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a doutrinar que (sic) “As imputações genéricas são imprestáveis para imputação de condutas, até por impedirem o exercício do direito de defesa. A imprecisão inviabiliza a sua aceitação para efeitos penais.

Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça, com larga incidência em casos de tráfico de estupefacientes, as imputações genéricas, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o facto imputado no tempo e lugar, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente. (…) Sem a individualização concreta e clara dos actos integrantes da actividade do arguido, a referência vaga e indeterminada não relevará para efeitos de enquadramento jurídico-criminal.

Tal imprecisão da matéria de facto provada impede que se considere respeitado o princípio do contraditório, dado que o arguido não poderá validamente nestes casos pronunciar-se sobre a afirmação genérica em causa, uma vez que não concretizada ou individualizada noutros pontos da matéria de facto, no concreto caso, no que respeita as ocasiões que ultrapassam a única concretizada, de forma que a situação tem de ser equacionada de acordo com o princípio in dubio pro reo.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Setembro de 2019, proferido no Proc. nº 60445/16.1T9LSB.S1, relatado pelo Conselheiro Raúl Borges e em que intervimos como adjunto) [[2]]

A decisão sob impugnação não padece de vícios deformantes que a tornem insusceptível de vale como documento jurisdicional válido, por não desasar as indicações contidas no artigo 374º do Código de Processo Penal.

Numa peça processual em que se pretende efectuar uma descrição real e continuada de um agir acontecer temporalmente sequenciado, é normal que, porque os actos dos sujeitos e actores das acções relatadas se entretecem e conchavam, as proposições frásicas adquiram uma multiplicidade de elementos reportados às concretas acções que se vão desvelando durante a produção de prova, tornando impossível segmentar e individuar factos em proposições curtas, sincopadas e perfeitamente delimitadas na sua estrutura de sentido.

A pretensão do recorrente quanto a este segmento da impugnação decede.


II.B.ii). – Individualização judicial da medida das penas, parcelares e conjunta.

II.B.ii).a) – Divergência do Ministério Público.

Na parte que interessa, o recorrente, Ministério Público, dissente da dosimetria penal imposta ao arguido, por (sic) o tribunal recorrido, ter condenado: (i) “o arguido pelo crime de violência doméstica de que é vítima BB na pena de quatro anos de prisão e pelo crime de lenocínio agravado na pena de três anos de prisão; (ii) “tendo em consideração os critérios legais de determinação da medida concreta da pena, entendemos que, no que se refere aos crimes de violência doméstica e de lenocínio agravado de que é vítima BB, a situação concreta demonstrada nos autos impõe a aplicação de penas parcelares um pouco acima do ponto fixado pelo Tribunal; “o Tribunal não valorou corretamente a personalidade evidenciada pelo arguido - que não obstante o já considerável período de reclusão, propicio a um exercício de reflexão - não revelou ter interiorizado o desvalor da sua conduta, não pretendeu assumir a sua responsabilidade nem tão pouco conseguiu expressar qualquer sentimento de empatia para com as vítimas, culpabilizando-as, antes, pela sua atual situação nem a gravidade intrínseca dos factos provados; (iv) o “arguido, ao longo de 25 anos, cometeu factos integradores dos crimes de violência domestica e de lenocínio agravado contra a ofendida BB sem que, durante todo esse tempo e até à data presente, tenha ponderado e interiorizado o desvalor e as consequências dos seus atos ou procurado alterar a sua conduta, o que revela uma absoluta impreparação do arguido para adotar uma conduta conforme ao direito, em especial no que diz respeito ao tipo de crimes contra as pessoas mais vulneráveis, o que determina um considerável acréscimo das exigências de prevenção especial; (v) “com a prática dos crimes a que temos vindo a fazer referência, o arguido violou os mais elementares direitos da pessoa humana; o arguido agiu sobre a pessoa de BB, companheira e mãe dos seus filhos, como se BB fosse uma “coisa” ao serviço dos vícios e ensejos do arguido; (vi) a medida das penas parcelares aplicadas, acima referidas, estão significativamente abaixo da culpa do arguido e penas assim brandas - naturalmente, em face da especial gravidade dos factos - apresentam-se insuficientes para alcançar as finalidades da punição quer em termos de prevenção geral quer de prevenção especial e muito particularmente para restabelecer a confiança da comunidade na validade das normas violadas”; (vii) “[No] que se refere ao crime de lenocínio agravado, de que foi vítima BB, atentos os critérios legais de determinação da pena, em nosso entender, o arguido deverá ser condenado na pena de seis (6) anos de prisão; (viii) “[Por] sua vez, no que se refere ao crime de violência doméstica de que também foi vítima BB, em nosso entender, o arguido deverá ser condenado na pena de quatro (4) anos e seis (6) meses de prisão; [Importa] ter presente que o arguido foi condenado pela prática de três crimes de violência doméstica que visaram a companheira e duas filhas do arguido e da primeira ofendida e ainda pela prática de um crime de lenocínio agravado que visou a mesma companheira; (ix) [No] caso em apreço, o arguido revela claramente uma tendência criminosa, que deve ser valorada como agravante da pena única do concurso e que, em nosso entender, não está refletida na medida da pena única”; [A prática] dos quatro crimes em apreço, que constituem uma reiteração de condutas típicas integrando múltiplas ofensa dos direitos da personalidade da companheira e das filhas CC e DD apenas ao arguido poderá ser imputada e revela uma personalidade especialmente insensível aos comandos da ordem jurídica e social e ao respeito que o seu semelhante lhe deve merecer”; [Em] face do supra exposto, mesmo que se mantenha a condenação nas penas parcelares aplicadas pelo Tribunal recorrido, afigura-se-nos que a pena concreta do concurso de crimes se mostra excessivamente baixa e, em nosso entender, deverá ser fixada em medida não inferior a dez anos e seis meses de prisão; [Na] procedência do segmento do presente recuso relativo à dosimetria de duas penas parcelares, em nosso entender, deverá o arguido ser condenado numa pena única que, observando os princípios acima enunciados, seja fixada em medida não inferior a doze anos de prisão.

O tribunal recorrido justificou as penas impostas – as parcelares e a conjunta – com a argumentação que a seguir queda extractada (sic): “Aqui chegados, e antes de partirmos para a determinação da medida concreta da pena, importa reter que quer o crime de violência doméstica, quer o crime de lenocínio não prevêem a condenação em multa.

Cada um dos três crimes de violência doméstica p. e p. nos termos do art.° 152°, n.°1, als. b) , c) e d) e n.° 2 do Código Penal é punido com uma pena de prisão de dois a cinco anos.

O crime de lenocínio agravado, p. e p. pelos artigos 14.°, n.° 1, 26.°, 30.°, n.°1, e 169.°, nºs 1 e 2, alíneas a), c) e d), todos do Código Penal, é punido com uma pena de prisão de um a oito anos.

Estando afastado o sistema de absorção agravada em vigor no Código penal de 1886, teremos de operar um principio de acumulação atenta a concorrência de agravantes modificativas [ 2].

Isto dito, importa determinar a medida concreta da pena.

Dispõe o artigo 40° do Código Penal que a aplicação de penas "visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade" (n°1) e que "Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa" (n°2).

Deve entender-se que, sempre que, e tanto quanto possível, sem prejuízo da prevenção especial positiva e, sempre, com o limite imposto pelo princípio da culpa - nulla poena sine culpa - a função primordial da pena consiste na proteção de bens jurídicos, ou seja, consiste na prevenção dos comportamentos danosos dos bens jurídicos. "E não se objectará validamente a esta ideia que não tem sentido falar em tutela de bens jurídicos face a uma infracção já verificada e que precisamente lesou ou pôs em perigo bens jurídicos. Quando se afirma que é função do direito penal tutelar bens jurídicos não se tem em vista só o momento da ameaça da pena, mas também - e de maneira igualmente essencial - o momento da sua aplicação. Aqui, pois, protecção de bens jurídicos assume um significado prospectivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida".

A culpa, salvaguarda da dignidade humana do agente, não sendo o fundamento último da pena, define, em concreto, o seu limite máximo, absolutamente inultrapassável, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir (cfr., neste sentido, Figueiredo Dias, op. cit., p. 230, § 307). [[3]]

A prevenção especial positiva, porém, subordinada que está à finalidade principal de proteção dos bens jurídicos, já não tem virtualidade para determinar o limite mínimo: este, logicamente, não pode ser outro que não o mínimo de pena que, em concreto, ainda realize, eficazmente, aquela proteção.

Enfim, devendo proporcionar ao condenado a possibilidade de optar por comportamentos alternativos ao criminal {sem, todavia, sob pena de violação intolerável da sua dignidade, lhe impor a interiorização de um determinado sistema de valores), a pena tem de responder, sempre, positivamente, às exigências de prevenção geral - cfr. Acórdão STJ de 26.5.99, in CJ, Acs. do STJ, 99-11-216.

Ora, se por um lado, a prevenção geral positiva é a finalidade primordial da pena e se, por outro, esta não pode ultrapassar a medida da culpa, então parece evidente que - dentro, claro está, da moldura legal - a moldura da pena aplicável ao caso concreto ("moldura de prevenção") há-de definir-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente; entre tais limites, encontra-se o espaço possível de resposta às necessidades da sua reintegração social.

A pena concreta apurar-se-á, assim, com apelo aos princípios regulativos da culpa e das exigências de prevenção, geral e especial (art. 71°, n°1, do Código Penal), devendo ainda ponderar-se todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (art. 71º, nº 2, do Código Penal}.

De tudo o que fica dito temos que a pena serve primacialmente, por um lado, para a punição da culpa, contribuindo ainda, por outro lado, e ao mesmo nível, para a reinserção social do arguido, procurando não prejudicar. "a sua situação social mais do que estritamente necessário (função preventiva especial positiva).

Nesta medida, considerando os mencionados critérios dosimétricos constantes do artigo 71º do Código Penal pondera-se:

- as exigências de prevenção geral, que são relevantes atenta a natureza dos crimes em causa e ao facto do primeiro destes ilícitos ser de elevada frequência e gerador de premente alarme social, havendo, por isso, de tutelar as expectativas da comunidade na manutenção da validade do ordenamento jurídico;

- o grau de ilicitude acima da média, atendendo aos bens jurídicos violados, às circunstâncias em que o foram (com particular destaque para o tempo pelo qual se prolongaram e o número de visados, direta e indiretamente, com as suas condutas e sua relação familiar [[4]] com os mesmos) e às suas consequências (cfr. factos 1. a 48. e 52.);

- o dolo direto (cfr. factos 49. a 51.);

- o contexto socioeconómico do arguido (cfr. factos 53. a 71.);

- os antecedentes criminais do arguido, embora por crimes diversos, relacionados com a falta de habilitação para conduzir, onde lhe foram aplicadas penas de multa (cfr. factos 12.) .

Como se referiu no recente Ac. do STJ de 7.02.2018 (Proc. n.° 312/15.9P0LSB.S1, in www.dgsi.pt) “A nível da prevenção geral, as exigências são fortíssimas, atendendo à persistência e à disseminação do fenómeno da violência doméstica, que não dá mostras de retrocesso, mau grado todas as medidas de ordem preventiva e repressiva adotadas. As últimas estatísticas conhecidas, relativas ao ano de 2016, confrontadas com as de 2015, revelam a grande dimensão a nível nacional e a persistência (inclusivamente a expansão) deste fenómeno criminal" [[5]].

Sopesando estes fatores e chamando à colação o grau de culpa do arguido, que consideramos situar-se a um nível significativo, atento o dolo direto com que atuou e o modo como em concreto o fez, impondo-se alguma gradação nas penas pelo crime de violência doméstica atenta a distinta forma e tempo de execução, parece-nos adequado, proporcional e justo aplicar:

- pelo crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelos artigos 14.°, n.°1, 26.°, 30.°, n.°1, e 152.°, nºs 1, alíneas b) , c) , d), 2, do Código Penal, visando a companheira BB, a pena de 4 anos de prisão;

- pelo crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelos artigos 14.°, n.°1, 26.°, 30.°, n.°1, e 152.°, nºs 1, alíneas b), c) , d), 2, do Código Penal, visando a filha CC, a pena de 3 anos de prisão;

- pelo crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelos artigos 14.°, n.°1, 26.°, 30.°, n.°1, e 152.°, nºs 1, alíneas b), c), d), 2, do Código Penal, visando a filha DD, a pena de 3 anos de prisão;

- pelo crime de lenocínio agravado, ilícito criminal previsto e punido pelos artigos 14.°, n.°1, 26.°, 30.°, n.°1, e 169.°, nºs 1 e 2, alíneas a), c) e d), todos do Código Penal, a pena de 3 anos de prisão.


Da pena única,

Dispõe o artigo 77°, n° 1, do Código Penal, que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única.

A pena aplicável ao concurso de crimes é, assim, uma pena única, formada sobre a base das diversas penas parcelares, que devem ser concretamente fixadas pelo tribunal.

Na medida desta pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, sendo certo que, nos termos do n° 2, do citado diploma legal, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

A moldura abstrata da pena única a aplicar ao arguido é entre um mínimo de 4 anos e um máximo de 13 anos de prisão (cfr. art. 77º, nº 2 do CP).

Consistindo o cúmulo no resultado da ponderação dos factos, em geral, e da personalidade do agente, importa considerar que estes factos são, naturalmente, ponderados segundo as circunstâncias da época em que se verificaram, sendo que a avaliação da personalidade do arguido terá de abarcar todo o período decorrido desde o primeiro crime até à presente data.

Subjacente ao cúmulo jurídico está, portanto, a ideia de que esta pena única é uma realidade substancialmente diferente das penas parcelares que o compõem, na composição da qual é mister a avaliação da personalidade do arguido, face ao conjunto dos factos praticados.

Assim é de frisar, na globalidade, os antecedentes criminais do arguido e a sua inserção social e profissional, nos termos acima dados como provados, cfr. factos provados de 53. a 71. (cujo teor se dá por reproduzido).

De tal factualidade decorre, entre o mais, que o processo de desenvolvimento de AA terá decorrido desde a sua adolescência com alguma instabilidade, decorrente inicialmente da vinda forçada do agregado familiar de … em 1975 e da necessidade de se integrar numa realidade diferente em Portugal, na juventude a opção pelo ingresso nas … ficou marcada pela inadaptação e confrontos, com a justiça militar; apresenta um percurso profissional inconsistente, caracterizado por integrações de curta 'duração; registando já dois anteriores casamentos mal sucedidos e dois filhos com quem não mantém relação, iniciou aos 32 anos vida marital com a vítima BB na altura com cerca de 15 anos, fragilizada por um passado traumático, com quem veio a constituir família, numa relação desde o início conturbada e desnivelada com indicadores de submissão por parte daquela às atitudes manipulativas do arguido, a qual só cessou em 2018 após os factos que originaram estes autos o processo.

É importante reter estar também provado que junto da comunidade o arguido é considerado um indivíduo sem hábitos de trabalho, pontualmente consumidor de bebidas alcoólicas em excesso, que lhe suscitavam alguma reatividade comportamental, e junto da GNR local foi referenciado, entre o mais, há anos por crimes de condução sem habilitação legal e por queixas de maus tratos por parte da companheira que ela não formalizava, sendo considerado um individuo conflituoso e sem grandes relações sociais; preso preventivamente à ordem dos presentes autos no EP … desde …/08/2018, AA tem mantido bom comportamento e procurado manter-se ocupado em atividades ligadas às artes (…, …) e formações de curta duração; mantém-se inativo; não reconhece hábitos aditivos, afirmando que apenas bebia às refeições; nunca recebeu visitas, nem estabelece ou recebe contactos telefónicos do exterior, nem mesmo da família de origem, referindo não manter boa relação com os irmãos e supor que a mãe desconhece a sua reclusão dado estar em …; abstratamente, relativamente a crimes da natureza idêntica aos que estão em causa afirma considerá-los de extrema gravidade e repudiar quem os pratica; adota uma postura de vitimização, afirmando-se incapaz de perceber a atitude de BB e das filhas.

Tendo em conta a sobredita moldura abstrata e atendendo ao sobredito circunstancialismo pessoal, reputamos como justa e adequada a aplicação de uma pena única de 7 anos de prisão.”

O bem jurídico que se pretende tutelar com o crime (delito) de “violência familiar habitual”, aparece, para a maioria da doutrina do país vizinho, como um bem de conteúdo e natureza ideal-valorativa, a saber a dignidade pessoal ou a integridade moral. (O crime de «violência familiar habitual» encontra-se previsto no artigo 173º do Código Penal espanhol, e segundo a lição de Javier Boix Reig, (Derecho Penal , Parte Especial, Volumen I, La protección penal de los interesses jurídicos personales, iustel, 2016, Madrid, 306-314), o bem jurídico protegido a “es la dignidad personal o la integridad moral.”  [[6]]    

A doutrina nacional defende ser a «saúde» o bem jurídico tutelado no artigo 152º do Código Penal (Nuno Brandão, A Tutela Especial Reforçada da Violência Doméstica; Revista Julgar, nº 12, Ano 2010, p. 15).

Com todo o respeito, não se nos afiguram totalmente solventes as razões exibidas, no estudo indicado, para confinar o feixe institucional-valorativo que se contém numa relação familiar, com toda a consistência e intensidade de segregações emotivo-sentimentais que produz e solidifica, a uma mera e lhana tutela da «saúde». Não sendo este o espaço para terçar armas por uma outra perspectivação da questão, diremos apenas que, numa abordagem mais institucional achamos que a tutela deve abranger não só a «saúde», mesmo na perspectiva conferida no estudo, mas outros valores e elementos que compartem e intervêm no relacionamento familiar e devem segregar laços relacionais dotados de uma natureza e solidariedade especifica e singular.    

Para já, e para solução do caso, notadamente da pena a impor, importará, talvez, trazer a terreiro o que a propósito da evolução do conceito de maus-tratos para o de violência doméstica veio sendo segregado pela legislação portuguesa.

Para o efeito permita-se-nos trazer o que foi escrito no recente aresto deste Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de Outubro de 2019, pelo Conselheiro Vinício Ribeiro. [[7]]   

De harmonia com o disposto no artigo 152º, nº. 1, al. b), do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, na parte que para o caso dos autos releva, pratica o crime de violência doméstica, quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais;

(…); b) A pessoa de outro o do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.

(…); sendo punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.

Em relação ao bem jurídico protegido por esta incriminação, sendo a questão controvertida na doutrina e na jurisprudência, acolhemos a posição que é maioritariamente defendida, de que é a saúde, física, psíquica ou emocional, que pode ser afetada por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinjam a dignidade pessoal da vítima, enquanto sujeito de qualquer das relações previstas no nº. 1 do artigo 152º – cf., entre outros, na doutrina, Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2012, págs. 511 e 512, Nuno Brandão, A tutela especial reforçada da violência doméstica, in Rev. Julgar, nº. 12, - especial -, 2010, págs. 15 e 16 e Catarina Sá Gomes, in O Crime de Maus Tratos Físicos e Psíquicos infligidos ao cônjuge ou ao convivente em condições análogas às dos cônjuges, AAFDL, 2004, p. 59; e na jurisprudência, entre outros, Acórdãos da RP de 06/02/2013, proc. 2167/10.0PAVNG.P1 e de 10/07/2014, proc. 413/11.2GBAMT.P1 e Ac. da RL de 23/04/2015, proc. 469/13.3PBAMD.L1-9, todos acessíveis no endereço www.dgsi.pt).

O crime de violência doméstica é um crime específico, que pressupõe a existência de relação entre o agente e o sujeito passivo/vitima de entre as elencadas nas alíneas a) a d) do nº. 1 do artigo 152º do Código Penal.

O tipo objetivo do ilícito preenche-se com a ação de infligir maus tratos físicos ou psíquicos à vítima, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais.

Como se decidiu no Acórdão da R.E. de 09/01/2018, sumariado na C.J., Ano 2018, T. 1, pág. 317, no crime de violência doméstica, «A descrição típica esgota-se na inflicção de maus tratos físicos ou psíquicos por agente que se encontre com a vítima numa das relações mencionadas no preceito legal, ainda que se reconheça que o fundamento da ilicitude ou da sua agravação, subjacente à incriminação, se encontra na afetação da dignidade humana, decorrente da conjugação dos atos típicos ali previstos com a especial situação em que, reciprocamente, se encontram a vítima e o agente.»

Para o preenchimento do tipo legal do crime em apreço não se exige, pois, que a vitima se encontre numa posição de subalternização e/ou de dependência, designadamente económica, do agente, pois que, como se evidencia no Acórdão da RE de 26/09/2017, proc. 518/14.8PCSTB.E1, acessível no endereço eletrónico que vem sendo referenciado: «Não é elemento do tipo legal de violência doméstica que a ofendida tenha uma posição de relação de “subordinação existencial” ou seja, uma posição de inferioridade e/ou dependência com o arguido, apesar de constituir uma realidade sociológica presente em muitas das situações de violência doméstica previstas no art. 152.º do C. Penal, isso não significa que as esgote ou que constitua elemento típico de cuja demonstração depende a responsabilidade penal do agente.»

Com a redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, ao artigo 152º do Código Penal, introduzindo-se no corpo do nº. 1 o segmento «de modo reiterado ou não», foi ultrapassada a querela que se vinha suscitando de saber se para integrar o conceito de «maus tratos» bastava a prática de um só ato, ou se era necessária a reiteração de condutas. Perante a atual redação do enunciado preceito legal, é isento de dúvidas que poderá bastar só uma conduta ou ato para que possa ser preenchido o crime de violência doméstica.

 A dificuldade está em delimitar os casos em que a conduta é subsumível ao crime de violência doméstica, daqueles em que integra outros tipos de crime, tais como a ofensa à integridade física, a injúria, a ameaça, a coação, a perturbação da vida privada, entre outros.

Como se faz notar no Acórdão da R.P. de 13/06/2018, proferido no proc. 189/17.0GCOVR.P1, acessível no endereço www.dgsi.pt, a solução está no conceito de «maus tratos», sejam eles físicos ou psíquicos.

(…) O crime de violência doméstica (o arguido foi condenado de acordo com o disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 152.º) encontra-se disciplinado no art. 152.º do CP, do seguinte teor:


Artigo 152.º (Violência doméstica)

«1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:

a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou

b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;

c) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.

3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:

a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;

b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.

4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.

6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.»

Como se alcança da leitura do texto da lei, e das múltiplas alterações que sofreu ao longo do tempo, estamos perante um tipo de elevada complexidade onde mergulham diversas concepções de sociedade e de família.

O crime começou por ser consagrado na versão originária do CP de 1982 no art. 153.º com a epígrafe maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges.

Com a reforma de 1995 (DL 49/95), passou a constar do art. 152.º com a epígrafe maus tratos ou sobrecarga de menores de incapazes ou do cônjuge, tendo-se eliminado, além do mais, o requisito da malvadez ou egoísmo fazendo-se desaparecer o dolo específico.

A reforma de 1998 (L 65/98) consagrou no art. 152.º com a epígrafe maus tratos e infracção de regras de segurança e procedeu a alterações a nível do procedimento no que tange ao Ministério Público.

Com a L 7/2000 o crime passa a ser de índole pública.

Com a reforma de 2007 (L 59/2007) deu-se uma das maiores alterações consagrando-se no art. 152.º o crime de violência doméstica, que foi autonomizado dos crimes de maus tratos (art. 152.º-A) e do crime de violação de regras de segurança (art. 152.º-B). E consagrou-se a desnecessidade de reiteração.

A L 19/2013 acrescentou na alínea b) do n.º 1 a relação de namoro alargando novamente—o âmbito do crime já tinha sido consideravelmente alargado na revisão de 1995-- o âmbito dos sujeitos passivos.

Por último a L 44/2018 subdividiu o n.º 2 em duas alíneas consagrando matéria nova na alínea b) (difusão através da Internet…).

Vasta produção legislativa, quer a nível internacional, quer a nível interno, tem também sido produzida sobre o fenómeno da violência doméstica[i], a última das quais concretizada na L 80/2019, de 2/9, que altera a Lei do CEJ, disciplinando a formação obrigatória dos magistrados em direitos humanos e violência doméstica.

Igual sinal da complexidade do crime violência doméstica[ii] está na determinação do bem jurídico protegido pelo mesmo.

O Ebook do CEJ, intitulado Violência Doméstica implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, contém diversos estudos elaborados por Magistrados Judiciais e do Ministério Público, nomeadamente a págs. 84-106, um trabalho acerca da Violência Doméstica elaborado pela Procuradora da República e Docente do CEJ, Catarina Fernandes, onde se faz uma síntese sobre o bem jurídico protegido pela incriminação, que, pela sua clareza e fontes informativas, a seguir se reproduz:

«1) Saúde

A posição dominante tem sido e continua ainda a ser a sufragada por Américo Taipa de Carvalho, na sua anotação ao artigo 152º, do Código Penal (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, artigos 131º a 201º, 2ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 511 e 512): “O art. 152º está, sistematicamente, integrado no Título I, dedicado aos “crimes contra as pessoas”, e, dentro deste, no Capítulo III, epigrafado de “crimes contra a integridade física”. A ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana”. (…) Portanto, deve entender-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental; e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agravem as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge (ex-cônjuge, ou pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges), ou prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes que, mesmo que não sejam familiares do agente, com este coabitem”.

Na Doutrina, a posição de Américo Taipa de Carvalho conta com a concordância, entre outros, de:

-- Catarina Sá Gomes (O Crime de maus tratos físicos e psíquicos infligidos ao cônjuge ou ao convivente em condições análogas às dos cônjuges, 1ª reimpressão, Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2004, p. 59);

-- Maria Elisabete Ferreira (Da intervenção do Estado na Questão da Violência Conjugal em Portugal, Coimbra: Almedina, 2005, p. 102);

-- Maria Manuela Valadão e Silveira (Sobre o crime de maus tratos conjugais, in Do crime de Maus Tratos, Cadernos Hipátia - nº 1, Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres - CIDM, Lisboa, 2001, p 19 e 20);

-- Jorge dos Reis Bravo (A actuação do Ministério Público no âmbito da Violência doméstica, Revista do Ministério Público, nº 102 - abril/junho 2005, p. 45 a 77, p. 66);

-- Ricardo Jorge Bragança de Matos (Dos maus tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo à frente na tutela da vítima?, Revista do Ministério Público, nº 107- julho/setembro 2006, p. 89 a 120, p. 96);

-- Plácido Conde Fernandes (Violência Doméstica, Revista do CEJ, nº 8, 1º semestre 2008 - Número Especial (Textos das Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal);

-- Carlos Casimiro e Maria Raquel Mota (O crime de violência doméstica: a al. b) do nº 1 do art. 152° do Código Penal, Revista do Ministério Público, nº 122 - abril/ junho 2010, p.133-175);

-- M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio (Código Penal - Parte geral e especial – com notas e comentários, Coimbra: Almedina, 2014, p. 615-623); e

-- Nuno Brandão (A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar, nº 12 – especial –, 2010, p. 9-24).

[cita depois jurisprudência das Relações]

2) Dignidade da pessoa humana

Encontram-se na Doutrina e na Jurisprudência algumas posições que, alargando amplamente o objeto de tutela do crime de violência doméstica, o reconduzem à dignidade da pessoa humana. Neste sentido, Augusto Silva Dias defende que este crime visa proteger a integridade corporal, a saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana (Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, Lisboa: AAFDL, 2007, p. 110). Também Sandra Inês Feitor defende esta tese (Análise crítica do crime de violência doméstica [Em linha], 2012, disponível na Internet em: (URL http://www.fd.unl.pt/Anexos/5951.pdf ). [cita depois jurisprudência das Relações]

3) Integridade pessoal

José Francisco Moreira das Neves (Violência Doméstica - Bem jurídico e boas práticas, Revista do CEJ, XIII, 2010, p. 43-62), recordando que o tipo objetivo do ilícito de violência doméstica inclui condutas que se consubstanciam em violência ou agressividade física, psicológica, verbal e sexual, conclui que o bem jurídico é a integridade pessoal, uma vez que a tutela da saúde, abrangendo a saúde física, psíquica e mental, “ficará aquém da dimensão que a Constituição dá aos direitos que este tipo de ilícito visa tutelar”.

4) Integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra

Também Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 2008, p. 404) discorda da posição maioritária na doutrina e jurisprudência nacionais, entendendo que “os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e até a honra”.

[cita depois jurisprudência - um aresto da RE]

5) Integridade pessoal e livre desenvolvimento da personalidade

André Lamas Leite tem um posicionamento diferente do tradicional e dominantes [A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito e a criminologia, Julgar, nº 12 (especial), 2010, p. 25-66, e Penas Acessórias, questões de género, de violência doméstica e o tratamento jurídico-criminal dos “shoplifters”, in As alterações de 2013 aos Código Penal e de Processo Penal: uma reforma “cirúrgica?”, Organização André Lamas Leite, Coimbra Editora, Coimbra, 2014].

Para este autor, o bem jurídico protegido por esta incriminação é, por natureza, multímodo, reconduzindo-se à integridade pessoal e o livre desenvolvimento da personalidade: (…) »

A nível da jurisprudência deste STJ: Escreve-se no Ac. STJ de 23/6/2016, Proc. 125/15.8PHNST.S1, Rel. Armindo Monteiro, que: «O crime terá como bem jurídico a proteger, no descritivo típico, segundo alguns, uma panóplia de bens jurídicos, emprestando-lhe natureza complexa, como a saúde física e mental, a liberdade, na sua projecção individual, sexual; para outros a dignidade da pessoa humana, o da dignidade em geral e, em particular, a sua saúde.

Em Taipa de Carvalho, CCCP, I, 512, vemos sufragado o entendimento da protecção da saúde, nas suas díspares irradiações – física, psíquica e mental -; deste entendimento se não distanciará Nuno Brandão, in Julgar, Ano 12, 2010, 17 a 22, para quem o delito goza de “uma tutela penal especial reforçada“, mercê da carga acrescida de ilicitude e de dolo de que se mostram portadores os maus tratos, que tanto podem consistir em actos reiterados, habituais, mas sempre expressivos de gravidade, embora se possam traduzir em um acto isolado, neste caso portador de uma chocante e indesculpável carga de ilicitude e censura do agente, sem desprezar não só o acto em si como a sua repercussão na possibilidade de vida em comum, particularmente se a compromete sem remédio, sem possibilidade de subsistência, sacrifício absolutamente intolerável, à luz das concepções sociais reinantes, numa valoração da imagem global do facto, onde se há-de detectar um quadro, no dizer de Nuno Brandão, R E V. e loc. cit., degradado, de aviltamento, humilhante da dignidade, ofensividade e enfranquecimento da relação, integrando os maus tratos indiscutível “risco qualificado“ para a saúde física e psíquica do outro.

Os maus tratos hão-de traduzir “lesões graves, pesadas, da incolumidade corporal e psíquica do ofendido“, no campo da tensão entre os tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e a tutela da integridade física e moral “, nas palavras de André Lamas Leite, in R E V. Julgar, Ano 12 (Especial), 45.

Os maus tratos revelam e definem-se, em síntese abrangente, como actos denotando intenção de humilhação, indiferença, desprezo, desrespeito, crueldade, o propósito de fazer sofrer; a violência é tanto a física, a corporal, como a psíquica, em acumulação com as privações de liberdade e as ofensas sexuais, atentatórias em alto grau da pessoa e ser humano, sobretudo da dignidade que, pelo facto de o ser, lhe é merecida e devida, e por isso aquelas ofensas hão-de revelar-se intoleráveis no quadro da vivência em comum, à margem da harmonia que nela deve reinar, tornada um sacrifício insuportável.»

No Ac. STJ de 13/9/2018, Proc. 372/17.8PBLRS.L1.S1, Rel. Raul Borges, que: «Considerando que o artigo 152.º está, sistematicamente, integrado no Título I do Código Penal, dedicado aos “crimes contra as pessoas” e, dentro deste, no Capítulo III, epigrafado de “crimes contra a integridade física”, entende Américo Taipa de Carvalho (Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, pág. 332) que «A ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. (…) A ratio deste art. 152.º vai muito além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc.), a sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou à saúde (física, psíquica ou mental) do subordinado, bem como a sujeição a actividades perigosas, desumanas ou proibidas».

Acrescenta que «o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agravem as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge, prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes, ou sujeitem os trabalhadores a perigos para a sua vida ou saúde».

(….) No mesmo sentido, diversos arestos deste Supremo Tribunal, de que é exemplo o acórdão de 30-10-2003 (processo n.º 3252/03 - 5.ª), publicado em CJSTJ 2003, tomo 3, págs. 208 e ss., no qual se considerou que «O bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem estar».

Veja-se no mesmo sentido o acórdão de 04-02-2004, no processo n.º 2857/03-3.ª.

(….) Para o acórdão de 5-11-2008, processo n.º 2504/08-3.ª Secção, versando o crime p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção da Lei n.º 7/2000, de 27-05, o bem jurídico protegido na incriminação, tendo em conta a sua inserção sistemática, era a pessoa do cônjuge (ou equiparado), a sua integridade física, a sua saúde e a sua dignidade, enquanto pessoa humana, e não a instituição familiar.

No acórdão de 12-03-2009, processo n.º 236/09-3.ª Secção, considera-se que no crime protege-se a saúde física e mental do cônjuge, sendo que esse bem pode ser violado por todo o comportamento que afecte a dignidade pessoal daquele, designadamente por ofensas corporais simples, invocando os acórdãos de 30-10-2003, já citado, e de 04-02-2004, processo n.º 2857/03-3.ª. Mantém o montante de 20.000,00 €, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

(…..) Para além do acórdão deste Supremo Tribunal de 30-10-2003, proferido no processo n.º 3252/03 - 5.ª Secção, publicado em CJSTJ 2003, tomo 3, págs. 208 a 222, no qual se considerou que «O bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem estar», do acórdão de 4-02-2004, proferido no processo n.º 2857/03, da 3.ª Secção, em que foi considerado que “o bem jurídico tutelado por este crime é a saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que afectem a dignidade, como as injúrias, humilhações, ameaças e outros”, de 6-04-2006, onde se inclui a prática de factos que atinjam de forma grave a dignidade de outro, e do já referido no acórdão de 2 de Julho de 2008, por nós relatado no processo n.º 3861/07, com transcrição parcial supra de fls. 46 a 50 deste acórdão, e outros já mencionados, como os acórdãos de 5-11-2008, processo n.º 2504/08, de 12-03-2009, processo n.º 236/09, de 13-07-2011, no habeas corpus n.º 552/11.0PWPRT-A.S1, in CJSTJ 2011, tomo 2, pág. 189 e de 14-12-2016, processo n.º 952/11.0PHLRS.L1.S1.

Mais recentemente, pode ler-se no acórdão de 09-03-2017, proferido no processo n.º 1006/15.0JABRG.G1.S1 - 5.ª Secção: “O recorrente, condenado pelo crime de homicídio qualificado tentado procurou lesar um bem jurídico fundamental, a vida humana, logo por aí se revelando também um grau de ilicitude especialmente elevado, e certamente que a tutela eficaz desse bem torna muito prementes as necessidades de prevenção geral. E consumou, no crime de violência doméstica pelo qual também foi condenado, a lesão de outros bens de elevado significado pessoal e social como são a integridade psíquica, da liberdade e até a honra. O que evidencia, na imagem global do facto, um traço da sua personalidade que é o da falta de contenção para a ofensa de bens jurídicos de carácter pessoal”.

Com o mesmo Relator do anterior consta do acórdão de 20-04-2017, proferido no processo n.º 2263/15.8JAPRT.P1.S1, da 5.ª Secção, consta: “Na identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos no crime de violência doméstica generalizadamente, se apontam como carecidas de protecção a saúde e a dignidade da pessoa entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas alíneas a) a d) do nº 1 do art. 152º o que não significa porém, que seja a “família” a figura central alvo de protecção mas antes essa pessoa que nela se insere, individualmente considerada.

A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção inevitavelmente comporta e também, claro está, com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna o que se traduz numa multiplicidade de sujeitos passivos inseridos nesse contacto.

Mas pressupõe também uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita na maioria dos casos, como a experiência demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a) agressor(a), «de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais elementares da realização pessoal» redundando «numa específica agressão marcada por uma situação de domínio (…) geradora de um específico traço de acentuada censura» que escapa em geral à razão de ser dos tipos de ofensas à integridade física, coacção, ameaça, injúria, violação, abuso sexual, sequestro, etc. Serão estes os traços que mais vincam a natureza do crime, a sua peculiar estrutura, mais do que a discussão à volta do recorte preciso do bem jurídico protegido.

Assumindo que a violência doméstica é essa agressão levada a cabo de modo variado à autodeterminação da vítima que fica afectada pelos vários comportamentos tipificados não parece intransponível que esse ataque possa ser tido como dirigido à dignidade da pessoa e que seja esse um dos âmbitos de tutela que se visa assegurar.

Se a violência doméstica pressupõe aquela durabilidade relacional familiar e aquela outra situação de domínio e de constrangimento da livre determinação da vítima, de disposição da sua vida, num sentido mais geral, ou, dito de modo mais expressivo, «a eliminação do núcleo fundamental de autonomia da vontade e de disposição livre da mesma pela vítima» naturalmente que a intenção de matar pressupõe um “ir mais além”; pressupõe a intenção de atacar a vida da vítima, pondo-lhe fim e de, por essa via, terminar todo o envolvimento relacional que “possibilitava” uma certa conduta do agente. Atentar contra a vida humana é um plus significativo relativamente a martirizá-la com maior ou menor intensidade.”

Ainda do mesmo Relator, pode ler-se no acórdão de 28-02-2018, proferido no processo n.º 129/16.3GILRS.L1-B.S1, da 5.ª Secção: “Acerca da identificação e caracterização dos bens jurídicos protegidos pelo crime de violência doméstica é generalizado o entendimento de que são carecidas de protecção a saúde e a dignidade da pessoa entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas als. a) a d) do n.º 1 do art. 152.º do CP. Assim, fica evidenciado que as dimensões da integridade física e da liberdade pessoal estão entre aquelas que o tipo legal visa proteger o que torna possível à luz da conjugação das disposições citadas a imposição da prisão preventiva”.

Passando à Doutrina. (…)»

No Ac. STJ de 21/11/2018, Proc. 574/16.4PBAGH.S1, Rel. Manuel Augusto Matos, que: «III - Sistematicamente integrado, no CP, no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, especificamente, no capítulo dos crimes contra a integridade física, a teleologia do crime de violência doméstica assenta na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, punindo aquelas condutas que lesam esta dignidade, quer na vertente física como psíquica.»

E no Ac. STJ de 20/2/2019, Proc. 25/17.7GEEVR.S1, Rel. Júlio Pereira, que: «O crime de violência doméstica integra-se no título I, dos crimes contra as pessoas, e no seu capítulo III, dos crimes contra a integridade física, da parte especial do Código Penal.

Não obstante a sua inserção sistemática entende-se que o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é de natureza complexa. Em anotação prévia à autonomização deste crime e a propósito do crime de maus tratos e infracção de regras de segurança, escrevia Taipa de Carvalho “…deve dizer-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agrave as deficiências destes, afectem a dignidade pessoal do cônjuge, prejudiquem o possível bem-estar dos idosos ou doentes, ou sujeitem os trabalhadores a perigos para a sua vida ou saúde.»

Perscrutando, além da doutrina, a jurisprudência deste STJ podemos concluir que o bem jurídico protegido é a saúde, nas suas várias vertentes, também como emanação da própria dignidade da pessoa humana.

Alinhavando e arrumando ideias fundamentais informadoras do crime em análise, podemos dizer que:

--estamos perante um crime de relação dado que existe um traço de união entre a vítima e o arguido, derivada do casamento, ou relação análoga, de namoro, ou de coabitação;

--um crime em que o bem jurídico protegido é plural e complexo;

--e que tem na sua base (cfr. a redacção do n.º 1 do art. 152.º) o conceito nuclear de maus tratos (físicos ou não físicos), que verdadeiramente o distingue de outras infracções (à integridade física, ameaça, perseguição, injúria, difamação).

Nem toda a ofensa à integridade física, por exemplo, ocorrida no seio de uma relação, integrará, necessária e forçosamente, um crime de violência doméstica, que o legislador tipificou em norma própria.

Em primeiro lugar, haverá que ponderar se é lesado o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica, e, em segundo lugar, se a conduta integra a noção de maus tratos.   

Os maus tratos, como se espelha na jurisprudência do STJ, acima transcrita, e da doutrina a seguir mencionada, hão-se assumir-se, ou traduzir-se, em lesões graves, intoleráveis, brutais, pesadas.

«Creio que os critérios judiciais expostos apontam na direcção correcta, mas julgo que lhes falta ainda uma clara vinculação ao bem jurídico. Daí que me pareça sempre de exigir que o comportamento violento, visto em toda a sua amplitude, seja um tal que, pela sua brutalidade ou intensidade ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima . Admito que, na prática, este crivo acabe por não conduzir a resultados substancialmente distintos daqueles a que a jurisprudência vem chegando, mas o critério proposto já não será, ao menos, de todo inútil se através dele se puder alcançar uma maior nitidez na definição do recorte típico dos maus tratos físicos e psíquicos reportados a uma única actuação violenta.» Nuno Brandão, A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Revista Julgar, nº 12 – especial (sobre crimes no seio da família e sobre menores) –, 2010, p. 22 (artigo disponível na Internet).

«Os «maus tratos físicos ou psíquicos» devem, a nossos olhos, ser interpretados como lesões graves, pesadas da incolumidade corporal e psíquica do ofendido, diríamos que no campo de tensão entre os tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos e a tutela da integridade física e moral.» André Lamas Leite--na esteira de jurisprudência do STJ e da RC, que cita -, A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a Criminologia, na cit. Revista Julgar, nº 12 – especial, pág. 45.

«Como resulta do texto da norma, o crime de violência doméstica não exige reiteração. Ainda assim, pelas suas características é usualmente um crime que se comete de forma reiterada e, neste sentido, podemos distinguir dois vectores: o da habitualidade e o da intensidade dos actos. Seja um acto isolado ou reiterado, se se verificar que apreciado à luz da intimidade do lar, coloca em sério risco a vida em comum, por reconduzirem a pessoa ofendida a vítima, de forma permanente, ou não, a um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, encontramos preenchido o tipo de violência doméstica.» (Inês Fonseca Mendes, A natureza jurídica do crime de violência doméstica conjugal: uma perspectiva crítica)”. [[8]]

Em jeito de remate diremos que enfileiramos na posição defendida pelo Professor Augusto Silva Dias, quando defende que com o crime de violência doméstica, previsto no artigo 152º do Código Penal, se deve ter como protegida “a integridade corporal, a saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana.” Na verdade, ainda que a formalmente o crime se inere, “sistematicamente, no Título I, dedicado aos “crimes contra as pessoas”, e, dentro deste, no Capítulo III, epigrafado de “crimes contra a integridade física”, afigura-se-nos que o bem jurídico protegido não pode ser tão só a preservação da integridade física dos membros do agregado familiar, mas outrossim a preservação de um sentido institucional de solidariedade e respeito interpessoal, que estando contido na salvaguarda do respeito pela integridade física, está para além desse patamar de valorações.

Daí que, em nosso aviso, o crime de violência doméstica deve assumir um quid mais de responsabilização penal do agente/autor perpetrador das acções ilícitas e antijurídicas que hajam sido cometidas sobre membros da relação gerada e estabelecida.

Com a pena o sistema penal rechaça e reage ao desrespeito que alguém assume perante um comando legal que contenha uma proibição de fazer, agir ou omitir pretendendo com essa reacção confirmar a inteireza da norma e a sua validade social. Dir-se-á que com a pena o sistema pretende negar a negação consumada pelo agente de um preceito social válido. (“A praxis de responsabilizar segundo a medida do merecido pode definir-se e legitimar-se num sistema de imputação ética e jurídica que opere debaixo da ideia de liberdade como expressão de respeito ante o autor que se haja servido da sua capacidade para configurar o mundo arbitrariamente de um modo concreto (isto é, de forna contrária ao dever) e não de outro (isto é, conforme ao dever.” – (Michael Pawlik, ibidem, 57)

A pena, na asserção de Claus Roxin, “só resulta legítima quando é preventivamente necessária e, ao mesmo tempo, é justa no sentido de que evita ao autor qualquer carga que vá além da culpabilidade do facto”. [[9]] Para este Professor, a culpabilidade actua simultaneamente como pressuposto fundamentador da pena “posto que nunca pode impor-se uma pena se ela não estiver presente, assim como tão pouco a pena pode ir além da sua medida. No entanto a tarefa da pena é igualmente preventiva, pois ela não deve retribuir mas sim impedir a comissão de delitos (crimes). Em câmbio, a culpabilidade só tem a função de limitar, ema aras da liberdade dos indivíduos, magnitude dentro da qual devem perseguir-se objectivos preventivos. Disto resulta, por politica criminal, aquele princípio da dupla limitação que caracteriza a minha sistematização da categoria da responsabilidade: a pena não deve ser imposta nunca sem uma legitimação preventiva, mas tão pouco pode haver pena sem culpabilidade ou mais além da medida desta. A pena de culpabilidade é limitada através do preventivamente indispensável; a prevenção é limitada através do princípio da culpabilidade.” [[10]]          

Para Bacigalupo a culpabilidade só logra a sua função de parâmetro delimitador da pena, se for referido à «culpabilidade do facto». “Isto requer excluir das considerações referentes à culpabilidade as que se referem a uma ponderação geral de personalidade como objecto do juízo de reprovação (“juicio de reproche”). Concretamente o juízo de culpabilidade relevante para a individualização da pena, deve excluir como objecto do mesmo referências à conduta anterior ao facto (sobretudo a penas sofridas), a perigosidade, ao carácter do autor, assim como á conduta posterior ao facto (que só pode compensar a culpabilidade do momento da execução do delito.”    

Já para Günther Jakobs, “a transgressão da norma constitui em maior ou menor medida uma perturbação da confiança da generalidade na validade da norma. Por isso a segurança existencial necessária no tráfico social deve restabelecer-se mediante a estabilização da norma à custa do autor. A culpabilidade esvazia-se aqui de conteúdo, o qual dependerá de factores externos”. [[11]] “A um autor que actua de determinado modo e que conhece, ou pelo menos devia conhecer, os elementos do seu comportamento, exige-se-lhe (se le imputa) que considere ao seu comportamento como a conformação normativa. Esta imputação tem lugar através da responsabilidade pela própria motivação: se o autor se tivesse motivado predominantemente pelos elementos relevantes para evitar um comportamento, ter-se-ia comportado de outro modo; assim, pois, o comportamento executado patenteia (pone de manifesto) que o autor nesse momento não lhe importava de forma prevalente evitar o comportamento mantido.” [[12]/[13]]

A ordem jurídico-penal viger, estabelece no art. 71 nº 1 do C.P. que "a determinação da pena dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção". Resulta de uma chã leitura deste preceito que a culpa (indiciador de um radical pessoal) e a prevenção (que insinua a vertente societária e comunitária para a reprovação do comportamento do agente e a correlata necessidade no asseguramento da confiança (da sociedade) na norma, traduzido na punibilidade de condutas contrárias ao sentido conformador-normativo) constituem os princípios regulativos em que o juiz se deve ancorar no momento em que se lhe exige que fixe um quantum concreto da pena. Mediante o estabelecimento e indicação de critérios, o legislador fornece ao juiz orientações para a formação cognitiva de juízos avaliativos e condensadores dos pressupostos e da fixação de premissas que possibilitam a conformação e determinação das escolhas a realizar perante um concreto responsável em face da realidade factual ressumada pela facticidade adquirida pelo julgamento. Assim na individualização da pena o juiz, assumindo as intencionalidades e as vinculações do sistema jurídico-penal, desempenha uma insubstituível tarefa mediadora, construtiva e constitutiva da reacções penais ajustadas ao caso e convincentes da sua justeza perante a sociedade que se destinam a influenciar.

Na determinação concreta da pena caberão todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:

– O grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente;

– A intensidade do dolo ou negligência;

– Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

– As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

– A conduta anterior ao facto e posterior a este;

– A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. [[14]]

Ponderando nos critérios a observar na individualização judicial da pena refere a propósito Winfried Hassemer [[15]] que “na decisão de determinar a pena são relevantes, entre outros, os seguintes elementos da realidade: a culpabilidade do sujeito; os efeitos da pena que são esperáveis que se produzam na sua vida futura em sociedade; seus motivos e fins, a consciência que o facto revela da vida anterior; as suas relações sociais e económicas e o seu comportamento posterior ao delito”. Num seminário sobre os fins das penas, [[16]] Claus Roxin advoga, acompanhando Hans Scultz, que na determinação da pena se trata de retribuir a culpabilidade [[17]], devendo na operação de determinação aplicar a «teoria da margem de liberdade», que a jurisprudência alemã formulou da forma seguinte: “Não se pode determinar com precisão que pena corresponde à culpabilidade. Existe aqui uma margem de liberdade (Spielraum) limitada no seu grau máximo pela pena adequada (à culpabilidade). O juiz não pode ultrapassar o limite máximo. Não pode, portanto, impor uma pena que na sua magnitude ou natureza seja tão grave que já não se sinta por ela como adequada à culpabilidade, No entanto, o juiz … poderá decidir até donde pode chegar dentro dessa margem de liberdade.” [[18]

Daí que tendamos a valorizar as condutas vulneradoras da ordem jurídica mais pela danosidade que provocam e ocasionam na esfera de interesses do lesado e na consciência social estabelecida.

Os crimes perpetrados pelo arguido assumem uma danosidade social e ético-jurídica pessoal sobressaliente, na medida em que ofendem valores que devem assegurar e formatar um vivenciar interpessoal embasado no respeito por pessoas que compartem um feixe comum e inextrincável de relacionamentos específicos e de conotação emotivo-sentimental pregnante.

O tribunal recorrido justificou uma sanção, merecida à reiterada e consistente actuação de aviltamento, depreciação, humilhação e desconsideração física, psíco-emotiva, tanto pessoal, familiar e sexual levada a efeito e perpetrada, durante cerca de 25 (vinte e cinco) de vivência comum com a ofendida, com uma pena de prisão de 4 (quatro) anos e relativamente às duas filhas, CC e DD, com uma pena de 3 (três) anos.  

O recorrente Ministério Público pugna por uma pena mais elevada – 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses – por estimar que só dessa forma se preserva a integridade da norma violada e se alcança o merecimento pessoal de desvalor da conduta reiterada exercitado pelo arguido durante cerca de 25 (vinte e cinco) anos.

Na escala de factores que deverão intervir na individualização judicial da pena [[19]] haverá que ponderar os valores ético-jurídicos violados e atingidos pela acção do agente e que a norma vulnerada pretende salvaguardar, o modo como essa vulneração foi consumada, a intensidade do sentido emocional-psicológico contido no proceder antijurídico, as consequências pessoais que advieram para o sujeito passivo e a sequenciação delitiva influente e, no caso especifico e concreto do injusto em questão, o âmbito inter-relacional em que as acções se desencadearam e desenvolveram.

O arguido colheu e viveu com a ofendida num ambiente emotivo-psicológico depauperado e desconsiderado, decorrente de um quadro de depreciação, distonia e discrasia funcional-familiar – a mãe da ofendida tinha recorrido ao suicídio para saldar a sua incapacidade de manutenção dos filhos e o irmão mais novo veio a deceder vitimado por doença – e pessoal. (Certamente que a idade do arguido – cerca de 18 anos mais velho – não terá deixado de evolar reminiscências respeitantes à figura do pai e, consequentemente, da geração/manutenção de um ascendente pessoal activo e compensador traduzido numa sensação de protecção e guarida afectiva.) O arguido, pelo grau de educação adquirido e pelo ambiente de formação pessoal-familiar, não desconhecia que, pelas peculiares e específicas condições em que a ofendida se encontrava, esta padeceria de uma aptidão e propensão psicológica e emotiva para aceitar e se sujeitar aos seus ditames e formas de a condicionar, desde logo pela gratidão que despertaria e geraria o facto de a ter acolhido e de a fazer sentir objecto de atenção e afeição pessoal.

O arguido, como é profícua e munificentemente ilustrado e narrado na matéria de facto descrita e explicada na motivação, o arguido manteve uma relação de humilhação e sujeição da ofendida como o evidenciam o modo como se lhe dirigia, menoscabando-a e aviltando-a como ser humano, depreciando-a e desdourando-a como mãe dos filhos e ameaçando-a para a sua continuidade em casa se não se ativesse e observasse os desejos e injunções que ele lhe ditava e exigia.

O ambiente vivido pela ofendida terá sido de total sujeição e submissão, apática e passiva, aos ditames, caprichos e injunções pessoais do arguido que na sua ociosidade e, quiçá, blasoneio de pessoa diferenciada pelo talento, se dispensava de possuir um labor regular e continuado que lhe permitisse angariar a subsistência da prole que tinha o dever de suprir e manter.

O arguido manteve, como o evidencia a comprovação do pendor lucrativo que propinava da actividade sexual que suscitou e fomentou para a ofendida, uma atitude de ascendência terrificante e dominadora sobre a ofendida, expolindo-a da sua dignidade pessoal e familiar e reconduzindo-a a uma condição de inferioridade e menoridade intelectual e racional-social.

Esta consciencialização da preeminência intelectual e emotivo-sentimental que, certamente, o arguido adquiriu e ostentava confere à culpabilidade inerente ao tipo de acção injusta um pendor e propensão acutilante e aguda que deve ser incutido e incorporado na medida da pena a impor.

Assim, somos de entender que a pena a impor pelo crime de violência doméstica perpetrado na pessoa da ofendida, BB, se deve situar nos 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses.

No concernente ao crime de lenocínio agravado haverá que ponderar, para além do já evidenciado poder e estado de dominação e submissão a que o arguido tinha reduzido a ofendida, que se traduzia na sua manipulação, uso, oferta, disfrute e partilha com amigos e conhecidos e ainda angariação e fomento em realizações e actividades com feição pública – realização de filmes de teor pornográfico – que o arguido não se dispensava de permanecer nos locais onde a ofendida vendia o corpo, como tinha o mórbido, luxurioso, obsceno e vexante prazer de a fazer descrever e pormenorizar os momentos de práticas sexuais que eram mantidas com outros homens. (Poupamos na adjectivação para qualificação do carácter ominoso e ignominioso do arguido).

A intensidade de pendor culpável do arguido e os contornos conotativos que se desprendem da conduta e comportamento evidenciado justificam, em nosso juízo, um agravamento da pena. Propendemos, em face da confluência e predominância destes factores danosos e vulneradores do respeito e dignificação do ser humano, em si próprio, e do valor ético-social que deve ser conferido a uma pessoa, a optar por uma pena de 4 (quatro) anos de prisão como modo de retribuir a culpa do agente e procurar reverter a quebra de confiança na ordem jurídica vulnerada.  


II.B.4. – DETERMINAÇÃO DA PENA CONJUNTA.

Ocorrendo um pluralidade de acções cuja perpetração ocorreu “antes de transitar em julgado a condenação por qualquer delas”, ordena a lei – cfr. artigo 77º do Código Penal – que a pena a aplicar pelos tipos de ilícito posto em julgamento deverá ser determinada uma pena conjunta ou unitária que engolfe a totalidade dos ilícitos praticados, com consideração pelos factos e a personalidade do agente. 

Na determinação da pena conjunta, dada a pluralidade de acções típicas consumadas e ficcionando uma intenção criminosa continuada no tempo, porque executada de forma concernente a um ou mais desígnios criminalmente vocacionados, o legislador manda, como não podia deixar de ser, sob pena de alheamento da realidade ou extrapolação dos ditames de vinculação da lei aos princípios como a nulla poena sine culpa ou nulla poena sine factum, que o tribunal atenda, como não, aos factos ilícitos perpetrados pelo agente sob injunção sancionatória e, naturalmente, á personalidade do agente.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal é avonde e inabarcável na hora de proceder à orientação pragmática e jurídico-penalmente arrimada da justificação da pena conjunta e da conformação e/ou confinamento dos parâmetros em que se deve mover a acção do tribunal na determinação concreta da pena conjunta.         

Socorremo-nos, data vénia, para enquadrar a figura da pena conjunta da jurisprudência prevalente deste Supremo Tribunal, v. g. do acórdão de 1.07.2015, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral (sic): “Como já referimos em Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 4/05/2011 é uniforme o entendimento de que, após o estabelecimento da respectiva moldura legal a aplicar, em função das penas parcelares, a pena conjunta deverá ser encontrada em consonância com as exigências gerais de culpa e prevenção. Porém, como afirma Figueiredo Dias, nem por isso dirá que estamos em face de uma hipótese normal de determinação da medida da pena uma vez que a lei fornece ao tribunal para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no artigo 72 do Código Penal um critério especial que se consubstancia na consideração conjunta dos factos e da personalidade.

Igualmente se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 13/9/2006 que o sistema de punição do concurso de crimes consagrado no artº 77º do CPenal, aplicável ao caso, como o vertente, de “conhecimento superveniente do concurso”, adoptando o sistema da pena conjunta, «rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente». Por isso que, determinadas definitivamente as penas parcelares correspondentes a cada um dos singulares factos, cabe ao tribunal, depois de estabelecida a moldura do concurso, encontrar e justificar a pena conjunta cujos critérios legais de determinação são diferentes dos propostos para a primeira etapa. Nesta segunda fase, «quem julga há-de descer da ficção, da visão compartimentada que [esteve] na base da construção da moldura e atentar na unicidade do sujeito em julgamento. A perspectiva nova, conjunta, não apaga a pluralidade de ilícitos, antes a converte numa nova conexão de sentido.

Ainda na esteira de Figueiredo Dias dir-se-á que tal concepção da pena conjunta obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso… “só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um acto intuitivo – da «arte» do juiz… – ou puramente mecânico e portanto arbitrário», embora se aceite que o dever de fundamentação não assume aqui nem o rigor, nem a extensão pressupostos pelo artº 71º. O substrato da culpa não reside apenas nas qualidades do carácter do agente, ético-juridicamente relevantes, que se exprimem no facto, na sua totalidade todavia cindível (...). Reside sim na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto, e portanto também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizadas naquilo a que chamamos a "atitude" da pessoa perante as exigências do dever ser. Daí que o juiz, ao emitir o juízo de culpa ou ao medir a pena, não possa furtar-se a uma compreensão da personalidade do delinquente, a fim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a sua desconformação em face da personalidade suposta pela ordem jurídico-penal. A medida desta desconformação constituirá a medida da censura pessoal que ao delinquente deve ser feita, e, assim, o critério essencial da medida da pena.

Fundamental na formação da pena conjunta é, assim, a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação “desse bocado de vida criminosa com a personalidade. A pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares”.

Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos, acentuando-se a relação dos mesmos factos entre si e no seu contexto; a maior ou menor autonomia a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também o receptividade á pena pelo agente deve ser objecto de nova discussão perante o concurso ou seja a sua culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa.

Também Jeschek se situa no mesmo registo referindo que a pena global se determina como acto autónomo de determinação penal com referência a princípios valorativos próprios. Deverão equacionar-se em conjunto a pessoa do autor e os delitos individuais o que requer uma especial fundamentação da pena global. Por esta forma pretende significar-se que a formação da pena global não é uma elevação esquemática ou arbitrária da pena disponível mas deve reflectir a personalidade do autor e os factos individuais num plano de conexão e frequência. Por isso na valoração da personalidade do autor deve atender-se antes de tudo a saber se os factos são expressão de uma inclinação criminosa ou só constituem delito ocasionais sem relação entre si. A autoria em série deve considerar-se como agravatória da pena. Igualmente subsiste a necessidade de examinar o efeito da pena na vida futura do autor na perspectiva de existência de uma pluralidade de acções puníveis. A apreciação dos factos individuais terá que apreciar especialmente o alcance total do conteúdo do injusto e a questão da conexão interior dos factos individuais.

Afastada a possibilidade de aplicação de um critério abstracto, que se reconduz a um mero enunciar matemático de premissas, impende sobre o juiz um especial ónus de determinar e justificar quais os factores relevantes de cada operação de formação de pena conjunta quer no que respeita á culpa em relação ao conjunto dos factos, quer no que respeita á prevenção, bem como, em sede de personalidade e factos considerados no seu significado conjunto. Só por essa forma a determinação da medida da pena conjunta se reconduz á sua natureza de acto de julgamento, obnubilando as críticas que derivam da aplicação de um critério matemático quer a imposição constitucional que resulta da proibição de penas de duração indefinida -artigo 30 da Constituição.

O Supremo Tribunal de Justiça, sublinhando o exposto, tem vindo a considerar impor-se um especial dever de fundamentação na elaboração da pena conjunta, o qual não se pode reconduzir á vacuidade de formas tabelares e desprovidas das razões do facto concreto. A ponderação abrangente da situação global das circunstâncias específicas é imposta, além do mais, pela consideração da dignidade do cidadão que é sujeito a um dos actos potencialmente mais gravosos para a sua liberdade, elencados no processo penal, o que exige uma análise global e profunda do Tribunal sobre a respectiva pena conjunta.

Aliás, tal necessidade é imposta a maior parte das vezes por uma situação de debilidade em termos de exercício de defesa resultante da anomia social e económica em que se encontram os condenados plurimas vezes.

A explanação dos fundamentos, que á luz da culpa e prevenção conduzem o tribunal á formação da pena conjunta, deve ser exaustiva, sem qualquer ruptura, por forma a permitir uma visão global do percurso de vida subjacente ao itinerário criminoso do arguido. É uma questão de cidadania e dignidade que o arguido seja visto como portador do direito a uma ponderação da pena á luz de princípio fundamentais que norteiam a determinação da pena conjunta e não como mera operação técnica, quase de natureza matemática.

Como é evidente, na indicação dos factos relevantes para a determinação da pena conjunta não relevam os que concretamente fundamentaram as penas parcelares, mas sim os que resultam de uma visão panóptica sobre aquele “pedaço” de vida do arguido, sinalizando as circunstâncias que consubstanciam os denominadores comuns da sua actividade criminosa o que, ao fim e ao cabo, não é mais do que traçar um quadro de interconexão entre os diversos ilícitos e esboçar a sua compreensão á face da respectiva personalidade.

(…) Na verdade, pena adequada é aquela que é proporcional á gravidade do crime cometido. Em sede de violação do princípio da proporcionalidade, torna-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto e a gravidade da pena pois que se é certo que, ao cometer um crime, o agente incorre na sanção do Estado no exercício do seu direito de punir igualmente é exacto que esta sanção importa uma limitação de sua liberdade.

Uma das ideias presente no princípio da proporcionalidade é justamente a de invadir o menos possível a esfera de liberdade do individuo isto é ser intrusivo apenas na medida do estritamente necessário á finalidade da pena que se aplica porquanto se trata de um direito fundamental que será atingido. Por tal motivo a ideia da proporcionalidade não pode ser separada de considerações sobre a finalidade, e função da pena, e não é possível determinar a medida da pena se esta não for orientada para um fim pelo que a racionalidade da opção assenta numa ideia sobre os seus efeitos.

Ao crime e à sua gravidade se refere a maior parte da doutrina para estabelecer critérios concretos de ponderação em relação à extensão da pena a aplicar em cada caso. Tal sucede não somente por razões retributivas, mas também em razão da culpa pelo facto atribuindo ao princípio da proporcionalidade uma função de garantia constitucional. Como refere Norbierto Barranco também em função de razões preventiva se deve aceitar o critério da proporcionalidade pois que o direito penal foca a sua atenção na prevenção de comportamentos e maior ênfase na prevenção é imbricado quanto maior a importância do interesse a ser protegido.

O problema, no entanto, e como salienta Ferrajoli, é a noção de gravidade do crime, tanto em termos dos critérios que determinam como na sua quantificação em termos transponíveis para os limites da pena, ou seja, a proporcionalidade entre a dimensão da pena e a gravidade do crime é um princípio geral que, sendo irrenunciável admite uma pluralidade de perspectivas.

É evidente, quanto a nós, que, ao avaliar a gravidade do delito que motiva a intervenção criminal, a primeira referência incide sobre o bem jurídico salvaguardado pela tutela penal. Se o objectivo prioritário do direito penal é a protecção dos direitos legais, entendidos como pré-requisitos para o desenvolvimento pessoal, daí decorre que, quanto mais valor é dado a cada um deles, maior o esforço que deve ser incrementado para garantir a sua salvaguarda.

Para Gimbemat as sanções num direito penal fundamentado na livre determinação fixam-se a partir do valor do bem jurídico protegido e da natureza culposa ou dolosa do delito da conduta que lesou aquele bem. Isto é assim, diz aquele autor, porque" se a tarefa que a pena tem de cumprir é o de reforçar a natureza inibitória de uma proibição, para criar e manter controles para os cidadãos os quais devem ser mais vigorosa quanto maior a nocividade social da conduta, seria absolutamente injustificado por exemplo punir mais severamente um crime contra a propriedade que um crime contra a vida. O legislador, nesse caso, não teria feito um uso correto do meio que com tanto cuidado tem de ser manejado, da pena.

Decisivo na escolha do tipo de pena e sua duração é a procura da maximização da tutela do bem jurídico com o menor custo possível. Na perspectiva da eficácia da prevenção geral intimidatória a eficácia da tutela depende não só a magnitude da pena, mas também que esta seja tomada a sério, ou seja, que se alguém lesa o bem jurídico é sancionado.

Para muitos Autores o princípio da proporcionalidade radica na necessidade protecção dos bens jurídicos e no princípio da culpa pois que é necessária a existência duma proporção entre a ameaça penal e a danosidade social do facto e apena infligida em concreto na medida da culpa do seu autor

Na relação com o princípio da culpa há que assinalar que com a proporcionalidade se entrecruzam as exigência ligados a ideias de justiça ou retribuição com a lógica da utilidade do  protecção jurídico-penal e respeito pelos valores sociais Neste sentido, e numa afirmação da lógica da retribuição,  nasce a necessidade de que a pena não seja inferior ao exigido pela ideia de justiça e sua imposição não resulte numa pena mais grave do que a exigida pela gravidade do delito. Aqui deve-se notar o ponto de vista de Santiago Mir Puig , no sentido de que a proporcionalidade deve ser baseada na nocividade social do facto cujo pressuposto é a afirmação da validade das regras da consciência colectiva.

A configuração de um Estado democrático requer o ajuste da severidade das sanções ao significado para a sociedade que assume o ataque aos bens jurídico. Mir Puig observou que a proporcionalidade é necessário para o funcionamento adequado de prevenção general.

A determinação da concreta medida definitiva da pena tem sempre presente pontos de vista preventivos. Dado que o parâmetro da culpa só representa um estádio até á determinação da medida definitiva da pena a sua dimensão final fixa-se de acordo com critérios preventivos dentro dos limites de adequação á culpa.

Também neste contexto a proibição de excesso tem uma importância determinante. Consequentemente importa eleger a forma de intervenção menos gravosa que ofereça perspectivas de êxito e, assim, é possível que a dimensão concreta da pena varie dentro dos limites da culpa segundo a forma como se apresenta a concreta imagem de prevenção do autor. Como refere Anabela Rodrigues a finalidade de prevenção geral que aqui está em causa é limitada pela referência ao bem jurídico e sua importância. Com o que o conteúdo da prevenção geral que aqui está em causa começa a ganhar contornos: a gravidade do facto cometido deve integrar esse conteúdo, servindo, além do mais, de limite à prevenção.

Adianta a mesma Autora que o que se diz, pois, é que, exactamente do ponto de vista de um controlo racional preventivo da criminalidade que se justifique a partir da necessidade social da intervenção penal jurídico-constitucionalmente consagrada (artigo 18.°-2), é possível assinalar à prevenção geral um conteúdo que a impeça de excessos. Via a exigir que o efeito preventivo, a obter-se (apenas) mediante a confirmação da validade da norma jurídica violada, se realize em consonância com a função de protecção de bens jurídicos que cabe ao direito penal assegurar. Só assim, e ainda na medida em que esta função apenas se legitima se e enquanto não há outros meios para possibilitar a convivência pacifica dos homens em sociedade, a realização daquela finalidade de prevenção postulará a sua limitação pelo princípio da proporcionalidade. Princípio que não é mais do que um limite à intervenção penal derivado do fundamento da prevenção geral na necessidade social e que implica, no âmbito da medida da pena, que a sua gravidade seja adequada à gravidade da lesão do bem jurídico ocorrida. O que significa que, com isto, o efeito de prevenção geral que se quer obter - protecção de bens jurídicos -, radicado na necessidade, mediante o limite que constitui a própria referência ao bem jurídico, postula um limite à sua própria realização - a proporcionalidade -, com que nunca correrá o risco de se transformar numa prevenção geral de intimidação.

Atribuindo consistência prática ao exposto, as penas têm de ser proporcionadas á transcendência social- mais que ao dano social - que assume a violação do bem jurídico cuja tutela interessa prever. O critério principal para valorar a proporção da intervenção penal é o da importância do bem jurídico protegido porquanto a sua garantia é o principal fundamento da referida intervenção.

É exactamente essa proporcionalidade em função de ponto de vista preventivo geral e especial, avaliada em função do bem jurídico protegido e violado, que está em causa com a pena aplicada no caso vertente de dezassete anos de prisão sendo certo que, em abstracto, em termos parcelares o crime a que corresponde o limite mínimo em termos de moldura penal se situa nos quatro anos de prisão.

A proporcionalidade de que falamos com étimo constitucional arranca duma valoração diversa dos bens jurídicos que a lei entende merecerem tutela legal. Não é admissível, e torna-se desconcertante em termos de procura da pena mais justa, que sejam equiparados bens jurídicos duma dimensão substancialmente diversa sendo certo que não é possível aferir duma culpa e duma ilicitude global sem ponderar a intensidade com que o agente rompe o seu contrato social.

A pena aplicada nos presentes autos referida a crimes patrimoniais em relação aos quais a pena parcelar mais elevada se situa nos quatro anos de prisão suscita sérias reservas sobre o cumprimento do princípio da proporcionalidade.

Ainda na esteira da afirmação do mesmo princípio não pode deixar de se chamar à colação um princípio que lhe anda perto e que é o princípio da legalidade.

Se é certo que o arguido não tem direito a uma pena conjunta não é menos exacto que o mesmo tem inscrito no seu património de cidadania o direito a uma uniformidade de critérios na apreciação de um dos valores que é mais caro a qualquer cidadão, ou seja, a sua liberdade.

Por alguma forma está em causa uma volatilidade de critérios que viola um direito á segurança jurídica. Pode-se afirmar que a vivência jurídica num Estado de Direito Democrático terá de estar ancorada, necessariamente, nos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança. O princípio da segurança jurídica, enquanto imbricado no princípio do Estado de Direito Democrático, comporta a ideia da previsibilidade que, no essencial se «reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos actos normativos».

A realização e efectivação do princípio do Estado de Direito, no quadro constitucional, impõe que seja assegurado um certo grau de calculabilidade e previsibilidade dos cidadãos sobre as suas situações jurídicas, ou seja, que se mostre garantida a confiança na actuação dos entes públicos. É, assim, que o princípio da protecção da confiança e segurança jurídica pressupõe um mínimo de previsibilidade em relação aos actos do poder, de molde a que a cada pessoa seja garantida e assegurada a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos jurídicos dos actos que pratica.

Como refere Pablo Milanese, o princípio da legalidade tradicionalmente apresenta quatro consequências ou repercussões moldadas em forma de proibições, que são: a proibição de analogia (nullum crimen, nulla poena sine lege estricta), a proibição do Direito consuetudinário para fundamentar ou agravar a pena (nullum crimen, nulla poena sine lege scripta), a proibição de retroactividade (nullum crimen, nulla poena sine lege praevia) e a proibição de leis penais indeterminadas ou imprecisas (nullum crimen, nulla poena sine lege certa).

Daí pode-se afirmar que o Princípio da Legalidade exerce uma dupla função: uma política, ao expressar o predomínio do poder legislativo frente a outros poderes do Estado e que a transforma em garantia de segurança jurídica para o cidadão, e outra técnica, ao exigir do legislador a utilização de cláusulas seguras e taxativas na formulação dos tipos penais. Tais limitações consistem em algumas garantias para os cidadãos, das quais cabe destacar a reserva de lei (a exigência de lei orgânica) e o princípio da taxatividade e a segurança jurídica (lei estrita).

Além da garantia formal, integra o Princípio da Legalidade a garantia material representada pelo princípio da taxatividade, através do qual há a exigência de que o legislador faça a lei de forma clara e concreta, evitando o abuso de conceitos vagos e indeterminados. O contrário caracterizaria manifesta infracção do princípio de segurança jurídica, também consagrado na Constituição já que a clareza das normas é uma exigência deste princípio.

A propósito da “segurança jurídica” e da “protecção da confiança” refere o J.J. Gomes Canotilho que “… a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica - garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e de realização do direito - enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos. A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder - legislativo, executivo e judicial. O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de protecção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses actos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico …” (in: “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7.ª edição, pág. 257)

Na verdade, os cidadãos têm direito a um mínimo de certeza e de segurança quanto aos direitos e expectativas que, legitimamente, forem criando no desenvolvimento das relações jurídicas. Por isso que «não é consentida uma normação tal que afecte, de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou desproporcionadamente onerosa, aqueles mínimos de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito devem respeitar.» (Cf. Ac. TC nº 365/91, DR II Série, de 27.09.91).

Partimos do pressuposto de que a dignidade da pessoa é a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer acto que o confrontem. A mesma dignidade não restará suficientemente respeitada e protegida quando os cidadãos sejam atingidos por um tal nível de instabilidade jurídica que não permitam, com um mínimo de segurança e tranquilidade, confiar no Estado e numa certa estabilidade das suas próprias posições jurídicas.

O reconhecimento, e a garantia, de direitos fundamentais tem sido consensualmente considerado uma exigência inultrapassável da dignidade da pessoa humana (assim como da própria noção de Estado de Direito), já que os direitos fundamentais constituem uma sua explicitação de tal sorte que, em cada direito fundamental, se faz presente um conteúdo ou, pelo menos, alguma projecção da dignidade da pessoa. Consequentemente, a protecção dos direitos fundamentais, pelo menos no que concerne ao seu núcleo essencial e/ou ao seu conteúdo em dignidade, apenas será possível onde estiver assegurado um mínimo de segurança jurídica.).

E ainda do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,  de 27.02.2013, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar (sic): “Nos termos do artigo 77º, nº 1, do Código Penal, o agente do concurso de crimes («quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles») é condenado numa única pena, em cuja medida «são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

A pena única do concurso, formada no sistema de pena conjunta e que parte das várias penas parcelares aplicadas pelos vários crimes (princípio da acumulação), deve ser, pois, fixada, dentro da moldura do cúmulo estabelecido pelo artigo 78º do Código Penal, tendo em conta os factos e a personalidade do agente.

Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está, pois, ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.

Na consideração da personalidade (da personalidade, dir-se-ia estrutural, que se manifesta e tal como se manifesta na totalidade dos factos) deve ser ponderado o modo como a personalidade se projecta nos factos ou é por estes revelada, ou seja, aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente.

O modelo de fixação da pena no concurso de crimes rejeita, pois, uma visão atomística dos vários crimes e obriga a olhar para o conjunto - para a possível  conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse pedaço de vida criminosa com a personalidade do seu agente. Por isso que, determinadas definitivamente as penas parcelares correspondentes a cada um dos singulares crimes, cabe ao tribunal, na moldura do concurso definida em função das penas parcelares, encontrar e justificar a pena conjunta cujos critérios legais de determinação são diferentes dos que determinam as penas parcelares por cada crime. Nesta segunda fase, «quem julga há-de descer da ficção, da visão compartimentada que [esteve] na base da construção da moldura e atentar na unicidade do sujeito em julgamento. A perspectiva nova, conjunta, não apaga a pluralidade de ilícitos, antes a converte numa nova conexão de sentido».

Aqui, o todo não equivale à mera soma das partes e, além disso, os mesmos tipos legais de crime são passíveis de «relações existenciais diversíssimas», a reclamar uma valoração que não se repete de caso para caso. A este conjunto – a esta «massa de ilícito que aparente uma particular unidade de relação» - corresponderá uma nova culpa (que continuará a ser culpa pelo facto) mas, agora, culpa pelos factos em relação, isto é, a avaliação conjunta dos factos e da personalidade.

Fundamental na formação da pena do concurso é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação desse espaço de vida com a personalidade. «Como referem Maurach, Gossel e Zipf a pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da personalidade do autor e das diversas penas parcelares. Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos (Schonke-Schrôder-Stree)», «a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto; a maior ou menor autonomia a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também o receptividade à pena pelo agente deve ser objecto de nova discussão perante o concurso ou seja a culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa».

«Também Jeschek pensa no mesmo registo referindo que a pena global se determina como acto autónomo de determinação penal com referência a princípios valorativos próprios. Deverão equacionar-se em conjunto a pessoa do autor e os delitos individuais o que requer uma especial fundamentação da pena global. Por esta forma pretende significar-se que a formação da pena global não é uma elevação esquemática ou arbitrária da pena disponível mas deve reflectir a personalidade do autor e os factos individuais num plano de conexão e frequência. Por isso na valoração da personalidade do autor deve atender-se antes de tudo a saber se os factos são expressão de uma inclinação criminosa ou só constituem delitos ocasionais sem relação entre si» (cfr., v. g., os acórdãos do STJ, de 24 de Março de 2011, proc. nº 322/08.2TARGR, e de 5 de Julho de 2012, proc. nº 265/11.6SAGRD, este com exaustiva indicação de jurisprudência, e Cristina Líbano Monteiro, anotação ao acórdão do STJ de 12 de Julho de 2005, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16º, p. 155 ss.).

Assim, o conjunto dos factos indica a gravidade do ilícito global, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos concorrentes. 

Na avaliação da personalidade – unitária – do agente importa, sobretudo, verificar se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. 

Mas tendo na devida consideração as exigências de prevenção geral, e especialmente na pena do concurso os efeitos previsíveis da pena única sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

A avaliação do conjunto dos factos – do «ilícito global» - há-de partir necessariamente da consideração relativa de cada acontecimento singular por si, mas também na projecção sobre relações de confluência: reiteração e persistência; temporalidade; aproximação ou distanciamento; homologia ou homotropia; valores individualmente afectados; pluralidade de bens pessoais; limitação a bens materiais; modos de execução; consequências instrumentais.

(…) 6. A fixação da pena do cúmulo – meio judicial para encontrar ponderadamente a pena única adequada a responder simultaneamente às exigências de prevenção geral e especial – não constitui um re-sancionamento do agente depois das penas parcelares, mas realiza a finalidade de determinar a pena individualizada do conjunto num sistema diverso da acumulação e da exasperação, prevenindo a relativa incerteza decorrente da concretização da sanção concreta a cumprir apenas no âmbito da execução.

A aplicação e a interacção das regras do artigo 77º, nº 1, do Código Penal (avaliação em conjunto dos factos e da personalidade) convocam critérios de proporcionalidade material na fixação da pena única dentro da moldura do cúmulo, por vezes de grande amplitude; proporcionalidade e proibição de excesso em relação aos fins na equação entre a gravidade do ilícito global e a amplitude dos limites da moldura da pena conjunta.

A condição principológica da proporcionalidade permite concretizar o valor em construção normativo-aplicativa e instrumento metodológico; a proporcionalidade stricto sensu – dimensão material e operativa da proporcionalidade em sentido amplo - constitui um instrumento para encontrar o equilíbrio adequado entre direitos ou valores em confronto. No julgamento e na ponderação na aplicação de penas actua através da interacção complexa entre o valor da liberdade (e, negativamente, a privação de liberdade) ou de outros modos de intromissão na autonomia e livre condução de vida do agente de um crime, e o interesse público na aplicação de uma sanção penal pela prática de um acto qualificado como crime, que realize, nem mais nem menos, as finalidades da punição impostas para a realização desse interesse público.

A proporcionalidade, regra ou princípio, na dimensão stricto sensu faz a passagem entre a abstracção de uma noção e a identificação metodológica de critérios utilizáveis em cada caso concreto.

A regra básica de ponderação e construção ou encontro da harmonia e do equilíbrio (balancing) de direitos e razões (proporcionalidade), como medida fundamental de decisão, seja do legislador, do juiz ou da administração, está na «importância social marginal» dos valores ou posições em confronto (cf., Aharon Barak, «Proportionality; Constitutional Rights and their Limitations», Cambrige University Press, 2012, p. 362-3); a leitura adequada da proporcionalidade aponta para um juízo de equidade, que exige uma «particular atitude espiritual» do juiz, «de estreita relação prática: razoabilidade, adaptação, capacidade de alcançar composições», com «espaço para muitas razões» (cf., Ingo Wolfgang Sarlet, «Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre proibição de excesso e de insuficiência», “Revista Brasileira de Ciências Criminais”, nº 47, Marco-Abril de 2004, p. 64-65, referindo Zagrebelsky).

Aplicando em casos de determinação da medida da pena, a importância social marginal dos benefícios decorrentes da protecção de uma norma ou de um determinado acto praticado em aplicação de uma norma, e a importância social marginal dos efeitos individuais na prevenção de um dano ou das consequências no destinatário da aplicação de uma sanção penal pela prática de um facto qualificado como crime.”

Alinhados com a doutrina plasmada nos arestos citados – que, em nosso juízo reflectem com clarividência o modo isonómico e criterioso de construção da determinação de um pena conjunta – para a composição da pena única teremos que nos reconduzir à pena mínima imposta ao agente e ao máximo (soma) das penas parcelares impostas e, em pós, operarmos um exercício de ficção que reverbere (i) a danosidade individual e social das condutas; (ii) os efeitos que as acções ilícitas ocasionam, geram e são susceptíveis de erodir na confiança dos cidadãos pela vulneração das normas de protecção dos valores e bens jurídicos que é suposto preservarem e manterem; (iii) a culpa [[20]] manifestada e perpetrada nas acções típicas; (iv) e as consequências/efeitos que é possível detectar/prever e projectar nas assunções vivenciais futuras dos envolvidos na consumação dos delitos apurados.   

Nesta conformidade, a pena minima imposta ao arguido foi de 3 (três) anos de prisão sendo a soma das penas formadas pelas penas parcelares, na formulação ora assunida, de 14 (catorze) anos e 6 (seis) meses [3 (três) anos por cada um dos crimes nas pessoas das filhas; 4 (quatro) anos e 6 (seis) pelo crime de violência doméstica na pessoa de BB e 4 (quatro) anos pelo crime de lenocínio agravado].  

Com as indicadas molduras – minima e máxima – achamos ajustada a irrogação de uma pena única de 8 (oito) anos de prisão.  

II.B.ii).b). – Discrepância do Arguido/Recorrente.

Na impugnação a que procede o arguido discrepa do quantum da pena única imposta, devendo, em modificação das penas parcelares e única e (sic) “(...) em homenagem aos princípios que limitam a medida das penas e que emergem dos Artigos 40.º e 71.º do Código Penal, penas parcelares inferiores às fixadas em cada um dos crimes”, “[r]eduzindo a pena única em que o arguido foi condenando.

A solução acolhimento à pretensão formulada pelo Ministério Público, que na sua essencialidade, se configurava antinómica e conflituante com a pretensão formulada pelo arguido, dessora e desonera de cuidado a apreciação a conferir à pretensão por este adiantada, pelo que se declara o conhecimento do recurso apresentado pelo arguido como prejudicada.



III. – DECISÃO.

Na desinência do que foi argumentado, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 3ª secção criminal, do Supremo Tribunal de Justiça, em:

A) – Alterar a decisão recorrida, e, em consequência:

1) – Condenar o arguido, AA, como autor material de um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelos artigos 14.°, nº 1, 26º 30º, nº 1, e 152.°, nºs 1, alíneas b), c), d), 2, 4, 5 e 6, todos do Código Penal, na pessoa de BB, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (meses) de prisão;

2) – Condenar o arguido, AA, como autor material de um crime de lenocínio agravado, previsto e punido pelos artigos 14º, nº 1, 26º, 30º, nº 1, e 169º, nºs 1 e 2, alíneas a), c) e d), todos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão; 

3) – Operando o cúmulo das penas impostas ao arguido, AA, aplicar uma pena única de 8 (oito) anos de prisão.

B) – Condenar o arguido nas custas.  


Lisboa, 27 de Novembro de 2019


Gabriel Martim Catarino (Relator)

Manuel Augusto de Matos

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[1] Como veremos nenhuma destas ocupações é descrita como estável ou permanente, sendo mesmo a maioria contestada pelas pessoas inquiridas com algum conhecimento sobre a vida do arguido.

[2] Para uma indicação mais abrangente de diversas situações em que o Supremo Tribunal de Justiça teve que sufragar esta posição para solver deficiências e imprecisões das imputações formuladas e avaliadas nas peças processuais indutoras de responsabilidade penal, indicam-se os acórdãos referidos no acórdão citado. “Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de “06-05-2004, processo n.º 908/04-5.ª Secção; de 04-05-2005, processo n.º 889/05; de 07-12-2005, processo n.º 2945/05; de 06-07-2006, processo n.º 1924/06-5.ª Secção; de 14-09-2006, processo n.º 2421/06 - 5.ª Secção; de 17-01-2007, processo n.º 3644/06-3.ª Secção; de 24-01-2007, processo n.º 3647/06-3.ª Secção; de 21-02-2007, processos n.ºs 4341/06 e 3932/06, ambos da 3.ª Secção; de 02-05-2007, processo n.º 1238/07-3.ª Secção; de 16-05-2007, processo n.º 1239/07-3.ª Secção; de 04-07-2007, processo n.º 2303/07-3.ª Secção; in CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 234; de 15-11-2007, processo n.º 3236/07-5.ª Secção; de 31-01-2008, processo n.º 1411/07-5.ª Secção; de 02-04-2008, por nós relatado no processo n.º 4197/07-3.ª Secção (São de evitar as imputações genéricas com utilização de fórmulas vagas, imprecisas, nebulosas, difusas, obscuras, que afastarão a qualificação) e n.º 578/08-3.ª Secção; de 02-07-2008, por nós relatado no processo n.º 3861/07-3.ª Secção, em caso de imprecisão de matéria de facto em sede de crime de maus tratos a cônjuge; de 03-09-2008, processo n.º 2044/08-3.ª Secção; (do mesmo Relator, o acórdão de 09-06-2010, processo n.º 1699/07.2TBEVR.S1); de 02-10-2008, processo n.º 1314/08-5.ª Secção; de 06-11-2008, processo n.º 2804/08-5.ª Secção; de 20-11-2008, processo n.º 3269/08-5.ª Secção; de 25-03-2009, processo n.º 380/09-5.ª Secção; de 27-05-2009, por nós relatado no processo n.º 484/09; de 17-12-2009, processo n.º 11/02.1PECTB-5.ª Secção, e de 15-12-2011, por nós relatado no processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1.

Mais recentemente, os acórdãos de 30-09-2015 e de 28-10-2015, por nós relatados nos processos n.º 2430/13.9JAPRT.S1, em caso de abuso sexual de criança, e n.º 10/13.8GAAMT.P1.S1, em caso de tráfico de estupefacientes, procedendo a pretensão de integração da conduta do recorrente no tipo privilegiado do artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.”

[3] Assim, "acumular-se-ão os seus efeitos, sem obediência a qualquer ordem, mas obviamente com preferência pelas circunstâncias especiais, a que se seguirão as comuns", cfr. Simas Santos e Leal Henriques, in "Noções elementares de Direito penal", 2ª Ed., 2003, e Robalo Cordeiro, Escolha e medida da Pena, in Jornadas de Direito criminal, I, pág. 265.

[4] Nomeadamente na qualidade de pai de duas das vítimas a quem desde logo cabia o dever de respeito e de promoção do desenvolvimento físico, intelectual e moral das filhas, cfr. art.es 1874.3, n.° 1 e 1885.B, n.º 1, do Código Civil.

[5] Em tal aresto consignou-se, entre o mais, que "A medida da pena aplicada ao crime cometido contra a ofendida (4 anos e 6 meses de prisão) aproximou-se do limite máximo (5 anos de prisão), o que se mostra adequado, tendo em conta as circunstâncias referidas, de anormal gravidade, a ampla duração temporal das ofensas, e por último os fins das penas, especialmente em sede preventiva.

Quanto aos crimes em que foram ofendidos os menores, punidos cada um com a pena de 3 anos de prisão, com uma moldura penal idêntica, valem as mesmas considerações, julgando-se igualmente adequada e proporcional a medida das penas fixadas", ressalvando-se todavia que tais penas satisfazem "embora estritamente pelo mínimo, as exigências preventivas, gerais e especiais", o que acompanhamos in totum.

[6] É avonde a doutrina sobre a questão da violência doméstica e/ou sobre a violência do género.
Por todos e com abundante citações doutrinárias veja-se Maria Concepción Gorjón Barranco, “La Importancia de definir el Bien Jurídico en el Delito de Violencia «Cuasi-Doméstica”, in Revista General de Derecho Penal, nº 19, ano 2013; Myrna Villegas Diaz, “El Delito de maltrato habitual en la Ley nº 20.006 a la luz del Depreco Comparado”; Politica Criminl, Vol. 7, nº 14 (Dezembro de 2012); Juan Luís Fuentes Osorio, “Lesiones Producidas en un Contexto de Violência Doméstica o de Género”, in Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, ano 15-16, (2013) (onde, a final, se distende a abundante jurisprudência do Tribunal Supremo Espanhol e a doutrina mais significativa).
[7] Disponível em www.dgsi.pt
[8] Recenseia-se a cópia de arestos em que o tema é objecto de análise e que constam do acórdão citado. “É abundante a jurisprudência deste STJ sobre o crime de violência doméstica: cfr., recentemente, v.g., Acs. STJ de 23/6/2016, Proc. 125/15.8PHNST.S1, Rel. Armindo Monteiro; Ac. STJ de 20/4/2017, Proc.2263/15.8JAPRT. P1.S1, Rel. Nuno Gomes da Silva; Ac. STJ de 7/2/2018, Proc. 312/15.9POLSB.S1, Rel. Maia Costa; Ac. STJ de 13/9/2018, Proc. 372/17.8PBLRS.L1.S1, Rel. Raul Borges (caracteriza o crime e contém vasta informação legislativa, doutrinária e jurisprudencial); Ac. STJ de 21/11/2018, Proc. 574/16.4PBAGH.S1, Rel. Manuel Augusto Matos; Ac. STJ de 20/2/2019, Proc. 25/17.7GEEVR.S1, Rel. Júlio Pereira.
Especificamente sobre o crime de violência doméstica cometido através de envio de sms, cfr. na jurisprudência das Relações, Acs. RE de 1/10/2013, Proc. 258/11.0GAOLH.E1.A1, Rel. Martinho Cardoso; da RC de 18/6/2014, Proc. 718/11.2PBFIG.C1, Rel. Moreira Ramos; da RP de 8/10/2014, Proc. 956/10.5PJPRT.P1, Rel. Moreira Ramos.”

Na doutrina, também recenseado do aresto citado: “Há várias teses de mestrado sobre violência doméstica, disponíveis na Internet, de que são exemplo: Sara Margarida N. das Neves Simões, O Crime de Violência Doméstica. Aspectos Materiais e Processuais, tese de mestrado sob a orientação do Prof. Germano Marques da Silva, U. Católica, 2015, disponível em https://repositorio.ucp.pt/

Contém um vasto índice com referências bibliográficas.

Inês Fonseca Mendes, A natureza jurídica do crime de violência doméstica conjugal: uma perspectiva crítica, tese de mestrado sob a orientação da Prof. Cláudia Cruz Santos, U. Coimbra, 2015, disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/ A natureza publica do crime de Violência Domestica Conjugal Uma perspectiva critica.pdf

Mariana Silva Gentil Carrilho, O crime de violência doméstica e a proteção da vítima, tese de mestrado sob a orientação da Prof. Ana B. P. de Morais Sousa e Brito, Universidade Lusíada de Lisboa, 2018, disponível em http://repositorio.ulusiada.pt/bitstream/11067/3845/1/md_mariana_carrilho_dissertacao.pdf
Esquematiza as várias correntes (4) sobre o bem jurídico protegido, com referência de doutrina e jurisprudência: a saúde entendida como um bem complexo abrangendo a saúde física psíquica e mental; a dignidade da pessoa humana; a integridade pessoal; a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra.”
[9] Claus Roxin, “La Teooria del Delito en la Discussión actual”, Editorial Grijley, 2007, p.71.
[10] Claus Roxin, op. loc. cit. ps. 52-53. No mesmo eito pode colher-se lição em Enrique Bacigalupo, in “Justicia Penal y Derechos Fundamentales”, Marcial Pons, 2002, p. 117, quando assevera que “A gravidade da culpabilidade determina o limite máximo da pena, mas não obriga – como na concepção de Kant – à aplicação da pena adequada á culpabilidade. Por debaixo desse limite é possível observar exigências preventivas que, inclusive, podem determinar uma redução da pena adequada á culpabilidade. Dito de outra maneira: a retribuição da culpabilidade, que provém das teorias absolutas, só determina o limite máximo da pena aplicável ao autor, sem excluir a possibilidade de dar cabida às necessidades preventivas, proveniente das teorias relativas, até ao limite fixado pela culpabilidade.”      
[11] cfr. Eduardo Crespo, op. loc.cit., pag. 121.
[12] Cfr. Gunther Jakobs, in loc.cit. supra, pag. 13.
[13] Para uma abordagem mais aprofundada sobre a acepção «social de culpabilidade» veja-se Bernd Schünemann, págs. 98 a 114, “La Culpabilidad: Estado de la Questión”;  in “Sobre el Estado de la Teoria del Delito” (Seminário en la Universitat Pompeu Fabra), Claus Roxin, Günther Jakobs, Bernd Schünemann; Wolfang Frish e Michael Köhler; Cuardernos Civitas, 2016. 
[14] Paragonado com o estabelecido no artigo 71º do nosso ordenamento jurídico-penal, pontua-se no apartado II do § 46 do StGB, que o tribunal deverá na “medición” da pena ponderar as circunstâncias favoráveis e contrárias ao autor. “com este fim se contemplarão particularmente: - os fundamentos da motivação e os fins do autor; - a intencionalidade que se deduz do facto e a vontade com a qual se realizou o facto; - a medida do incumprimento do dever; - o modo de execução e os efeitos inculpatórios do facto; - os antecedentes do autor, a sua situação pessoal e económica,
assim como
a sua conduta depois do facto, especialmente os seus esforços para reparar os danos, e os seus esforços para acordar uma compensação com o prejudicado.”    
[15] Winfried Hassemer, “Fundamentos del Derecho Penal”, Editorial Bosch, Barcelona, 1984, pág. 127.
[16] Cfr. Claus Roxin, “Fundamentos Politico-criminales del Derecho Penal” (“La determinación de la pena a la luz y de la teoria de los fines de la pena), Hammarabi, Buenos Aires, págs. 143 a 166.
[17]O princípio – fundamentado segundo opinião generalizada na Constituição – nulla poena sine culpa (princípio da culpabilidade) não significa nesta situação senão que «o suposto de facto e a consequência jurídica devem estar em proporção adequada», quer dizer, a imputação ao autor deve ser necessária, por estar descartada a possibilidade de resolver o conflito sem castigar o autor. Também a medida da culpabilidade se vê limitada pelo necessário. Sobretudo, o conteúdo da culpabilidade não é algo prévio ao Direito, sem consideração às situações sociais.” – Günther Jakobs, op. loc. cit. pág. 588-589.     
[18] À teoria da margem da liberdade opõe-se a teoria da «pena exacta», segundo a qual «a la culpabilidad» só pode corresponder una pena exactamente determinada (punktuell).  – Clus Roxin, op. loc. cit. P. 146.
[19] Sobre o modo de determinação, concreção e individualização da pena veja-se Luís Garcia Marin, “Tratado de las Consequências Jurídicas del Delito”, Tirant lo Blanch, 2006, 227 a 286.
[20]La colpa al pari del dolo, è un atteggiamento antidoveroso e, quindi, reprovevole della volontá.” – Francesco Antolesi, op. loc. cit. p. 363.