Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | RICARDO COSTA | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA RECURSO DE REVISTA ADMISSIBILIDADE DE RECURSO ALÇADA VALOR DA AÇÃO CASO JULGADO FORMAL PRESSUPOSTOS ACESSO À JUSTIÇA TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA PRINCÍPIO DA IGUALDADE INCONSTITUCIONALIDADE | ||
Data do Acordão: | 07/12/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA (COMÉRCIO) | ||
Decisão: | NÃO SE CONHECE DO OBJECTO DO RECURSO. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO. | ||
Sumário : | I- O artigo 14º, 1, do CIRE estabelece um regime atípico e restrito de revista para o STJ, que, na apreciação da respectiva admissibilidade, não prescinde da verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade das decisões judiciais, desde logo o que respeita ao valor da causa em face da alçada da Relação (arts. 629º, 1, CPC, 17º, 1, CIRE); não sendo superior à alçada da Relação (como tribunal recorrido) o valor fixado na sentença (art. 306º, 1 e 2, CPC), mesmo que com natureza provisória, constitutivo de caso julgado formal (art. 620º, 1, CPC) por falta de impugnação tempestiva em recurso próprio (art. 644º, 1, a), CPC), não pode ser manifestamente admitida e conhecida a revista. II- A fixação do valor da causa nos termos atribuídos pelo art. 306º, 1 e 2, do CPC, sendo decisão de pendor incidental, uma vez transitada em julgado, não admite depois qualquer alteração do consolidado endoprocessualmente, a não ser que se verifiquem, a título excepcional, circunstâncias legais de correcção (nos termos do art. 299º, 4, do CPC, que abrange a hipótese da 2ª parte do art. 15º do CIRE) e seja proferido novo despacho (com consequências possíveis, entre outras, na admissibilidade de recurso ordinário). Na ausência do exercício desse poder-dever de correcção – inclusivamente, depois de proferida a sentença, através de despacho judicial autónomo de acertamento do valor da causa – terá sempre o recurso para tribunal superior que ser avaliado na sua admissibilidade à luz do valor da causa que transitou e vale nesse momento, de acordo com os termos do art. 296º, 1 e 2, do CPC. III- O art. 301º do CIRE, enquanto norma que fornece critérios para a fixação, em geral (na sua segunda parte, em associação com o art. 15º do CIRE) e em especial (nos casos da sua primeira parte, tendo ainda como critério supletivo o indicado pelo art. 15º do CIRE), do valor processual da causa, como tal e por ser tal, releva e concorre para a fixação do valor tributário em sede de custas, de acordo com os princípios vazados nos arts. 296º, 3, do CPC e 11º do RCP (é o valor do processo que determina o valor tributário e não o inverso e é a esse valor do processo que o juiz se encontra vinculado no poder-dever de fixação demandado pela lei). | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 4332/21.6T8CBR-B.C1.S1 Revista – Tribunal recorrido: Relação ..., ... Secção Acordam em conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I) RELATÓRIO 1. «Promontoria Indian Designated Activity Company», sociedade comercial constituída de acordo com a lei irlandesa, requereu a insolvência de AA e BB, casados no regime da comunhão de adquiridos, assim como a abertura do incidente de qualificação dessa mesma insolvência. 2. Apresentados os articulados pertinentes e realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 21/11/2021, pelo Juiz ... do Juízo de Comércio ..., sentença em que foi decretada a declaração de insolvência dos Requeridos e demais efeitos. Foi então fixado provisoriamente o valor da causa em € 30.000, “sendo o mesmo oportunamente corrigido para o valor que vier a ser atribuído ao ativo no inventário a que se refere o art. 153º (art. 301.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas)”.
5. Foi proferido despacho no âmbito e para os efeitos previstos no art. 655º, 1, ex vi art. 679º, do CPC, e 17º, 1, do CIRE. Tal mereceu pronúncia dos Requeridos e Recorrentes, que alegaram ser aplicável à revista o regime do art. 629º, 2, d), do CPC e, por outro lado, apresentar o valor fixado à causa uma natureza provisória, o que, a ser causa de inadmissibilidade da revista sem que se fixasse o valor definitivo da acção, levaria a uma ofensa do direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, assim como do princípio da igualdade, tutelados pela CRP. Mais alegaram que a fixação do valor da acção proferida na sentença é apenas para efeitos de custas, uma vez referido o art. 301º do CIRE, e se deveria atender antes ao valor indicado no requerimento inicial do processo, pelo que caberia agora ordenar a baixa do processo para se fixar em definitivo o valor da acção para efeitos processuais.
Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir em conferência, enfrentando como questão prévia a admissibilidade do recurso.
II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS
Questão prévia da admissibilidade do recurso
6. A decisão proferida em 1.ª instância e reapreciada pela Relação, sendo tramitada endogenamente nos próprios autos de insolvência, rege-se pelo especial regime de recursos previsto no artigo 14º, 1, do CIRE, que configura uma revista atípica e restrita e, por isso, delimitador da susceptibilidade da revista para o STJ do acórdão recorrido. Assim, a admissibilidade desta depende, em especial, de ser invocada, como ónus processual do recorrente, e assente uma oposição de julgados com um (e um só) outro acórdão do STJ ou das Relações, com vista a inscrever tal conflito jurisprudencial como condição de acesso ao STJ. Ademais, este regime de revista tem natureza esgotante e excludente no seu âmbito de aplicação, afastando as impugnações recursivas baseadas nas situações de revista extraordinária (art. 629º, 2, CPC) e de revista excepcional (art. 672º, 1, CPC)[1]. Assim, encurtando razões – atinentes à distinção entre os fundamentos dessas duas revistas e à ilegitimidade de a pronúncia espoletada pelo art. 655º promover o alargamento do recurso para outros fundamentos recursivos para além dos tempestivamente apresentados nas alegações de revista, como pretenderam os Recorrentes –, não poderia o acórdão recorrido, abrangido pelo art. 14º, 1, do CIRE, subir ao STJ para apreciação tendo por base a al. d) do art. 629º, 2, do CPC.
7. Como tem sido reconhecido e decidido sem reservas nesta 6.ª Secção do STJ, com competência específica para as causas de comércio previstas no art. 128º da LOSJ, a revista admitida pelo art. 14º, 1, do CIRE não prescinde, na avaliação da sua admissibilidade, do preenchimento dos requisitos gerais estatuídos no art. 629º, 1, do CPC, demandado pela remissão feita pelo art. 17º, 1, do CIRE: «O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal (…)». Este preceito impõe que, enquanto condição geral de recorribilidade das decisões judiciais, a admissibilidade do recurso ordinário esteja dependente da verificação cumulativa desses dois pressupostos jurídico-processuais: (i) o valor da causa tem de exceder a alçada do tribunal de que se recorre; (ii) a decisão impugnada tem de ser desfavorável para o recorrente em valor também superior a metade da alçada do tribunal que decretou a decisão que se impugna. Tal significa que os requisitos previstos no art. 629º, 1, do CPC são cumulativos e indissociáveis (em rigor, um duplo requisito) e a observância do primeiro deles – “valor da causa” – precisa da averiguação (se possível: 2.ª parte do preceito) do segundo – “valor da sucumbência” – para, ainda que a título complementar, completar o requisito de admissibilidade. 10. Esta aplicação do regime legal não está de todo ferida pelo alegado desrespeito dos arts. 13º, 20º e 202º da CRP. Na verdade, a inadmissibilidade do recurso por efeito da opção legal de condicionar as pretensões recursivas em razão do valor da alçada dos tribunais não representa ablação ou diminuição das garantias de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, nos termos consagrados no artigo 20.º da CRP (em relação com o art. 202º, 2). E, ademais, não afecta, como regra, o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado no art. 13º da CRP, mesmo na regulamentação de processos como o da insolvência, com princípios e interesses de tutela específica. Como tem sido acentuado na jurisprudência do TC e deste STJ, é consensualmente aceite que o legislador tem um amplo poder de conformação na concreta modelação processual, neste caso aplicado à disciplina recursiva para o STJ, desde que não se estabeleçam mecanismos arbitrários ou desproporcionados de compressão ou negação do direito à prática dos actos predispostos à impugnação recursiva. No caso dos autos, finalizado com a rejeição de recurso assim sancionada por lei pela não verificação dos requisitos gerais de admissibilidade da revista, não se configura uma situação de negação de acesso à justiça que afronte os princípios basilares de um Estado de Direito (particularmente o de «respeito e garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais», tal como, desde logo, prescrito no art. 2º da CRP), uma vez que cabe ao julgador rejeitar o conhecimento do objecto do recurso de revista através da sindicação preliminar do art. 629º, 1, do CPC, sem que dessa aplicação, antecipadamente conhecida e vigente, resulte um arbítrio intolerável e um afastamento casuístico que afrontaria a equidade e a efectividade da tutela jurisdicional. Quando, ademais e antes disso, estariam ao dispor as partes os mecanismos de impugnação que permitiriam reagir contra a decisão judicial que, uma vez caso julgado formal, agora se afigura com obstáculo insuperável do acesso dos autos à jurisdição do STJ.
III) DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso, atenta a sua manifesta inadmissibilidade.
Custas pelos Recorrentes, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
STJ/Lisboa, 12 de Julho de 2022
Ricardo Costa (Relator) António Barateiro Martins Luís Espírito Santo
SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).
|