Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
987/19.0T8BRR.L2.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: EMPRESA PÚBLICA
SETOR EMPRESARIAL DO ESTADO
REGULARIZAÇÃO
REGULAMENTO INTERNO
COMISSÃO DE SERVIÇO
Data do Acordão: 06/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário :

I- O Programa de Regularização Extraordinária de Vínculos Precários na Administração Pública e setor empresarial do Estado (PREVPAP) não cria vínculos laborais, antes regulariza situações (precárias) preexistentes. 

II- O Regulamento interno constitui, hoje, um importante instrumento, na vida das empresas, sobre a organização e disciplina no trabalho.

III- Tratando-se de uma regularização, para efeitos de reclassificação no âmbito da integração da Autora nos quadros da Ré, uma entidade pública empresarial, não constitui impedimento para ser atribuído o nível previsto no art. 18.º do Regulamento Interno de Carreiras Profissionais (RICP) o facto daquela desempenhar funções no estrangeiro sem ser no regime de comissão de serviço.

Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 987/19.0T8BRR.L2.S1, da 4.ª S.

(Revista)

Acordam, em Conferência, na Secção Social do Supremo Tribunal

de Justiça

I. Relatório

1. A Autora AA intentou, no Juízo do Trabalho de Almada, da comarca de Lisboa, ação declarativa de condenação, emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma de processo comum, contra a Agência para o Investimento e Comércio Externo Português, E.P.E., solicitando:

 1 - Ser reconhecido à A. o direito a auferir uma retribuição mensal base na importância de € 2.340,12 (dois mil trezentos e quarenta euros e doze cêntimos), e respetivo subsídio de férias e subsídio de natal, e bem assim, proceder-se à retificação do contrato de trabalho nessa conformidade, e ser a R. condenada a classificar a. com a categoria profissional compatível com a sua experiência profissional e conhecimentos necessários ao desempenho da função, correspondente a ... (subnível ...);

2 – Ser a R. condenada no pagamento da quantia de € 6.248,96 (seis mil duzentos e quarenta e oito euros e noventa e seis cêntimos), a título das diferenças salariais desde o mês de Agosto de 2018 até à presente data, acrescida de juros à taxa de 4% até integral pagamento.

3 – Ser a R. condenada no pagamento de custas do processo, procuradoria e nos demais encargos.

Caso assim se não entenda, e porque aquando da inclusão no Estado através do procedimento de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários da Administração Pública, a A. passou a auferir a importância de € 1.755,12, deverá:

4 – Ser reconhecido à A. o direito a auferir, pelo menos, o correspondente à retribuição mensal base na importância de € 1.755,12 (mil setecentos e cinquenta e cinco euros e doze cêntimos), que lhe foi paga no mês de Agosto de 2018, e declarada a violação do princípio da irredutibilidade salarial praticado pela R. a partir daquela data em diante.

5 – Ser a R. condenada no pagamento da quantia de € 1.568,96 (mil quinhentos e sessenta e oito euros e noventa e seis cêntimos), a título das diferenças salariais desde o mês de Agosto de 2018 até à presente data, acrescida de juros à taxa de 4% até integral pagamento.

6 – Ser a R. condenada no pagamento de custas do processo, procuradoria e nos demais encargos.

A Ré contestou, pedindo a sua absolvição.

Foi proferido despacho saneador e teve lugar a audiência de julgamento, vindo, na sequência, a ser proferida sentença pelo referido Juízo de Trabalho (J1), em 15/01/2021, que julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu a Ré dos pedidos formulados pela Autora, com custas a cargo desta.

2. Inconformada, a Autora apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, vindo, em 15/12/2021, a ser proferido acórdão que julgou o recurso interposto parcialmente procedente e, em consequência, revogou-se a sentença recorrida e condenou-se a Ré a reclassificar a Autora na categoria profissional de ... (subnível ...) a partir de 8 de setembro do 2018, a que corresponde a retribuição base de euros €2.300,00, acrescida dos respetivos subsídios de férias e de Natal. Mais se condenou a Ré a pagar à Autora as diferenças salariais devidas desde agosto de 2018 até à data da propositura da ação, no valor de €6096,41 (seis mil e noventa e seis euros e quarenta e um cêntimos), valor a que acrescem os correspondentes juros de mora à taxa legal de 4%.           

3. Irresignada, decidiu, então, recorrer a Ré para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando, na sua alegação, as seguintes Conclusões, que passamos a transcrever:

1. O presente recurso é interposto do Acórdão do TRL que revogou a decisão do Tribunal do Trabalho de Almada, e que condenou a AICEP, a reclassificar a Autora na categoria de ... (subnível ...) a partir de 8 de setembro de 2018, a que corresponde a retribuição base de 2 300,00€, com os respetivos subsídios de férias e de Natal, a que acresce, a condenação da AICEP a pagar à Autora as diferenças salariais devidas no valor de 6 096,41€, com os respetivos juros de mora.

2. Salvo o devido e merecido respeito por melhor opinião, entende a AICEP que no douto Acórdão se cometeram erros na aplicação da matéria de direito, impondo-se por isso uma solução totalmente inversa à decidida, competindo, assim, a este Supremo Tribunal ad quem usar dos seus poderes e deveres funcionais de censura.

3. Com efeito, entende a AICEP, que no caso em questão, é aplicável, - exclusivamente - a Lei de PREVPAP, e por via daquela, a AICEP contratou com a Autora, a partir de 01-08-2028, um contrato de trabalho sem termo.

4. E como opina a AICEP, desde a Contestação, - com a concordância da sentença de 1ª instância, e com a concordância do douto Acórdão do Tribunal da Relação - aplica-se a este caso, o artigo nº 14 nº 3 da lei PREVPAP.

5. Nesta disposição, trata-se contudo da distinção legal entre a regularização de quem está vinculado a um contrato de trabalho precário, - e a um contrato de prestação de serviços - como sucedeu no caso dos autos.

6. Sucede que, o douto Acórdão, apesar de concordar parcialmente com o conteúdo da sentença de 1ª instância, decidiu que, já assim não sucede aquando do regresso da Autora a Portugal em 8 de setembro de 2018, com efeito, nos termos do artigo 18º nº 4 do RICP, deveria ter sido reenquadrada, nos níveis ... ou E..., respeitante a ... ou a técnico especialista, com a remuneração de 2 300,00€.

7. A AICEP discorda desta decisão, e considera que o Acórdão ao aplicar indevidamente o artigo nº 18 do RICP, com os fundamentos que expõe, é um Acórdão nulo, ao infringir o artigo nº 615º alínea c) do CPC.

8. No caso concreto, o douto Acórdão decidiu que passam a constar dos factos provados, os seguintes factos: (i) A Ré emitiu os Regulamentos internos com os dizeres contantes de fls. 17 verso a 26, e (ii) Do Direito da Autora à remuneração e à reclassificação profissional que refere.

9. Com efeito, nos termos da disposição conjugada dos artigos nºs 607° nº 3 e nº 4 com os artigos nº 615 nº 1 alínea c) - a contrário sensu - e d), todos do C.P.C., a decisão a proferir tem de assentar na factualidade tida por demonstrada nos autos, não sendo lícito ao Tribunal julgar a causa com fundamentos diversos dos oferecidos em tal contexto.

10. A AICEP considera que dos factos provados, não devem constar aqueles factos acrescentados pelo douto Acórdão, - na verdade, tais factos não se aplicam ao caso concreto.

11. A AICEP não refere, no caso em questão, a aplicação do RICP da AICEP, apenas a AICEP ajustou, em termos gerais, a remuneração da AUTORA de 1 559,00€, - o equivalente à remuneração mínima mensal garantida.

12. Conforme consta dos factos provados na sentença de 1ª instância - o Conselho de Administração na deliberação de 2 de outubro de 2019 decidiu, no que diz respeito à Autora, que “o valor da remuneração é a que, do total da contraprestação prevista nos contratos ao abrigo dos quais prestavam actividades à AICEP, corresponde à remuneração base, excluindo a parte equivalente a abonos para apoio à prestação de actividade na ....”

13. A lei é clara e inequívoca ao estabelecer no nº 3 do artigo 14º da lei de PREVPAP que, nas situações a que não exista vínculo laboral preexistente, as retribuições serão determinadas de acordo com os critérios gerais, particularmente a retribuição mínima mensal garantida e as tabelas salariais das convenções coletivas aplicáveis, e foi isso que sucedeu nos autos.

14. Ora, a AICEP entende que não se aplica à Autora, o RICP (artigo nº 18º nº 4), no que diz respeito à remuneração, mas como é normal, o Conselho de Administração da AICEP, em termos gerais, decidiu dessa forma em termos análogos,

15. À Autora apenas se aplica, a remuneração prevista na lei de PREVPAP (artigo nº 14 nº 3) e não, exclusivamente, os Regulamentos da AICEP (em relação, ao desempenho de funções no estrangeiro).

16. A regularização das situações de enquadramento contratual de vínculos estabelecidos com empresas do sector empresarial do Estado, - AICEP - só pode ser obtida através da lei do PREVPAP, sendo precisamente para essas situações que tal programa foi estabelecido.

17. E onde a lei não distingue não compete ao intérprete fazê-lo, sendo certo que na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados - artigo 9º, nº 3 do Código Civil.

18. Os artigos do RICP, e Regulamento AICEP Rede (RAR) apenas se referem aos trabalhadores que não sejam admitidos pela lei do PREVPAP.

19. O Artigo nº 3 do RICP: “O presente Regulamento aplica-se a todos os colaboradores ao serviço da AICEP, em todo o território nacional e representação externas, salvo aos contratados locais”,

20. Quanto ao desempenho de funções no estrangeiro, o artigo 18º do RICP prescreve o seguinte:

1. O desempenho de funções no estrangeiro é realizado em regime de comissão de serviço, por colaboradores da AICEP integrados na carreira técnica, mediante concurso interno ou convite da Comissão Executiva, ou por colaboradores externos recrutados especificamente para esse fim.

(…)

3. No regresso a Portugal, os colaboradores são reenquadrados, por decisão da Comissão Executiva, nos níveis ... ou E....

21. Ora, o Artigo 2º do Regulamento da Rede AR refere o seguinte:

1. O presente Regulamento é aplicável a todo o pessoal que desempenha funções nos serviços da AICEP no estrangeiro, o qual pode estar em regime de comissão de serviço ou de contratação local.

(…)

22. O Artigos nº 9 RAR refere o seguinte:

O pessoal dos serviços no estrangeiro é nomeado em comissão de serviço ou recrutado localmente.

23. O Artigo nº 10º RAR refere o seguinte:

1. Considera-se trabalhador em comissão de serviço, aquele que é destacado temporariamente para os serviços no estrangeiro.

(…)

24. O RICP e RAR da AICEP, prescrevem as obrigações e direitos dos trabalhadores que tenham um contrato de trabalho em comissão de serviço, ou tenham um contrato de trabalho local (a que se aplica as leis laborais desse país) e não colaboradores que tenham um contrato de prestação de serviços, - como foi o caso da Autora (admitida via PREVPAP).

(Factos provados: 2 a 5)

25. O douto Acórdão entendeu que se devia aplicar à Autora, o artigo nº 18º do RICP, - o que a AICEP discorda totalmente, e entende que não há qualquer possibilidade de ser admitido aquela regra - na verdade, na lei de PREVPAP, não é referido contrato de trabalho em comissão de serviço (veja-se o artigo nº 161º até ao nº 163º do Código de Trabalho).

26. Como já se disse, a Autora não tinha, como é evidente, um contrato de trabalho em comissão de serviço, com os requisitos daquele contrato, e por essa razão, a AICEP nunca ía aplicar aquela regra, - a Autora nunca deveria ter uma remuneração de 2 300, 00€ (...), aliás, esta remuneração é a remuneração de um Director da AICEP, na sede.

27. Na verdade, está provado de que, “A trabalhadora ficou em ..., em Agosto e setembro de 2018, para dar apoio à F... - Feira ... (27/08 a 2/09) e regressou a Portugal no dia 8 de Setembro de 2018; Aqueles recibos de Agosto a Outubro de 2018, tem um abono de representação.”

28. Está provado, - com o acordo da Autora - que a AICEP indicou que a Autora devia exercer funções, um mês (agosto 2018) e sete dias (setembro de 2018) em ..., para acompanhar a ..., ora, do ponto de vista da AICEP, a Autora não estava “deslocada” em ..., não se aplicam os requisitos de deslocação, era apenas provisoriamente, em um mês, e sete dias.

29. E no contrato de trabalho que a AICEP juntou na Contestação, é referido que a trabalhadora auferirá a retribuição iliquida de 1 559,00€, a que corresponde à carreira de ...,

30. A AICEP, enquanto empresa do setor público empresarial, - entidade reclassificada – está sujeita ao regime de direito privado, e está obrigada a observar os princípios constitucionais respeitantes à administração pública, nomeadamente a prossecução do interesse público e os princípios da igualdade, imparcialidade, justiça e proporcionalidade.

31. A lei de PREVPAP permitiu à AICEP celebrar contratos de trabalho sem observância do procedimento imparcial e escrutinável de seleção de candidatos a cada posto de trabalho que pretenda preencher, desde que observados os limites e requisitos ali vertidos.

32. O douto Acórdão não utiliza qualquer fundamento para esta decisão, e não se entende porque é que se aplica, nos termos do nº 3 do artigo 14ª da lei de PREVAPAP: “(…) as retribuições serão determinadas de acordo com os critérios gerais, particularmente a retribuição mínima mensal garantida e as tabelas salarias das convenções coletivas aplicáveis” .

33. A AICEP não tem as convenções coletivas supra referidas, e o douto Acórdão interpretou esta regra em sentido amplo, e desadequado, por forma a incluir os Regulamentos da AICEP, que, no caso em concreto, não se aplicam, a Autora não estava “deslocada” em um mês e sete dias.

34. Sempre se dirá que, os “critérios gerais” são os previstos no Código do Trabalho, legislação a que a AICEP está sujeita, segundo a qual a retribuição é toda a prestação que o trabalhador recebe como contrapartida do trabalho, conforme o acordado, a lei e os usos, abrangendo-se todas as retribuições que sejam regulares e periódicas - artigo nº 258º Código de Trabalho.

35. Sendo certo que, a formalização do vínculo, não representa a criação de uma nova relação contratual, mas um mero reconhecimento da existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado por se tratar de necessidades que já reconheceram como permanentes que ao caso concreto se aplicam em Portugal, e não em ..., - e as retribuições são diferentes em Portugal e em ....

36. Tratando-se do reconhecimento de uma situação pré-existente, há que retirar as necessárias consequências de que o montante recebido pela autora - que se prova que as recebia em circunstâncias extraordinárias - a Autora não estava em Portugal, era a gerente de uma empresa que prestava serviço à Delegação da AICEP em ....

37. Conforme o supra referido, a (não) aplicação do 14º nº 3 da lei da PREVPAP, e aplicação do artigo 18º do RICP da AICEP, o douto Acórdão, na sua decisão é ferido de nulidade, dado que os fundamentos invocados pelo douto Tribunal conduzem logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.

38. No referido Acórdão, há aqui uma oposição de fundamentos, aplica-se (ou não) o nº 3 do Artigo nº 14º da Lei da PREVPAP, ou, em simultâneo (?) aplica-se um Regulamento da AICEP, - o RICP.

39. O douto Acórdão não explicitou acerca dos motivos pelos quais decidiu em determinado sentido, dirimindo determinado litígio que lhe foi colocado, de forma que os destinatários possam entender as razões de decisão proferida e, caso o entendam, sindicá-la e reagir contra a mesma.

40. A Autora tem uma remuneração nas mesmas condições que os colaboradores (que anteriormente tinham um contrato de prestação de serviços) que na mesma data foram admitidos (39 trabalhadores) por via da lei do PREVPAP,

41. Importa destacar que, a remuneração da Autora vai criar um problema de grave desigualdade face à remuneração praticados nos trabalhadores admitidos por lei de PREVPAP, e pelos outros na sede da AICEP.

42. De resto, a alegação do posicionamento correto da autora e a sua comparação concreta com outros trabalhadores que se lhe assemelhavam conta dos presentes autos, até porque a AICEP admite que utilizou o critério de posicionar Autora ao nível de ...: a receber uma remuneração de 1 568,96€.

43. Não tendo a retribuição da Autora sido aferida pela própria AICEP com base na complexidade, funções e antiguidade da Autora, limitando-se a AICEP a atribuir-lhe o nível retributivo que mais se aproximava da sua remuneração, isto é, a remuneração mínima mensal garantida.

44. Sobre os trabalhadores que foram admitidos via PREVPAP, só houve um trabalhador que impugnou a decisão de remuneração da AICEP, e o Tribunal da Relação de Lisboa não lhe deu razão (Proc. nº 27857/18.6T8LSB L.1- 4ª S).

45. Como afirma António Monteiro Fernandes, a atuação do direito do trabalho visa enquadrar, através de um sistema de limitações imperativas, o protagonismo do empregador na definição dos termos em que a relação de trabalho se vai desenvolver (In Direito do Trabalho, pág. 22).

46. O estatuto retributivo dos trabalhadores é o que resulta das normas de natureza imperativa que constam no Código do Trabalho e nos instrumentos de regulação coletiva do trabalho (artigo nº 1º e 3º do Código do Trabalho).

47. E, por outro lado, a AICEP tem de assegurar o princípio constitucional da igualdade entre os trabalhadores, artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, que significa tratar de modo igual o que é igual e de modo diferente o que não o é, tem de ser apreciado e aplicado com base em factos carreados nos autos.

48. No mais, o artigo nº 122º alínea d) do Código de Trabalho que estabelece o princípio de irredutibilidade da retribuição, no sentido de que esta não pode ser diminuída, salvo casos específicos previstos na lei, nas portarias de regulamentação do trabalho e nas convenções coletivas não impede esta circunstância e isto mesmo que se desconsiderasse o contrato de prestação de serviços por forma a o considerarmos como um contrato de trabalho uma vez que tal redução não deixa de estar prevista na lei.

49. Contudo, e no que respeita à alegada diminuição de retribuição ocorrida com a Autora entre agosto e outubro de 2018, sempre teremos que salientar que a irredutibilidade da retribuição não significa que não possam diminuir ou extinguir-se certas prestações retributivas complementares, tal como previsto no Acórdão do Tribunal de Justiça de 01-05-2009 (in www.dgsi.pt).

50. Conforme resulta da sentença de primeira instância, a AICEP ilidiu a presunção contida no artigo nº 258 nº 3 do Código do Trabalho, demonstrando-se a natureza de tais prestações:

“presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador”.

51. A Autora foi admitida pela AICEP, por via da lei de PREVPAP, em 01-08-2018, e deverá auferir uma remuneração mensal de 1 568,96€, a retribuição de acordo com os critérios gerais, - a retribuição mínima mensal garantida - nos termos do nº 3 do Artigo 14º da lei de PREVPAP, e não se aplica o nº 18 do RICP da AICEP, quanto ao desempenho de funções no estrangeiro.

TERMOS EM QUE, e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser admitido o recurso apresentado pela AICEP, e serem julgadas totalmente procedentes as alegações de recurso apresentadas pela recorrente, e, em consequência, revogar-se a decisão recorrida.

Com o que se fará a devida e costumada JUSTIÇA!

A Autora respondeu à alegação da Ré, defendendo a manutenção do acórdão recorrido.

4. Por despacho de 25/02/2022, da Senhora Desembargadora Relatora, a revista foi admitida, com efeito devolutivo.

Por sua vez, foi confirmada, neste Tribunal, a admissão do recurso, por despacho de 16/03/2022.

5. A Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos e emitiu douto e desenvolvido parecer, em 19/04/2022, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Nenhuma das partes respondeu ao parecer do Ministério Público.

6. Realizada a Conferência, cumpre, agora, apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso

De acordo com o teor do acórdão recorrido e com o conteúdo das Conclusões apresentadas, está em causa, neste recurso, saber:

 - se o acórdão recorrido, ao aplicar o artigo 18.º do Regulamento Interno das Carreiras Profissionais (RICP) da Ré, é nulo nos termos do artigo 615.º, n.º 1 c), do C.P.C.;

 - se o Tribunal da Relação podia ter aditado aos factos assentes o facto “A Ré emitiu os Regulamentos internos com os dizeres contantes de fls. 17 verso a 26”, já que foi este o único facto efetivamente aditado; e

- se, para efeitos da reclassificação e remuneração da Autora no âmbito da sua integração nos quadros da Ré através do Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública (PREVPAP) aprovado pela Lei n.º 112/2017, de 29/12, é aplicável o Regulamento Interno das Carreiras Profissionais.

III. Fundamentação

1. Dos factos

Foram dados como provados os seguintes factos (Transcrição):

1. Em ... de 2013 a AICEP Portugal Global abriu concurso externo para contratação de um ... para o Centro de Negócios ....

2. No dia 30 de Julho de 2013, foi celebrado o contrato de prestação de serviços entre a Ré e a sociedade de direito moçambicano - SCHS – Gestão e Serviços, Sociedade Unipessoal, Lda - cujo capital era totalmente detido pela Autora, que era também a sua única gerente, com início dos seus efeitos a 1 de Agosto de 2013.

3. O contrato de prestação de serviços era prestado exclusivamente pela aqui Autora.

4. Em tal contrato estipulava-se uma retribuição mensal de USD 2.737,80 (valor bruto).

5. O valor auferido seria necessariamente sujeito a impostos.

6. Em 18 de Maio de 2018 a Autora foi informada pelo Dr. BB (...) da sua inclusão na lista homologada pelos membros do Governo ao Processo de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública.

7. Nessa comunicação consta “A antiguidade será reportada à data em que iniciou funções e a remuneração base manter-se-á no valor actual, tal como estabelece o diploma legal já mencionado.”

8. Foi nessa sequência, que a Autora passou desde 01 de Agosto de 2018 a manter com a Ré um vínculo de natureza laboral, mas com antiguidade reportada a 1 de Agosto de 2013.

9. Em vez de ser celebrado com a Autora um contrato de trabalho local, foi indicado à A. que a formalização seria através da outorga de um contrato de prestação de serviços, com o mensal de USD 2.737,80 por mês.

10. O valor anual foi mantido e aprovado pelo Conselho de Administração, no correspondente ao valor mensal de USD 2.737,80.

11. No âmbito do processo de regularização extraordinária de vínculos precários, foi a Autora informada da possibilidade de se efectivar tal regularização contratual.

12. A Ré passou a reconhecer a Autora com a categoria de “... (...)”, com um salário base de € 1.755,12.

13. Tendo sido pagos pela R. os salários de Agosto e de Setembro de 2018 com base naquela remuneração (€ 1.755,12).

14. No mês de Outubro de 2018, a Ré reduziu o valor do pagamento do salário à Autora para a importância de € 1.604,75.

15. E nos meses seguintes, e até à presente data, passou a Autora a auferir a quantia mensal bruta de € 1.559,00.

16. A Autora sempre lidou durante o período em que esteve em ..., directamente ao nível dos ... das empresas que procuravam o apoio do AICEP, assim como de representantes de diversos países ao nível governamental, como sejam ministros e membros do governo, uma vez que acompanhava missões oficiais.

17. Provado apenas que a Autora procedia ao acompanhamento de empresas multissectoriais de capitais portugueses com internacionalização em ...; prospecção de oportunidades comerciais em ...; divulgação de informação relevante; elaboração de relatórios de atividade da delegação; preparação e acompanhamento das participações em feiras, exposições e missões empresariais e institucionais no mercado.

18. Encontrando-se ao nível de ....

19. Em ... de 2013, quando a AICEP abriu um concurso externo para contratação de um ... para o Centro de Negócios ..., não se referia naquele anúncio, se era um contrato de trabalho ou outro género de contrato.

20. Nessa altura, era necessário a autorização do governo para que a AICEP contratasse um trabalhador.

21. A AICEP decidiu em reunião de 16 de Julho de 2013 que aquele contrato seria um contrato de prestação de serviços.

22. E, nos termos do supra contrato, a AICEP irá pagar à contratada, o valor mensal de USA 2.737,80 (dois mil setecentos e trinta e sete dólares e oitenta cêntimos).

23. A AICEP comunicou em 18 de Maio de 2018 à Autora que ser-lhe-ia “oportunamente comunicados, os termos contratuais que passarão a titular a relação laboral”.

24. Mais se acrescenta, que a antiguidade será repostada “à data em que iniciou funções e a remuneração base manter-se-á no valor actual, tal como estabelece o diploma legal já mencionado”.

25. O governo, representado pelo Ministro do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, em entrevista de 29 de junho de 2017, referiu que “não esta garantido que todos os precários de Estado cujo vínculo seja regularizado fiquem a ganhar o mesmo após a sua integração nos quadros, destacando que já um “conjunto de vantagens” mais amplo”.

26. Referiu ainda “estamos a colocar aos trabalhadores uma situação de mudança relevante do seu vínculo com o Estado que tem um conjunto de vantagens - do ponto de vista da estabilidade, dos 14 meses de remuneração, dos direitos sociais de protecção em várias eventualidades como a doença, a parental idade e a protecção na velhice - e tudo isso faz parte do que é oferecido aos trabalhadores que são colocados numa situação de vínculo duradouro”.

27. A deliberação da AICEP de 2 de Outubro de 2019 decidiu, no que diz respeito à Autora, que “o valor da remuneração é a que, do total da contraprestação prevista nos contratos ao abrigo dos quais prestavam actividades à AICEP, corresponde à remuneração base, excluindo a parte equivalente a abonos para apoio à prestação de actividade na ...”.

28. O contrato de trabalho da Autora inclui a retribuição mensal de € 1 559,00, o subsídio de almoço, e os subsídios de férias e de Natal, desde 1 de agosto de 2018.

29. A trabalhadora ficou em ..., em Agosto e Setembro de 2018, para dar apoio à F... - Feira ... (27/08 a 2/09), e regressou a Portugal no dia 8 de setembro de 2018.

30. Aqueles recibos de Agosto a Outubro de 2018, tem um abono de representação.

31. A Ré emitiu os Regulamentos internos com os dizeres constantes de fls. 17 verso a 26.

Por seu turno, não se provaram:

1. Após a Autora ter sido selecionada, e no momento da assinatura do contrato, a AICEP alterou as condições propostas quanto à formalização da contratação, e valor anual da retribuição.

2. Contudo, sucedeu que no momento da outorga do contrato, veio a ser apurado pelo Dr. CC – responsável pelo Centro de Negócios ... – que para um trabalhador estrangeiro, não existia, afinal, na ordem jurídica moçambicana, a figura de trabalhador independente.

3. Daqui resultou a imposição à A. por banda da AICEP, para que esta constituísse uma sociedade de direito moçambicano, através da qual seria emitida uma factura mensal contra o respectivo pagamento da retribuição à Autora.

4. A Autora ao longo da relação contratual, emitiu facturas exclusivamente à Ré.

5. A Autora auferiu exactamente sempre a mesma quantia ora referida, visto tratar-se de uma remuneração fixa mensal.

6. A Autora ao aderir ao PREVPAP sempre considerou que iria ser mantido o valor de remuneração mensal, acrescido dos subsídios de férias e Natal, de acordo com a legislação laboral.

7. Mantendo a mesma actividade desde que se encontra em Portugal, designadamente realizando a gestão de uma carteira de 800 empresas portuguesas multissectoriais com acompanhamento e suporte na internacionalização para todo o mundo; prospecção de oportunidades comerciais e respetiva divulgação de informação relevante; divulgação de feiras ou outras ações internacionais; divulgação e acompanhamento das empresas nos eventos organizados pelo AICEP em Portugal; visitas a empresas exportadoras com elaboração dos respetivos relatórios; acompanhamento de importadores internacionais em visitas a empresas portuguesas com vista à concretização de negócios.

2. Do direito

Começando pela nulidade invocada pela recorrente – art. 615.º n.º 1 c), do C.P.C. -, reportando-se os vícios referenciados no preceito em causa a vícios formais resultantes da forma ou estrutura lógica discursiva da sentença/decisão, não se vê em que medida é que se pode integrar, neste dispositivo, a aplicação do direito que a Recorrente considera ter sido errada.

Sempre se dirá que, atento o disposto no art.º 14.º n.º 3 da Lei n.º 112/2017[1], de 29/12, cuja aplicação a Recorrente concorda, justifica-se englobar “nos critérios gerais” referidos neste normativo o Regulamento interno da entidade patronal a que alude o art.º 99.º, do Código do Trabalho.

Nesta conformidade, não detetamos qualquer ambiguidade ou obscuridade, nem qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão.

Quanto à questão de ter sido aditado pelo Tribunal da Relação um novo facto, referente aos Regulamentos internos, são conhecidos os poderes limitados de cognição do Supremo Tribunal, nesta matéria, pois, em princípio, apenas conhece de direito, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Limitamo-nos a dizer que se trata de questão que foi suscitada pelas partes.

Com efeito, como salienta a recorrida na sua contra-alegação, o Regulamento em causa foi junto pela Autora e não foi impugnado pela Ré, que o interpretou em sentido contrário ao da Autora.

Por último, quanto à reclassificação e remuneração da recorrida no âmbito da integração nos quadros da Ré, através do Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública e setor empresarial do Estado (PREVPAP), importa ter em consideração o que salientou o acórdão recorrido: “o PREVPAP não cria novos vínculos laborais, antes regulariza situações (precárias) preexistentes, consistindo o dito programa, como resulta da exposição de motivos da referida Proposta de Lei 91/XIII, no reenquadramento contratual das situações laborais irregulares de modo a que as mesmas passem a basear-se em vínculos contratuais adequados” e, ainda como é referido na mesma peça “na sequência daquele processo de regularização, impunha-se à Ré proceder ao enquadramento da Autora, considerando a sua antiguidade, tipo de funções desempenhadas, grau de complexidade e responsabilidade, bem como retribuí-la em conformidade”.

Sublinhe-se também a importância atual do Regulamento interno, na vida das empresas, como um relevante instrumento sobre a organização e disciplina no trabalho, uma espécie de “manual de instruções”.

No caso do Regulamento da Recorrente, ele aplica-se a todos os trabalhadores ao serviço da AICEP, prevendo, além do mais, o conceito de carreira profissional e o conceito de nível de carreira e de grupo funcional, estabelecendo para cada nível de carreira a definição dos tempos mínimos de permanência necessários para promoção ao nível seguinte, a cujas disposições o acórdão recorrido subsumiu o enquadramento da Autora, em resultado do processo de regularização.

Nestes termos, e tratando-se - como se tratava - de uma regularização, é perfeitamente admissível, como sustenta a Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunto, no seu parecer, não se considerar impedimento para atribuir o nível previsto no art.º 18.º do Regulamento Interno de Carreiras Profissionais (RICP), como entendeu o acórdão recorrido, a circunstância da referida disposição prever para o desempenho de funções no estrangeiro o regime de comissão de serviço, que não foi, na verdade, o contrato celebrado entre as partes.

Em resumo, nenhuma censura se nos oferece fazer ao decidido pela segunda instância, improcedendo, assim, o recurso da Ré.

IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em negar a revista e, em consequência, confirmar-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15/12/2021.

Custas  a cargo da recorrente/Ré.

Anexa-se Sumário (art. 663.º n.º 7, do C.P.C.).

Notifique.

Lisboa, 22/06/2022

(Processado e revisto pelo relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Ramalho Pinto

Júlio Manuel Vieira Gomes

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[1] Diploma que estabelece o programa de regulação extraordinária dos vínculos precários.