Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
836/12.0TBSTS-A.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
LISTA DE CRÉDITOS RECONHECIDOS E NÃO RECONHECIDOS
CREDITO LABORAL
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
ERRO MANIFESTO
HOMOLOGAÇÃO
PODERES DO JUIZ
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
Data do Acordão: 12/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADO O JULGAMENTO
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR - INSOLVÊNCIA / VERIFICAÇÃO DE CRÉDITOS.
Doutrina:
- Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” Anotado, em nota ao artigo 130.º, p. 389.
- Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas” Anotado, 2.ª edição, em comentário ao artigo. 130.º, p. 555.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 1.º,11.º, 14.º, 128.º, Nº1, ALS. A) A E), 129.º, 130.º, N.º3, 194.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 672.º, N.º1, ALS. A) E C), N.º3.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT): - ARTIGO 333.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 25.5.2013, PROC. 3057/11.5TBGDM-A.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :

I. Do art. 130º, nº3, do CIRE colhe-se que a ausência de impugnação de créditos constantes da lista apresentada pelo Administrador da Insolvência, nos termos do art. 129º do CIRE, não impede o Juiz de exercer um controle sobre a respectiva legalidade, não apenas formal mas substantiva: os requisitos da elaboração da lista pelo A.I. contêm normas procedimentais e juízos de qualificação jurídica (por exemplo, quanto se considera que o crédito X ou Y dispõe de garantia real ou é um crédito privilegiado). Se pensarmos que muitas vezes o A.I. não é jurista, a possibilidade desculpável de erro existe.

II. O conceito indeterminado “erro manifesto” tem latitude e elasticidade para conferir ao juiz, o poder-dever de analisar a lista elaborada em cumprimento do art. 129º, nºs 1 a 3, e não a homologar ao abrigo do nº3 do art. 130º do CIRE. O conceito deve ser interpretado de forma ampla.

III. Se é certo que no Preâmbulo do DL.53/2004, de 18.3, que aprovou o CIRE, se enfatiza a desjudicialização do processo como corolário da “supremacia dos credores no processo de insolvência” e da larga autonomia de que gozam no concernente à liquidação ou à recuperação da insolvente como meio de assegurar o pagamento dos seus créditos, também no ponto 11) se refere que – “A desjudicialização parcial acima descrita não envolve diminuição dos poderes que ao juiz devem caber no âmbito da sua competência própria: afirma-se expressamente, no artigo 11º do diploma, a vigência no processo de insolvência do princípio do inquisitório, que permite ao juiz fundar a decisão em factos que não tenham sido alegados pelas partes”.

IV. Tendo sido apreendidos para a massa insolvente três imóveis, (dois prédios urbanos e um rústico) propriedade da insolvente, sendo que num deles, identificado no requerimento de credores trabalhadores da insolvente (que indicaram que exerciam a sua actividade no imóvel sede da insolvente), e que requereram a graduação e o pagamento dos seus créditos pelo produto da venda desse imóvel, não tendo a lista elaborada pelo A.I. assinalado tais créditos como privilegiados, a lista padece de erro manifesto que o Julgador, atento o facto de existirem imóveis apreendidos, créditos hipotecários e créditos laborais, deveria ter suspeitado existir, mesmo na ausência de impugnações.

V. A não se admitir que o Juiz, malgrado a latitude que, numa primeira abordagem, parece emergir do nº3 do art. 130º do CIRE, conferindo aos credores pela via da impugnação, questionarem ou não a legalidade da lista, seria levar longe de mais esse auto-controle dos credores menorizando o papel do julgador nas mãos de quem a lei coloca o mister de controle da legalidade, sobretudo, como no caso, em que a incorrecta graduação dos créditos, pode ter drásticas consequências.

VI. A natureza peculiar do processo insolvencial não afasta os princípios fundamentais do processo civil, designadamente: o poder dispositivo, de gestão processual e de cooperação, sendo de particular relevo no processo de insolvência o princípio do inquisitório.

VII. O Acórdão recorrido, considerando que, no caso, não ocorreu erro manifesto apenas e porque não houve impugnação da lista dos credores, não pode manter-se, sob pena de dar guarida a uma sentença que julgou em desconformidade com o direito.

Decisão Texto Integral:

Proc. 836/12.0TBSTS-A.P1. S1

R-526[1]

Revista


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

           Nos autos de verificação e graduação de créditos, apensos ao processo em que foi declarada insolvente AA, Lda., pendentes na Comarca do Porto, ... – Inst. Central – 1ª Sec. Comércio – J3, foi proferido a seguinte decisão:

           “Tudo ponderado e nos termos das disposições legais acima referidas, julgo verificados os créditos garantidos, privilegiados, subordinados e comuns tal como já constam da lista de credores dada por reproduzida e, em consequência, graduo-os pela seguinte forma:

          A – Em primeiro lugar, os créditos privilegiados dos trabalhadores, dando-se rateio entre eles na medida do necessário;

            B – Em segundo lugar os créditos privilegiados especiais do Estado, dando-se rateio na medida do necessário;

            C – Em terceiro lugar os créditos privilegiados gerais do Estado e créditos garantidos (hipotecas), dando-se rateio entre eles na medida do necessário;

            D – Em quarto lugar os créditos comuns, dando-se rateio entre eles caso se mostre necessário;

            E – Em quinto lugar os créditos subordinados, dando-se também rateio entre eles na medida do que se mostrar necessário”.


***

           Inconformado, o credor Banco BB, S.A. – Sociedade Aberta, interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, sustentando que a sentença de graduação de créditos enfermava de erro manifesto ao ter considerado, sem qualquer discriminação, que os créditos dos trabalhadores da insolvente seriam graduados em primeiro lugar sobre os imóveis apreendidos, sem que indicasse qual desses três imóveis era o local de trabalho daqueles credores, assim preterindo o crédito hipotecário do recorrente que incide sobre a totalidade dos prédios apreendidos para a Massa.

            A Relação do Porto, por Acórdão de 27.4.2015 – fls. 1899 a 1924decidiu:

             “Acorda-se, em face do exposto, e julgando parcialmente procedente a apelação, em graduar os créditos verificados do seguinte modo:

            1º - Créditos privilegiados dos trabalhadores, dando-se rateio entre eles na medida do necessário;

            2º - Créditos privilegiados especiais do Estado, dando-se rateio na medida do necessário;

            3º- Créditos garantidos por hipoteca, atendendo-se à data do respectivo registo;

            4º - Créditos privilegiados gerais do Estado, com rateio na medida do necessário;

           5º - Créditos comuns, dando rateio entre eles caso se mostre necessário;

           6º - Créditos subordinados, dando-se também rateio entre eles na medida do que se mostrar necessário.

            Custas pelo recorrente e pela massa insolvente, em partes iguais”.


***


           

           Inconformado, o Banco BB, S.A., recorreu de revista excepcional para este Supremo Tribunal de Justiça, invocando, além de outro fundamento (o da al. a) do art. 672º do nº1 do Código de Processo Civil), a contradição de Acórdãos (al. c) daquele normativo), para tanto, juntando como Acórdão-fundamento, cópia certificada do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 25.11.2008 – Proc. 556/06.4TBRMR-B (fls. 2122 a 2139)

           A Formação, a que alude o nº3 do art. 672º do Código de Processo Civil – por Acórdão de 29.9.2015 – fls. 2322 a 2325 – considerou, que, apesar da decisão da Relação ser confirmatória da decisão apelada, não existe dupla conformidade, e, por isso, não cabe recurso de revista excepcional, ordenando a remessa do recurso à distribuição como revista normal.

            Por despacho liminar do Relator foi considerado existir oposição de Acórdãos legitimadora do recurso de revista, nos termos do art. 14º, nº1, do CIRE.


***

            Alegando, o Recorrente formulou as seguintes conclusões:

           33.1. O presente recurso de revista excepcional tem dois fundamentos: um principal e o outro subsidiário.

            33.2. O fundamento principal resulta da contradição do acórdão recorrido com diversos feridos quer por Tribunais da Relação, quer pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre a mesma questão fundamental de direito, mais propriamente se o concede erro manifesto deve ser entendido de forma ampla ou de forma mais restrita.

            33.3. O conceito de erro manifesto é explicitado no artigo 130.°, n.°3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que não sofreu alterações desde que este Código foi implementado pelo Decreto-Lei n.°53/2004, de 18 de Março.

            33.4. No acórdão recorrido, o Tribunal da Relação do Porto esvazia completamente de sentido este conceito de erro manifesto, na medida em que iguala a inexistência de erros à inexistência de impugnações da lista de credores reconhecidos elaborada pelo Administrador da Insolvência (artigo 129.° do CIRE),

            33.5. A verdade é que não é a inexistência de impugnações que dita a inexistência de erros, não se podendo esperar que um credor reclamante, que, à partida, não era prejudicado pela lista de créditos reconhecidos, venha a exercer a função de controlo da actividade do Administrador da Insolvência (artigo 58.°) e a função de aplicar a lei ao caso concreto e realizar o Direito e a Justiça que cabe ao Tribunal “a quo’.

            33.6. O Tribunal “a quo” demitiu-se destas importantes funções quando, perante uma lista de créditos que não qualificava correctamente os créditos dos trabalhadores como “garantidos/privilegiados”, nem especificava os imóveis sobre os quais incidia o privilégio creditório imobiliário especial que possuíam, preferiu basear-se em meros pressupostos.

           33.7. O primeiro pressuposto foi o de que, mesmo sendo indicada a natureza dos direitos de crédito dos trabalhadores como sendo “privilegiado”, na verdade era “garantido/privilegiado”, por deterem um privilégio creditório imobiliário especial, por aplicação do artigo 333.°, n.°1, a. b) do Código do Trabalho.

            33.8. O segundo pressuposto foi o de que, não sendo indicado o imóvel sobre o qual incidia o privilégio creditório imobiliário especial, este privilégio incidia sobre todos os imóveis apreendidos ara a massa insolvente, independentemente de saber se a sociedade insolvente e os seus trabalhadores exerciam a sua actividade em todos os imóveis, como impõe o artigo 333.° n.° 1, b) do Código do Trabalho para a atribuição do privilégio.

           33.9. O primeiro pressuposto estava correcto, mas o segundo não.

           33.10. Não estando correcto, em vez de os créditos reconhecidos serem satisfeitos pela ordem estabelecida na lei substantiva, em função dos valores em causa, serão satisfeitos em função de juízos totalmente discricionários, sem a mínima correspondência com a realidade, no seguimento de erros manifestos do Administrador da Insolvência.

           33.11. A isto conduz a posição assumida pelo Tribunal da Relação do Porto no acórdão do, que, em última instância, poderá ser entendida como uma violação do direito fundamental a um processo equitativo e à tutela jurisdicional efectiva dos direitos de cada um artigo 20.°, nºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa e do artigo 6.º, nº1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) – inconstitucionalidade, que, cautelarmente, se invoca.

           

            33.12. A ter sido adoptado o entendimento seguido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25-11-2008, Processo n.°556/06.4TBRMR-B, Relator Juiz Conselheiro Silva Salazar, definido como Acórdão-fundamento, o tribunal “a quo” nunca poderia ter homologado a lista de créditos reconhecidos.

           33.13.  Antes de mais, impunha-se que verificasse quantos imóveis da sociedade insolvente tinham sido apreendidos e em quais é que os seus trabalhadores prestariam os seus serviços.

           33.14.  Bastava, no fundo, que o tribunal “a quo” analisasse o inventário, elaborado pelo Administrador da Insolvência e que constitui o anexo I ao relatório, para perceber que os trabalhadores só exerciam funções sobre um dos imóveis:


“A sociedade insolvente tem a sua sede e labora no lugar de ... freguesia e concelho de ..., sendo o imóvel sua propriedade aqui inventariado sob a verba n.° 1.”

            33.15.  Quer isto dizer que os trabalhadores só detêm privilégio creditório imobiliário especial sobre o seguinte imóvel:


- prédio urbano, composto por edifício de sub-cave, cave, rés-do-chão, andar e logradouro, destinado a armazém e actividade industrial, sito em ..., Lugar da ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 5201.° e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº …, freguesia de ... - cfr. verba nº 1 do inventário, que constitui o anexo I do Relatório do Administrador da Insolvência.

           33.16.  Assim, impunha-se ao tribunal “a quo”, ao contrário do que fez e do que entendeu o Tribunal da Relação do Porto, que alterasse a lista de créditos reconhecidos e que procedesse à sua graduação da seguinte forma:


A) Pelo produto da venda do prédio urbano descrito na CRP de ... sob o n.°… e inscrito na matriz sob o artigo …º, da freguesia de ... e que corresponde à verba nº 1 do Auto de Apreensão:
1º - Créditos dos trabalhadores que gozam de privilégio imobiliário especial; 
2º - Crédito reclamado pelo credor hipotecário Banco BB, até ao limite previsto na escritura de hipoteca, com respeito pelo nº 2 do artigo 693.°do Código Civil;
3º Crédito reclamado pelo Estado que goza de privilégio mobiliário geral e especial;
4º Créditos Comuns;
5º Créditos subordinados.

B) Pelo produto da venda do prédio urbano descrito na CRP de Vila Nova de Famalicão sob o n.° 401 e inscrito na matriz sob o artigo …º, freguesia de Antas e que corresponde à verba n.° 2 do Auto de Apreensão:
1º - Crédito do Banco BB no montante de € 563.187,06 acrescido de juros de mora desde 26 de Março de 2012, até ao limite previsto no nº 693º do Código Civil, uma vez que esta hipoteca é específica para este crédito.
2º - Remanescente dos créditos dos trabalhadores;
3º- Crédito reclamado pelo Estado que goza de privilégio mobiliário geral e especial;
4º - Créditos comuns, no qual se inclui os restantes créditos reclamados pelo credor Banco BB, S.A. não incluídos na hipoteca sobre este prédio;

C) Pelo produto da venda do prédio rústico descrito na CRP de ... sob o n.° 2027 e inscrito na matriz sob o artigo 199º, freguesia e concelho de ... e que corresponde à verba nº 3 do Auto de Apreensão:
1.º Crédito reclamado pelo credor hipotecário Banco BB, até ao limite previsto na escritura de hipoteca, com respeite pelo nº 2 do artigo 693.° do Código Civil;
2.º Remanescente dos créditos dos trabalhadores;
3.º Crédito reclamado pelo Estado que goza de privilégio mobiliário geral e especial;
4.º Créditos Comuns;

            33.17. Caso se entenda não existir uma contradição do acórdão recorrido com o acórdão-fundamento (o que só por mera hipótese se concede) que legitime a análise do presente recurso de revista excepcional e a alteração da sentença de verificação e graduação de créditos no sentido defendido (v/de conclusão antecedente), sempre se deterá entender que a correcta interpretação do conceito de erro manifesto é de notória importância para a melhor aplicação do Direito (artigo 672.° n.° 1, al. a) do Código de Processo Civil).

           

           33.18. Se neste caso concreto foi o recorrente o grande prejudicado, que, do seu crédito de € 1.905.111,57 (um milhão novecentos e cinco mil cento e onze euros e cinquenta e sete cêntimos, pouco ou nada verá satisfeito, noutros casos serão os trabalhadores (agora beneficiados), o Estado, ou uma qualquer Autarquia Local.

            33.19. A recorrência de erros na elaboração da lista de créditos reconhecidos, potenciada, muitas vezes, pela falta de conhecimentos jurídicos por parte dos Administradores de Insolvência, que, na sua maioria, não são juristas (a lei não o obriga), não pode ser cristalizada em sentenças de verificação e graduação de créditos que não fazem qualquer tipo de controlo sobre a sua conformidade formal e substancial.

           33.20. A tendência será para os erros aumentarem, dado, infelizmente, ao cada vez maior número de processos de insolvência, havendo, constantemente, a necessidade de recorrer destas sentenças de verificação e graduação de créditos.

            33.21. Na realidade, quem tem de garantir que a lista de créditos é elaborada de acordo com as exigências do artigo 129.° n.° 2 do CIRE é o tribunal “a quo”.

           33.22. Tudo para que os interesses dos vários credores reconhecidos sejam satisfeitos de acordo com as preferências estabelecidas pelo legislador, em função dos valores jurídicos que considerou, primeiramente, dignos de tutela.

            33.23. Ao nível da doutrina e da jurisprudência são inúmeras as vozes que defendem o mesmo entendimento por nós defendido.

           33.24. Podemos mesmo dizer que este entendimento já se encontra suficientemente sedimentado, justificando-se a intervenção do pleno das secções cíveis para, com a emissão de um acórdão uniformizador de jurisprudência, exercer maior força persuasiva sobre algumas das vozes discordantes que se vão mantendo.

           33.25. Neste sentido, propõe-se a uniformização de jurisprudência da seguinte forma:

O tribunal competente para homologar a lista de credores elaborada pelo Administrador da Insolvência, deve, independentemente da existência de impugnações de créditos, apreciar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista, tal como impõe o artº 130º nº3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

          33.26. Deste modo, estaremos a dar um bom contributo à aplicação da lei e à realização do ideal de justiça nela prescrito.

           33.27. O acórdão recorrido viola: quanto ao Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, os artigos 47º., n.°4, al. a), 58.°, 129.° n.°2, 130.°, n.°3, 140.° n °2 e 174.° n.°1; quanto ao Código do Trabalho, o artigo 333.° n.°1, al. b).

           Termos em que, pelas razões aduzidas, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogar-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra, que reconheça e gradue os créditos sobre a massa insolvente segundo o modo defendido nos antecedentes arts. 25.1. e 33.16.

           Do mesmo modo, requer-se ao abrigo do artigo 686º. Nº2 do Código de Processo Civil, que seja proposta a intervenção do pleno das secções cíveis, tendo em vista a uniformização de jurisprudência no seguinte sentido:

           O tribunal competente para homologar a lista de credores elaborada pelo administrador da insolvência, deve, independentemente da existência de impugnações de créditos, apreciar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista, tal como impõe o artigo 130.° nº3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

            Assim, julgando o presente recurso procedente, V. Exas. farão inteira e sã justiça,

            Não houve contra-alegações.


***

            Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação, não enunciando matéria de facto, considerou, transcrevendo as alegações do Recorrente, que as questões a resolver eram:

            - Verificação de erro manifesto;

            - Prevalência do crédito garantido por hipoteca sobre os créditos que beneficiam de privilégio geral.

            Das conclusões das alegações do Recorrente – que delimitam o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – [o Recorrente, no recurso de apelação, apenas obteve ganho quanto à segunda questão], resulta que a questão objecto do recurso consiste em saber – tal como na apelação – se ocorre erro manifesto na sentença de verificação e graduação de créditos, uma vez que nela não se procedeu à correcta verificação e graduação de créditos – art. 130º, nº3, do CIRE – não indicando de forma concreta e discriminada sobre qual dos três imóveis apreendidos para a massa insolvente – dois urbanos e um rústico – incidia o privilégio imobiliário especial, conferido pelo art. 333º do Código do Trabalho, de onde resultou que o crédito hipotecário da Recorrente não tivesse sido graduado no lugar que lhe competia.

           É patente, pelo Relatório, que a sentença não procedeu à referida indicação, graduando os créditos dos trabalhadores, em primeiro lugar, sobre os três imóveis e, em terceiro lugar, o crédito hipotecário do recorrente, incidente sobre cada um desses imóveis.

           A lista de credores não foi impugnada como se afirma na sentença que a teve como reproduzida.

           No recurso para a Relação, o Banco recorrente sustentou que havia erro manifesto na graduação, sendo irrelevante que não tivesse havido impugnação, tese que o Acórdão recorrido não considerou.

           Com efeito, aí se ponderou que, quanto à interpretação do art. 130º, nº3, do CIRE, existem duas interpretações: uma ampla e outra restritiva quanto ao conceito de “erro manifesto”, considerando que, no caso, seja qual for a tese sufragada não existe erro manifesto.

            Assim, a fls. 1920 a 1921, lê-se:

           “Na verdade, nos termos do disposto no art. 129º, nº2, do CIRE, a lista dos credores reconhecidos identifica, além do mais, o privilégio do crédito. Por outro lado, nos termos do disposto no art.130º, nº1, do CIRE, qualquer interessado pode impugnar a lista com fundamento, além do mais, na incorrecção “da qualificação dos créditos reconhecidos” e, de acordo com o disposto no nº3, se não houver impugnação, a sentença de verificação e graduação de créditos é imediatamente proferida e, além de se homologar a lista dos credores reconhecidos, graduam-se os créditos “em atenção ao que conste dessa lista”.

               Resulta, assim, de quanto fica exposto, que a qualificação do crédito é impugnável, devendo ser impugnada pelo credor que dela discorde. Sendo interessado – que pode e deve impugnar – não só o credor que não foi reconhecido, como aquele a quem foi reconhecido um valor inferior ao pretendido, e também o “credor que veja reduzidas as possibilidades de ser pago porque foi reconhecido outro credor”.

               Ora, e independentemente de, eventualmente, poder assistir razão substantiva ao recorrente, a verdade é que não impugnou o crédito privilegiado reconhecido aos trabalhadores: designadamente, a sua natureza e qualificação. Não podendo agora, por via de recurso, pretender fazer o que deveria ter feito oportunamente em sede de primeira instância.

               Atente-se que, a seguir-se a posição do recorrente, teria de haver, em princípio, lugar à produção de prova, com vista a apurar-se em qual, ou em quais, dos imóveis apreendidos os trabalhadores exerciam a sua actividade, o que é contrariado pelo disposto no referido art.130º do CIRE.

               Assim sendo, o crédito dos trabalhadores, atenta a sua qualificação, foi devidamente reconhecido e graduado, uma vez que não houve impugnação: a respectiva graduação tinha de ser feita de acordo com a definição da lista que os reconheceu, precisamente por não ter havido impugnação”. (sublinhado e destaque nosso)

            Em suma; a razão da decisão assentou no facto de o Recorrente, por não ter impugnado a lista de credores, não pode arguir a existência de erro manifesto na graduação a que o Juiz procedeu com base nela.

            A questão está na interpretação do art. 130º, nº3, do CIRE:

            “1 – Nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no nº1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.

               2 – Relativamente aos credores avisados por carta registada, o prazo de 10 dias conta-se a partir do 3º dia útil posterior à data da respectiva expedição.

                3 – Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam créditos em atenção ao que conste dessa lista.”

           O Recorrente afirma que o Acórdão não acolheu nem a interpretação ampla, nem a interpretação restrita do conceito “erro manifesto”, mas uma interpretação restritíssima.

            De todo o modo é patente que o Acórdão está em oposição ao sentenciado no Acórdão-fundamento indicado, que foi proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, datado de 25.11.2008, de que foi Relator o Conselheiro Silva Salazar, no Processo 08A3102, in www.dgsi.pt, assim sumariado:

          “I – Perante a lista de credores apresentada pelo administrador da insolvência, e mesmo que dela não haja impugnações, o Juiz não pode abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes dessa lista, nem dos documentos e demais elementos de que disponha, com a inclusão, montante, ou qualificação desses créditos, a fim de evitar violação da lei substantiva.

                II – Detectando a existência, nessa lista, de erro manifesto, se este for de natureza meramente formal, sendo a sua rectificação insusceptível de influir nos direitos das partes, nada se vê que obste a que desde logo proceda a tal rectificação e a que elabore logo de seguida sentença de homologação e graduação.

               III – Mas, se se tratar de erro de natureza substancial, cuja rectificação implique ficarem afectados direitos das partes, os princípios do contraditório e da igualdade substancial das partes implicam a impossibilidade de imediata elaboração de tal sentença, uma vez que a alteração que, com o fim de rectificação desse erro, seja efectuada, origina que a lista de credores passe a ser distinta.

                IV – Nessa hipótese, deve o Juiz determinar a elaboração de nova lista de credores, rectificada nos termos que indique, pelo administrador de insolvência, abrindo-se novo prazo para impugnações.

               V – A falta de elaboração dessa nova lista constitui nulidade essencial”.

           O Acórdão da Relação considerou, enfaticamente, que “o crédito dos trabalhadores, atenta a sua qualificação, foi devidamente reconhecido e graduado, uma vez que não houve impugnação: a respectiva graduação tinha de ser feita de acordo com a definição da lista que os reconheceu, precisamente por não ter havido impugnação.”

           Dele se colhe que se a lista de credores não for impugnada é inexorável a sua aprovação, como que conferindo um efeito cominatório à inexistência de impugnação, estando o julgador vinculado ao que o Administrador da Insolvência (AI.) considerou na lista de credores – art. 129º do CIRE.

            Num processo desjudicializado, para o bem e para o mal, como é o CIRE, aquele normativo, nos seus nºs 1, 2 e 3, indica, de forma pormenorizada, os elementos que devem constar na lista de credores que o A.I. deve elaborar, senão vejamos:

           “1 — Nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, o administrador da insolvência apresenta na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, ambas por ordem alfabética, relativamente não só aos que tenham deduzido reclamação como àqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento.

               2 — Da lista dos credores reconhecidos consta a identificação de cada credor, a natureza do crédito, o montante de capital e juros à data do termo do prazo das reclamações, as garantias pessoais e reais, os privilégios, a taxa de juros moratórios aplicável, e as eventuais condições suspensivas ou resolutivas.

               3— A lista dos credores não reconhecidos indica os motivos justificativos do não reconhecimento.”

           As menções sobre a natureza dos créditos, sejam reconhecidos ou não, a identificação do credor, o montante do capital e juros, as garantias pessoais e reais, os privilégios, as eventuais condições que sobre eles existam, são elementos cruciais para que o julgador possa, sem o trabalho burocrático que foi propósito da desjudicialização liberá-lo, dispor de elementos que facilmente possibilitem, em função desse relatório, aferir se existem ou não erros na listagem, mormente, quanto ao aspecto essencial da existência de garantias ou privilégios que influem decisivamente na graduação.

           Esta lista está sujeita a impugnação, nos termos do nº1 do art. 130º, tendo legitimidade para tal impugnação “qualquer interessado”; havendo impugnação, o Juiz decide.

            Não havendo impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação de créditos, homologando a lista de credores apresentada pelo AI., só assim não será se existir “erro manifesto”.

            A quem cabe pesquisar se existe “erro manifesto”?

             Compete a qualquer interessado pela via da impugnação – nº1 do art. 130º – e, obviamente, ao Juiz a quem compete proferir a sentença de verificação e graduação dos créditos.

            Do preceito colhe-se que a ausência de impugnação de créditos constantes da lista apresentada pelo AI, nos termos do art. 129º do CIRE, não impede o Juiz de exercer um controle sobre a respectiva legalidade, não apenas formal mas substantiva: os requisitos da elaboração da lista contêm normas procedimentais e juízos de qualificação jurídica (por exemplo, quanto se considera que o crédito X ou Y dispõe de garantia real ou é um crédito privilegiado). Se pensarmos que muitas vezes o AI não é jurista, a possibilidade desculpável de erro existe.

           Por isso, a ausência de impugnação da lista apresentada não a torna inatacável, como decorre da interpretação acolhida no Acórdão, sob censura.

           Ademais, a natureza do processo insolvencial de execução patrimonial universal e concursal e do princípio da igualdade, par conditio creditorum, consagrado no art. 194º do CIRE, (de alcance limitado, pois que só vale dentro de classes de créditos), impõe decisões justas e equitativas que não se compadecem com o total afastamento do controle judicial como se o Juiz se limitasse a chancelar a lista elaborada, fora e sem a prévia intervenção judicial.

            Para detectar a existência de erro manifesto, tem o julgador de analisar a lista apresentada pelo AI e aí examinar se os requisitos decisivos para cumprir as normas convocáveis para proferir a sentença de verificação e graduação, assistindo-lhe o poder-dever de convocar o A.I. para dele obter os esclarecimentos que supram ou completem a lista elaborada.

           Ora, se analisarmos as reclamações de créditos (as peças processuais constantes das alegações), logo se constata a existência de várias classes de credores reclamantes, uns com garantias reais, como é o caso do recorrente credor hipotecário, e de créditos privilegiados, os trabalhadores da insolvente, já que, quanto a estes, logo identificaram nos requerimentos apresentados essa qualidade, indicando o seu lugar de trabalho, tendo em vista o privilégio que lhes é conferido pelo art. 333º do Código do Trabalho; por outro lado, constando da massa falida, como activo, três prédios da insolvente, o julgador estava alertado para ter que proceder à graduação relativamente a cada um dos imóveis, onde teria sempre que identificar qual dos imóveis os trabalhadores, credores reclamantes, exerciam a sua actividade laboral ao tempo da insolvência.

            O conceito indeterminado “erro manifesto”, não deve deixar de ser ponderado mesmo que se evidencie ausência de impugnações, para sem mais se homologar a lista elaborada nos termos do art. 129º, nºs 1 a 3, e proferir sentença – art. 130º, nº3, do CIRE.

          Não existindo impugnações, nem por isso o julgador está dispensado de examinar a lista elaborada pelo AI., justamente para averiguar se existe nela algum erro patente, ostensivo, que implique, oficiosamente, a não homologação.

           O conceito indeterminado “erro manifesto” tem latitude e elasticidade para conferir ao juiz, o poder-dever de analisar a lista elaborada pelo A.I. em cumprimento do art. 129º, nºs 1 a 3 e não a homologar ao abrigo do nº3 do art. 130º do CIRE.

           O conceito deve ser interpretado de forma ampla, como doutamente, sustenta o Acórdão-fundamento, entendimento que foi perfilhado no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 25.5.2013, Proc. 3057/11.5TBGDM-A.P1.S1 – in www.dgsi.pt, de que foi Relator o Conselheiro Abrantes Geraldes.

            A homologação só não é imediata se o Juiz verificar a existência de erro manifesto nessa listagem elaborada pelo administrador da insolvência.

       Esse controle, para evitar que “erros manifestos” inquinem a homologação, permite ao Juiz latos poderes de controle dos requerimentos dos credores reclamantes, de modo a verificar se foram alegados os requisitos a que se aludiu, pois só ante eles o julgador, atenta a natureza do crédito, as suas garantias e demais elementos que a lei impõe que sejam mencionados, poderá proceder a uma correcta graduação.

            Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado” – 2ª edição, – em comentário ao art. 130º, pág. 555, escrevem:

            “…Se não houver impugnações, rege o nº3 do art. 130.

                Segundo este preceito, verificada esta hipótese, o juiz profere de imediato sentença de verificação e graduação dos créditos constantes da lista de créditos reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência, nos termos que desta constam. Por outras palavras, que de resto, traduzem a letra da lei, a sentença limita-se, então, a homologar essa lista, atribuindo-se efeito cominatório à falta de impugnações.

                Só assim não acontece se, na lista, houver erro manifesto.

               Suscita-nos as maiores dúvidas este regime, quanto à sua adequação numa matéria de tanto relevo e complexidade técnico-jurídica.

                Desde logo, por limitar tão significativamente a função do juiz que quase a reduz a uma mera formalidade, com escasso sentido substantivo.

               Para além disso, a inexistência de impugnações não constitui garantia significativa da correcção das listas elaboradas pelo administrador da insolvência. Este reparo deve ser entendido em função dos curtos prazos concedidos pela lei, quer ao administrador da insolvência, para elaborar as listas, quer aos interessados, para as impugnar.

               Nota tanto mais relevante quanto é certo serem, na grande maioria dos casos, em número significativo os créditos reclamados e volumosos os documentos que instruem as reclamações.

                Por outro lado, impressiona, no que respeita às garantias, que a sua constituição esteja normalmente dependente do preenchimento de requisitos formais ad substantiam, cuja falta seja, afinal de contas, puramente ignorada ou desconsiderada por mero efeito da falta de impugnação.

               Por isso, defendemos que deve interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar para o que pode solicitar ao administrador os elementos de que necessite (cfr. João Labareda, O Novo Código da Insolvência, loc. cit., págs. 46 e 47; vd, também, Fátima Reis Silva, Algumas Questões Processuais no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ibidem, págs. 76-77).

                Reitera-se, finalmente, que este erro pode respeitar à indevida inclusão do crédito nessa lista, ao seu montante ou às suas qualidades […]”. (destaque e sublinhados nossos), 

         No “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas-Anotado”, de Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, em nota ao art. 130º, pág. 389, consta:

           “Lê-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Setembro de 2007, relator Fonseca Ramos: “Defendemos que deve interpretar-se em termos amplos o conceito de erro manifesto, não podendo o juiz abster-se de verificar a conformidade substancial e formal dos títulos dos créditos constantes da lista que vai homologar para o que pode solicitar ao administrador os elementos de que necessite”; e: “Reitera-se, finamente, que este erro pode respeitar à indevida inclusão do crédito nessa lista, ao seu montante ou às suas qualidades”.

            Parece-nos que esta regra limita intencionalmente os poderes do juiz, excepcionando a regra geral constante do artigo 11º, relativa ao princípio do inquisitório. Aqui, devem ser os credores a ter um papel ativo na decisão de impugnar ou não impugnar as listas. Se os credores nada fizerem, conhecendo a decisão do administrador da insolvência, aceitam-na tacitamente, nos termos do nº3, entendendo-se que não cabe ao juiz a sua avaliação.

           O “erro manifesto” será apenas objeto de análise tendo em conta os elementos disponibilizados e outros que o juiz eventualmente solicite, se suspeitar que existe algum engano por parte do administrador da insolvência. Parece-nos fazer sentido o conhecimento pelo juiz do erro “manifesto”, próximo do facto notório, o que não significa que deva solicitar ao administrador da insolvência todos os documentos disponíveis, com vista à sua análise”.

           Se é certo que no Preâmbulo do DL.53/2004, de 18.3, que aprovou o CIRE, se enfatiza a desjudicialização do processo como corolário da “supremacia dos credores no processo de insolvência” e da larga autonomia de que gozam no concernente à liquidação ou à recuperação da insolvente como meio de assegurar o pagamento dos seus créditos, também no ponto 11) se refere que – “A desjudicialização parcial acima descrita não envolve diminuição dos poderes que ao juiz devem caber no âmbito da sua competência própria: afirma-se expressamente, no artigo 11º do diploma, a vigência no processo de insolvência do princípio do inquisitório, que permite ao juiz fundar a decisão em factos que não tenham sido alegados pelas partes”.

            Decorre do art. 1º do CIRE que o processo de insolvência é um processo de execução universal, visando a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto da liquidação pelos credores, ou a satisfação dos créditos destes pela forma prevista num plano de insolvência que assente na recuperação da empresa.

            Nos termos do art. art. 333º do Código do Trabalho:

            “1 – Os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam dos seguintes privilégios creditórios;

                a) Privilégio mobiliário geral;

               b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade.

                2- A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte:

               a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes dos créditos referidos no n° 1 do artigo 747.° do Código Civil;

               b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes dos créditos referidos no artigo 748.° do Código Civil e ainda dos créditos de contribuições devidas à segurança social.”.

           A lei confere privilégio imobiliário especial aos créditos laborais dos trabalhadores que, ao tempo da declaração de insolvência, exerciam a sua actividade nos imóveis do empregador.

           No requerimento de reclamação de créditos dirigido ao administrador da insolvência, os credores devem mencionar, além do mais, a proveniência do seu crédito, a sua natureza, a existência de garantias e a taxa de juros – art. 128º, nº1, als. a) a e) do CIRE.

           Tendo sido apreendidos para a massa insolvente três imóveis, dois prédios urbanos e um rústico propriedade da insolvente, sendo que num deles, identificado no requerimento de credores trabalhadores da insolvente (que indicaram que exerciam a sua actividade no imóvel sede da insolvente), e que requereram a graduação e o pagamento dos seus créditos pelo produto da venda desse imóvel, não tendo a lista elaborada pelo A.I. assinalado tais créditos como privilegiados, a lista padece de erro manifesto que o Juiz, atento o facto de existirem imóveis apreendidos, créditos hipotecários e créditos laborais, deveria ter suspeitado existir, mesmo na ausência de impugnações.

          A não se admitir que o Juiz, malgrado a latitude que, numa primeira abordagem, parece emergir do nº3 do art. 130º do CIRE, conferindo aos credores pela via da impugnação, questionarem ou não a legalidade da lista, seria levar longe de mais esse auto-controle dos credores menorizando o papel do julgador nas mãos de quem a lei coloca o dever de controle da legalidade, sobretudo, como no caso, em que a incorrecta graduação dos créditos, pode ter drásticas consequências.

           A natureza peculiar do processo insolvencial não afasta os princípios fundamentais do processo civil: poder dispositivo, de gestão processual e de cooperação, sendo de particular relevo no processo de insolvência o princípio do inquisitório.

           O art. 11º do CIRE estatui: “No processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes”. 

            A indicação de concretas fases do processo, onde não se alude a outros incidentes, como o da graduação dos créditos (que, em bom rigor, é decidida não em incidente mas por sentença), não exclui que o julgador possa convidar as partes ou o administrador da insolvência a prestar informações reputadas pertinentes.

           Por outro lado, não se trata de factos não alegados (os pertinentes a um correcto enquadramento legal das reclamação do credor hipotecário e dos créditos privilegiados laborais), mas antes de obter esclarecida informação que deveria ser prestada pelo A.I., para que a sentença fosse consonante com a realidade material – o princípio da materialidade subjacente – como exigência da decisão justa, que é um imperativo dos Tribunais como órgãos de soberania, que, dentro dos limites legais, devem proferir decisões em que a forma não avulte sobre a substância, comprometendo a efectiva segurança das pretensões que lhes compete apreciar.

           Importa, assim, considerar que o Acórdão recorrido, considerando que, no caso, não ocorreu erro manifesto apenas e porque não houve impugnação da lista dos credores, não pode manter-se sob pena de dar guarida a uma sentença que julgou em desconformidade com o direito.

           Importa assim, anular o processado, por erro manifesto constante da lista apresentada pelo Senhor Administrador da insolvência, por dela não constar a correcta indicação da natureza dos créditos privilegiados e garantidos, no que respeita aos créditos laborais, e ao crédito hipotecário da recorrente, devendo o Ex.mo Juiz na 1ª Instância convidar o A.I. a apresentar nova listagem, abrindo-se a fase da impugnação, para posteriormente ser cumprido o disposto no art. 130º do CIRE.

            Sumário:

     

            Decisão:

           Nestes termos, na procedência do recurso, acorda-se em anular o Acórdão recorrido, bem como o processado posterior ao cometimento do “erro manifesto” que se assinalou, em que incorreu a sentença proferida em 1ª Instância, erro induzido pelo deficiente cumprimento do art. 129º, nºs, 1 a 3, do CIRE, devendo ser dado cumprimento a este normativo e sequente tramitação nos termos do art. 130º, sendo proferida sentença de verificação e graduação de créditos que considere o preceituado no art. 140º, nº2, pelo que os autos serão remetidos directamente à 1ª Instância.

           Uma vez que a anulação é decretada pela procedência do recurso, as custas serão suportadas pela Massa Insolvente.

           Supremo Tribunal de Justiça, 10 de dezembro de 2015

Fonseca Ramos (Relator)

Fernandes do Vale

Ana Paula Boularot  

___________________
[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheira Ana Paula Boularot.