Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A1736
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: SUCUMBÊNCIA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
COMPROPRIEDADE
VENDA DE BENS ALHEIOS
NULIDADE DO CONTRATO
REDUÇÃO DO NEGÓCIO
Nº do Documento: SJ20080624017366
Data do Acordão: 06/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I - Não se podendo determinar com exactidão o valor da sucumbência, atenta a natureza dos pedidos e os efeitos jurídicos que a Autora pretende extrair da acção, o recurso deve ser admitido.
II - Enferma de nulidade a venda pela dona de apenas ¼ do imóvel, da quota-parte que nele detinham os co-RR., porque inquestionavelmente vendeu bens alheios, já que invocou ser dona de todo o prédio quando apenas lhe pertencia ¼.
III - O art. 892.º do CC ao regular a venda de coisa alheia afasta-se do regime do art. 286.º ao estabelecer que o vendedor não pode opor tal nulidade ao comprador de boa fé, entendida na acepção subjectiva - ignorância de que o bem vendido não pertence ao vendedor.
IV - No caso dos autos estamos perante venda de bens parcialmente alheios, pelo que, nos termos do art. 902.º do CC, se admite que o contrato possa valer na parte restante por aplicação do art. 292.° e quanto à parte nula se reduza, proporcionalmente, o preço estipulado.
V - Aplicando-se o regime da redução dos negócios jurídicos, cumpre averiguar aquilo que as partes teriam querido provavelmente, se soubessem que o negócio se opunha parcialmente a alguma disposição legal e não pudessem realizá-lo em termos de ser válido na sua integridade.
VI - Tendo a Autora pedido a nulidade total do negócio de venda de bens alheios, constante da escritura de 18.8.1989, sendo que toda a economia dos pedidos é no sentido de pretender não a redução, mas a nulidade total do negócio, competiria aos RR. que não ignoravam que na realidade existiu venda de bens alheios, o ónus de provar que o desejavam manter, mesmo sem a parte viciada.
VII - Nada alegando os RR. a esse respeito, nada poderiam provar, declarando-se, pois, a nulidade da escritura de compra e venda, por se tratar de venda de bens alheios.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA, S.A., intentou, em 27.11.2000, no Tribunal Judicial da Comarca de Valpaços, acção declarativa de condenação, na forma ordinária, contra:

BB, CC, DD e mulher EE, FF e mulher GG, e HH.

Pedindo que:

- seja declarada nula a escritura de compra e venda celebrada em 18.8.89, entre os RR. BB e DD;

- o cancelamento da inscrição referente à ap.06/180889 e à ap.04/220889 do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Valpaços sob o nº00245/180889;

- caso tenha sido celebrado contrato de compra e venda relativa àquele prédio entre os RR. FF e mulher, e HH, o mesmo seja restituído na medida do interesse da Autora, de modo a que esta possa executá-lo no património do obrigado à restituição;

- não se entendendo assim, seja aquele negócio declarado nulo, por simulação.

Alega ser credora dos RR. FF e mulher, e ter ocorrido, no referido negócio, celebrado em 18.8.89, venda de coisa alheia a fim de impossibilitar que o respectivo bem, propriedade daqueles RR. na proporção de ½, respondesse por aquela dívida.

Além disso, e caso tenha ocorrido, posteriormente, venda a favor do Réu HH, da quota-parte daqueles RR. no prédio, através da mesma pretendeu-se, apenas, diminuir a garantia patrimonial do crédito da Autora.

Contestaram apenas os RR. FF e mulher alegando, no fundo, continuar aquela quota-parte do prédio a pertencer-lhes.

Houve réplica. Foi elaborado o despacho saneador e realizado o julgamento.


A final foi proferida sentença que:

Declarou nula a venda celebrada em 18-8-89, entre os R.R. BB e DD, por se tratar de venda de bens alheios; determinando o cancelamento da inscrição referente à ap.06/180889 e à ap.04/220889 do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Valpaços sob o nº00245/180889; e, caso tenha sido celebrada a escritura de compra e venda entre os RR. FF e mulher e HH, declarou aquele negócio ineficaz em relação à Autora, devendo o respectivo prédio ser restituído na medida do interesse daquela, que pode executá-lo no património do obrigado.
O pedido subsidiário foi julgado prejudicado.


Inconformados, os RR. FF e mulher, e CM, habilitado na sequência da morte do Réu DD, interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que, por Acórdão de 5.11.2007 – fls. 418 a 437 – concedendo parcial provimento ao recurso:

- declarou a nulidade parcial da venda celebrada por escritura de 18.8.89 entre os R.R. BB e DD, na parte em que incluiu a fracção de ½ do prédio pertencente ao R. FF;

- determinou, em conformidade, a rectificação da inscrição referente à ap.06/180889 e à ap. 04/220889 do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Valpaços sob o nº00245/180889 da freguesia de Rio Torto;

-julgou improcedente o pedido de impugnação pauliana formulado sob o nº3;

-julgou improcedente o pedido subsidiário. (simulação)


Inconformada a Autora recorreu para este Supremo Tribunal e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

a) A escritura de compra e venda celebrada em 18 Agosto/1989, entre o Réu DD e a Ré BB é nula porque se traduz numa venda de bens alheios.

b) Com efeito, a Ré BB era proprietária, por adjudicação no Processo de Inventário Obrigatório n°25/931 e 12/76, de apenas ¼ do prédio rústico inscrito na matriz sob o art. 556, da freguesia de Rio Torto, descrito na Conservatória do Registo Predial de Valpaços sob o n° 245/1 80889.

c) Não obstante, a dita Ré BB vendeu ¼ que pertencia à sua irmã Ré CC e ½ a favor do Réu FF.

d) O que consubstancia uma venda de bens alheios, nula nos termos do disposto no art. 892°, conjugado com o art. 286°, ambos do Código Civil.

e) Mas esta venda de bens alheios, embora parcial, não permite a redução do negócio jurídico, nos termos do disposto no art. 902° e 292°, ambos do Código Civil.

f) Com efeito, a Autora e ora Recorrida peticionou a nulidade total do negócio e alegou que as partes queriam celebrar escritura da totalidade da descrição predial em causa, sem o que teriam preferido não a realizar (vide o historial que os Factos Assentes evidenciam).

g) Por outro lado, é certo que o Réu DD produziu declaração no âmbito do processo judicial e com as consequências previstas no art. 119° do Código de Registo Predial que era proprietário, por via da escritura em discussão nestes autos, da totalidade do prédio, não se conformando com ½, e muito menos ¼.

h) Não se verificam, portanto, os requisitos subjacentes à redução, questão que nem sequer foi alvitrada no recurso para a Relação do Porto interposto pelos ora Recorridos, e que não é de conhecimento oficioso.

i) Razão porque a nulidade da escritura em crise deve ser total, isto é, abranger a sua totalidade.


Os RR. contra-alegaram, suscitando a questão prévia da admissibilidade do recurso – fls. 493 – porquanto, aduzem, o Acórdão – na parte de que se recorre é desfavorável para a Recorrente, nos termos constantes do art. 678°, n°1, Código de Processo Civil, apenas pelo facto de, ao invés do pretendido pela apelante, não ter declarado a nulidade total, mas a nulidade parcial da venda, questionando, ainda, se a recorrente pode, nesse caso, ser parte interessada no recurso – art. 286º do Código Civil.

Não houve resposta.


Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos(1).

1) - Por sentença de 27 de Janeiro de 1978, transitada em julgado em 15 de Fevereiro de 1978, foi homologada a partilha nos autos de inventário obrigatório nº25/931 e nº12/76, por óbito da LT – A) da matéria de Facto Assente.

2) - Da descrição de bens constava, como verba 2, um prédio rústico, no lugar de Vale de Breia, a confrontar, de Norte com estrada nacional, Nascente com caminho de consortes, Sul com fábrica da igreja e Ponte com estrada nacional, inscrito na matriz sob o art.556º – B) da matéria de Facto Assente.

3) - Este prédio não se encontrava descrito na competente Conservatória de Registo Predial – C) da matéria de Facto Assente.

4) - Esta verba foi adjudicada na proporção de ½ a favor do réu FF, de ¼ a favor da ré CC Esteves e de ¼ a favor da ré BB Esteves – C) da matéria de Facto Assente.

5) - Por escritura de compra e venda celebrada em 18/08/89, FE, na qualidade de procurador da ré BB, declarou vender o supra descrito prédio, na sua totalidade, ao réu DD, que este declarou aceitar – D) da matéria de Facto Assente.

6) - Tal prédio apenas foi descrito na Conservatório de Registo Predial de Valpaços em 18/08/89 – F) da matéria de Facto Assente

7) - Também por ap. 06/180889, foi aí inscrita a aquisição, por adjudicação em partilha da herança de LT, a favor de BB, do direito de propriedade sobre esse prédio – G) da matéria de Facto Assente.

8) - Por ap. 04/220889, foi inscrita a favor do réu DD, casado com MC, na comunhão geral, por compra, a aquisição do direito de propriedade sobre esse mesmo prédio – H) da matéria de Facto Assente.

9) - Nas certidões de teor matricial de 09/11/2000 e de 27/10/2000, relativas ao artigo matricial rústico nº556 da freguesia de Rio Torto, Lugar de Vale de Breia, constava esse artigo como inscrito nas seguintes fracções indivisas para cada um dos seguintes: 1/2 – DD e ½ – HH – I) da matéria de Facto Assente.

10) - Dessa mesma certidão constava que esse imóvel se encontrava anteriormente inscrito em nome de AR; mais tarde ficou ainda assim: ½ - AR e ½ FF ; J) da matéria de Facto Assente.

11) - No termo de declaração de sisa de 22/06/98, apresentado pelo réu HH, este declarou que pretendia pagar a sisa referente à compra que iria fazer a FF e mulher, de metade indivisa do artigo matricial rústico nº556; L) da matéria de Facto Assente.

12) -Por ap. 09/261199 foi inscrito, como provisório por natureza, por constar como titular inscrito o ora réu DD, o arresto de metade do prédio referido em 2, efectuado em 10/11/99 para segurança da quantia de 184.338.269$00, sendo requerente AA, SA, e requeridos FF e mulher, SL e mulher, e AL, casado com ML – M) da matéria de Facto Assente.


Base Instrutória:

13) – Provado o que consta das alíneas A), B), C) e D) da matéria de facto considerada assente, o que era do conhecimento do Réu DDrespostas aos pontos 1º e 2º da Base Instrutória.

15) - Não ocorreu qualquer transmissão do direito de propriedade na proporção de metade sobre o prédio referido em 2) entre os réus FF e mulher, e o réu HH – resposta ao ponto 3º da Base Instrutória.

17) - O qual é do réu FF, na proporção de metade – resposta ao ponto 5º da Base Instrutória.

23) - A Autora indagou junto do Notário de Valpaços se tinha sido celebrada qualquer escritura de compra e venda pelos Réus FF e mulher, e o Réu HH, tendo a resposta sido negativa; - resposta ao ponto 11º da Base Instrutória.

24) - Por ajuste, a Autora forneceu ao Réu FF, por via da Casa do Lavrador de FF, produtos SAPEC, para revenda, no valor não apurado – resposta ao ponto 15º da Base Instrutória.



Fundamentação:

Antes de mais importa apreciar a questão prévia da inadmissibilidade do recurso suscitada pelos RR./recorridos, nas contra-alegações da revista.

Tendo a Relação declarado parcialmente nulo o contrato de compra e venda invocado pela Autora, e não a sua nulidade total, os RR. sem quantificarem qualquer expressão pecuniária do pedido e da sucumbência em face do Acórdão, apenas referem que à luz do art. 678º,nº1, do Código de Processo Civil e do conceito de nulidade, a repercussão do decidido não revela decaimento legitimador do recurso.
Aduz, ainda, que é duvidoso que a Autora possa recorrer tendo em conta o conceito de “interessado” do art. 286º do Código Civil.

Vejamos a primeira parte da argumentação.

Agora, no recurso de revista, só está em causa saber se o negócio de compra e venda é totalmente nulo como a recorrente pretende, já que no recurso de apelação o Tribunal nessa parte não deu acolhimento total à pretensão dos RR. declarando a nulidade parcial desse negócio. Era pedida a revogação da decisão da 1ª Instância.

A acção tem o valor de € 24.939,89 e foi intentada em 27.11.2000, nela a Autora formulou vários pedidos – a declaração de nulidade da escritura de compra e venda celebrada em 18.8.1989 pelos RR. DD e BB, por se tratar de venda de bens alheios, com inerente cancelamento do sequente registo; impugnação pauliana relativamente ao negócio celerado entre os RR. FF, GG e HH e, subsidiariamente, que se declarasse a nulidade por simulação do contrato celebrado entre aqueles RR., expurgando-se do teor matricial a inscrição a favor do Réu HH.

Como resulta da causa de pedir a Autora visa com tais pedidos conservar a garantia patrimonial do Réu FF a quem fez fornecimentos que não foram pagos.

A acção foi intentada em 27.11.2000, portanto, na vigência da Lei 3/99, de 13.1 que fixou a alçada do Tribunal da Relação em € 14.963,94.

O art. 24º da Lei 3/99, (LOFTJ) de 13.1, na redacção do DL nº323/2001, de 17 de Dezembro, no seu nºl estabeleceu que – “Em matéria cível a alçada dos tribunais da Relação é de € 14. 963,94 e a dos tribunais de lª instância é de € 3.740,98”.

O nº3 estatui que – “A admissibilidade dos recursos por efeito das alçadas é regulada pela lei em vigor ao tempo em que foi instaurada a acção”.

Portanto é aqui aplicável a Lei 3/99 na sua inicial redacção.

Só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis para o recorrente em valor também superior a metade da alçada desse Tribunal, como resulta do art. 678º, nº 1, do Código de Processo Civil, ressalvadas as situações excepcionais consagradas na lei.

[Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: a) em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé (art. 456°-3); b) no caso de reforma da sentença, pela parte prejudicada com a alteração da decisão (art. 670°-4); c) nas acções em que se aprecie a validade ou a subsistência de contratos de arrendamento para habitação; d) quando a decisão proferida desrespeite jurisprudência uniformizada pelo STJ, incluindo os anteriores Assentos (art. 678°-6, e art. 17°-2 do DL nº329-A/95, de 12-12)].

As acções sobre o estado das pessoas ou sobre interesses imateriais consideram-se sempre de valor equivalente à alçada da Relação e mais € 0,01 – art. 312º do Código de Processo Civil.

À data da propositura da acção a alçada dos Tribunais de Relação era, pois, de € 14.963,94.

De acordo com o disposto no art. 678°, nº1, do Código de Processo Civil:

Só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis para o recorrente em valor também superior à metade da alçada desse tribunal; em caso, porém, de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, atender-se-á somente ao valor da causa”.

A admissibilidade de recurso está, assim, dependente da verificação cumulativa de um duplo requisito:

- que a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre;

- que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão de que se recorre.

Ora, a sucumbência da Autora é dificilmente quantificável pelo critério aritmético do art. 678º, nº1, do Código de Processo Civil – nem sequer os RR. afirmam o que quer que seja em termos de valor para defender que o decaimento da Autora se situa em valor pecuniário não superior a metade da alçada do Tribunal da Relação – pese embora estar em causa a validade de um contrato de compra e venda que, como contrato oneroso, se correlaciona com um preço.

Uma vez que não se pode determinar com exactidão o valor da sucumbência, atenta a natureza dos pedidos e os efeitos jurídicos que a Autora pretende extrair da acção, o recurso deve ser admitido por não ser possível quantificar o valor exacto da sucumbência, sendo que em caso de dúvida acerca do decaimento, dever ser admitido o recurso, atendendo-se apenas ao valor da causa – parte final do citado art. 678º, nº1, do Código de Processo Civil.

Assim, considerando existir fundada dúvida em relação ao decaimento da Autora, admite-se o recurso.

A invocação do art. 286º do Código Civil – que se relaciona com a questão de saber se a Autora tem legitimidade para invocar a nulidade do contrato – não é no caso uma questão de legitimidade ad recursum, mas sim questão de direito material, pelo que não pode ser relevantemente invocada, sendo que o Acórdão nem sequer colocou em causa a legitimidade substantiva da pretensão da Autora.

Desatende-se, assim, a questão prévia.

Entrando na apreciação do objecto do recurso que, como se sabe, é delimitado pelo teor das conclusões das alegações do recorrente.

Analisando-as alcança-se que a recorrente pretende que seja considerada totalmente nula a venda efectuada pela Ré BB, escritura pública de 18.8.1989, por se tratar de bens alheios, não havendo lugar à redução do negócio considerado nulo.

Está em causa o cerne da decisão que sentenciou – “A nulidade parcial da venda celebrada por escritura de 18.8.89 entre os RR. BB e DD, na parte em que incluiu a fracção de ½ do prédio pertencente ao Réu FF.”

Acompanhando a síntese factual constante do Acórdão recorrido:

Resulta provado que o prédio rústico, sito na freguesia de Rio Torto, inscrito na respectiva matriz sob o art.556º, foi adjudicado, em processo de inventário, cuja sentença homologatória foi proferida em 27.1.78, ao Réu FF, na proporção de ½, à Ré CC, na proporção de ¼, e à Ré BB, também na proporção de ¼.

Por outro lado, tal prédio foi descrito na Conservatória do Registo Predial de Valpaços em 18.8.89, sendo o registo da sua aquisição a favor da Ré BB, também com a mesma data, efectuado com base naquele título, consoante consta expressamente da certidão de fls. 34.

Ora, assim sendo, naturalmente que o registo não reflecte o acto que se pretendeu registar: registou-se a aquisição, a favor da Ré BB, da totalidade do prédio, quando se devia ter registado apenas a aquisição de ¼ do mesmo.

Provou-se que, por escritura de 18.8.89, a Ré BB vendeu ao Réu DD, a totalidade daquele prédio.

A partir daqui, importa considerar se estamos perante venda de bens alheios e em que medida, e quais as consequências jurídicas.

Nos termos do art. 892º do Código Civil – “É nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não pode opô-la ao vendedor de boa fé o comprador doloso”.

Segundo o art. 894º, nº1, -“ Sendo nula a venda de bens alheios, o comprador que tiver procedido de boa fé tem o direito de exigir a restituição integral do preço, ainda que os bens se hajam perdido, estejam deteriorados ou tenham diminuído de valor por qualquer outra causa”.

Consigna o art. 902º do Código Civil - “Se os bens só parcialmente forem alheios e o contrato valer na parte restante por aplicação do artigo 292°, observar-se-ão as disposições antecedentes quanto à parte nula e reduzir-se-á proporcionalmente o preço estipulado”.

Desde 15.2.1978, data em que transitou em julgado a sentença homologatória da partilha referida em 1), o prédio partilhado no inventário ficou a pertencer a:

- ½ a FF;
- ¼ a CC;
- ¼ a BB.

Por escritura de 18.8.89, a Ré BB, através de procurador, vendeu a totalidade do prédio ao Réu DD.

Na mesma data foi inscrita no registo a aquisição de tal prédio a favor da Ré BB e, em 22.8.89, a favor do Réu DD.

Temos, assim, que a Ré BB, sendo dona de apenas ¼ do dito imóvel, vendeu a quota-parte que nele detinham os RR. CC e FF; inquestionavelmente vendeu bens alheios, já que invocou ser dona de todo o prédio quando apenas lhe pertencia ¼.

A venda em questão enferma de nulidade.

O Acórdão recorrido questionando, doutamente, sobre se a Autora/credora do Réu FF – poderia invocar a nulidade, dá conta das divergências doutrinais a esse respeito – citando como dominante a tese dos tratadistas Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, II, anotação ao art.892º, Vaz Serra in RLJ, 106º, 26, Raul Ventura, in ROA, 40, 307, Baptista Lopes, in “Compra e Venda”, 141, Carneiro da Frada, in “Direito das Obrigações”, III, 52, e Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, III, 98 que sustentam que apenas poderá ser invocada pelos contraentes, referindo que, em sentido contrário, ou seja, que pode ser invocada por qualquer interessado Galvão Telles, in BMJ, 83-138, Romano Martinez […] 113, e Diogo Bártolo, in “Venda de Bens Alheios”, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr.Galvão Telles, IV, 401.

O Acórdão refere ter adoptado a tese considerada minoritária.

A questão reveste-se de manifesta relevância já que no regime puro da nulidade – art. 286º do Código Civil – ela pode ser invocada por qualquer interessado e até decretada oficiosamente pelo Tribunal.

Um dos meios de conservação da garantia patrimonial de que dispõe o credor é arguir a nulidade de negócios que afectam o seu direito, e em relação aos quais se queda inerte o devedor, com o fito de se eximir ao pagamento devido – art. 605º, nº1, do Código Civil –“Os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, quer estes sejam anteriores, quer posteriores à constituição do crédito, desde que tenham interesse na declaração da nulidade, não sendo necessário que o acto produza ou agrave a insolvência do devedor. Assim como podem subrogar-se nos termos do art. 606º, visando a mesma finalidade; intentar acção de impugnação pauliana – art. 610º do Código Civil – bem como, cautelarmente, requerer o arresto – art. 619º do citado diploma.

Ora, como consta do processo, a Autora lançou mão daqueles três primeiros meios [pedindo em primeiro lugar a declaração de nulidade da venda por se tratar de bens alheios] tendo, anteriormente, requerido arresto.

Mas o Código Civil ao regular a venda de coisa alheia afasta-se, no art. 892º do regime, diríamos puro e duro, do art. 286º do Código Civil ao estabelecer, desde logo, que o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé.

A boa fé está empregue na acepção subjectiva – ignorância de que o bem vendido não pertence ao vendedor.

Também quanto ao conhecimento oficioso da nulidade pelo Tribunal, é geralmente acolhida a tese de Raul Ventura, in “Contrato de Compra e Venda no Código Civil”, ROA, Ano 40-II-1980, pág.4, quando defende, uma solução de compromisso, afirmando que - “O tribunal deve declarar oficiosamente a nulidade, para os efeitos que a lei atribui a tal nulidade, não condenando à entrega da coisa ou do preço, mas sim naquilo em que deva condenar, conforme os mencionados efeitos”, tal solução é justificada, na tese do reputado Mestre, tendo em vista que ao declarar oficiosamente a nulidade em função do art. 892º do Código Civil, o seu alcance ficaria obstruído mas que, por outro lado, não declarando oficiosamente a nulidade poderia o tribunal estar a condenar as partes a cumprir um contrato inválido – cfr. Thémis – Revista da Faculdade de Direito da UNL – Ano VI, nº11 – 2005, Estudo de Yara Miranda – págs. 112 a 144.

No caso dos autos estamos perante venda de bens parcialmente alheios, pelo que importa considerar que, nos termos do art. 902º do Código Civil, se admite que o contrato possa valer na parte restante por aplicação do artigo 292° e quanto à parte nula e reduzir-se-ia, proporcionalmente, o preço estipulado.

No citado estudo publicado na Revista Thémis pode ler-se – pág. 137:

Pode acontecer que o bem vendido seja apenas parcialmente alheio.
É esta a situação prevista no art. 902º.
Para efeito desta disposição, bens parcialmente alheios são aqueles que pertencem ao vendedor e a outras pessoas, mas não em regime de compropriedade.
A previsão do art. 902.° não abrange, portanto, a hipótese da venda de coisa comum por apenas um dos comproprietários…Nestes casos, a venda é sempre nula no que concerne à parte alheia.
Quanto à parte pertencente ao alienante, a aferição da sua validade é feita à luz do art. 292°.
Assim, o contrato só será válido se não se provar que ele não seria concluído sem a parte viciada.
Sendo o contrato parcialmente nulo, o vendedor é obrigado a fazer que o comprador adquira legitimamente a propriedade da parte pertencente ao terceiro e é responsável pelos danos que causar ao comprador, nos termos dos arts. 898.° e segs…”.

Nuno Oliveira, in “Contrato de Compra e venda – Noções Fundamentais” – Novembro de 2007 – págs. 159 e 160 – debruçando-se sobre a arguição de nulidade da venda de bens alheios “por qualquer interessado”, depois de abordar as posições Pires de Lima e Antunes Varela, Menezes Cordeiro e Romano Martinez que segundo o tratadista “advogam a aplicação da regra do art. 286° à invalidade do contrato de compra e venda de coisa alheia, admitindo a arguição da nulidade por qualquer interessado – p. ex., pelos credores do comprador de má fé”; de Menezes Leitão que “recusa a aplicação da regra do art. 286°”, e de Carneiro da Frada, que “sustenta uma tese intermédia”, conclui:

“Entre os interesses do comprador ou do vendedor em que o contrato de compra e venda de coisa alheia continue a produzir os seus efeitos volitivo-finais e os interesses do terceiro em que o contrato em causa deixe de produzi-los, por causa da sua nulidade, devem preferir-se os interesses do terceiro.
Inexistindo uma contradição valorativa ou teleológica entre a arguição da nulidade por qualquer interessado e as regras do art. 892° do Código Civil, os critérios do art. 286° sobre a arguição da nulidade devem aplicar-se aos contratos de compra e venda de coisa alheia.” [destaque e sublinhado nosso].

Sufragamos este entendimento, por melhor se compaginar com os interesses do credor, sendo certo que o regime mitigado da nulidade previsto no art. 902º do Código Civil, visa, não só a protecção do comprador de boa-fé [havendo que não olvidar que o direito do credor de pedir a nulidade da venda de bens alheios, feita por quem carece de legitimidade] almeja sancionar actuação do devedor lesiva dos seus credores.

O art. 605° do Código Civil a par de outros meios, destinados à conservação da garantia patrimonial dos créditos (sub-rogação do credor ao devedor, impugnação pauliana, arresto), reconhece aos credores legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, quer anteriores, quer posteriores à constituição do crédito, desde que tenham interesse na declaração da nulidade, não sendo necessário que o acto produza ou agrave a insolvência do devedor”.

Importa, em função do estatuído no art. 902º do Código Civil, fazer intervir o regime da redução dos negócios jurídicos – art. 292º – preceito que estabelece que - “A nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que não teria sido concluído sem a parte viciada”.

Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado” – vol. I – págs. 267 e 268 escrevem:

“Está consagrada como regra, neste artigo 292.°, a redução dos negócios jurídicos.
O negócio só não será reduzido quando se mostrar que, sem a parte viciada, não teria sido concluído.
Não é preciso provar, portanto, a vontade de limitar os efeitos do negócio. Podem citar-se como exemplos de redução os seguintes: A vende quatro prédios e a venda é nula em relação a um deles. Só deixará de reduzir-se a venda aos três restantes, se se provar que não interessava a algum dos contraentes o negócio assim reduzido […]
[…] O disposto neste artigo pode ser aplicado, por analogia aos casos de ineficácia do negócio ou àqueles em que haja pluralidade de negócios relacionados entre si.
A opção feita neste artigo pela solução tradicional explica-se, fundamentalmente, pela ideia da conservação dos negócios jurídico mas a solução cede, evidentemente, perante uma manifestação de vontade contrária à conservação parcial do negócio, mesmo que resultante de uma declaração tácita”.

Mota Pinto –“Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição – (615 e segs.) ensina:

“A ineficácia em sentido amplo tem lugar sempre que um negócio não produz, por impedimento decorrente do ordenamento jurídico, no todo ou em parte, os efeitos que tenderia a produzir, segundo o teor das declarações respectivas.
A invalidade é uma espécie do género ineficácia: a ineficácia lato sensu compreende todas as hipóteses em que, por causas intrínsecas ou extrínsecas, o negócio não deve produzir os efeitos a que tendia, a invalidade é apenas a ineficácia que provém de uma falta ou irregularidade dos elementos internos (essenciais, formativos) do negócio.”

Segundo Mota Pinto – “Teoria Geral do Direito Civil” – 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto”Coimbra Editora – Maio 2005 – acerca da redução dos negócios jurídicos:

“Na doutrina propõe-se, predominantemente, o critério da vontade hipotética ou conjectural das partes, “não uma vontade real, mas uma vontade como que fingida ou construída pelo juiz”.

Trata-se de averiguar aquilo que as partes teriam querido provavelmente, se soubessem que o negócio se opunha parcialmente a alguma disposição legal e não pudessem realizá-lo em termos de ser válido na sua integridade.

Se é de admitir que as partes, nessa hipótese, prefeririam não realizar qualquer negócio, deve concluir-se pela invalidade total.

Se se concluir que as partes, provavelmente, sempre o teriam realizado na parte não directamente atingida pela invalidade, deve ter lugar a redução do negócio.

[…]A pesquisa da vontade hipotética ou conjectural das partes é uma operação que tem de tomar em conta as particularidades do caso concreto; normalmente aquela vontade será favorável à redução nos negócios gratuitos, salvo nalguma hipótese, em que a redução tenha o efeito de ampliar a liberalidade, por a cláusula amputada ter o efeito de a restringir; nos negócios onerosos a solução variará conforme as circunstâncias.

[…]Pode, todavia, haver dúvidas sobre qual a vontade hipotética ou conjectural das partes…Na nova lei, o problema é tratado genericamente no artigo 292°.

Determina-se, em princípio, a redução dos negócios jurídicos parcialmente nulos ou anuláveis:

“A nulidade ou anulação parcial não determina a invalidade de todo o negócio, salvo quando se mostre que este não teria sido concluído sem a parte viciada.
A invalidade total só poderá ter lugar, se se provar que o negócio não teria sido concluído sem a parte viciada”.

Estabelece-se uma presunção de divisibilidade ou separabilidade do negócio, sob o ponto de vista da vontade das partes.

Tal solução corresponde à ideia de proporcionalidade entre o vício e a sanção: sendo a nulidade parcial, deve igualmente a sanção, em princípio, afectar apenas a parte viciada.

Obedece, também, ao princípio da conservação dos negócios jurídicos magis ut valeant quam ut pereant.

O contraente que pretender a declaração da invalidade total tem o ónus de provar que a vontade hipotética das partes ou de uma delas, no momento do negócio, era nesse sentido, isto é, que as partes — ou, pelo menos, uma delas — teriam preferido não realizar negócio algum, se soubessem que ele não poderia valer na sua integridade.

Se não fez essa prova — isto é, se a vontade hipotética era no sentido da redução ou em caso de dúvida — a invalidade parcial não determina a invalidade total.
[…]- destaque e sublinhados nossos.

Voltando aos factos provados, importa concluir que a Ré BB não tinha legitimidade para vender a totalidade do prédio, designadamente, a fracção que coube ao Réu FF.

Apenas lhe assistia legitimidade para vender o que lhe coube no referido inventário.

Mas, a Ré BB vendeu ao Réu DD, como próprio, um direito de outrem, do Réu FF, agora devedor à Autora.

No Acórdão recorrido, depois de se aludir aos arts. 902º e 262º do Código Civil, ponderou-se que - “A regra é da nulidade parcial só tendo lugar a nulidade total quando se prove que o negócio não teria sido concluído sem a parte viciada.
Neste caso, tal prova não foi feita. Pelo que haverá que declarar, apenas, a nulidade do negócio, na parte em que incluiu a fracção do Réu FF”.

Importa atentar que a Autora pediu a nulidade total do negócio de venda de bens alheios, constante da escritura de 18.8.1989, sendo que toda a economia dos pedidos é no sentido de pretender não a redução, mas a nulidade total do negócio, competindo, então aos RR. que não ignoravam que na realidade existiu venda de bens alheios, o ónus de provar que o desejavam manter, mesmo sem a parte viciada.

Mas, salvo o devido respeito, os RR. nada alegando a esse respeito, nada poderiam provar.

Ademais, como bem refere a Autora, o Réu DD, ao declarar no processo de arresto que o bem vendido lhe pertencia, reportando-se à escritura de compra e venda, revela de modo inequívoco que a sua vontade nunca seria aceitar que apenas adquirira uma fracção do prédio - ½ ou ¼ - mas todo o imóvel.

O recurso merece provimento.

Decisão.

Nestes termos, concede-se a revista, revogando o Acórdão recorrido, declarando-se a nulidade da escritura de compra e venda, celebrada em 18 de Agosto de 1989, entre o Réu DD e a Ré BB Esteves, por se tratar de venda de bens alheios e, consequentemente, determina-se o cancelamento da inscrição referente à Ap. 06/180889 e Ap. 04/220899 do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Valpaços, sob o nº00245/180889 da Freguesia Rio Torto.

Custas pelos recorridos.

Supremo Tribunal de Justiça, 24 de Junho de 2008


Fonseca Ramos (relator)
Cardoso de Albuquerque.
Azevedo Ramos.

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(1) A Relação alterou para “não provado” as respostas aos quesitos 4º, 6º, 7º,8º, 9º e 10º e modificou a resposta ao quesito 15º. Todavia, no texto do Acórdão, consta como matéria de facto provada a oriunda da 1ª Instância, que agora alteramos em conformidade com o Acórdão.
Mencionamos o teor daqueles quesitos e também o dos quesitos 1º e 2º que vieram a ter resposta conjunta:
1º- “À data da escritura mencionada em E), a ré Paula era apenas titular de ¼ do direito ao prédio mencionado em A)?”.
2º - “O que os réus DD e FF sabiam?”.
4º - “A inscrição a que se reporta a al. I) da matéria de facto assente serviu para despistar o real proprietário do prédio mencionado em A), da mesma matéria assente?”
6º - “De modo a impossibilitar que este bem viesse a responder por dívidas contraídas pelos réus FF e mulher GG?”
7º - “A omissão da inscrição registral de ½ do direito de propriedade sobre o prédio referido em B) a favor dos réus FF e mulher, GG, foi mantida por estes para inviabilizar a sua penhora ou arresto?”
8º) “Contando com a anuência do réu DD, em conluio com aqueles?”
9º) “Visando evitar, os réus FF, GG e DD, que a autora se apercebesse da desconformidade da situação registral do prédio mencionado em B) dos factos assentes?”
10º) “E com intenção de proporcionar que os réus FF e mulher GG se furtassem ao pagamento das suas dívidas para com a autora?”.
15º) “Por ajuste, a autora forneceu ao réu FF, por via da Casa do Lavrador, de FF, produtos SAPEC para revenda no valor de 184.338.269$00?”.