Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
280/07.0TBGVA.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: TRESPASSE
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Data do Acordão: 05/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO COMERCIAL - ESTABELECIMENTO COMERCIAL
Doutrina: - Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, ed. AAFDL, I, 246.
- Manuel de Andrade, NEPC, 187.
- Menezes Cordeiro, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Galvão Telles, III, 418; Tratado de Direito Civil, I, Tomo III, 617 e seguintes e 648.
- Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 141.
- Oliveira Ascensão, Direito Comercial, IV, 58.
- Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 183.
- Pedro Cordeiro, A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais, pág. 19.
Legislação Nacional: - CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 220.º, 289.º, N.º1, 334.º, 762.º, N.º2, 1112.º, NºS 2, A), E 3.
- LEI N.º 6/2000, DE 27.02: - ARTIGO 3.º.
- RAU (REDACÇÃO DADA PELO DL N.º 64-A/2000, DE 22.4): - ARTIGO 115.º.
Sumário :

1 . O trespasse consiste numa transmissão, global e definitiva, por acto inter vivos, dum estabelecimento comercial.
2 . Mas não se autonomiza conceptualmente como negócio translativo, podendo operar por via de qualquer contrato, típico ou atípico que assuma eficácia transmissiva.
3 . A exigência apenas de documento escrito relativamente ao trespasse vale para os casos em que tem lugar ou não transmissão de posição de arrendatário.
4 . Tendo tido lugar dois contratos em que:
Num, os autores/pessoas singulares, adquiriram aos réus/pessoas singulares a fracção onde funcionava o estabelecimento;
Noutro a autora/sociedade, adquiriu à sociedade/ré tal estabelecimento;
À partida, da nulidade daqueles, resultaria apenas que cada parte outorgante de cada contrato deveria restituir à outra o que dela recebeu.
5 . Mas, tendo-se ainda provado que:
A fracção adquirida pelos autores/pessoas singulares pertencia aos réus/pessoas singulares que, concomitantemente, eram sócios-gerentes da sociedade/ré, que explorava tal estabelecimento;
O preço do trespasse foi transferido, em parte, para a conta daqueles;
Para efectuarem os pagamentos, os autores, pessoas/singulares, contraíram dois empréstimos;
Foram eles que constituíram a sociedade comercial/autora para explorar o estabelecimento;
Só compraram a fracção porque o estabelecimento ia ser adquirido por esta sociedade e esta só o adquiriu porque eles haviam comprado a fracção;
Qualquer dos autores não estaria disposto a realizar um dos negócios sem o outro, sendo tudo do conhecimento dos réus;
O “preço global do negócio” celebrado com os réus foi de € 150.000,00;
Os autores/ pessoas singulares, sabendo da intenção dos réus em trespassarem o estabelecimento, aceitaram negociá-lo e comprá-lo, o que incluía a fracção do imóvel onde o mesmo estava instalado;
O autor encetou diligências para dar início de facto à sua actividade;
Justifica-se a desconsideração das personalidades colectivas, em ordem a globalizar a todos os autores, por um lado, e a todos os réus, por outro, as obrigações de restituição.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I –
No Tribunal Judicial de Gouveia, AA, BB e “CC, Lda” intentaram a presente acção declarativa, que corre termos sob a forma ordinária, contra:
DD e EE, e “FF — Sociedade de Restauração, Lda”.

Alegaram, em síntese, que:
Eles, autores AA e BB, compraram aos réus DD e EE uma fracção autónoma destinada a comércio, serviços, restauração ou qualquer indústria compatível da classe D, na qual estava em funcionamento um estabelecimento de restauração propriedade da sociedade ré, que foi objecto de trespasse a favor dela, autora.
Em cada um dos negócios, pagaram € 75 000,00, apesar de a ré só ter facturado € 45 000,00 pelo trespasse.
Os réus garantiram que não havia nenhum problema, estava tudo legal e em bom funcionamento.
Porém, a Câmara Municipal de Gouveia exigia que a conduta de fumos existente não afectasse terceiros;
Além disso, havia diversas queixas de condóminos, situações que, se fossem do conhecimento deles, autores, os levaria a não celebrar os negócios, como era do conhecimento dos réus.
Posteriormente, foram notificados que teriam de proceder a obras, que não estão na disposição de realizar, sendo certo que anteriormente os réus haviam sido alertados para realizar tais obras, sem o fazerem.
Têm, assim, o direito à anulação do negócio, sem prejuízo da nulidade do trespasse por inobservância da forma legal, além do facto de os bens comprados não estarem em condições de cumprir cabalmente as funções a que se destinam.
Por outro lado, recorreram a financiamento bancário para outorga dos negócios, contratos bancários pelos quais vêm pagando juros e impostos, devendo ainda uma comissão pela amortização dos empréstimos, caso a anulação proceda.
E arcaram ainda com despesas.
Tendo sofrido os danos não patrimoniais que referem.

Pediram, em conformidade, que:

1. Sejam anulados os contratos de compra e venda e trespasse referidos, respectivamente, nos artigos 10 e 2°, e 6° da petição inicial, com as legais consequências, designadamente a da restituição do preço de € 150.000,00, acrescidos de juros à taxa anual de 4% desde a citação;
2. Sejam os réus solidariamente condenados a pagarem-lhes:
Uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais, no montante de € 6 544,94, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento;
A quantia que se vier a apurar no decurso deste processo ou em execução ulterior no que concerne aos juros, impostos e despesas bancárias que vierem a ser pagas em virtude dos dois empréstimos contraídos e referenciados na acção.

Contestaram os réus, sustentando que:

A sociedade autora comprou à sociedade ré os equipamentos que constam de relação junta com a petição inicial e que o preço da compra e venda da fracção ascendeu a € 105 000,00, sendo dois negócios distintos.
A autora BB teve conhecimento, antes da celebração dos negócios, da questão suscitada pela Câmara Municipal de Gouveia a propósito da exaustão de fumos, entre outras questões.
O estabelecimento comercial que pertencia à sociedade ré estava licenciado, sendo que a condição colocada pela Câmara Municipal de Seja não tem relevância, razão pela qual os réus não omitiram nem deram a conhecer aos autores as condições constantes do auto de vistoria.
Eles, réus DD e EE, sempre assumiram a responsabilidade pela realização das obras necessárias.
As questões respeitantes à exaustão de fumos só não foram ainda resolvidas por obstrução dos autores AA e BB.

II –
A acção prosseguiu e, na altura oportuna, foi proferida sentença, cuja parte decisória é do seguinte teor:

“Pelo exposto decide o Tribunal:
1. Na procedência da acção, declarar anulados os contratos de compra e venda e trespasse aludidos em 1 e 18 da matéria de facto provada, com as legais consequências, designadamente a da restituição do preço de € 150 000,00 (cento e cinquenta mil euros), acrescido de juros de mora, à taxa de 4% (quatro por cento), a contar da data da citação e até integral e efectiva restituição.
2. Condenar ainda os réus a pagar aos autores a quantia de € 3 544,94 (três mil quinhentos quarenta e quatro euros noventa e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 4% (quatro por cento), a contar da data da citação e até integral e efectivo pagamento.
3. Condenar ainda os réus a pagar aos autores a quantia que se vier a determinar em sede de incidente de liquidação respeitante aos juros e impostos suportados e a suportar pelos autores no âmbito dos contratos de empréstimo aludidos em 23 da matéria de facto provada.”

III –
Apelaram os réus, mas sem êxito, porquanto o Tribunal da Relação de Coimbra confirmou a sentença.

IV –
Ainda inconformados, pedem revista.

Concluem as alegações do seguinte modo:

1. Entendido como a transmissão definitiva inter vivos gratuita ou onerosa, da titularidade de estabelecimento comercial, o trespasse importa, em princípio, a transferência, em conjunto, das instalações, mercadorias, utensílios e direitos inerentes à organização empresarial que constitui.
2. O estabelecimento comercial constitui, segundo a doutrina tradicional, uma universalidade de direito (universitas iuris), um complexo ou unidade económica que integra vários elementos, corpóreos e incorpóreos - bens móveis e imóveis, direito ao uso do nome do estabelecimento, organizados para a produção.
3. Enquanto universalidade, o estabelecimento comercial não pode ser decomposto, atomizado, nos seus elementos componentes, mas pode existir desde que haja um núcleo essencial organizativo apto a gerar lucros.
4. Dos factos apurados pelas instâncias, não resulta que tenha havido a transmissão da sociedade R. para a sociedade A., dos elementos que constituem o mínimo que constitui, o âmbito necessário do estabelecimento como matéria disponível, factos que integram a causa de pedir - contrato de trespasse - o que conduz inevitavelmente à improcedência da acção.
5. O acórdão recorrido ao confirmar a sentença proferida em 1ª instância, e declarar a existência de um contrato de trespasse violou o disposto no artigo artº 1112º nº 2 alínea a) do Código Civil.
6. Por isso, violou o disposto no artigo 342º nº 1, e aplicou mal os artigos 253 n.º1 e 254º nº 1 todos do Código Civil; mas mesmo quando se não admita este entendimento
7. E mesmo que se considere em face da matéria de facto apurada pelas instâncias que foi celebrado entre a A. "CC, LDA., e a R. "FF - SOCIEDADE DE RESTAURAÇÃO LDA., um contrato de trespasse, o mesmo seria nulo por inobservância da forma legal, prevista no nº 4 do artigo 1 112º do Código Civil, por força do disposto no artigo 220º do mesmo código.
8. Os A.A. pediram a anulação dos contratos de compra e venda e trespasse referidos, respectivamente, nos art.ºs 1 e 2 e 6 da p.i., com as legais consequências, designadamente a da restituição do preço de 150 000,00 € aos A.A. 75 000,00 € aos primeiros e 75 000 € à segunda, acrescido de frutos civis (juros) à taxa de 4% desde a citação;
9. A destruição do contrato viciado, decorrente da sua anulação por dolo, projecta-se retroactivamente, como determina o artigo 289º nº 1 do C. Civil, através da restituição pelo vendedor do preço recebido e pela (re)afectação jurídica (ao vendedor) do bem vendido, ou do valor correspondente, caso a restituição em espécie não seja possível, dada a natureza recíproca do dever de restituir, decorrente do artigo 290º do C. Civil.
10. Por aplicação dos preceitos legais atrás mencionados, a decisão a proferir deverá sempre ordenar: a restituição pelos R.R. DD, EE, aos A.A. AA, BB do preço recebido pela venda da fracção - € 75 000,00, acrescido de frutos civis (juros) à taxa de 4% desde a citação, e destes aos R.R. da fracção autónoma adquirida, ou do valor correspondente, caso a restituição em espécie não seja possível; bem como, a restituição pela R. "FF - SOCIEDADE DE RESTAURAÇÃO LDA., à A. "CC, LDA. do preço de € 75 000,00, acrescido de frutos civis (juros) à taxa de 4% desde a citação, e desta à R. dos bens adquiridos, ou do valor correspondente, caso a restituição em espécie não seja possível.
11. O acórdão recorrido ao confirmar a decisão proferida em 1ª instância, que decidiu: na procedência da acção, declarar anulados os contratos de compra e venda e trespasse aludidos em 1 e 18 da matéria de facto provada, com as legais consequências, designadamente a da restituição do preço de € 150 000,00 (cento e cinquenta mil euros, acrescido de juros de mora, à taxa de 4% (quatro por cento) a contar da data da citação e até integral e efectiva restituição, violou o disposto no nº 2 do artigo 659º, e no nº 1 do artigo 661º do Código de Processo Civil, interpretou e aplicou mal as normas contidas nos artigos 289º nº 1, e 290º do C. Civil.
Assim:
-revogando a douta sentença recorrida, e substituindo-a por outra que julgue a acção improcedente, ou quando assim se não entenda, - revogando-a e substituindo-a por outra que ordene a restituição pelos R.R. DD, EE, aos A.A. AA, BB do preço recebido pela venda da fracção - € 75 000,00, acrescido de frutos civis (juros) à taxa de 4% desde a citação, e destes aos R.R. da fracção autónoma adquirida, ou do valor correspondente, caso a restituição em espécie não seja possível; bem como, a restituição pela R. "FF - SOCIEDADE DE RESTAURAÇÃO LDA., à A. "CC, LDA. do preço de € 75 000,00, acrescido de frutos civis (juros) à taxa de 4% desde a citação, e desta à R. dos bens adquiridos, ou do valor correspondente, caso a restituição em espécie não seja possível, farão V. Exas. JUSTIÇA.

Contra-alegou a parte contrária, pugnando pela manutenção do decidido.

V –
Ante as conclusões das alegações, as questões que temos para resolver consistem em saber se:
Inexistiu contrato de trespasse, de sorte que não pode proceder o pedido de anulação dele;
A ter existido, seria nulo por falta de forma;
Esta nulidade determinara a restituição:
Por parte dos réus DD e mulher aos autores AA e mulher dos € 75.000 recebidos, acrescidos de juros;
Por parte destes àqueles da fracção autónoma adquirida;
Por parte da sociedade ré à sociedade autora de € 75.000 acrescidos de juros.

VI –
Vem provada a seguinte matéria de facto:

1. Por escritura pública outorgada no Cartório Notarial de Gouveia, no dia 31 de Maio de 2007, os autores AA e BB compraram aos réus DD e EE a seguinte fracção do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Av.ª ......, também conhecida por ...... ou Av.ª ......: “fracção autónoma designada pela letra «...», correspondente ao rés-do-chão, estabelecimento comercial, destinado a comércio, serviços, restauração ou qualquer indústria compatível da classe D, inscrita na matriz predial urbana de S. Julião, sob o artigo 943 e descrita na Conservatória do Registo Predial com o n 0000000000000” [ A)].
2. E registaram essa aquisição na Conservatória do Registo Predial de Gouveia através da Ap. 2 de 20 de Julho de 2007 [ B)].
3. Nessa fracção estava em funcionamento um estabelecimento de restauração denominado «FF», propriedade da sociedade ré, da qual os proprietários do imóvel, os réus DD e EE, são sócios-gerentes [ C) e D)].
4. Nesse estabelecimento estava afixado o alvará de utilização nº 4/03 emitido pela Câmara Municipal de Gouveia em 28 de Julho de 2003 [G)].
5. Em 21 de Julho de 2003, a Câmara Municipal de Gouveia efectuou uma vistoria ao local — auto de vistoria n 6/03: a) Nesse auto consta que “(...) a presente vistoria é destinada não só a licença de utilização para o referido estabelecimento de restauração e bebidas, mas também para comprovar... os peritos terminaram por se pronunciar favoravelmente em todos estes aspectos na condição de a conduta de fumos existente não vir a afectar terceiros. Caso esta situação se venha a verificar deverá o proprietário cumprir o previsto no artigo 109-114 RGEU’; b) Esse auto foi assinado e recebido pelo réu DD em 28 de Julho de 2003 [ H)].
6. Desse processo constam várias queixas do condomínio do prédio e de alguns dos condóminos [alínea I)].
7. Consta do processo de licenciamento, com o nº 2/2004, uma queixa de insalubridade efectuada pelo condómino GG, dirigida à Delegada de Saúde de Gouveia, segundo a qual “... e tendo no r/chão o restaurante FF, que desde o inicio da sua abertura, tem causado imenso mal estar nos moradores que ficam do lado de traz do prédio, onde se situa a cozinha deste restaurante, que quanto a mim não reúne sequer condições para estar aberto...” [alínea J) ].
8. Consta do processo a acta n° 10 da assembleia de condóminos, do dia 24 de Fevereiro de 2005, onde o réu DD esteve presente e na qual foi deliberado que “... tendo usado da palavra a condómina HH, que começou por se queixar dos odores a comida, ao nível do 1° andar, e que provêm da fracção X propriedade do condómino A DD, opinião corroborada pelo Sr. GG— Alertou, aliás, para a sensibilidade a ter para a resolução dos problemas, pois não pode estar sujeita diariamente a este incómodo, devendo o Sr. DD compreender que os seus (dele) direitos são iguais aos dos restantes, devendo, portanto, procurar uma solução. Percebe a existência da actividade mas esta não pode, nem a deve perturbar. Respondeu o Sr. DD que a casa está licenciada pelas entidades competentes, ou seja, conforme a lei obriga, mas que se o problema existe, ele está disposto a resolvê-lo, mas que deve ser a Assembleia a decidir qual a melhor opção a tomar para evitar este transtorno, pois não quer ser ele a propor uma alternativa e depois não ficar como as pessoas pretendem e mais tarde o problema persistir. Por não existir nenhuma proposta à alternativa apresentada, ficou este assunto de voltar a ser analisado e discutido posteriormente” [alínea L) ].
9. E na acta nº 11, de 31 de Maio de 2005, lê-se que “(...) em relação à proposta/sugestão apresentada na última assembleia pelo proprietário da fracção X em que este informou que deve ser a Assembleia a decidir a melhor opção a tomar sobre os odores, o Sr. GG propõem que deve ser o Sr. DD a apresentar um projecto para a resolução deste problema. Este projecto deve estar concluído até 31 de Dezembro de 2005 (...). Em relação à autorização concedida em 27 de Janeiro de 2004, conforme acta n°8, ao proprietário da fracção X em que o mesmo foi autorizado a colocar na parede exterior, ao nível da sua cozinha, um ventilador a meter ar para dentro, obrigando à sua saída pela exaustão, e tendo-se verificado que a ventilação é feita ao contrário, o Sr. GG propõem que a aspiração seja feita conforme o autorizado. Caso se continuem a verificar transtornos por causa desta aspiração a Assembleia delibera por maioria de 566 votos, que a mesma (aspiração) deve ser retirada e encontrada outra solução até 31 de Dezembro de 2005” [alínea M)].
10. Consta ainda desse processo administrativo um novo requerimento/queixa do condómino GG, datado de 26 de Março de 2007, no qual reitera as queixas e solicita a intervenção da Câmara [alínea N)].
11. Em 27 de Junho de 2007, ofício nº 6361, a sociedade ré foi notificada por escrito pela Câmara do relatório n 40/07, de 15 de Junho [alínea O)].
12. Este relatório foi elaborado na sequência de uma acção de fiscalização conjunta efectuada ao estabelecimento “FF” no dia 30 de Maio de 2007 [ alínea P)].
13. Acção essa que foi levada a cabo com conhecimento e na presença dos réus, ocorrida um dia antes da celebração da escritura de compra e venda da fracção [ alínea Q)].
14. Nesse relatório lê-se, além do mais, que “o sistema de exaustão deve ser revisto e modificado de forma a não direccionara exaustão para os apartamentos adjacente? [alínea R)].
15. No dia 18 de Julho de 2007, em resposta ao pedido de averbamento de alvará, os autores receberam a notificação onde se decide: “Para que se possa dar continuidade ao processo de averbamento, deverá o Sr. AA apresentar uma declaração onde faça menção que se compromete em resolver alguns problemas dependentes (pendentes, queria dizer-se), nomeadamente a condução de vapores e cheiros pela conduta principal até à cobertura, e condução de vapores que saem pelas grelhas plásticas, até ao exaustor dentro da cozinha” [ alínea S)].
16. Em 19 de Julho de 2007, o autor enviou carta registada com aviso de recepção aos réus [alínea T)].
17. A fracção referida em 1 destina-se unicamente a estabelecimento comercial [ resposta ao ponto 1º].
18. Por contrato meramente verbal de trespasse, celebrado no dia 1 de Junho de 2007, a sociedade autora comprou à sociedade ré o referido estabelecimento comercial [resposta ao ponto 2º].
19. O preço declarado na escritura pública do imóvel e efectivamente pago pelos autores aos réus DD e EE foi de €75 000,00 [ resposta ao ponto 3°].
20. O preço acordado pela venda do estabelecimento de restauração e bebidas “FF” foi de € 75 000,00 [ resposta ao ponto 4º-A].
21. O preço da venda do estabelecimento de restauração e bebidas “FF”, foi pago integralmente no dia 22 de Julho de 2007, através de uma transferência bancária para a conta dos réus DD e EE no montante de €30 000,00, e de uma outra, para a conta da sociedade ré, no montante de € 45 000,00 [ ao ponto 4º-B].
22. O preço global do negócio celebrado com os réus foi de € 150 000,00 [ resposta ao ponto 6º].
23. Para conseguir pagar este preço, os autores contraíram dois empréstimos no “Banco BPI, S.A. Sociedade Aberta”, cada um no montante global de €75 000,00 [ resposta ao ponto 7º].
24. Os autores AA e BB têm dupla residência em Portugal e em França, para onde se deslocam mensalmente [ resposta ao ponto 8º].
25. Nunca nenhum deles exerceu qualquer actividade laboral em Portugal, fosse por conta própria fosse por conta de outrem [ resposta ao ponto 9º].
26. Raramente vêm a Gouveia, onde não conhecem praticamente ninguém, já que, quando estavam em Portugal, faziam a sua vida em Rio Torto [ resposta ao ponto 10º].
27. Sabendo da intenção dos réus DD e EE em trespassarem o estabelecimento, aceitaram negociá-lo e comprá-lo [resposta ao ponto 11°].
28. O que incluía a fracção do imóvel onde o mesmo estava instalado [resposta ao ponto 12º].
29. Nesse estabelecimento está afixado o alvará de utilização nº 4/03, emitido pela Câmara Municipal de Gouveia em 28 de Julho de 2003 [resposta ao ponto 13°].
30. Em Junho de 2007, o autor AA encetou diligências para dar início de facto à sua actividade [ resposta ao ponto 14°].
31. Para tal dirigiu-se à Câmara Municipal de Gouveia a fim de solicitar o averbamento em seu nome e em nome da empresa por si constituída no alvará de utilização do estabelecimento [ resposta ao ponto 15°].
32. Efectuou esse pedido por escrito no dia 18 de Junho de 2007, registado com o n° 794/07 [ resposta ao ponto 16°].
33. Passados 2 ou 3 dias, quando se dirigiu a essa entidade para levantar o alvará, foi informado verbalmente que não lho poderiam passar sem antes se mostrarem efectuadas as obras que a Câmara havia exigido [resposta ao ponto 17°].
34. Os autores ignoravam ao que se referiam [ resposta ao ponto 18°].
35. A vistoria referida em 5 foi realizada após o pedido de licenciamento de utilização do estabelecimento “FF” efectuado pelos réus e como condicionante à sua emissão [ resposta ao ponto 19°].
36. As queixas referidas em 6 diziam respeito a emissão de vapores e cheiros provenientes do estabelecimento e a necessidade de serem efectuadas obras para os eliminar [ resposta ao ponto 20°].
37. Foi com enorme surpresa, indignação e revolta que os autores vieram a saber os factos referidos em 7 a 10, já que nunca foram alertados por ninguém sobre estes problemas, nem pelos condóminos, que não conhecem, nem pelos vendedores [ resposta aos pontos 21° a 23°].
38. Os réus omitiram aos autores quer as condicionantes constantes da vistoria, que faz parte integrante do alvará, quer a acção de fiscalização ocorrida em Maio de 2007, quer todos os problemas ou conflitos existentes com o condomínio em virtude da exaustão de cheiros e fumos da cozinha [resposta ao ponto 24°].
39. Os autores estão a pagar juros e impostos sobre os € 150 000,00 peticionados [ resposta ao ponto 25°].
40. Com a escritura pública de compra e venda da fracção gastaram a quantia de € 863,49 [ resposta ao ponto 26°].
41. Para registar a aquisição a seu favor gastaram € 245,45 [ resposta ao ponto 27°].
42. Para constituir a sociedade comercial pagaram € 56,00 ao Registo Nacional de Pessoas Colectivas e € 380,00 na Conservatória do Registo Comercial de Viseu [ resposta ao ponto 28°].
43. Os autores empenharam-se neste negócio e por causa dele [resposta ao ponto 29°].
44. Sentem-se enganados e revoltados [ resposta ao ponto 30°].
45. Fizeram várias deslocações a Gouveia para legalizarem as aquisições e depois para compreenderem e resolverem a questão [resposta ao ponto 31°].
46. A autora frequentou um curso de formação de cozinha na “Fundação D. Laura dos Santos” [ resposta ao ponto 32°].
47. A autora, no âmbito desse curso efectuou um estágio nas instalações da segunda ré, com início em Abril de 2006 e final em Maio de 2006 [ resposta ao ponto 33°].
48. A autora foi avaliada no final da formação e a sociedade ré propôs-lhe que ficasse a trabalhar a meio tempo, aproximadamente das 9 às 15 horas [ resposta ao ponto 34].
49. A “CC, Unipessoal, Lda” negociou e comprou os equipamentos existentes no estabelecimento da sociedade ré, e que constam da relação junta aos autos com a petição inicial como documento nº 7 [ resposta ao ponto 36].
50. Na segunda semana de Maio de 2007, a autora estava no estabelecimento da sociedade ré para conhecer o seu funcionamento [resposta ao ponto 39º].
51. No dia 30 de Maio de 2007, o estabelecimento da sociedade ré foi objecto de uma vistoria periódica efectuada pelos serviços de fiscalização da Câmara Municipal de Gouveia, na qual foi levantada a questão da exaustão de fumos [ resposta ao ponto 40º].
52. A autora, no dia 31 de Maio de 2007, soube que tinha ido ao estabelecimento a Dra. II, que estava a pedir uma porta de separação entre a dispensa e o local onde o pessoal muda de vestuário [ resposta ao ponto 41°].
53. O auto de vistoria referido em 5 faz parte integrante do alvará de utilização, na medida em que este ficou condicionado à realização das obras ali discriminadas [ resposta ao ponto 42°].
54. A acção de fiscalização referida em 12 e 13 foi realizada um dia antes do trespasse do estabelecimento [ resposta ao ponto 43°].
55. Os autores AA e BB só compraram a fracção X, onde se encontrava instalado o estabelecimento de restauração e bebidas, “FF”, porque este ia ser comprado pela autora “CC, Lda” [ ao ponto 44º].
56. A sociedade autora só comprou o estabelecimento de restauração e bebidas “FF” porque os autores AA e BB haviam comprado a fracção X [ resposta ao ponto 45°].
57. Qualquer dos autores não estaria disposto a realizar um dos negócios sem o outro [ resposta ao ponto 46°].
58. Os réus bem sabiam da matéria descrita em 55 a 57 [ resposta ao ponto 47°].
59. Caso os autores tivessem conhecimento quer das condicionantes constantes da vistoria que faz parte do alvará, quer dos problemas com o condomínio não teriam comprado a fracção (os primeiros), nem o estabelecimento de restauração e bebidas (a segunda) [ resposta ao ponto 48°].
60. Os réus bem sabiam da matéria descrita em 59 [ resposta ao ponto 49°].

VII –
A primeira questão das enumeradas em V consiste em determinar se inexistiu contrato de trespasse.
O ponto 18.º da enumeração factual, ao aludir a “contrato…de trespasse” e a “comprou”, incluiu palavras que têm uma vida jurídica própria.
Tais termos, em princípio, devem ser expurgados da Matéria de Facto Assente, da Base Instrutória e, em geral, da fixação factual.
No casos, porém, em que tais palavras têm, concomitantemente, um sentido vulgar, não é fácil a sua exclusão. A preocupação excessiva nesse sentido pode mesmo levar à elaboração da parte factual em termos tais que dificulte, quer o exame do que se discute num processo, quer a ligação (extremamente importante) entre os factos que se pretendem apurar e as pessoas que sobre eles têm de depor em Tribunal.
Aceite, então, a inclusão ponderada de tais palavras, há que ter sempre presente que, estando nós em terreno factual, é no seu sentido vulgar que devem ser entendidas (assim, Manuel de Andrade, NEPC, 187).
No nosso caso, este sentido vulgar há-de ser apreendido tendo em conta outros elementos de facto que as instâncias apuraram, mormente o constante dos pontos 3.º (“Nessa fracção estava em funcionamento um estabelecimento de restauração…”) e 21.º (O preço de venda do estabelecimento de restauração e bebidas…”) e desse sentido, assim contextualizado, dúvidas não há de que estamos, efectivamente, perante uma transmissão, global e definitiva, por acto inter vivos, dum estabelecimento comercial. Essa transmissão teve lugar através duma compra e venda (ponto 18.º da enumeração factual), mas o trespasse não se autonomiza conceptualmente como negócio translativo, podendo “operar por via de qualquer contrato, típico ou atípico, que assuma eficácia transmissiva: compra e venda, dação em pagamento, sociedade, doação ou outras figuras diversas ”(Menezes Cordeiro, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Galvão Telles, III, 418).
Por outro lado, há quem entenda que o conceito de trespasse só fica preenchido se integrar a transmissão do gozo do local onde funciona o estabelecimento. A alusão “às instalações” da alínea a) do n.º2 do artigo 1112.º do Código Civil corroboria este entendimento. Todavia, é muito duvidosa esta exigência até porque estabelecimentos há que não integram qualquer direito de gozo do local que se possa autonomizar. Basta pensar-se no caso de estabelecimentos cuja inclusão do local onde funcionam é a eles inerente, de sorte que não se podem conceber sem ela (como, por exemplo, estabelecimentos de cuja essência faz parte a tenda onde funcionam).
De qualquer modo, no desenho global dos contratos havidos nos presentes autos e, como mais pormenorizadamente se referirá a propósito da figura da descaracterização da personalidade colectiva, não seria curial que se excluísse o conceito de trespasse só porque a cedência do gozo – incluída na compra e venda da fracção - teve lugar em benefício, não da sociedade constituída pelos autores, mas deles próprios.
Estamos, pois, perante um trespasse.

VIII –
Ao tempo do contrato já se encontrava repristinado, pelo artigo 3.º da Lei n.º 6/2000, de 27.02, o artigo 1112.º do Código Civil. No entanto, à exigência primitiva, quanto à forma do trespasse, de escritura pública, tinha-se sucedido, pelo Decreto-Lei n.º 64-A/2000, de 22.4, que conferiu nova redacção ao, então vigente, artigo 115.º do RAU, a exigência menor de documento escrito. Assim permanecendo face agora ao n.º3 daquele artigo 1112.º.
O trespasse aparece-nos regulado a propósito da “Transmissão da posição do arrendatário”, mas nada justifica uma exigência formal específica nestes casos em detrimento daqueles em que não tenha lugar tal transmissão.
Daqui resulta que não foi observada, no nosso caso, a forma legal. O que conduz à nulidade. Já a referia expressamente o n.º3 daquele artigo 115.º do RAU, mas a omissão na lei actualmente vigente deve ser entendida como tendo razão de ser apenas na desnecessidade, derivada do regime geral do artigo 220.º do dito código.

IX -
Na decisão da 1.ª instância está ínsita a ideia de anulabilidade, na Relação aludiu-se a nulidade e nós confirmamos esta ideia de nulidade (sempre com referência ao trespasse). Não releva, porém, aqui, a distinção, porque, quer num caso, quer noutro, há que restituir retroactivamente tudo o que tiver sido prestado – artigo 289.º n.º1, sempre do mencionado código.
Entramos, deste modo, na questão consistente em saber se os réus pessoas singulares, para além do montante relativo à compra e venda, devem ser condenados a restituir o montante recebido, pelo trespasse pela sociedade ré. E se esta deve ser condenada a restituir também tudo. As instâncias foram para a restituição global, nas vertentes activa e passiva e é agora a bondade de tal decisão que temos de apreciar.

À partida, os contratos são dois. No primeiro outorgaram apenas os autores AA e mulher e os réus DD e mulher. Nos segundos a sociedade “CC, Lda” e “FF – Sociedade de Restauração, Lda”. Se observada, em absoluto, a autonomia contratual, as devoluções teriam lugar apenas entre os respectivos outorgantes. O DD e a mulher devolveriam ao AA e mulher os € 75.000,00 que deles receberam e “FF” devolveria à “CC” os € 75.000,00 que dela recebeu.

X –
Só que, no presente caso, entendemos justificar-se que chamemos para aqui a figura da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas.
Como é sabido, o ordenamento jurídico acolhe, a par das pessoas singulares, as pessoas colectivas. Comporta, assim, no seu seio, novos entes dotados de personalidade jurídica. Desta personalidade jurídica emerge a titularidade de direitos e obrigações autónomos e, inerentemente, além do mais, a distinção entre as pessoas singulares que são, ao mesmo tempo, membros da pessoa colectiva e esta. Os direitos e as obrigações duns não se confundem com os direitos e obrigações dos outros.
Veio-se, porém, ao longo do tempo, a constatar que casos havia em que o conceder à linha demarcadora um valor absoluto não seriam de admitir. Paulatinamente, doutrina e jurisprudência anglo-americanas e alemãs, foram construindo a figura – que cremos ainda em forte evolução – da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas ou, porque, de longe, reportada a maior parte das vezes a sociedades comerciais, a figura da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais.
Já Castro Mendes afirmava que: “Não devemos antropomorfizar a pessoa colectiva a ponto de perdermos de vista que – ao contrário da pessoa singular, fim em si mesma – ela não é mais que um instrumento de realização de interesses humanos. Inclusivamente, a personificação pode ser, ou passar a ser, instrumento de abuso; e deve neste caso ponderar quais os verdadeiros interesses humanos em causa. Esta atitude é o que os juristas anglo-saxónicos chamam romper o véu da pessoa colectiva”(Teoria Geral do Direito Civil, ed. da AAFDL, I, 246). No mesmo sentido, se pode ver Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 141, nota de pé de página, dizendo também Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, 183) que a “autonomia pessoal e patrimonial das pessoas colectivas é susceptível de ser abusada.” Por sua vez, Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, I, Tomo III, 617 e seguintes), ainda que afastando-se da terminologia habitual, tece longas considerações sobre esta figura, à qual Pedro Cordeiro (A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais) dedicou também aturado estudo.

Segundo este autor (ob. cit., pág. 19), deve entender-se por desconsideração “o desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros ou, dito de outro modo, desconsiderar significa derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam”. Existe, na desconsideração, um atingimento de pessoa jurídica diferente da visada. Será directa, se se ultrapassar a sociedade para atingir os sócios e indirecta se se partir dos sócios, se atingir a sociedade (cfr-se, Oliveira Ascensão, Direito Comercial, IV, 58).
Pelo menos em grande parte dos casos, a desconsideração ocorre por exigência da boa fé (assim Menezes Cordeiro, ob. e vol. cit.s, 648). A lei não contem referência expressa àquela figura, mas as dimensão deste princípio – emergente, no essencial do que aqui nos importa, do artigo 762.º, n.º2, concatenado com o artigo 334.º, ambos do Código Civil – alcança-a.

XI –
Adquirida a segurança de que o caminho da desconsideração pode ser aberto, importa agora tomar posição sobre se deve ser percorrido no nosso caso.
Menezes Cordeiro, ao sistematizar os casos de desconsideração, insere a “confusão de esferas jurídicas”, que diz verificar-se “…quando, por inobservância de certas regras societárias ou, mesmo por decorrências puramente objectivas, não fique clara, na prática, a separação entre o património da sociedade e a do sócio ou sócios.”

No presente caso, colhe-se dos factos que:
Os autores adquiriram a fracção onde era explorado o estabelecimento;
Tal fracção pertencia aos réus DD e mulher, que, concomitantemente, eram sócios-gerentes da sociedade ré, que explorava tal estabelecimento;
O preço do trespasse foi transferido, em parte, para a conta dos próprios DD e mulher;
Para efectuarem os pagamentos, os autores AA e mulher contraíram dois empréstimos;
Foram eles que constituíram a sociedade comercial autora para explorar o estabelecimento;
Só compraram a fracção porque o estabelecimento ia ser adquirido por esta sociedade e esta só o adquiriu porque eles haviam comprado a fracção;
Qualquer dos autores não estaria disposto a realizar um dos negócios sem o outro, sendo tudo do conhecimento dos réus.

Referindo-se, na enumeração factual, mesmo que:
“O preço global do negócio celebrado com os réus foi de € 150.000,00” (ponto 22), “Para conseguir pagar este preço, os autores contraíram dois empréstimos…”(ponto 23), os autores AA e mulher “sabendo da intenção dos réus em trespassarem o estabelecimento, aceitaram negociá-lo e comprá-lo, o que incluía a fracção do imóvel onde o mesmo estava instalado” (pontos 27 e 28) e “o autor encetou diligências para dar início de facto à sua actividade” (ponto 30).

Infere-se daqui, com nitidez, que, em termos práticos, existiu apenas um negócio. Os autores pretenderam adquirir um estabelecimento e o local onde funcionava e os réus pretenderam desfazer-se de tudo. As sociedades, sempre em termos práticos, não tinham autonomia relativamente a eles, tudo funcionando como um todo. A confusão entre as esferas jurídicas de cada um dos autores AA e mulher e da sociedade autora foi total, o mesmo se passando na parte passiva.
Ao descaracterizar, para os efeitos que estão aqui em causa, as sociedades, o direito está a aproximar-se da vida tal como ela é, e, consequentemente, no caminho do seu próprio aperfeiçoamento.
Assim, está correcta a condenação de todos os réus como nos chega das instâncias.
Tal condenação, como resulta da expressão, que insere, “com as legais consequências”, tem, naturalmente, como contrapartida, a devolução da fracção autónoma e do estabelecimento, a cargo de todos os autores. Nem outra coisa se pode entender, atenta até a fundamentação dos arestos das instâncias. Assim, a pretensão dos recorrentes, ao levantarem também esta questão, chega-nos já atendida, de sorte que se deve considerar prejudicada no presente recurso.

XII –
Face a todo o exposto, nega-se a revista.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 12 de Maio de 2011

João Bernardo (Relator)
Oliveira Vasconcelos
Serra Baptista