Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P339
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: RECURSO
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PARA A DECISÃO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
REFLEXÃO SOBRE OS MEIOS EMPREGADOS
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: SJ20070329003395
Data do Acordão: 03/29/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO O RECURSO
Sumário :
1 – Tem entendido pacífica e constantemente o Supremo Tribunal de Justiça que para conhecer de recurso interposto de um acórdão final do tribunal colectivo relativo a matéria de facto, mesmo que se invoque qualquer dos vícios previstos no art. 410.º do CPP, é competente o tribunal de Relação. Nos recursos interpostos da 1.ª Instância ou da Relação, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, por sua própria iniciativa e, nunca, a pedido do recorrente, que, para tal, terá sempre de dirigir-se à Relação.
2 – A revista alargada prevista no art. 410.º, n.ºs 2, e 3 do CPP, pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do CPP de 1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»).
3 – Essa revista alargada para o Supremo deixou, por isso, de fazer sentido - em caso de prévio recurso para a Relação - quando, a partir da reforma processual de 1998 (Lei 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (art.ºs 427.º e 428.º n.º 1).
4 – A insuficiência da matéria de facto a que se refere o n.º 2 do art. 410.º do CPP é um vício da matéria de facto e não da matéria de direito. Se se entende que a matéria de facto assente é insuficiente para afirmar a verificação de um determinado tipo de crime, então o que se pretende é afirmar a existência de um erro típico de direito: o erro e subsunção dos factos ao direito.
5 – Se da matéria de facto resulta provado que:
– o arguido antigo companheiro da vítima, com quem viveu 11 anos e teve um filho, a procurou cerca das 17 horas para falar sobre a atribuição dos cuidados e guarda desse menor; e
– a voltou a encontrar cerca das 19.40 horas, solicitando-lhe que o acompanhasse para conversarem, ao que ela acedeu indo de automóvel para um lugar ermo;
– lugar onde houve uma discussão entre ambos, a vítima que saiu do veículo automóvel, no que foi seguida pelo arguido que, na sequência daquela discussão, e quando ambos se encontravam fora do automóvel, munido previamente de uma pistola, a menos de 2 metros, efectuou 2 disparos vindo-lhe a provocar a morte,
não está provado que o recorrente tivesse procurado a noite para vir a causar a morte à sua ex-companheira, como não está provado que a conversa fosse um pretexto, e a própria vítima ao aceitar o convite, seguramente alertada pelos antecedentes de pressão exercida pelo recorrente, não o entendeu assim, nem que a escolha do sítio visasse já e pré-ordenadamente a morte anteriormente pensada da vítima, pelo que não pode afirmar a fria reflexão sobre os meios empregues, que fundou a qualificação do homicídio.
6 – Mas é muito grave a sua conduta, tanto mais que a abandonou no local e se dirigiu algum tempo depois à PSP dando conta que a vítima se suicidara, pelo que se mostra adequada a pena de 14 anos de prisão no quadro de um crime de homicídio simples.*

*Sumário elaborado pelo relator
Decisão Texto Integral:

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça

1.
O Tribunal Colectivo do 3º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Valongo (proc. n.º 153/05.1PAVLG), por acórdão de 29/05/2006, condenou o arguido AA, com os sinais dos autos, como autor de um crime de homicídio qualificado dos art.ºs 131º e 132º, nº 1 e nº 2, al. i), do C. Penal, na pena de 18 anos de prisão; e a pagar à demandante civil BB a quantia de 1.200 euros, a título de indemnização por danos patrimoniais;
Inconformado recorreu o arguido para a Relação do Porto arguindo a nulidade do acórdão, por violação do princípio da continuidade da audiência (nº 6 do art. 328º do CPP), por terem sido excedidos de 30 dias entre a data da última sessão da audiência de julgamento e a data da leitura do acórdão; impugnando a qualificação jurídica, por não se verificar a circunstância agravante qualificativa da al. i) do nº 2 do art. 132º do C. Penal, âmbito em que disse ter sido cometido “erro notório na apreciação da prova”, e violado o princípio “in dubio pro reo”, ou que sempre se verificaria “insuficiência da matéria de facto provada para a qualificativa em causa”; e contestando ainda a medida da pena concreta aplicada.

Aquele Tribunal Superior, por acórdão de 25-10-2006 (Rec. nº 4840/06-1), decidiu negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra o acórdão recorrido.

Ainda inconformado, recorre agora o arguido para este Tribunal, concluindo na sua motivação:

A. Não se verifica a agravante pela qual foi condenado. 132, n°. 1 e n°. 2 Alínea i) do CP.

1. É na sequência de uma discussão que o crime ocorre, à míngua de elementos que permitam a qualificativa o arguido deveria ter sido condenado por um crime de homicídio simples.

2. Das conjugação dos factos provados constata-se que inexistem elementos que permitam concluir nos termos em que o foi, o desígnio criminoso dá-se após a discussão e não antes, aliás dá-se como provado que foram para o local para conversar e fizeram-no, daí a discussão, e só após é cometido o ilícito.

3. O facto do arguido deter arma não permite concluir que foi para o cometimento do crime em referência, muito pelo contrário, permite concluir que este a detinha, que a utilizou, (forma mais banal de tal prática) veja-se que não se deu como provado a data em que a adquiriu, nem a forma como esta apareceu no dia dos factos.

B. Verificando-se nesta parte o vício do art. 410°, n°. 2 Alínea A)

C. Violando-se igualmente o art. 127° do C.P.P, dos factos provados não se retira nenhum elemento que permita concluir o momento da formação da decisão preparação de crime.

D) Da Medida da Pena,

A pena que lhe foi cominada é desproporcional, quer aos facto por este efectivamente cometido e confessado quer à sua personalidade, inúmeras circunstancias militam a seu favor que não foram devidamente valoradas, devendo ser reduzida no seu “quantum” tendo em conta a realidade que supra se indica.

Respondeu o Ministério Público que concluiu:

– a decisão respeitante a matéria de facto não padece de qualquer vício, pelo que esta terá de considerar-se assente;

– a materialidade fáctica provada integra um crime de homicídio qualificado p. e p. nos termos das disposições conjugadas constantes dos art°s 131° e 132°. n° 2. ai. i) do Código Penal. improcedendo o argumento de que o tribunal a quo errou na determinação da norma jurídica aplicável;

– assim, sem prejuízo de se proceder a novo reexame do quantum da pena imposta, cremos que o recurso não merece provimento.

Distribuídos os autos neste Supremo Tribunal de Justiça a 24.1.2007, teve vista o Ministério Público que exarou no respectivo despacho: «sem prejuízo de alegações orais, desde já se antecipa a nossa inteira concordância com a resposta do nosso Ex.mº Colega junto do Tribunal recorrido (aliás na sequência da fundamentação do acórdão ora impugnado), quer quanto à qualificação do homicídio, quer quanto à medida concreta da pena.

Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do art. 417.º do CPP.

Colhidos os vistos legais, teve lugar a audiência.

No seu decurso, o Ministério Público manteve a posição já assumida no visto a que se refere o art. 416.º do CPP quanto à qualificação jurídica, mas admitiu que a pena possa ser diminuída, dado tratar-se de delinquente primário, trabalhador e ter ocorrido confissão parcial e a defesa reafirmou a posição constante da motivação e da resposta dada na sequência da notificação a que alude o art. 417.º, n.º 2 do mesmo diploma legal.

Cumpre, assim, conhecer e decidir.

2.1.

E conhecendo:

São as seguintes as questões suscitadas pelo recorrente no presente recurso:

— Qualificação jurídica dos factos (homicídio simples e não homicídio qualificado), por não se verificar a agravativa da al. i) do n.º 2 do art. 132.º (conclusões A, 1 a 3);

— Medida da pena (conclusão D).

Mas vejamos previamente qual a factualidade apurada pelas instâncias.

2.2.

As instâncias tiveram como provados os seguintes factos:

1 – Durante cerca de 11 anos, o arguido manteve um relacionamento afectivo com CC, tendo vivido juntos, em condições análogas às dos cônjuges, durante cerca de cinco anos.

2 – No dia 2 de Março de 2001, nasceu DD, filho do arguido e de CC.

3 – A partir de certa altura, o arguido e a CC começaram a viver maritalmente na Rua ..., n° 155, Fânzeres, Gondomar, até que, por razões financeiras, em Agosto de 2004, o arguido foi trabalhar para o Luxemburgo.

4 – Mesmo ausente, o arguido continuou a dar apoio económico à companheira e ao filho, fazendo mensalmente transferências em dinheiro para uma conta bancária que tinha conjuntamente com a CC, em Portugal.

5 – No Natal de 2004, o arguido deslocou-se a Portugal.

6 – Nessa altura, o relacionamento do casal deteriorou-se, devido à circunstância de o arguido considerar que a CC teria gasto seis mil euros e desconfiar que a mesma tinha outro relacionamento amoroso.

7 – Em Fevereiro de 2005, o arguido regressou a Portugal.

8 – Nessa data, já a CC havia abandonado a residência do casal, estando a viver em casa da mãe.

9 – Entre o Natal de 2004 e o regresso do arguido, em Fevereiro de 2005, por telefone, ele pressionara a CC para abandonar a casa que ambos ocupavam, bem como para lhe dar a guarda do filho, ameaçando-a de que a mataria se não abandonasse a casa. A CC abandonou a residência do casal na sequência daquelas ameaças.

10 – No dia 25 de Fevereiro de 2005, cerca das 17 horas, o arguido abordou a CC, junta da residência da mãe desta, insistindo pela guarda do filho, tendo ainda nessa altura retirado o telemóvel da CC, das mãos desta.

11 – Nesse mesmo dia 25 de Fevereiro de 2005, cerca das 19 horas, o arguido voltou à residência da mãe da CC, procurando por esta, que ali se não encontrava.

12 – Pouco tempo depois, cerca das 19h40, o arguido encontrou a CC quando esta regressava à residência da mãe e solicitou-lhe que o acompanhasse para conversarem.

13 – A CC acedeu ao convite e entrou no veículo do arguido, que, conduzindo-o, se dirigiu para um lugar ermo, junto do antigo sanatório existente na serra de Santa Justa, nesta comarca de Valongo.

14 – Neste local, houve uma discussão entre arguido e a CC, tendo esta saído do veículo automóvel, no que foi seguida pelo arguido.

15 – Na sequência daquela discussão, e quando ambos se encontravam fora do automóvel, o arguido, que se munira previamente de uma pistola de calibre 6,35mm, a curta distância, inferior a 2 (dois) metros, efectuou dois disparos contra o corpo da CC, cujos projécteis a atingiram.

16 – Em consequência de tais disparos, um dos projécteis entrou na face anterior do hemitórax esquerdo, junto da linha axilar anterior, seguiu um trajecto ligeiramente de cima para baixo, ligeiramente da frente para trás e da esquerda para a direita, ficando o projéctil alojado no 3º espaço intercostal direito; o 2° projéctil entrou na parte posterior do hemitórax esquerdo, descreveu um trajecto de trás para a frente, debaixo para cima e ligeiramente da esquerda para a direita, ficando o projéctil no fundo do saco pleural.

17 – O que provocou na ofendida a perfuração da raiz da aorta e do tronco da artéria pulmonar, bem como lesões traumáticas nos dois pulmões, o que tudo, directa e necessariamente, provocou a morte da CC, ocorrida naquele dia 25 de Fevereiro de 2005.

18 – Depois de ter disparado os dois tiros que atingiram a CC, o arguido ausentou-se do local, desfez-se da arma e telefonou à família.

19 – Pelas 21h30, o arguido dirigiu-se à P.S.P. de Rio Tinto, dando conta que a sua companheira se tinha suicidado, que tinha disparado contra si própria e que a arma era dela.

20 – O arguido tinha adquirido a arma que utilizou por 15.000$00 a indivíduos de etnia cigana, em data não concretamente apurada.

21 – No local onde foi encontrado o corpo da CC também foram encontrados dois invólucros de calibre 6,35mm.

22 – O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de matar a CC, o que quis e conseguiu, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

23 – Foi a autoridade policial quem chamou o INEM.

24 – O arguido não prestou qualquer auxílio à CC.

25 – Ao ser atingida pelos projécteis disparados pelo arguido, a CC teve um grande sofrimento.

26 – A assistente EE é mãe da vítima CC.

27 – A demandante BB é filha daquela EE e irmã da CC.

28 – Foi enorme a dor da EE e da BB por perderem a filha e irmã, respectivamente.

29 – Dores estas que se agravaram quando tiveram conhecimento das circunstâncias em que a filha e irmã perdeu a vida.

30 – A assistente EE foi obrigada a receber tratamento no Hospital, quer no dia dos factos, quer no dia do funeral da filha.

31 – A BB tem grande amor pelo sobrinho DD, a quem trata como se fosse seu filho. Sabe que apesar de todo o amor que entrega ao sobrinho, sempre este saberá que perdeu a sua mãe. Sente o sofrimento do seu sobrinho que perdeu a mãe, numa fase da vida em que mais precisava dela.

32 – Foi a BB quem pagou as despesas de funeral da CC, no montante de 1.200 (mil e duzentos euros).

33 – Na infância e adolescência, o arguido beneficiou de um enquadramento familiar estruturado, constituído pelos pais e três irmãos, e caracterizado por um relacionamento pautado por interacções positivas.

34 – Depois de várias reprovações, abandonou o ensino, após frequentar o 6º ano de escolaridade.

35 – Trabalhou durante três anos numa fábrica de calçado e depois, por igual período, numa fábrica de aquecedores, que entretanto faliu. Após ter permanecido desempregado durante cerca de ano e meio, emigrou para o Luxemburgo, onde trabalhou como armador de ferro. Sempre foi um bom trabalhador.

36 – O arguido, que sempre foi um bom pai, foi informado de que a CC, numa noite, deixou o filho sozinho em casa, enquanto se foi divertir.

37 – Por vezes o arguido gagueja um pouco.

38 – Na cadeia, onde tem a visita regular de familiares, nomeadamente dos seus pais, trabalha na faxina da secção de desporto.

39 – Não tem antecedentes criminais.

40 – No meio social onde se insere, o comportamento do arguido sempre se revelou ajustado e adequado ao contexto comunitário.

41 – Confessou parcialmente a sua apurada conduta e sem relevo para a descoberta da verdade.

2.2.
Qualificação jurídica dos factos.

Sustenta o recorrente que o crime cometido foi o de homicídio simples e não homicídio qualificado, por não se verificar a agravativa da al. i) do n.º 2 do art. 132.º (conclusões A, 1 a 3), com verificação do vício da al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP (conclusão B) e violação do art. 127.º do CPP (conclusão C).

Quanto à invocação do vício da alínea a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) e da violação do art. 127.º do mesmo diploma (livre apreciação da prova), a questão já foi abordada e decidida no foro próprio: o Tribunal da Relação do Porto que a teve por insubsistente.

Assim, está a matéria de facto definitivamente fixada, toda a vez que não há razões para que este Supremo Tribunal oficiosamente entre na indagação de qualquer vício.

Com efeito, é jurisprudência constante e pacífica deste Tribunal (cfr. v.g., o AcSTJ de 08/02/2007, proc. n.º 159/07-5, www.stj.pt) que para conhecer de recurso interposto de um acórdão final do tribunal colectivo relativo a matéria de facto, mesmo que se invoque qualquer dos vícios previstos no art. 410.º do CPP, é competente o tribunal de Relação. Nos recursos interpostos da 1.ª Instância ou da Relação, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, por sua própria iniciativa e, nunca, a pedido do recorrente, que, para tal, terá sempre de dirigir-se à Relação.

Mesmo em relação às decisões na al. d) do art. 432.º o âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal é fixado na própria alínea e não no art. 434.º do CPP, o que significa, que, mesmo relativamente aos acórdãos finais do tribunal colectivo, o recurso para o Supremo só pode visar o reexame da matéria de direito.

Nos recursos interpostos da 1.ª Instância ou da Relação, o Supremo Tribunal de Justiça só conhece dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, por sua própria iniciativa e, nunca, a pedido do recorrente, que, para tal, terá sempre de dirigir-se à Relação, que, nos termos do art. 428.º, n.º 1 conhece de facto e de direito.

Com efeito, e como este Tribunal tem insistentemente proclamado, em regra, «o recurso da decisão proferida por tribunal de 1.ª instância interpõe-se para a relação» (art. 427.º do CPP). E só excepcionalmente – em caso «de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito» – é que é possível recorrer directamente para o STJ (art.ºs 432.º, d), e 434.º).

Ora, como resulta do exposto, o presente recurso – proveniente da Relação (e não, directamente, do tribunal colectivo) – visa, no ponto em causa, fundamentalmente, o reexame de matéria de facto e não exclusivamente, o reexame da matéria de direito (art.º 434.º do CPP) que, no caso do Supremo Tribunal de Justiça exige a prévia definição (pela Relação, se chamada a intervir) dos factos provados.

E, no caso, a Relação – avaliando a regularidade do processo de formação de convicção do tribunal colectivo a respeito dos factos impugnados no recurso – manteve-os, definitivamente, no rol dos «factos provados».

De resto, a revista alargada prevista no art. 410.º, n.ºs 2, e 3 do PP, pressupunha (e era essa a filosofia original, quanto a recursos, do Código de Processo Penal de 1987) um único grau de recurso (do júri e do tribunal colectivo para o STJ e do tribunal singular para a Relação) e destinava-se a suavizar, quando a lei restringisse a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito (o recurso dos acórdãos finais do júri ou do colectivo; e o recurso, havendo renúncia ao recurso em matéria de facto, das sentenças do próprio tribunal singular), a não impugnabilidade (directa) da matéria de facto (ou dos aspectos de direito instrumentais desta, designadamente «a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não devesse considerar-se sanada»).

Essa revista alargada para o Supremo deixou, por isso, de fazer sentido - em caso de prévio recurso para a Relação - quando, a partir da reforma processual de 1998 (Lei 59/98), os acórdãos finais do tribunal colectivo passaram a ser susceptíveis de impugnação, «de facto e de direito», perante a Relação (art.ºs 427.º e 428.º n.º 1).

Hoje, pretendendo-se impugnar um acórdão final do tribunal colectivo:

– se visar exclusivamente o reexame da matéria de direito (art. 432.º d), dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça;

– ou, se não visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, dirige-o, «de facto e de direito», à Relação , caso em que da decisão desta, se não for «irrecorrível nos termos do art. 400.º», poderá depois recorrer para o STJ (art. 432.º).

Só que, nesta hipótese, o recurso – agora, puramente, de revista – terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento de 1.ª instância), embora se admita que, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do Supremo para além do que tenha de aceitar-se já decidido definitivamente pela Relação, em último recurso, aquele se abstenha de conhecer do fundo da causa e ordene o reenvio nos termos processualmente estabelecidos.

O que significa que está fora do âmbito legal do actual recurso a repreciação da matéria de facto, mesmo com base em vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação.

Para mais quando, como no caso, para além do objecto do recurso já apreciado pelo tribunal ora recorrido, não se vislumbram vícios a que fosse mister dar resposta.

De todo o modo e no que se refere à insuficiência da matéria de facto invocada pelo recorrente, já a Relação, sem ter sido atendida por ele, explicara que os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP são vícios da matéria de facto e não vícios da matéria de direito.

Na verdade, se se entende, como é o caso do recorrente, que a matéria de facto assente é insuficiente para afirmar a verificação de um determinado tipo de crime (no caso homicídio qualificado), então o que se pretende é afirmar a existência de um erro típico de direito: o erro e subsunção dos factos ao direito.

Isto posto, vejamos o que se disse na decisão recorrida, exactamente sobre este ponto.

Começa a Relação por dizer que não foi a premeditação do crime (persistência na intenção de matar por mais de 24 horas) nem qualquer facto relacionado com a aquisição da arma (o momento em que ocorreu e o período de tempo da sua detenção) que fundamentou a qualificação do crime praticado, pois veio ele a ser absolvido do crime de detenção ilegal de arma.

Para depois avançar que a qualificação do homicídio [al. i) do nº 2 do art. 132º do C. Penal] se fundou em ter ele agido com «reflexão sobre os meios empregados» ao nível da formação da decisão e da preparação do crime e com «frieza de ânimo» ao nível da sua execução.

Consta, a este respeito, do acórdão: «Mas, embora no caso em apreço se não possa falar em persistência da intenção de matar por mais de 24 horas, afigura-se-nos que o quadro fáctico que ficou provado, permite concluir que a vontade de execução do crime se formulou de modo lento e reflexivo quer na preparação quer na execução propriamente dita do plano forjado, isto é com frieza de ânimo».

Após caracterizar, ao nível da Doutrina e da Jurisprudência, os conceitos de «frieza de ânimo» e de «reflexão sobre os meios empregados», o acórdão recorrido conclui do seguinte modo:

«No caso sub judice, o arguido procurou a vítima durante a noite. Convenceu-a a ir consigo, a pretexto de com ela conversar, conduzindo-a a um lugar ermo, não iluminado. Levava consigo uma arma devidamente municiada, que foi procurada para o efeito, e ali desferiu-lhe dois tiros que lhe ceifaram a vida. Conclui-se deste modo pela reflexão sobre os meios empregados. Houve uma nítida reflexão sobre as circunstâncias de execução do projecto criminoso do arguido tornando difícil ou impossível a defesa da vítima, isto é, da infeliz CC».

A expressão «que foi procurada para o efeito», por referência à arma, não visa o momento em que a arma foi adquirida. O seu significado tem que encontrar-se no contexto das expressões que aquela precedem, isto é, que o arguido «procurou a vítima ... convenceu-a a ir consigo ... conduzindo-a a um lugar ermo» e «Levava consigo uma arma devidamente municiada». Reportando-se, pois, ao momento em que o arguido foi procurar a CC, a convenceu a meter-se dentro do seu carro e a transportou para o lugar ermo onde a matou. Matéria que está descrita como provada sob os itens 12) a 15). Relevando, neste aspecto, que, no local ermo onde discutiu com a CC, quando esta saiu do veículo, o arguido logo a seguiu, empunhando a arma de que se munira previamente e disparando de imediato dois tiros seguidos, a distância inferior a 2 metros, atingindo-a em locais vitais ― cfr. itens. 14) e 15).

É a este modo de execução frígido, calmo, certeiro e insensível, que o acórdão recorrido, na esteira da orientação doutrinária e jurisprudencial que cita, caracteriza de «frieza de ânimo».

Concluindo pela verificação de especial censurabilidade revelada pela conduta do arguido ao nível da preparação e da execução do crime, o acórdão recorrido, depois de caracterizar as circunstâncias do nº 2 do art. 132º do Código Penal como “elementos da culpa”, de “funcionamento não automático”, que hão-de resultar “de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º, nº 2”, fundamentou-a nos seguintes termos:

«Ora, numa ponderação global das circunstâncias em que ocorreu o facto, onde desde logo sobrelevam as circunstâncias de entre o arguido e a vítima ter existido um longo relacionamento afectivo, durante cerca de 11 anos, tendo vivido juntos, em condições análogas às dos cônjuges durante cerca de cinco anos e de fruto dessa união ter nascido uma criança ... pode concluir-se que a morte da CC foi causada em circunstâncias que reflectem uma atitude por parte do arguido de profundo desprezo pelo bem supremo que é a vida humana e pelos valores ético-sociais, revelando ainda, segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, insensibilidade moral, de tal forma que o seu comportamento revela uma especial censurabilidade e, por isso, é revelador de um maior grau de culpa. Na verdade, todo o circunstancialismo que rodeou a morte da CC traduz um acentuadíssimo desvalor da personalidade do arguido concretizado no facto. O arguido procurou a vítima durante a noite. Convenceu-a a ir consigo, a pretexto de com ela conversar. Conduziu-a um lugar ermo, não iluminado. Levava consigo uma arma devidamente municiada, que foi procurada para o efeito. Ali, não hesitou em usar aquela arma, matando a mãe do seu filho de apenas três anos de idade, a mulher com quem se relacionava afectivamente há onze longos anos, a companheira com quem vivera até há poucos dias em condições análogas às dos cônjuges, durante cinco anos. A tudo acresce a conduta dissimulatória do arguido: depois de ter disparado os dois tiros que atingiram a CC, o arguido, que não lhe prestou qualquer auxílio, ausentou-se do local, desfez-se da arma, telefonou à família e pelas 21h30 dirigiu-se à P.S.P. de Rio Tinto dando conta que a sua companheira se tinha suicidado, que tinha disparado contra si própria e que a arma era dela. Concluímos, assim que a morte da infeliz CC foi causada em circunstâncias tais que revelam especial censurabilidade por parte do arguido».

Concluiu, depois a Relação que se trata de «uma fundamentação bem desenvolvida, que traduz, de forma bem expressiva, a imagem global de uma culpa especialmente agravada que é projectada pelo conjunto dos factos provados e que interpreta correctamente as normas aplicadas, do nº 1 e al. i) do nº 2 do art. 132º do Código Penal.

Ora nos trechos referidos, a 1.ª Instância conclui pela reflexão sobre os meios empregados, sobre as circunstâncias de execução do projecto criminoso do arguido tornando difícil ou impossível a defesa da vítima, partindo da consideração de que o arguido procurou a vítima durante a noite, convencendo a ir consigo, a pretexto de com ela conversar, a um lugar ermo, não iluminado, levando consigo uma arma devidamente municiada, que foi procurada para o efeito, e ali desferiu-lhe dois tiros que lhe ceifaram a vida.

Ora, a matéria de facto provada não permite esta imputação.

Desde logo, como se viu, a Relação afastou a circunstância, que parece resultar das considerações da 1.ª Instância, de que a arma devidamente municiada que levava consigo, fora “procurada para o efeito”, anteriormente ao episódio em causa. Mas nada permite afirmá-lo mesmo para o momento em causa.

Lembre-se que está provado que o relacionamento amoroso do recorrente e da vítima se deteriorou a partir de do Natal de 2004, tendo aquele regressado a Portugal em Fevereiro de 2005, quando a vítima já abandonara a residência do casal, por pressão do recorrente, estando a viver em casa da mãe. Também pressionara então o recorrente a vítima por telefone também para lhe dar a guarda do filho de ambos.

E foi a 25.2.2005, cerca das 17 horas, o arguido abordou a CC, junta da residência da mãe desta, insistindo pela guarda do filho, tendo ainda nessa altura retirado o telemóvel da CC, das mãos desta. Cerca das 19 horas, o arguido voltou à residência da mãe da CC, procurando-a em vão. Foi pouco tempo depois, cerca das 19h40, que o recorrente a encontrou quando a mesma regressava à residência da mãe e solicitou-lhe que o acompanhasse para conversarem.

A vítima acedeu ao convite e entrou no veículo do recorrente, que, conduzindo-o, se dirigiu para um lugar ermo, junto do antigo sanatório existente na serra de Santa Justa, nesta comarca de Valongo. Nesse lugar houve uma discussão entre ambos, a vítima que saiu do veículo automóvel, no que foi seguida pelo recorrente. Na sequência daquela discussão, e quando ambos se encontravam fora do automóvel, o recorrente, que se munira previamente de uma pistola de calibre 6,35mm, a menos de 2 metros, efectuou dois disparos contra o corpo da vítima, que a atingiram e vieram a provocar ferimentos que determinaram a morte desta.

Não está, assim, provado que o recorrente tivesse procurado a noite para vir a causar a morte à sua ex-companheira, como não está provado que a conversa fosse um pretexto, e a própria vítima ao aceitar o convite, seguramente alertada pelos antecedentes de pressão exercida pelo recorrente, não o entendeu assim.

Também não está provado que a escolha do sítio visasse já e pré-ordenadamente a morte anteriormente pensada da vítima.

É que não pode deixar de esquecer que a vítima aceitou conversar com o recorrente, nas condições propostas pelo recorrente e que eles tinham tema de conversa, em aberto, designadamente a atribuição dos cuidados e guarda do filho comum. Que essa conversa se transformou numa discussão cujos termos se desconhecem e que foi “na sequência daquela discussão, e quando ambos se encontravam fora do automóvel” (na impressiva expressão usada pelas instâncias no relato da matéria de facto provada, agora realçada) que o arguido disparou.

Ou seja, foi na sequência dessa discussão, cujo teor não foi apurado, que o recorrente agiu, o que estabelece um elemento de intermediação entre a conduta anterior à discussão e posterior, que por si só, desconhecidos que são os seus termos, “descontinua” as considerações das instâncias.

Portanto, a matéria de facto provada, e a que se tem de agora atender, não consente a afirmação de que a hora fora escolhida, pelo recorrente, pré-ordenadamente à decisão de matar, que a conversa foi um mero pretexto, que o local foi escolhido em função de um projecto já traçado.

O mesmo é dizer que os factos provados não consentem o quadro de «nítida reflexão sobre as circunstâncias de execução do projecto criminoso do arguido tornando difícil ou impossível a defesa da vítima», que fundou a qualificação do homicídio pelas instâncias.

Procede, nesta parte o recurso do recorrente.

2.4.

Também impugnou o recorrente a medida da pena no quadro da moldura penal abstracta a que atenderam as instâncias.

Mas a procedência da questão da qualificação jurídica e a a consequente desqualificação do crime de homicídio cometido, prejudica aquela pretensão e obriga à abordagem da questão da pena na nova moldura penal.

Determinada esta, numa segunda operação, é dentro dessa moldura penal, que funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:
– O grau de ilicitude do facto (o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente – a morte foi causado com 2 tiros a curta distância, sem que nada o fizesse esperar, num local ermo e de noite, sendo a vítima mãe de um filho o recorrente, filho que assim ficou muito mais desprotegido);
– A intensidade do dolo ou negligência (o dolo foi directo e muito intenso);
– Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (a vítima tinha mantido um relacionamento amoroso de 11 anos com o recorrente, tinham vivido em economia comum e tinham um filho);
– As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
– A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (ausência de antecedentes criminais, abandono da vítima depois dos tiros, tentativa de fugir às consequências da sua conduta e desaparecimento da arma);
– A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
A medida das penas determina-se, já o dissemos, em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção, no caso concreto, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra ele.
A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada (a pena deve neutralizar o efeito negativo do crime na comunidade e fortalecer o seu sentimento de justiça e de confiança na validade das normas violadas, além de constituir um elemento dissuasor – a medida da pena tem de corresponder às expectativas da comunidade) e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quando possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (é a medida necessária à reintegração do indivíduo na sociedade, causando-lhe só o mal necessário. Dirige-se ao próprio condenado para o afastar da delinquência e integrá-lo nos princípios dominantes na comunidade) assim se desenhando uma sub-moldura (Ac. do STJ de 17-09-1997, proc. n.º 624/97).
Em síntese pode dizer-se que as expectativas da comunidade ficam goradas, a confiança na validade das normas jurídicas esvai-se, o elemento dissuasor não passa de uma miragem, quando a medida concreta da pena não possui o vigor adequado à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade respeitando o limite da culpa.

Como se acentua nas decisões das Instâncias são muito grandes as necessidade de prevenção geral de integração neste tipo de crime, pelo que a pena a encontrar se deve situar acima do terço superior da respectiva moldura, o que é compatível com o seu grau de culpa já analisado.

Assim, a pena é fixada em 14 anos de prisão.

3.

Pelo exposto, acordam os juízes da (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso.

Honorários à defensora oficiosa.

Sem custas.

Lisboa, 29 de Março de 2007

Simas Santos (relator)

Santos Carvalho

Costa Mortágua

Rodrigues da Costar