Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
13426/07.0TBVNG-B.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Descritores: FIANÇA
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
INEXIGIBILIDADE
VENCIMENTO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
ACÇÃO EXECUTIVA
AÇÃO EXECUTIVA
EMBARGOS DE EXECUTADO
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO / PRAZO DA PRESCRIÇÃO / DÍVIDA LIQUIDÁVEL EM PRESTAÇÕES.
Doutrina:
- A. Varela, Das Obrigações em Geral, II, 6.ª Edição, p. 53;
- Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 8.ª Edição, p. 941;
- Galvão Telles, Direito das Obrigações, p. 200 e ss.,
- Januário da Costa Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina, 2000, p. 619-620 e 744-745;
- Lobo Xavier, Venda a Prestações, RDES XXI, p. 199-266;
- Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, I, p. 193;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, p. 25 e 31.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 781.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 25-05-2017, PROCESSO N.º 1244/15;
- DE 12-07-2018, PROCESSO N.º 10180/15, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I – Salvo estipulação em contrário, o regime de exigibilidade antecipada da dívida pagável em prestações previsto no art. 781º do CC não se estende ao fiador pelo que, se acionado pelo credor, pode opor a exceção de inexigibilidade do crédito fidejussório, na medida em que “exceda” quantitativamente o montante das prestações resultantes do “calendário” estabelecido no contrato;

II – Sendo a fiança um negócio de risco, a declaração fidejussória deve ser interpretada de forma estrita. Na dúvida sobre o sentido da declaração, deve prevalecer o critério do carácter menos gravoso para o declarante.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório


1. AA deduziu embargos à execução que lhe foi movida pela BB, S.A., visando o pagamento coercivo da quantia de EUR 39.540,54, pedindo que:

a) – Seja determinada a suspensão da instância executiva, nos termos revistos na al. c) do nº 1 do art.º 733.º do CPC; [1]

b) Seja declarada a extinção a execução.

Para tanto, alegou, em síntese, que:

A exequente, dando à execução um contrato de mútuo com hipoteca, celebrado no dia 8/8/1996, em que a ora embargante interveio como fiadora, veio exigir o pagamento antecipado da totalidade das prestações acordadas, em consequência de incumprimento pelos mutuários das obrigações emergentes desse contrato.

Porém, a faculdade que a exequente veio exercer, ao abrigo do disposto no art. 781º, do CC, não se estende ao fiador, sendo certo que a embargante nunca afastou a «perda do benefício do prazo».

Consequentemente, não lhe pode ser exigido o pagamento do montante peticionado na execução.

Mais alegou que a taxa de juros moratórios nos termos fixados no contrato é nula, por violar os princípios da boa-fé e da proporcionalidade.

2. Recebidos os embargos, a exequente contestou, alegando que a fiadora renunciou validamente ao «benefício do prazo» e que, tendo sido interpelada para cumprir, lhe é exigível o cumprimento das obrigações emergentes do contrato, nos termos peticionados.

Defendeu, ainda, a validade da cláusula relativa aos juros moratórios.

3. Na 1ª instância, foi proferida sentença que, julgando os presentes embargos totalmente improcedentes, determinou o prosseguimento da execução nos seus precisos termos.

4. Desta decisão, apelou a embargada, tendo o Tribunal da Relação … julgado parcialmente procedente a apelação e ordenado o prosseguimento da execução (relativamente à executada/embargante) para pagamento das “prestações vencidas até à data da instauração da execução e respetivos juros de mora, vencidos a contar de setembro de 2007”, a calcular nos termos enunciados no acórdão.

5. Irresignada, veio a exequente interpor recurso para este Supremo Tribunal, e, em conclusão, disse:

1. O presente recurso vem interposto do Acórdão proferido em 11 de janeiro de 2018 que julgou parcialmente procedente a Apelação interposta pela Executada AA e, consequentemente, revogou parcialmente a sentença recorrida e reduziu a execução, relativamente à embargante, ao valor das prestações vencidas até à data da instauração da execução e respetivos juros de mora.

2. A Exequente BB, S.A. instaurou a presente ação executiva em 22 de novembro de 2007 contra CC, DD, EE e AA para a cobrança da quantia exequenda de € 39.540,54 (trinta e nove mil, quinhentos e quarenta euros e cinquenta e quatro cêntimos).

3. Como título executivo, a Exequente BB, S.A.: deu um contrato de mútuo com hipoteca e fiança celebrado em 8 de agosto de 1996, do qual a Executada AA consta como fiadora e principal pagadora.

4. A 28 de novembro de 2016, a Executada AA deduziu Oposição à Execução mediante Embargos onde invocou, por um lado, a inexigibilidade da obrigação exequenda porquanto não foi interpelada do vencimento antecipado da totalidade da divida e, por outro, a nulidade da taxa de juros aplicada.

5. A 31 de janeiro de 2017, a Exequente BB, S.A.. apresentou a sua contestação, onde invocou e provou a interpelação da fiadora AA para a totalidade da divida e, ainda não tal não tivesse ocorrido, invocou que nem sequer precisava de interpelar a Executada atento o teor do contrato de mútuo cm hipoteca, bem assim como pugnou pela validade da cláusula da taxa de juros.

6. O Tribunal de 1ª instância proferiu sentença, a 4 de julho de 2017, tendo dado como provados, com relevância para os presentes autos que: 2) Os executados EE e esposa AA declararam na referida escritura "que se responsabilizam como fiadores e principais pagadores por tudo quanto venha a ser devido à BB credora em consequência do empréstimo aqui titulado dando, desde já, o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro e bem assim às alterações de prazo ou moratórias que venham a ser convencionadas entre a credora e a parte devedora e aceitando que a estipulação relativa ao extrato da conta e aos documentos de débito seja também aplicável à fiança"; 5) A exequente enviou à embargante a carta junta a fls. 22 que aqui se dá por integralmente reproduzida, que em suma concede à embargante o prazo de 5 dias para proceder ao pagamento da quantia em dívida, findo o qual procederá à instauração de processo judicial; e 6) A embargada recebeu a carta referida em 5.

7. Em face da factualidade dada como provada, o douto Tribunal de 1.a instância julgou totalmente improcedentes os embargos de executado uma vez que, por um lado, ocorreu a interpelação admonitória da Executada e, por outro, a taxa de juros aplicada não viola o disposto no Decreto-lei nº 58/2013.

8. Não se conformando com aquela decisão a Executada AA veio interpor recurso de apelação da referida decisão, com impugnação da matéria de facto dada como provada nos pontos 5 e 6. A Executada invocou que o Tribunal de primeira instância não podia ter dado como provados o envio e a receção da carta de interpelação da Executada, razão pela qual não se provou a interpelação admonitória pela Exequente BB, S.A.. Por outro lado, a Executada AA invocou a nulidade da cláusula contratual da taxa de juros por violação dos princípios da boa-fé e da proporcionalidade.

9. 0 Douto Tribunal a quo veio julgar improcedente o pedido de modificação da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal de primeira instância e, por outro lado, entendeu que a' cláusula sétima do contrato de mútuo não é nula. No entanto, o douto Tribunal a quo entende que, não obstante a interpelação a executada, a mora no pagamento das prestações por parte dos mutuários não implicou o vencimento imediato das restantes prestações e, como tal, quanto ao vencimento das prestações futuras, o douto tribunal julgou inexigível a obrigação exequenda

10. Salvo o devido respeito e melhor entendimento, não pode a Exequente BB, S.A.. concordar com a posição sufragada pelo Douto Tribunal a quo, porquanto a mesma vai ao desencontro com as disposições legais aplicáveis e com a jurisprudência proferida nesta matéria.

11. O Douto Tribunal a quo entende que, mesmo quando se estipule contratualmente a perda a que alude o artigo 781.° do Código Civil, a mesma não é extensível aos garantes da obrigação que nesse contrato se vinculem por força do disposto no artigo 782.° do. Código Civil. Como tal, o douto Tribunal a quo entende que, a falta de pagamento das prestações decorrentes do contrato de mútuo peticionado por parte dos mutuários não implicou o vencimento imediato das restantes prestações relativamente aos fiadores, ou seja, quanto à Executada Maria Etelvina Carneiro.

12. A Executada AA foi devidamente interpelada, por carta datada de 27 de setembro de 2007, para proceder ao pagamento imediato da totalidade da dívida, sob pena de instauração de execução judicial para a cobrança coerciva da totalidade da divida.

13. E entendimento da ora Exequente BB, S.A.. que a interpelação da fiadora AA determinou o vencimento automático da totalidade da dívida, pelo que ocorreu necessariamente a perda do benefício do prazo, independentemente de a executada AA se ter responsabilizado como fiadora solidária e principal pagadora.

14. O douto Tribunal a quo desvalorizou manifestamente a interpelação da Executada AA, defendendo que aos fiadores nunca se opera um vencimento imediato da totalidade do empréstimo. No entanto, o referido entendimento não é o que resulta da lei nem tão pouco da jurisprudência maioritária.

15. A Executada AA assumiu a responsabilidade como fiadora no contrato de mútuo com hipoteca peticionado nos presentes autos.

16. Nos termos do n.° 1 do artigo 627.° do Código Civil, é fiador o terceiro que assegura com o seu património o cumprimento de uma obrigação alheia, ficando pessoalmente responsável perante o respetivo credor. Como tal, a fiança tem o conteúdo da obrigação principal pelo que se molda pela obrigação do devedor principal e abrange tudo aquilo a que ele está obrigado nos termos dos artigos 631.° e 634.° do Código Civil.

17. Uma das exceções ao artigo 634.° do Código Civil é, no entanto, a perda do beneficio do prazo, uma vez que, de acordo com o artigo 782.° do Código civil, a mesma não se estende aos coobrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia.

18. A perda do benefício do prazo encontra-se expressamente contemplada nos artigos 780.° e 781.° do Código Civil, sendo que, neste último artigo, encontra-se previsto o respetivo regime jurídico para a divida liquidável em prestações.

19. No caso em apreço estamos perante uma dívida liquidável em prestações, uma vez que, no contrato de mútuo peticionado nos presentes autos foi acordado um prazo para a amortização do empréstimo por um período de 20 anos. Para além disso, ficou contemplado no referido contrato que o pagamento do capital emprestado e respetivos juros seria efetuado através de 300 prestações mensais constantes.

20. Nos termos do artigo 781.° do Código civil, se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importa o vencimento de todas. A referida perda do benefício do prazo consiste na possibilidade de o credor exigir antecipadamente o cumprimento da totalidade da obrigação.

21. O artigo 782.° do Código Civil afasta, no entanto, a aplicação do regime constante do artigo 781.° aos coobrigados do devedor, nomeadamente aos fiadores que garantem o cumprimento da obrigação.

22. Háque ter em conta que-p referido artigo 782.° do Código Civil tem uma natureza supletiva vigorando o princípio da liberdade contratual, pelo, que as partes podem afastar o regime jurídico ali constante, contemplando, a aplicação aos fiadores da perda, do benefício do prazo.

23. O douto tribunal a quo entendeu que, no contrato de mútuo peticionado nos presentes autos, a fiadora AA não renunciou ao beneficio do prazo que o artigo 782.° do CC lhe confere.

24. Nos termos da alínea d) da Cláusula 18.a do documento complementar do contrato de-mútuo peticionado nos presentes autos, a credora BB, S.A. tem o direito de considerar o empréstimo vencido se o imóvel hipotecado for alienado, sem o seu consentimento ou se a parte devedora deixar de cumprir alguma das obrigações resultantes deste contrato. Resulta ainda da respetiva escritura que a Executada AA e ainda EE se responsabilizaram pomo fiadores e principais pagadores por tudo quanto venha a ser devido à BB em consequência do empréstimo ali titulado.

25. Conforme resulta da al. a) do artigo 640.° do Código Civil, o fiador que tiver assumido a obrigação de principal pagador, como sucedeu no caso em apreço, não pode invocar o beneficio da excussão prévia. Como tal, os fiadores EE e AA renunciaram expressamente ao benefício da excussão prévia e, como tal, assumiram uma responsabilidade solidária com os devedores principais.

26. Os fiadores EE e AA assumiram uma posição contratual ao lado dos devedores CC e DD.

27. Para além de terem renunciado ao benefício da excussão prévia, os fiadores EE e AA aceitaram o vencimento imediato da dívida perante o não cumprimento de uma obrigação decorrente do contrato de mútuo.

28. Os artigos 781.° e 782.° do Código Civil tem uma natureza supletiva, os quais foram expressamente afastados pelas partes, porquanto ficou contemplada a possibilidade de vencimento imediato da dívida perante o não cumprimento de uma das obrigações decorrentes do contrato.

29. 0 artigo 781.° do CC, ao determinar o vencimento imediato das restantes prestações, impõe a interpelação do devedor pelo credor de forma a poder exigir o pagamento integral e imediato da divida por antecipação do vencimento das prestações não vencidas.

30. De acordo com o teor da alínea d) da cláusula 18.a do documento complementar do contrato de mútuo peticionado nos autos, a credora BB, S.A.. tem o direito de considerar a divida imediatamente vencida perante o não cumprimento de uma das obrigações ali contempladas, independentemente da interpelação dos devedores e dos fiadores.

31 As partes contratuais expressamente estipularam o vencimento da obrigação perante o não cumprimento de uma das obrigações decorrentes do contrato de mútuo, pelo que foi afastado o regime supletivo da perda do benefício do prazo.

32. Ainda que se entenda que a fiadora AA não renunciou expressamente ao benefício do prazo, o que se aceita por mera cautela de patrocínio, a perda do benefício do prazo legalmente prevista implica interpelação dos devedores.

33. A perda do benefício do prazo dos devedores é oponível aos fiadores se estes tiverem sido informados previamente da interpelação efetuada aos devedores principais quanto ao vencimento imediato da dívida.

34. A Exequente BB, S.A.. alegou e provou que procedeu à interpelação da fiadora AA (cf. pontos 5 e 6 da matéria de facto dada como provada). Consta da carta de fls. 22, datada de 25 de setembro de 2007, que a Credora BB, S.A.. ia promover a execução judicial para a cobrança coerciva da totalidade da divida.

35. A Exequente BB, S.A.. interpelou expressamente a fiadora AA quanto a totalidade da divida não apenas quanto, às prestações vencidas e não pagas, dando-lhe conhecimento do incumprimento do contrato.

36. Como tal, resulta que a perda do benefício do prazo de pagamento em relação à fiadora AA emanou da interpelação desta nesse sentido, isto é, em função de interpelação da fiadora, por parte da exequente, no sentido de assegurar o pagamento das prestações vencidas e não pagas pelo devedor. Deste modo, operou relativamente à fiadora o vencimento imediato e antecipado da totalidade da divida resultante do contrato de mútuo.

37. A jurisprudência é, neste sentido, praticamente maioritária, considerando que a totalidade da divida se vence relativamente ao fiador perante a respetiva interpelação: "Exceto se existir acordo em contrário, a falta de realização de uma das prestações, quando a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, não dispensa a interpelação do devedor (por hipótese do fiador) para desencadear o vencimento imediato das prestações vincendas." - Acórdão do Tribunal da Relação … de 26 de janeiro de 2016; "Tornada exigível a totalidade das prestações acordadas relativamente ao devedor, por meio do mecanismo previsto no artigo 781° CC, a perda do benefício do prazo só será oponível ao fiador se este tiver sido previamente informado da interpelação do devedor." Acórdão do Tribunal da Relação de … de 8 de novembro de 2016.

38. Por todo o exposto, somos do entendimento que através da interpelação da fiadora AA, verificou-se o vencimento imediato da totalidade da divida resultante do contrato de mútuo peticionado nos presentes autos.

39. A Exequente BB, S.A.. procedeu à interpelação admonitória da Executada AA, concedendo-lhe o prazo de 5 dias para regularizar a divida, sob pena de instauração de ação judicial para a cobrança da totalidade da divida.

40. Decorrido o prazo concedido, sem se ter verificado a regularização solicitada, verificou-se o incumprimento definitivo do contrato de mútuo.

41. Ao contrário do que resulta do Acórdão recorrido, não estamos perante uma mera mora no cumprimento do contrato de mútuo, pois que, a mesma foi transformada em incumprimento definitivo através da interpelação datada de 25 de setembro de 2007.

42. Como tal, a Exequente BB, S.A.. alegou e provou que fez uma interpelação admonitória à Executada AA, transformando a mora em incumprimento definitivo.

43. Nos termos do nº1 do artigo 808.° do Código Civil, se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação. Como tal, desde então, a Exequente BB, S.A.. pode exigir a totalidade da dívida, como aliás o fez nos presentes autos.

44. Ao contrário do que resulta do Acórdão recorrido, a Exequente não tem apenas direito às prestações vencidas e não pagas, mas igualmente às prestações vincendas face à exigibilidade da totalidade da dívida.

6. Não foram apresentadas contra-alegações.


***


7. Como se sabe, o âmbito objetivo do recurso é definido pelas conclusões apresentadas (arts. 608.º, n.º2, 635.º, nº4 e 639º, do CPC), pelo que só abrange as questões aí contidas.[2]

Por sua vez – como vem sendo repetidamente afirmado – os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação do tribunal que proferiu a decisão impugnada, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal a quo.

Sendo assim, a única questão de que cumpre conhecer consiste em saber se a embargante, enquanto fiadora, é responsável pelo pagamento da totalidade da quantia exequenda.



***


II – Fundamentação de facto


8. As instâncias deram como provado que:

1. Em 08/08/1996, a exequente celebrou com os executados CC e DD e com os executados EE e esposa AA uma escritura pública na qual a primeira declarou emprestar aos segundos o montante de 10.000 contos, que os segundos se obrigaram a restituir à exequente nos termos melhor descritos no documento junto a fls. 10 a 22 da execução, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

2. Os executados EE e esposa AA declararam na referida escritura “que se responsabilizam como fiadores e principais pagadores por tudo quanto venha a ser devido à BB credora em consequência do empréstimo aqui titulado dando, desde já, o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro e bem assim às alterações de prazo ou moratórias que venham a ser convencionadas entre a credora e a parte devedora e aceitando que a estipulação relativa ao extrato da conta e aos documentos de débito seja também aplicável à fiança”.

3. Em 05/02/2001, a exequente celebrou com os executados CC e DD o acordo de alteração ao contrato referido em 1º, nomeadamente quanto a “TAXA DE JURO”, “INTRODUÇÃO DO EURO COMO UNIDADE MONETÁRIA” e “AMORTIZAÇÃO ANTECIPADA”, tudo conforme documento junto aos autos a fls. 49, que aqui se dá por reproduzido.

4. Os co executados CC e DD desde, pelo menos, 08/02/2007, não procederam ao pagamento de diversas amortizações vencidas e demais encargos associados ao referido acordo.

5. A exequente enviou à embargante a carta junta a fls. 22 que aqui se dá por integralmente reproduzida, que em suma concede à embargante o prazo de 5 dias para proceder ao pagamento da quantia em dívida, findo o qual procederá à instauração de processo judicial.

6. A embargada recebeu a carta referida em 4.


III – Fundamentação de direito

9. Da perda do benefício do prazo

Na revista, a embargada/exequente veio reafirmar a tese de que a embargante/executada renunciou à «perda do benefício do prazo», pelo que, na execução, pode exigir-lhe o pagamento antecipado da totalidade das prestações estabelecidas no contrato de mútuo, em que interveio como fiadora.

O acórdão recorrido, porém, entendeu que “não obstante a interpelação dos fiadores para cumprir, a simples mora no pagamento das prestações por parte dos mutuários não implicou o vencimento imediato das restantes prestações relativamente àqueles. Tal só aconteceria se os fiadores tivessem renunciado ao benefício do prazo, o que não aconteceu.”. E que: “a simples declaração do fiador de que se constituiu principal pagador das obrigações emergentes do contrato de mútuo para o mutuário (…) significa tão só que o fiador se vinculou afastando convencionalmente o beneficio da excussão prévia (…), o que é bem diferente do beneficio do prazo.”.

Como veremos, a Relação decidiu acertadamente.

Na verdade:

Segundo tem sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência[3], o art. 781º, do CC, ao determinar o vencimento imediato das restantes prestações, deve ser interpretado no sentido de que o inadimplemento do devedor permite ao credor exigir a satisfação daquelas prestações, e não que o não pagamento de uma das prestações no prazo acordado, determina, só por si, a mora do devedor quanto ao cumprimento das demais.

Nesta conformidade, o estatuído no art. 781º, do CC não dispensa a interpelação do devedor, caso o credor pretenda obter o pagamento antecipado das prestações, cujo prazo ainda não se vencera.

No caso em apreço, a exequente, perante a falta de cumprimento de algumas prestações parcelares, no prazo previsto no contrato de mútuo, considerou vencidas todas as prestações e interpelou os mutuários e os fiadores para procederem ao pagamento imediato da totalidade da dívida.

Esqueceu, porém, que, nos termos previstos no art. 782.º do CC, “a perda do benefício do prazo não se estende aos coobrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia.”.

Como sublinha Pires de Lima e Antunes Varela, “a perda do benefício do prazo não afecta terceiros que tenham garantido pessoalmente o cumprimento da obrigação. A lei não distingue entre garantias pessoais e reais. É aplicável a disposição, portanto, não só ao fiador, como a terceiros que tenham constituído uma hipoteca, um penhor, ou uma consignação de rendimentos. Qualquer destas garantias só pode ser posta a funcionar depois de atingido o momento em que a obrigação normalmente se venceria.”[4].

Sendo assim, de acordo com o expresso no art. 782º, do CC, o fiador, “se acionado pelo credor pode opor a excepção de inexigibilidade do crédito (fidejussório), na medida em que a pretensão “exceda” quantitativamente a medida das prestações resultantes do “calendário” estabelecido. É uma clara medida de proteção do fiador (e de outros coobrigados ou garantes) que corporiza uma excepção à acessoriedade da fiança e que conduz a uma solução equilibrada: se o credor pretende obter logo, uma vez provocado o vencimento da obrigação, a totalidade do seu crédito, terá de o exigir do devedor (…); se, ao invés, optar por exigir sucessivamente as prestações, de acordo com o “calendário” traçado, tem à sua “disposição”, para cada uma delas, os patrimónios do devedor principal e do fiador.”[5].

O regime do art. 782º não é, contudo, imperativo, podendo, o fiador, renunciar ao benefício ali concedido.[6].

É, no entanto, “essencial, uma vez que se trata de cláusula que agrava a sua responsabilidade relativamente ao regime legal supletivo, que a renúncia do fiador à excepção que resulta do art. 782º seja expressa e obedeça às exigências de forma exigidas para a validade da declaração fidejussória.”[7].

A respeito da interpretação da declaração fidejussória, importa, aliás, ter presente que “o facto de a fiança ser um negócio de risco, determina a necessidade de a declaração tendente à prestação de fiança dever ser interpretada de forma estrita. Na dúvida sobre o sentido da declaração, não será diretamente relevante o critério subsidiário do art. 237º CC – dicotomizado entre os negócios gratituitos e os onerosos – mas antes o critério do carácter menos gravoso para o declarante.

(…).  Em resumo: in dúbio pro fideiussione.”[8].


Ora, no caso dos autos, atendendo aos termos contratuais, bem como à demais factualidade dada como provada (v.g. pontos 1 e 2, da fundamentação de facto), é patente não ter sido excluída a aplicação à fiadora, ora embargante, do regime previsto no artigo 782º CC.


Efetivamente, a declaração da fiadora no sentido de se constituir como principal pagadora, apenas conduz a que responda pela dívida em solidariedade com o devedor principal (cf. arts. 638º e         640º, CC), sendo absolutamente inidónea para afastar a regra contida no art. 782º, alusiva à perda do benefício do prazo.


Por outro lado, a interpelação da fiadora visando o cumprimento da totalidade das prestações resultantes do “calendário” estabelecido no contrato apenas relevaria, caso tivesse sido afastado expressamente o disposto no art. 782º, do CC, o que, in casu, como vimos, não se verifica.


É, portanto, de concluir que não assiste à exequente o direito a exigir da executada/embargante o pagamento da totalidade das prestações “em dívida”, mas apenas das já vencidas e não pagas até à data da instauração da execução, conforme se decidiu no acórdão recorrido.

Improcede, pois, o recurso.



***


IV – Decisão


10. Nestes termos, negando provimento ao recurso, acorda-se em confirmar o acórdão recorrido.


Custas pela recorrente.


Lisboa, 25 de Outubro de 2018


Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (Relatora)

José Sousa Lameira

Hélder Almeida

________

[1] Por decisão de fls. 9-19, transitada em julgado, foi indeferida a requerida suspensão.
[2] Para além daquelas que devam ser conhecidas oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), o STJ conhece de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações de recurso, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra ou outras (arts. 608.º, n.º 2, 635.º e 639.º, n.º 1, e 679º, do mesmo diploma), sendo de ter presente que, para este efeito, as «questões» a conhecer não se confundem com os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, aos quais o tribunal o tribunal não se encontra sujeito (art. 5.º, n.º 3, também do CPC).
[3] Cf. Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, II, pág. 31; A. Varela, Das Obrigações em Geral, II, 6ª edição, pág. 53; Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 8ªª ed., 941; Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, I, pág. 193; Lobo Xavier, Venda a Prestações, in RDES XXI, págs. 199-266; em sentido contrário, opinando tratar-se de «vencimento antecipado», Galvão Telles, Direito das Obrigações, págs. 200 e ss.. Na jurisprudência, entre muitos, pode consultar-se o ac. do STJ de 25.5.2017, proc. 1244/15, relatado pelo Juiz Conselheiro Olindo Geraldes.
[4] Ob. cit., pág. 25.
[5] Cf. Januário da Costa Gomes, Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina, 2000, págs. 619-620.
[6] Cf., neste sentido, entre outros, o acórdão do STJ, proferido em 12.7.2018, proc. 10180/15, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro Hélder Almeida, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Cf. Januário Costa Gomes, ob. cit. pág. 620.
[8] Cf. Januário Costa Gomes, ob. cit, págs. 744-745.