Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
484/07.6TBSRE.C1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: DÍVIDA HOSPITALAR
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/13/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Doutrina: - Manuel Andrade, em Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 1963, pág. 26.
- Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, págs. 58 e 59.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL: - ARTIGO 9°
DL N.º 218/99 DE 15 DE JUNHO: - ARTIGO 3.º






Sumário :
A interpretação mais conforme com o espírito do legislador e com a coerência do sistema, será a de que a expressão usada, «prestação de serviços», usada no art. 3º do Decreto-Lei nº 218/99 de 15/6 abrange todo o processo assistencial médico e medicamentoso até o lesado alcançar a alta médica, o que é equivalente a dizer-se que art. 3º do Dec-Lei 218/99, no que toca ao início da contagem do prazo da prescrição, não é diverso do regime referido no art. 9º do Dec-Lei 194/92 de 8/9.
A lei hoje, ao invés de falar em “data em que cessou o tratamento”, refere em relação à prescrição, que o respectivo prazo (agora de três anos) se conta “da data da cessação da prestação dos serviços que lhes deu origem”, mas o legislador do Dec-Lei 218/99 apenas pretendeu substituir a expressão usada no Dec-Lei 194/92 por uma expressão juridicamente mais aperfeiçoada, não querendo introduzir um regime jurídico diverso.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I- Relatório:
1-1- O “Centro Hospitalar de Coimbra E.P.E.”, com sede em Quinta dos Vales - S. Martinho do Bispo - Coimbra, propôs a presente acção com processo ordinário contra a Companhia de Seguros AA, com sede na Avenida D… Á…, …, em Lisboa, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 27.434,57.
Fundamenta este pedido, em síntese, dizendo que no dia 19/5/96, cerca das 21 horas, na Rua da Levada, em Soure, ocorreu um embate entre um ciclomotor pertencente e conduzido por J… C… P… C… e um ligeiro de passageiros seguro na R., pelo facto de a condutora deste último não ter respeitado a prioridade daquele num cruzamento. Em consequência desse acidente, o aludido J… C… sofreu ferimentos que lhe determinaram vários períodos de internamento e consultas, assistência esta prestada pelo A. e cujos encargos ascendem à referida quantia de € 27.434,57, importância de que se quer ver ressarcida por banda da R..
A R. contestou, impugnando parte dos factos alegados pelo A. e referindo ter efectuado o pagamento de algumas importâncias na sequência de transacções judiciais.
Arguiu, além disso, as excepções da sua ilegitimidade, do caso julgado e da prescrição dos créditos.
Sustentou quanto a esta última excepção, em síntese, que, tendo o sinistro ocorrido em 1996, algumas das facturas apresentadas correspondem a despesas que tiveram lugar há mais três anos, sendo este - o de três anos - o prazo prescricional a considerar.
O A., em réplica, sustentou a improcedência da arguida prescrição, já que tendo prestado assistência de forma continuada até 10/9/2007, só a partir desta data é que se deve iniciar a contagem do prazo de prescrição.

O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido o despacho saneador, onde se julgou improcedentes as excepções da ilegitimidade passiva e do caso julgado, tendo-se relegado para final o conhecimento da excepção da prescrição.
Fixaram-se depois os factos assentes e organizou-se a base instrutória, após o que se realizou a audiência de discussão e julgamento, se respondeu à base instrutória e se proferiu a sentença.
Nesta consideraram-se prescritos os créditos respeitantes aos serviços facturados em 2/2/2005, 31/12/2001, 25/2/2003, 16/9/2002, 20/5/2002, 18/10/2007, 18/3/2005, 30/12/2004 e 27/5/2005 e do tratamento efectuado em 5/1/2004 que foi facturado em 30/12/2004, julgando-se a acção parcialmente procedente, condenando a R. (que no mais absolveu) a pagar ao A. a quantia de 61,40 €.

Não se conformando com esta decisão, dela recorreu o A. de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo-se aí, por acórdão de 6-10-2009, julgado procedente o recurso, julgando-se a acção parcialmente procedente condenando-se a R. a pagar ao A. a quantia de € 27.382,17.

1-2- Irresignada com este acórdão, dele recorreu a R. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.
A recorrente alegou, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:
1ª- A mudança significativa da redacção do preceito relativo à prescrição dos créditos hospitalares, constante no artigo 3° do Decreto-Lei 218/99, traduzida na alteração do termo “tratamento” para “serviços” e na adição da expressão “que lhes deu origem” tem de ser correctamente valorada, no estrito cumprimento das regras de interpretação legal do artigo 9° do Código Civil.
2ª- Não se podendo concluir, sem mais, que apenas traduz uma melhor técnica legislativa.
3ª- Assim sendo, a mudança do termo “tratamento” para “serviços” só pode significar a intenção do legislador em condicionar a prescrição a cuidados de saúde, delimitados no tempo, ora “serviços” e não a um “tratamento médico”, que por definição implica uma duração prolongada no tempo.
4ª- E bem assim, só se retira sentido útil da última parte do preceito - “que lhes deu origem”- na consideração da existência de uma relação directa entre o crédito e o serviço, de modo a que apenas o tratamento individualizado possa estar na origem do respectivo crédito e não o conjunto de tratamentos, ao qual não corresponde senão uma soma de créditos, com origem no respectivo serviço.
5ª- Concluindo-se, em conformidade, pela interpretação do artigo 3º do DL 218/99 no sentido de considerar a prescrição desde cada serviço de saúde hospitalar, individualmente considerado.
6ª- Na esteira da douta sentença do Tribunal da 1ª Instância.
7ª- E da jurisprudência relevante nesta matéria, melhor explanada nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 24/5/2007 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13/9/2007.
8ª- Pelo que mal andou o Acórdão de que se recorre ao sufragar entendimento diverso — o da contagem do prazo de prescrição desde o término do tratamento - nos termos em que o fez.
9ª- Pugnando pela ausência de alterações substanciais entre o artigo 9° do Decreto-lei 194/92 e o artigo 3° do Decreto-Lei 218/99 e concluindo, em consequência, pela manutenção da previsão legal contida no primeiro dos artigos, no que à prescrição dos créditos hospitalares respeita, uma vez não verificada uma “referência no preâmbulo” ou qualquer outro indicio que “manifestasse a vontade legislativa por qualquer outra forma inequívoca”.
10ª- Corroborando a conclusão ora vertida através na subsunção da prestação de cuidados de saúde ao conceito de prestação duradoura.
11ª- E no incómodo decorrente para as “entidades prestadoras dos cuidados de saúde” “de ir intentando sucessivas acções com prejuízo para a economia processual e para a aplicação da justiça em geral” consequência prática da interpretação sufragada pela Recorrente.

12ª- Pelo que, não só despreza o Acórdão de que se recorre os princípios da interpretação legal contidos no artigo 9° do Código Civil, desconsiderando-os na convicção errónea da obrigatoriedade de existência de qualquer “referência no preâmbulo.”, ou outro indicio que “manifestasse a vontade legislativa por qualquer outra forma inequívoca”.

13ª- Como subalterniza o desconhecimento e incerteza para a parte obrigada ao cumprimento da prestação da extinção da obrigação por inércia do titular, consequência da contagem do prazo de prescrição desde o término do tratamento, face ao incómodo decorrente para a entidade prestadora de cuidados de saúde de “de ir intentando sucessivas acções”.

14ª- Ignorando que o beneficiário do regime da figura jurídica da prescrição é o devedor e não o credor, como parece fazer crer.

15ª- E que, de entre os beneficiários da solução legal ora defendida, se encontra o próprio sujeito que considera lesado, as “entidades prestadoras dos cuidados de saúde”.

16ª- E, bem assim, que a “perspectiva de simplificar os procedimentos’ ratio legis do DL 218/99, não se reconduz à economia processual, mas antes transcende-a, só ganhando relevância esta última, no caso de recurso aos meios judiciais para cobrança de crédito.

17ª- Ignorando por último que, atenta a definição e regime especial de extinção das prestações duradouras, não pode a prestação de cuidados de saúde hospitalares integrar o seu conceito.

18ª- Logrando a criação, sob o raciocínio explanado, de obrigações perpétuas.

19ª- Termos em que, viola o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, o disposto no artigo 9° do Código Civil relativo aos princípios da interpretação legal.

20ª- Bem como os Princípios da Certeza e Segurança Jurídicas.
21ª- E o da Igualdade das Partes, contido no artigo 3° A do Código Civil.

O recorrido contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação do acórdão recorrido.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II- Fundamentação:
2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 690º nº 1 e 684º nº 3 do C.P.Civil).
Nesta conformidade, será a seguinte a questão a apreciar e decidir:
- A partir de que altura se deve contar o prazo de prescrição, se a partir da prestação de cada serviço de saúde hospitalar, individualmente considerado, ou se a partir da cessação da totalidade dos serviços de saúde ministrados ao lesado.

2-2- Vem fixada das instâncias a seguinte matéria de facto:
1. No dia 19 de Maio de 1996, cerca das 12 horas, na Rua da Levada, Soure, ocorreu uma colisão entre o ciclomotor de matrícula 1-SER-…-…, e a viatura ligeira de passageiros, com a matrícula …-…-FG.
2. A viatura FG era conduzida por M… S… S… G… e o ciclomotor era conduzido por J… C… P… C…, sendo sua propriedade.
3. A viatura FG circulava na Rua da Levada no sentido Largo de Santo Agostinho - Rua dos Meios.
4. O local constitui um cruzamento e do lado direito, atento o sentido de marcha do ligeiro de passageiros (FG), perpendicularmente, com a Rua do Hospital, e do lado esquerdo com a Rua Dr. Tomás Oliveira e Silva, inexistindo sinalização em qualquer das mencionadas artérias.
5. O condutor do ciclomotor aproximava-se do cruzamento na Rua do Hospital, pretendendo seguir em direcção à Rua Dr. Tomás de Oliveira e Silva, e para o efeito necessitava de transpor na sua largura a Rua da Levada.
6. Ao chegar ao cruzamento a condutora da viatura FG não imobilizou a viatura a fim de permitir a passagem do ciclomotor, apresentando-se este à sua direita, avançando em direcção à Rua dos Meios.
7. Acabando por colidir com o ciclomotor com a parte esquerda frontal da viatura FG, projectando o ciclomotor e caindo o seu condutor no chão.
8. Do embate resultaram ferimentos graves do condutor do ciclomotor, J… C… P… C… .
9. A responsabilidade emergente de acidente de viação da viatura FG, encontrava-se transferido para a R., pelo contrato de seguro titulado pela apólice nº 003010034331.
10. Correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Soure, sob o nº 79/1998, processo comum singular, sendo demandante designadamente o ora A. e demandada a ora R., tendo o mesmo terminado por desistência de queixa e transacção dos pedidos cíveis, homologado por sentença datada de 08.01.2001, transitada em julgado - certidão de fls. 129 e ss dos autos, dando-se por reproduzido o teor da mesma.
11. Correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Varas Mistas, sob o nº 362/2001, processo declarativo sob a forma de processo ordinário, sendo A. o ora A. e R. a ora R., tendo o mesmo terminado por transacção, homologada por sentença datada de 25.02.2003, transitada em julgado - certidão de fls. 155 e ss dos autos, dando-se por reproduzido o teor da mesma.
12. No âmbito dos processos identificados nos pontos 10 e 11 a R. pagou ao A., as quantias de € 1.358,73 e € 8.000,00.
13. Mediante o acordo/transacção efectuada no processo identificado no ponto 10, a R. e o sinistrado, aí demandante, J… C… P… C… , no que se refere ao pedido cível por este deduzido, acordaram nos seguintes termos - "1º A demandante cível obriga-se a pagar ao lesado ( ...) a quantia de 5.500.000$00, sendo que este se declara totalmente ressarcido de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, resultante do acidente de viação objecto do presente processo".
14. O A. remeteu à R. as facturas de fls. 12 a 24.
15. Foram remetidos e recepcionados os documentos denominados de "recibo de indemnização", constantes de fls. 65, 66 e 67.
16. A R. remeteu ao A., as cartas constantes de fls. 69, 70, 71, as quais foram recepcionadas.
17. O CHC tem prestado ao sinistrado identificado no ponto 8, serviços de saúde e tratamentos, que se consubstanciam no seguinte:
i) Urgência datada de 21.03.2001;
ii) Internamento entre 21.03.2001 e 07.07.2001;
iii) Consultas médicas em 09.07.2001, 16.07.2001, 23.07.2001, 30.07.2001, 06.08.2001, 13.08.2001, 10.09.2001, 08.10.2001, 15.10.2001;
iv) Internamento entre 17.10.2001 e 05.03.2002;
v) Consultas médicas em 11.03.2002, 18.03.2002, 01.04.2002, 07.10.2002 e 06.10.2003
vi) Internamento entre 19.03.2002 e 28.03.2002
vii) Consultas médicas em 10.03.2003, 05.05.2003, 14.07.2003, 06.10.2003
viii) Consultas médicas em 05.01.2004, 03.05.2004, 20.07.2004 e 08.11.2004
18. É auxiliado com prótese externa e ajuda de marcha em 22.04.2003.
19. Foi sujeito à última consulta em 10.09.2007.
20. As despesas suportadas referidas nos pontos 17 a 19 ascenderam a um total de € 27.434.577.
21. Os tratamentos e consultas referidos nos pontos 17 a 19 tiveram causa directa nas lesões sofridas pelo embate referido nos pontos 1 e 7.
22. A quantia reclamada pelo CHC relativa à urgência datada de 21/3/2001, ou seja, 52,40 euros, encontra-se abrangida pelos pagamentos efectuados pela R. relativos aos processos judiciais identificados no ponto 12.
2-3- A questão que se debate no presente recurso é a de saber se parte dos créditos reivindicados pelo A. (decorrentes de ter prestado serviços de saúde a J… C… P… da C… na sequência de um acidente de viação sofrido por este) estão ou não prescritos. De notar que na sentença de 1ª instância considerou-se que o A. suportou o montante de 61,40 € relativo a assistência hospitalar prestada ao lesado, decorrente do demonstrado nos pontos 17 e 19 a 21 dos factos provados, tendo-se proferido condenação da R. em conformidade. Esta posição foi aceite pela Relação, não sendo objecto de impugnação na presente revista, pelo que essa condenação permanecerá incólume, mesmo que se aceite a orientação da 1ª instância, defendida pela recorrente.
A questão coloca-se em relação aos outros créditos que a 1ª instância considerou prescritos, mas que a Relação entendeu não estarem abrangidos por essa excepção da prescrição.
Na 1ª instância o Mº Juiz, considerando que a acção deu entrada em juízo em 30/10/2007 e que a R. foi citada em 7/11/2007, entendeu que a acção foi instaurada mais de três anos depois da prestação dos serviços facturados em 2/2/2005, 31/12/2001, 25/2/2003, 16/9/2002, 20/5/2002, 18/10/2007, 18/3/2005, 30/12/2004 e 27/5/2005 e do tratamento efectuado em 5/1/2004 que foi facturado em 30/12/2004, motivo por que, de acordo com disposto no art. 3º do DL n.º 218/99 de 15 de Junho, concluiu que se mostravam prescritos os créditos respectivos.
No douto acórdão recorrido, em relação a esses créditos, atendendo-se a que todos os serviços médico-hospitalares prestados pelo A. ao lesado se inseriram num conjunto ligado pelo elemento comum de encontrarem a sua causa no acidente de viação de que o mesmo foi vítima, entendeu-se que ocorria uma factualidade merecedora de tratamento jurídico unitário, como se de um facto único se tratasse, embora continuado no tempo, pelo que se considerou improcedente a excepção da prescrição, pois a prestação dos cuidados de saúde ao assistido J… C… P… C… só em 10/09/2007 cessou, razão por que só a partir dessa data começou a correr o prazo de prescrição de três anos, sendo que aquando da citação da R., em 7/11/2007, patentemente não tinha decorrido.
É contra esta construção que a recorrente manifesta na presente revista o seu inconformismo. Com efeito, defende que a mudança da redacção do preceito relativo à prescrição dos créditos hospitalares, constante no artigo 3° do Decreto-Lei 218/99, traduzida na alteração do termo “tratamento” para “serviços” e na adição da expressão “que lhes deu origem” tem de ser correctamente valorada, no estrito cumprimento das regras de interpretação legal do artigo 9° do Código Civil, não se podendo concluir, sem mais, que apenas traduz uma melhor técnica legislativa. A mudança do termo “tratamento” para “serviços” só pode significar a intenção do legislador em condicionar a prescrição a cuidados de saúde, delimitados no tempo, ora “serviços” e não a um “tratamento médico”, que por definição implica uma duração prolongada no tempo. Só se retira sentido útil da última parte do preceito - “que lhes deu origem”- na consideração da existência de uma relação directa entre o crédito e o serviço, de modo a que apenas o tratamento individualizado possa estar na origem do respectivo crédito e não o conjunto de tratamentos, ao qual não corresponde senão uma soma de créditos, com origem no respectivo serviço. O art. 3º deve ser interpretado no sentido de se considerar a prescrição de cada serviço de saúde hospitalar, individualmente considerado, como decidiu a douta sentença do tribunal de 1ª instância.
Vejamos:
Não se coloca qualquer dúvida (1) que ao presente caso se deve aplicar o disposto no Dec-Lei 218/99 de 15/6 que trata do regime processual para cobrança dos créditos referentes aos cuidados de saúde prestados no âmbito do Serviço Nacional de Saúde.
Estabelece o 3º deste diploma que “os créditos a que se refere o presente diploma prescrevem no prazo de três anos, contados da data da cessação da prestação dos serviços que lhes deu origem”.
O Dec-Lei 218/99 revogou o Dec-Lei 194/92 de 8/9, diploma que estabelecia quanto à prescrição no seu art. 9º que “as dívidas pelos encargos referidos neste diploma prescrevem no prazo de cinco anos, contados da data em que cessou o tratamento”.
Face a esta disposição, parece-nos claro que o prazo de prescrição só se deveria iniciar com a cessação do tratamento. Ou seja, prolongando-se a prestação dos cuidados de saúde por um período mais ou menos dilatado de tempo, só a partir dos últimos tratamentos prestados é que o prazo de prescrição começaria a correr.
A lei hoje, ao invés de falar em “data em que cessou o tratamento”, refere em relação à prescrição, que o respectivo prazo (agora de três anos) se conta “da data da cessação da prestação dos serviços que lhes deu origem”.
Relativamente ao alcance da modificação operada, entende o douto acórdão recorrido que “a diferença entre o artº 9º do Decreto-Lei nº 194/92 e o artº 3º do Decreto-Lei nº 218/99 se situa apenas ao nível da linguagem técnico-jurídica, mais aprimorada neste do que naquele. No restante, nomeadamente no que concerne ao termo inicial da contagem do prazo de prescrição, afigura-se-nos que as expressões «contados da data em que cessou o tratamento», usada pelo Decreto-Lei nº 194/92 e «contados da data da cessação da prestação dos serviços que lhes deu origem», utilizada pelo Decreto-Lei nº 218/99, se equivalem”.
No que toca a este entendimento, sustenta a recorrente, como já se disse, que o dito art. 3º deve ser interpretado no sentido de se considerar a prescrição de cada serviço de saúde hospitalar, individualmente considerado.
Diga-se desde já que, pese embora a elaborada argumentação da recorrente, a posição assumida pela Relação é, a nosso ver, a mais correcta.
Em sede de interpretação da lei, estabelece o art. 9º nº 1 do C.Civil que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas deve reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. Acrescenta o nº 2 da disposição que “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Por fim diz o nº 3 do artigo que “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
Quer dizer, em sede de interpretação de lei, o intérprete deve tentar reconstituir a mens legislatoris, sendo que a vontade do legislador só poderá ser tida em conta em termos de interpretação da lei, quando tenha o mínimo de correspondência no seu texto. Além disso, deve pressupor que elegeu as soluções mais criteriosas e exprimiu o seu pensamento em termos apropriados.
Em relação a esta norma do C.Civil, Pires de Lima e Antunes Varela escrevem que “resumindo, embora sem grande rigor, o pensamento geral desta disposição, pode dizer-se que o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei. Quando, porém, assim não suceda, o Código faz apelo franco, como não poderia deixar de ser, a critérios de carácter objectivo, como são os que constam do nº 3”(2)
Ainda a propósito de interpretações de leis refere Manuel Andrade “daqui procede que interpretar, quando de leis de trata, significa algo diverso de interpretar em outros casos: interpretar, em matéria de leis, quer dizer não só descobrir o sentido que está por detrás da expressão, como também, dentre várias significações que estão cobertas pela expressão, eleger a verdadeira e decisiva … O pensamento da lei é, pois, todo e qualquer pensamento que pode estar nas suas palavras, deste modo podendo a lei encerrar em si dois, três, cinco dez pensamentos que à escolha podem valer como verdadeiros. Os princípios de interpretação devem, por consequência, dar-nos não só a possibilidade de atrás das palavras encontrarmos os pensamentos possíveis, mas também a de entre os pensamentos descobrirmos o verdadeiro”(3).
Tentando reconstruir o pensamento legislativo, compulsámos o preâmbulo do Dec-Lei 218/99, mas aí nada de concreto e expresso se afirma sobre qualquer alteração ao regime da prescrição. Desse preâmbulo resulta, todavia, que o diploma visa simplificar e agilizar a cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, alterando as regras processuais do regime de cobrança das dívidas hospitalares (referidas no Dec-Lei 194/92 de 8/9), consagrando como regra geral a acção declarativa (em detrimento da acção executiva introduzida pelo Dec-Lei 194/92). Visou-se com o diploma, igualmente, consagrar formas consensuais de resolução dos litígios inerentes à cobrança de dívidas das entidades seguradoras, com o duplo objectivo de a tornar mais eficiente e diminuir os processos nas instâncias judiciais, estabelecendo-se ainda a possibilidade de recurso à arbitragem. Também se teve em vista tornar mais célere o pagamento das dívidas às instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, fixando-se regras especiais no âmbito dos acidentes de viação. Isto é, através do preâmbulo do dito Dec-Lei, conclui-se que existiu por parte do legislador o desígnio de simplificar e agilizar a cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, de alterar as regras processuais do regime de cobrança das dívidas, de introduzir mecanismos de resolução consensual dos litígios e de inserir, em razão da celeridade dos pagamentos, regras especiais em caso de acidentes de viação.
Dado que do preâmbulo não é possível retirar, directamente, qualquer argumento que nos dê luz sobre a controvérsia, teremos que analisar as expressões em causa e verificar qual das interpretações efectuadas pelas instâncias se nos afigura mais consentânea com o sistema introduzido pelo dito diploma.
Desde logo não nos parece despiciendo notar que, se o legislador tivesse tido em mente alterar o regime da prescrição, designadamente no sentido defendido pela recorrente, certamente não teria deixado de o mencionar nesse preâmbulo. É que tal constituiria uma modificação de vulto em razão das consequências práticas que dela adviriam, pelo que a omissão de uma menção nesse sentido não seria plausível ou compreensível.
Por outro lado, a tese da recorrente de que o dito art. 3º deve ser interpretado no sentido de se considerar a prescrição de cada serviço de saúde hospitalar, individualmente considerado, iria contra a ideia do legislador, expressa no preâmbulo, de diminuição de processos por dívidas pela prestação dos cuidados de saúde nas instâncias judiciais, dado que, para se obter o pagamento do preço de cada um dos actos prestados, necessária se tornaria a instauração de uma acção judicial o que, evidentemente, levaria a uma proliferação de acções judiciais, precisamente em sentido contrário do pretendido pelo legislador. Como se refere correctamente no douto acórdão recorrido “a não se entender assim, prolongando-se no tempo a prestação de serviços, correr-se-ia o risco de, para evitar a prescrição, teriam as entidades prestadoras de cuidados de saúde de ir intentando sucessivas acções, com evidente prejuízo para a economia processual e para aplicação da justiça em geral”.
Como se viu, a polémica incide sobre a expressão empregue no Dec-Lei 218/99 “data da cessação da prestação dos serviços que lhes deu origem”.
Convém sublinhar que a expressão é, a nosso ver, absolutamente, sob o ponto de vista literal, conforme com o alcance que lhe é dado pela Relação, ou seja, que o prazo de prescrição só se deveria iniciar com a cessação da totalidade do tratamento (serviços prestados) (4).
Por outro lado, a norma fala em serviços (plural) e não serviço (singular), donde se poderá inferir que o legislador se quis referir a todo o processo assistencial do lesado, nele se englobando a totalidade dos actos médicos e de enfermagem, os meios auxiliares de diagnóstico etc. e, portanto, o dispositivo parece apontar para que a prescrição só começará a correr após da cessação de todos os serviços (5).
Além disso, não nos parece coerente sob o ponto de vista de política legislativa e de lógica do sistema, impor às entidades prestadoras dos serviços de saúde, a necessidade de ir intentando sucessivas acções em relação a cada um dos actos ou serviços prestados ao lesado, sob pena de, o não fazendo, poderem vir a ser confrontadas com a excepção da prescrição de direitos.
Também nos parece relevante notar que interpretação pretendida pela recorrente, poderia abrir portas a incertezas jurídicas, derivadas de se poder questionar o momento da cessação de cada um dos cuidados de saúde específico, sabendo-se que estes normalmente se desenvolvem numa multiplicidade de actos, integrados num mesmo processo assistencial (6).
Os cuidados médicos e medicamentosos ao lesado, porque se trata de um processo assistencial exclusivo que se prolonga no tempo, merecem um tratamento jurídico unitário, como de um facto único se tratasse.
Por todas estas razões parece-nos que a interpretação mais conforme com o espírito do legislador e com a coerência do sistema, será a de que a expressão usada, «prestação de serviços», abrange todo o processo assistencial médico e medicamentoso até o lesado alcançar a alta médica, o que é equivalente a dizer-se que art. 3º do Dec-Lei 218/99, no que toca ao início da contagem do prazo da prescrição, não é diverso do regime referido no art. 9º do Dec-Lei 194/92.
O legislador do Dec-Lei 218/99 apenas pretendeu, como se refere no douto acórdão recorrido, substituir a expressão usada no Dec-Lei 194/92 por uma expressão juridicamente mais aperfeiçoada.
Evidentemente que esta interpretação não torna a obrigação do devedor perpétua, uma vez que ela só nasce na data da cessação da prestação dos serviços de saúde (sem prejuízo de se poder exigir pagamentos parciais). Pela mesma razão, não se vê que a interpretação a que chegámos, colida com os princípios de certeza e segurança jurídica que subjazem à prescrição.
O recurso é, pois, improcedente.

III - Decisão:
Por tudo o exposto, nega-se a revista, confirmando-se o douto acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 13 de Abril de 2010
Garcia Calejo (Relator)
Hélder Roque
Sebastião Póvoas

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(1) E as instâncias assim fizeram
(2) Em C.Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, págs. 58 e 59.
(3) Em Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 1963, pág. 26
(4) Note-se que o termo «prestação», na forma como foi empregue na disposição, tanto pode ser singular como plural. Tanto se pode falar na prestação de determinado cuidado de serviço único, como na prestação de uma pluralidade de serviços.
(5) O legislador se quisesse referir-se, na disposição em análise, à prestação de determinado cuidado de saúde específico, certamente que teria usado uma expressão mais clarificadora, como por exemplo «prestação de cada serviço».
(6) Por exemplo, o caso de um politraumatizado submetido a várias operações cirúrgicas aos seus membros, seguidas de sessões de fisioterapia.