Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1725/12.3TBRG.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
DIREITOS DO CONSUMIDOR
RESOLUÇÃO
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 05/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / NEGÓCIO JURÍDICO / FACTOS JURÍDICOS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / FALTA DE CUMPRIMENTO E MORA IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR / CONTRATOS EM ESPECIAL / COMPRA E VENDA / VENDA DE BENS ONERADOS / VENDA DE COISAS DEFEITUOSAS.
DIREITO DO CONSUMO - VENDA DE BENS DE CONSUMO.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6.ª ed., p. 96.
- Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, 4ª ed. p. 109.
- Maria Miguel dos Santos Teixeira, Dissertação de Mestrado, palavras iniciais, publicada na revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 289.º, N.º1, 334.º, 434.º, N.ºS1 E 2, 762.º, N.º2, 805.º, N.º3, 905.º, 913.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 609.º, N.º2.
DECRETO-LEI Nº 63/2003, DE 8/04, NA REDACÇÃO QUE LHE FOI DADA PELO DECRETO-LEI Nº 84/2008 DE 21/05: - ARTIGOS 1.º, 1.º- A, N.º1, 2.º, N.º 2, 4.º, N.ºS 1, 2 E 5.
LEI DE DEFESA DO CONSUMIDOR – LEI Nº 24/96, DE 31/07: - ARTIGO 2.º, N.º1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 30-09-2010, PROCESSO Nº 822/06.9TBVCT.G1.S1.
Sumário :
I - Nos termos do DL n.º 67/2003, de 08-04, os meios que o comprador que for consumidor tem ao seu dispor para reagir contra a venda de um objecto defeituoso, não têm qualquer hierarquização ou precedência na sua escolha. Segundo o n.º 5 do art. 4.º do referido diploma legal, essa escolha apenas está limitada pela impossibilidade do meio ou pela natureza abusiva da escolha nos termos gerais.

II - Tratando- se de compra e venda de um automóvel novo de gama média/alta que após várias substituições de embraiagem, de software e de volante do motor, continuava a apresentar defeitos na embraiagem, pode o comprador consumidor recusar nova proposta de substituição de embraiagem – a terceira – e requerer a resolução do contrato, sem incorrer em abuso de direito.

III - Apurando-se que o veículo vendido, apesar dos defeitos não eliminados, continuou a circular sem limitações na respectiva capacidade de circulação e sem afectar a segurança dos passageiros, percorrendo, em três anos e meio, 59 mil quilómetros, a devolução do valor do veículo a efectuar pelo devedor, em consequência da resolução e como correspectivo da devolução do carro, deve limitar-se ao valor deste, na data do trânsito em julgado.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, em 7-03-2012, no Tribunal Judicial de Braga, contra BB, S.A e CC, Lda.”, pedindo que:

- Se declare resolvido o contrato de compra e venda do veículo automóvel celebrado entre o autor e a 1.ª ré, desde 15.03.2010;

- Se condenem as rés a restituir-lhe 41.000,00 Eur. (quarenta e um mil euros), acrescidos de juros desde 15.3.2010, correspondente ao preço do veículo que adquiriu à 1ª R. até integral pagamento;

- Se condenem as rés a pagar-lhe uma indemnização no valor de cinco mil euros (5.000,00 Eur.), a título de danos não patrimoniais.

Caso assim não se entenda, subsidiariamente, requer que se condene a 1.ª ré a substituir o veículo por outro com as mesmas características, no estado de novo, ou a entregar-lhe o veículo devidamente reparado e em perfeitas condições de funcionamento, apto a circular em segurança, sem qualquer avaria, tudo sem prejuízo de serem as duas rés condenadas no pagamento da indemnização referida de cinco mil euros.

Alega, em síntese, que a 15 de Março de 2010, adquiriu à 1.ª ré, concessionário da 2.ª ré, o veículo automóvel da marca CC, modelo …, de matrícula IV, no estado de novo pelo preço de 41.000,00 Eur. (quarenta e um mil euros), que pagou em numerário.

Sucede que o veículo logo a partir dos seis mil quilómetros, uns meses após a compra, nomeadamente em inícios de Agosto de 2010, começou a ter falhas de aceleração e na embraiagem, o que se foi reiterando ao longo do tempo, sendo que apesar das suas sucessivas colocações nas oficinas da 1.ª ré para reparação, nunca tais problemas foram sanados, o que o levou a reclamar, por escrito, por telefone e pessoalmente quer junto da 1.ª quer junto da 2.ª ré.

Entre as reclamações o carro ficou nas instalações da 1.ª ré pelo menos em 15.11.2010, 23.2.2011, 7.6.2011, 30.8.2011 e 29.11.2011, sendo substituída a embraiagem, feitas diversas actualizações do sistema e substituído o motor.

Porém, manteve-se o problema da embraiagem, pelo que o carro ao fazer-se ponto de embraiagem treme, por vezes fumega e arranca a velocidade mínima, não desenvolve de forma a fazer um arranque seguro, dando a sensação que vai desligar-se.

Desde a última tentativa de reparação o veículo é utilizado para situações pontuais na vida do autor, face ao receio que ele e a esposa sentem ao conduzir o mesmo, desde logo porque o mesmo causa distúrbios na circulação, tendo de ser imobilizado de forma repentina.

O autor e a esposa circulam agora diariamente num veículo de dois lugares, cedido por familiar, o que os obriga a sujeitar-se a favores quando precisam de fazer viagens longas ou se for necessário transportar outros familiares ou amigos, a todo o transtorno causado acresce o desgosto do autor, que amealhou dinheiro para comprar o veículo que idealizou e obteve um veículo como o descrito.

Citada a 2.ª ré contestou de fls. 66 e seguintes, por excepção, alegando ser o autor parte ilegítima por estar a demandar relativamente a um bem comum do casal sem o cônjuge ou o seu consentimento.

Por impugnação alega inexistir qualquer desconformidade. O veículo dos autos tem um motor N..., que optimiza o consumo do combustível e o comportamento do motor a baixa rotação, implicando uma condução ligeiramente adaptada, que implica que o uso da embraiagem seja feita doseando o acelerador e o curso daquela, de forma gradual e progressiva, em todos os arranques, e sobretudo em casos em que há subidas de forte inclinação. O autor tem conhecimento destas recomendações da marca.

Quem conduz habitualmente este veículo é o autor, porém a sua esposa também o usa, sendo que esta conduz habitualmente um veículo de caixa automática que determina dificuldades acrescidas de condução de um veículo como o dos autos.

A não utilização daquele método de arranque implica o desgaste da embraiagem, devido à fricção provocada e consequente aumento de temperatura do disco, volante do motor e prato de embraiagem. Este desgaste anormal provoca os descritos “tremores” e “repelões”, porém tal não limita a capacidade de deslocação do veículo, nomeadamente a realização de viagens de longo curso, pelo contrário será no pára-arranque citadino que tal poderá suceder. E tal vibração não põe em causa a segurança dos passageiros ou do condutor, pelo que não estão previstas as condições do art. 2.º, n.º 2 do D.L n.º 67/2003.

Em Janeiro de 2012 foi proposto ao autor a substituição da embraiagem do veículo por uma nova versão daquele componente (desenvolvido pelo fabricante no final do ano de 2011), sem custos, o que o autor recusou.

Uma vez que o contrato que o autor pretende seja resolvido foi celebrado entre ele e a 1.º ré, mesmo a ser resolvido, não pode ser a 2.ª ré condenada a restituir-lhe o preço, mesmo considerando as excepções ao princípio da relatividade dos contratos, já que a responsabilização do produtor, prevista como excepção aquele principio no art. 6.º do D.L n.º 67/2003, se limita à “reparação ou substituição” da coisa defeituosa. E ainda que se considerasse poder a 2.ª ré ser assim condenada nunca o seria pela totalidade do preço, já que tem de ser contabilizado e deduzido do valor a restituir o benefício que o veículo proporcionou ao autor desde a venda até à entrega à 1.ª ré, por eventual resolução, sob pena de o autor ter uma vantagem económica injustificada, ao usar o veículo por mais de dois anos e com o mesmo ter percorrido cerca de 40.000 Kms.

Segundo dados da Eurotax de Abril de 2012 o valor do veículo dos autos é de 31.300,00 Eur. (trinta e um mil e trezentos euros), tendo sofrido desvalorização de 9.700,00 Eur. (nove mil e setecentos euros), valor que sempre deve ser abatido ao preço que eventualmente se decida condenar as partes a restituir ao autor.

Concluiu ainda pela improcedência do pedido de condenação das rés em juros que só serão devidos a partir da eventual resolução do contrato.

Quanto aos danos não patrimoniais além destes não merecerem tutela face ao que foi alegado é excessivo o valor peticionado quanto aos mesmos.

Quanto aos pedidos subsidiários não existindo qualquer desconformidade, e face ao disposto no art. 2.º, n.º 2 do D.L n.º 67/2003, não podem proceder, porém, ainda que se aplique o disposto no art. 6.º, n.º 1 a exigência ao produtor da reparação ou substituição do bem só pode ocorrer se “não se manifeste desproporcionada”. Ora, tendo facultado ao A. uma solução alternativa – substituição da embraiagem por outra de última geração, apta a eliminar o efeito de “vibração” produzido pela técnica de não utilização de arranque recomendada, não pode proceder o pedido de substituição, por manifestamente desproporcionado.

Também a 1ª R. contestou, defendendo-se por excepção e impugnação, invocando os mesmos factos e argumentos da 2ª R.

O autor replicou. Quanto à excepção de ilegitimidade invocou que o veículo é um bem próprio dele, porquanto adquirido em 15.3.2010, com dinheiro seu, antes do casamento que apenas foi celebrado em 27 de Julho de 2010.

Quando adquiriu o veículo, não lhe foi dada qualquer explicação sobre a necessidade de uma condução especial, nem foi alertado para qualquer especificidade da embraiagem.

Relativamente ao abuso do direito, alegou que o recurso à via judicial foi o último recurso já que andou a tentar resolver o assunto extra-judicialmente junto da 1.ª ré, aceitando sucessivas intervenções, recusando sim a última proposta por entender que não está obrigado a aceitar sucessivas e eternas intervenções num veículo que adquiriu novo, nem tão-pouco tinha de acreditar que a proposta substituição pelo novo modelo de embraiagem ia resolver a situação, já que isso foi feito antes.

Por fim, quanto à dedução do valor da desvalorização da viatura no preço a restituir, deverá a mesma ser equitativamente fixada pelo tribunal, sem uso a tabelas de mercado, atendendo a que o veículo não proporcionou ao autor uma utilização normal.

Foi dispensada a realização da audiência preliminar, tendo sido proferido despacho saneador, onde se conheceu a excepção de ilegitimidade activa, que se julgou improcedente, bem como foi feita a selecção dos factos assentes e da matéria controvertida.

Foi requerida perícia ao veículo que foi admitida, tendo sido junto o relatório pericial a fls. 253 a 259.

Procedeu-se à realização do julgamento e a final foi proferida sentença que decidiu:

“- Declarar resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre o autor e a 1.ª ré a 15.3.2010 e que teve por objecto o veículo de matrícula IV;

- Condenar a 1.ª ré “BB, S.A” a restituir ao autor a quantia de 28.000,00 Eur. (vinte e oito mil euros), correspondente ao preço deduzido da desvalorização entretanto sofrida pelo veículo, a acrescer de juros caso não entregue a 1.ª ré o valor fixado ao autor após o trânsito da decisão, contando-se desde aí juros à taxa civil, e contra a restituição do veículo pelo autor à mesma 1.ª ré, também após o trânsito da decisão;

- Condenar solidariamente as 1.ª e 2.ª rés a pagar ao autor a quantia de 1.000,00 Eur. (mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos, absolvendo-as do restante valor peticionado.”

A ré CC veio a requerer a reforma da sentença, a qual foi julgada parcialmente procedente, quanto ao segmento de condenação em custas.

O autor não se conformou e interpôs recurso de apelação, tendo igualmente apelado a ré BB.

Na Relação de Guimarães foi julgada improcedente a apelação da ré BB e parcialmente procedente a apelação do autor, tendo o montante do pedido reconhecido sido aumentado.

Desta vez foi a ré BB quem inconformada, veio interpor a presente revista excepcional que a formação prevista no nº 3 do  art. 572º do Cód. de Proc. Civil – a que se referirão todas as disposições a citar sem indicação de origem - admitiu.

A recorrente nas suas extensíssimas e repetitivas alegações formulou conclusões não menos extensas e repetitivas – que reproduzem praticamente tudo o que a recorrente referira anteriormente – pelo que não serão aqui transcritas.

Daquelas se deduz que a recorrente, para conhecer neste recurso, levanta as seguintes questões:
a) Dos factos provados não resulta que o veículo objecto do contrato de compra e venda em causa se possa considerar defeituoso ?
b) E nem mesmo se provou o erro ou o dolo exigido para a resolução pelo art. 905º do Cód. Civil ?
c) O exercício pelo autor do direito de resolução do contrato de compra e venda perante o defeito da coisa objecto daquele é abusivo nos termos do art. 4º, nº 5 do Decreto-Lei nº 67/2003 de 8/04 ?
d) A fixação da data da citação para aferir do valor do veículo a devolver pela recorrente em consequência da resolução do contrato envolve enriquecimento sem causa, devendo, antes tomar–se em conta para o efeito a data da efectiva restituição do veículo ou, quando muito, a data do trânsito em julgado da decisão final ?

 

O recorrido contra-alegou defendendo a improcedência do recurso.

Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.

Como é sabido – arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.

Já vimos as concretas questões que a aqui recorrente colocou como objecto deste recurso.

Mas antes de mais, há que especificar a matéria de facto que a Relação deu por provada e que é a seguinte:

1. A 15 de Março de 2010 o autor adquiriu à 1.ª ré “BB”, concessionária da 2.ª ré “CC”, um veículo automóvel da marca “CC”, modelo …1 sdrive …, de cor … metalizado, com a matrícula IV, com o n.º de quadro …, novo, pelo preço de 41.000,00 Eur. (quarenta e um mil euros).

2. O veículo do autor foi colocado nas instalações da 1.ª ré pelo menos em 15.11.2010, 23.02.2011 e 30.08.2011.

3. A 15.11.2010, aos 17.127 Km, foi substituída a embraiagem e o volante do motor; a 24.02.2011, aos 23.174 Km, foi trocada a embraiagem; e a 30.08.2011, foi actualizado o software do veículo, tendo em vista a optimização do motor.

4. Na sequência de uma reclamação de Janeiro de 2012, foi sugerida uma nova substituição de embraiagem, sem custos, que o autor não autorizou.

5. O veículo em análise tem um motor N..., o que optimiza o consumo de consumo de combustível e o comportamento do motor a baixa rotação.

6. Tais características diminuem as emissões de gases pelo veículo, garantindo o cumprimento dos requisitos para a homologação de viaturas e redução do impacto fiscal do imposto automóvel.

7. O condutor habitual do veículo é o autor, mas aquele é também utilizado pela mulher do autor.

8. O autor usou o veículo até 29.11.2011 e percorreu cerca de 34.383 Kms.

9. Segundo dados da Eurotax de Abril de 2012, o valor do veículo dos autos é de 31.300,00 Eur., tendo sofrido desvalorização de 9.700,00 Eur..

10. Nas ocasiões referidas em 3., permanecendo o veículo nas instalações da “BB”, foi facultado ao autor um veículo de substituição.

11. A 15.11.2010, com 17.127 Kms percorridos, o veículo levado para as instalações da 1.ª ré, apresentava a seguinte anomalia: “carro patina ao arrancar e não desenvolve”, procedendo aquela como referido em 3..

12. Em 23.02.2011, com 23.174 Kms percorridos o veículo levado de novo para as instalações da 1.ª ré, apresentava a seguinte anomalia: “carro patina ao arrancar, não corresponde nums 5 segundos.”, procedendo a 1.ª ré à substituição do desacoplador da embraiagem.

13. A 7.06.2011, com 27.607 Kms percorridos, o autor apresentou à 1.ª ré outra reclamação: “carro tem ruído estranho ao relanti.”.

14. Em 30.08.2011, com 30.110 Kms percorridos, o autor denunciou à 1.ª ré que “o carro vibra ao arrancar.”, fazendo esta uma actualização do software do veículo.

15. A 29.11.2011, com 34.383 Kms percorridos, o autor voltou a referir à 1.ª ré que “carro vibra ao arrancar”.

16. Aquando do referido em 4. a 1.ª ré explicou ao autor que a marca CC desenvolveu uma solução, que consistiu na colocação de um amortecedor no disco, destinada a eliminar qualquer tipo de trepidação.

17. A 24.02.2012 o autor deslocou-se às oficinas da 1.ª ré, para efectuar a revisão periódica da mesma, tendo esta percorridos 37.639 Kms.

18. A 17 de Julho de 2010 ao autor contraiu casamento católico, sem convenção antenupcial, com DD. – cfr. certidão do assento de casamento de fls. 122 e 123. (alíneas A) a R) da matéria assente no despacho-saneador)

19. Cerca de Agosto de 2010, aos 6.000 Kms, o autor começou a notar falhas na embraiagem e na aceleração do veículo.

20. Deslocou-se de imediato às instalações da 1.ª ré “BB”, onde foi atendido por EE, a quem explicou que o veículo não tinha o desenvolvimento normal no arranque e apresentava problemas de embraiagem.

21. Nessa ida à “FF Braga”, o mecânico da mesma, acompanhou o autor num curto trajecto, que não permitiu detectar o problema. (resposta aos quesitos 1.º a 3.º)

22. Já em Setembro de 2010, o autor voltou de novo à 1.ª ré reclamando e alertando para o referido em 20. (resposta ao quesito 4.º)

23. A 1.ª ré agendou o dia 29 de Outubro de 2010, pelas 17.30 horas, a verificação do veículo.

24. O veículo ficou nas instalações da 1.ª ré, tendo sido facultado um veículo de substituição ao autor.

25. O veículo foi entregue uma semana depois.

26. Mas continuou a apresentar os mesmos problemas.

27. O autor reclamou junto das rés, por escrito, por telefone e pessoalmente.

28. O autor reclamou por escrito à “CC”, via email, nos termos aí consignados e que se são por reproduzidos nas seguintes datas: 3 e 4.11.2010, 15.12.2010, 24, 27 e 31.10.2011 (docs. 3 a 12 da pi de fls. 22 a 29).

29. O autor reclamou por escrito à “CC”, por carta registada datada de 7.12.2011, nos termos aí consignados e que se são por reproduzidos (doc. 17 da pi de fls. 35 a 37).

30. O veículo do autor foi colocado nas instalações da 1.ª ré, além das ocasiões referidas em 3., em 07.06.2011 e 29.11.2011.(resposta aos quesitos 6.º a 13.º)

31. Apesar referido em 3. os problemas referidos mantiveram-se.

32. Por vezes, ao fazer ponto de embraiagem o carro começa a tremer. (resposta aos quesitos 15.º e 16.º)

33. Arranca a velocidade mínima.

34. E não desenvolve dando a sensação que vai desligar-se.(resposta aos quesitos 18.º e 19.º)

35. Sendo o autor ou a mulher obrigados a imobilizar o veículo, sendo que em Dezembro de 2010 a mulher do autor foi obrigada a chamar a assistência da CC. (resposta ao quesito 21.º)

36. O autor recusou a substituição referida em 4., porque já foram efectuadas várias intervenções e em que mexeram com componentes essenciais do veículo.

37. Sente-se desgostoso por ter amealhado dinheiro para adquirir o veículo.

38. Entre visitas, telefonemas e emails para a “FF” e “CC” a reclamar os problemas do veículo, sente-se agastado com a situação.

39. O autor e a esposa sempre fizeram a manutenção do veículo. (resposta aos quesitos 28.º a 30.º)

40. Por norma desloca-se de férias ao Algarve, anualmente, em Agosto.

41. Numa das vezes em que o carro ficou nas oficinas da “FF”, após entrega do mesmo ao autor, começou a fumegar, poucos metros após entrar em circulação.

42. Após nova deslocação para à 1.ª ré verificou-se que, por lapso, não foi efectuada a ligação entre o motor e o tubo condutor ao cano de escape, o que fez com que o fumo saísse pelo capô e pelas entradas do ar condicionado do veículo. (resposta aos quesitos 31.º a 34.º)

43. O referido em 19.º e de 23.º a 25.º não limita a capacidade de deslocação do veículo, nem a realização de viagens de longo curso, sendo no “pára-arranca” que se sente mais “vibração” do veículo. (resposta conjunta aos quesitos 41.º e 42.º)

44. Tal também não põe em causa a segurança dos passageiros.

45. A nova embraiagem referida em 4., que foi desenvolvida pelo fabricante no final do ano de 2011, fará com diminua o “tremor” ao fazer ponto de embraiagem.

46. Aquando do referido em 13. a 1.ª ré detectou que a origem do ruído estava no próprio motor, que substituiu.

47. Após o referido em 15. a 1.ª ré propôs ao autor a substituição da embraiagem por outra de última geração (recentemente desenvolvida pela marca CC). (resposta aos quesitos 43.º a 46.º)

Vejamos agora cada uma das questões acima elencadas como objecto deste recurso.


a) Nesta primeira questão defende a recorrente que dos factos apurados não resulta que o veículo objecto da compra e venda aqui em apreço seja um objecto defeituoso.

Podemos desde já dizer que não comungamos da opinião da recorrente tal como muito doutamente as instâncias concluíram.

Vejamos.

Tratam os autos de um contrato de compra e venda incidindo sobre um veículo alegadamente defeituoso, compra e venda essa realizada pelo autor como comprador e a recorrente como vendedora.

As instâncias consideram que nessa compra e venda o autor tinha a posição de consumidor e, por isso, estaria ao abrigo da regulamentação legal protectora dessa qualidade de interveniente contratual.

E, pelo menos a co-ré CC, faz apelo para a decisão deste litígio às regras que regulam a compra e venda por parte de consumidor.

Por isso e por brevidade, vamos considerar essa situação, sem necessidade de analisar mais profundamente a referida qualidade do autor como consumidor nesse negócio aqui em causa, qualidade essa atribuída pelas instâncias sem impugnação das partes.

Deste modo, a compra e venda em apreço e relativamente ao alegado defeito, reger-se-á pela Lei de Defesa do Consumidor – Lei nº 24/96, de 31/07 – e pelo Decreto-Lei nº 63/2003 de 8/04, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 84/2008 de 21/05.

Este “Decreto-lei nº 63/2003 foi publicado para proceder à transposição para o direito interno da Directiva nº 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, relativo a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, com vista a assegurar a protecção dos interesses dos consumidores” – cfr. art. 1º deste decreto-lei.

Não será aqui, consequentemente, aplicado o regime da compra e venda de coisa defeituosa prevista nos arts. 913º e segs. do Cód. Civil que se mantém em vigor para a compra e venda de coisa defeituosa em que não seja aplicada a protecção do consumidor, por o respectivo negócio não se poder considerar como celebrado por consumidor com empresário profissional, nos termos do art. 2º, nº 1 da Lei nº 24/96 referida e do art. 1º-A, nº 1 do mencionado decreto-lei nº 63/2003.

A razão de ser da introdução desta regulamentação mais protectora do comprador consumidor consiste em haver o legislador considerado o comprador - que seja consumidor – a parte mais fraca no respectivo negócio de compra e venda.

Com efeito “as relações de consumo são marcadas pela desigualdade entre as partes. De facto, face às alterações económicas, comerciais, técnicas e concorrenciais ocorridas a partir dos anos 50, as relações contratuais deixaram de configurar o paradigma das relações contratuais civis, nas quais as partes se encontravam num estado de igualdade. Contrariamente, passou a verificar-se que um dos sujeitos contratuais se sobrepunham ao outro” – Dissertação de Mestrado de Maria Miguel dos Santos Teixeira, palavras iniciais, publicada na revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

Deste modo, a existência de um defeito no objecto da compra e venda aqui em apreço tem de ser aferida à luz do disposto no art. 2º, nº 2 do Decreto-Lei nº 63/2003.

Segundo este preceito legal, presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos factos:

a)…

b)…

c)…

d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.

Além deste preceito, há que tomar em conta o principio geral da boa fé que rege toda a construção legal do nosso direito privado e, em especial, do direito civil.

Assim, o art. 762º, nº 2 do Cód. Civil estipula que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente devem as partes proceder de boa fé.

Esta exige que o direito seja exercido de forma honesta e íntegra, de modo a não causar prejuízos injustificados ou mesmo frustrar expectativas devidamente fundadas da contraparte.

Agir segundo a boa fé traduz-se na observância das “exigências fundamentais da ética jurídica, que se exprimem na virtude de manter a palavra e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do círculo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos”- A. Costa, Direito das Obrigações, 6ª ed., pág. 96.

Nos termos da transcrita al. d), presume-se que o objecto da compra e venda será defeituoso se as suas qualidades e o seu desempenho habituais não corresponderem aos habituais nos bens do mesmo tipo e que o comprador  pode razoavelmente esperar, tendo em conta a natureza do bem e eventualmente , as declarações públicas sobre as características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante.  

Dos factos provados e acima transcritos resulta que o veículo comprado é um automóvel novo de marca CC, com o preço, em Março de 2012, de € 41 000,00 e que tem falhas na embraiagem e na aceleração, porquanto ao fazer o ponto de embraiagem começa a tremer, arranca a velocidade mínima e não desenvolve dando a sensação que vai desligar-se, vendo-se o condutor obrigado a, pelo menos uma vez, chamar a assistência bem como a imobilizar o veículo ou a forçar o arranque. Com maior ou menor frequência, o condutor quando tem de usar a respectiva embraiagem, o veículo vibra obrigando a uma intervenção reforçada do condutor, à sua imobilização e/ou chamada de assistência técnica – factos nºs 1, 19, 23 a 26, 31 a 35.

Atendendo a que se trata de um carro adquirido na situação de novo e pertencente à gama média/alta fica integrada a hipótese da transcrita al- d) que consistindo numa presunção de desconformidade do objecto com o constante do contrato, não foi ilidida pelas rés.

Com efeito, as referidas deficiências que se mantêm após as várias substituições levadas a cabo pela ré no mesmo veículo se não podem admitir num veículo novo daquele tipo.

Improcede, desta forma, este fundamento do recurso.


b) Nesta segunda questão defende a recorrente que se não provou o erro ou o dolo exigido para a resolução pelo art. 905º do Cód. Civil.
Claramente tem esta pretensão de soçobrar.

Com efeito, para a resolução o contrato, não há que exigir os referidos requisitos de erro ou do dolo que o art. 905º do Cód. Civil prevê.

É certo que o  art. 905º referido  exige os requisitos gerais do erro ou do dolo e este preceito aplica-se à venda de coisa defeituosa, por força da remissão do art. 913º, nº 1 do Código Civil.

Porém, os referidos requisitos são exigidos para a anulação do negócio e aqui está em causa a resolução do mesmo.

Além disso, o regime legal aqui aplicável é o acima transcrito – Lei nº 24/96 e Decreto-Lei nº 63/2003 – e não o regime do Cód. Civil, como já acima largamente referimos.

Improcede, desta forma, este fundamento do recurso.


c) Nesta terceira questão, defende a recorrente que o exercício do direito de resolução do contrato de compra e venda perante o defeito da coisa objecto daquele, é abusivo, nos termos do art. 4º, nº 5 do Decreto-Lei nº 63/2003.

Perante um objecto defeituoso sobre que incide uma compra e venda integrada numa relação de consumo, o consumidor tem um leque de meios de reacção previstos no art. 4º, nº 1 do Decreto-Lei nº 63/2003.

Este preceito estipula que em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.

E o seu nº 5 prescreve que o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.

Deste modo, de acordo com este preceito legal, a escolha do meio legal para ser usado pelo consumidor em caso de desconformidade do objecto com o contrato, deixou de estar hierarquizado como resultava da Directiva acima referida e que o Decreto-Lei nº 63/2003 pretendeu  transpor para o nosso direito interno.

Também era admitida essa hierarquização pela aplicação da Lei de Defesa do Consumidor introduzida pela Lei nº 24/96 referida.

Tal divergência em relação ao teor da Directiva é legal por o conteúdo desta constituir o mínimo de protecção legal aos consumidores imposta pela Directiva, mas os Estados membros ficam com a liberdade de estabelecer regime mais favorável aos consumidores, o que o caso do regime da não hierarquização – art. 8º nº 2 da Directiva.

Porém, o alcance da alteração introduzida pelo referido nº 5 do art. 4º mencionado é menor do que o que aparenta à primeira vista.

Com efeito, se o consumidor, perante um objecto defeituoso, optar pelo meio mais gravoso para o vendedor e essa natureza gravosa se não justificar perante o caso concreto atendendo ao interesse do consumidor, haverá um abuso de direito e, por isso, não será legítima a utilização desse meio mais gravoso.

O abuso de direito é o instituto previsto no art. 334º do Cód. Civil. 

Segundo este preceito, é ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo seu fim social ou económico.

Trata-se de existência de um direito substantivo exercido com manifesto excesso em relação aos apontados limites que proibem essencialmente a utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de interesses exorbitantes do fim que lhe inere.

O fim económico e social de um direito traduz-se, essencialmente, na satisfação do interesse do respectivo titular no âmbito dos limites legalmente previstos.

Por seu lado, os bons costumes, grosso modo, consistem no conjunto de regras de comportamento relacional, acolhidas pelo direito, varáveis no tempo e, por isso, mutáveis conforme as concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade de referência em determinada unidade de tempo.

Já acima vimos em que se traduz a boa fé.

Na opinião da recorrente, esse abuso de direito traduz-se na circunstância de ter sido proposta ao autor uma solução de reparação – substituição da embraiagem - que este não aceitou, solução essa que satisfaria o interesse do autor e seria claramente muito menos gravosa para a recorrente.

A este propósito o acórdão recorrido disse o seguinte:

 “Entendem as RR. que o A. não tem direito à resolução do contrato porque lhe foi proposta uma solução para o problema e ele não aceitou, pelo que age em abuso de direito.

O A. tentou por diversas vezes a reparação do veículo, com vista à eliminação do defeito.

Note-se que o veículo do A. foi colocado nas instalações da 1ª R. por diversas ocasiões, aos 17.127 kms foi substituída a embraiagem e o volante do motor, aos 23.174 kms foi trocada a embraiagem e em 30.08.2011 foi actualizado o software do veículo, tendo em vista a optimização do motor.

O A. por diversas vezes tentou a  eliminação da desconformidade, sem exercer o direito à resolução.

O A. recusou a substituição pela 3ª vez da embraiagem porque já tinham sido efectuadas várias intervenções em que mexeram com componentes essenciais do veículo, tendo já sido substituído o motor e a embraiagem por duas vezes, num curto período de tempo.

Não aceitou a proposta de nova substituição da embraiagem na sequência de mais uma reclamação em 2012, nem estava obrigado a aceitá-la. Desde logo, porque não está demonstrado que essa nova embraiagem resolvesse totalmente a desconformidade que até ao momento, apesar das várias tentativas, não tinha sido eliminada. Deu-se apenas por provado que a nova embraiagem fará com que diminua o tremor (ponto 34). Por outro, há muito que se mostrava excedido o prazo de 30 dias para a reparação do defeito prevista no nº 2 do artº 4º do DL 67/2003, na redacção introduzida pelo DL 84/2008.

O abuso de direito exige o exercício de qualquer direito por forma anormal quanto à inten­sidade ou à sua execução, de modo a poder comprometer o gozo dos direitos de terceiros e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as con­sequências que os outros têm que suportar. Só haverá abuso de direito se o seu titular exceder ostensivamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Ora, o A. por várias vezes, como já referimos, tentou a reparação do veículo e só em Abril de 2012 instaurou esta acção com vista à resolução do contrato, pelo que não age manifestamente em abuso de direito.”

Perante a clareza e o acerto do teor transcrito não se nos oferece acrescentar muito mais de útil para rebater a pretensão da recorrente.

É que, recorde-se, a solução oferecida pela recorrente era a terceira substituição da embraiagem num curto período de tempo e as duas primeiras não resolveram o problema.

E tratando-se de um carro novo da gama média/alta de uma conceituada marca, a boa fé - que regula quer o cumprimento da obrigação quer o exercício do respectivo direito, como já dissemos -, não impunha ao autor aceitar mais uma tentativa de reparação em momento que excedia em muito o período temporal legal previsto no art. 4º, nº 2 do Decreto-Lei nº 63/2003.

Por isso, a utilização do meio legal resolução do contrato pelo autor atentas as circunstâncias do caso concreto, não envolve a violação da boa fé, dos bons costumes ou do fim social ou económico do direito em causa.

Naufraga, desta forma, mais este fundamento do recurso.


d) Resta apreciar a questão da data a que se deve recorrer para aferir do valor do veículo em causa a devolver pela recorrente em consequência da resolução do contrato sem se incorrer em enriquecimento sem causa.
Esta questão levanta mais dificuldades para a sua decisão.

A resolução do contrato, na falta de disposição especial, tem como efeito legal, nos termos do art. 433º do Cód. Civil, a aplicação do regime da nulidade e da anulabilidade, salvo o disposto nos artigos seguintes.

Por seu lado, o nº 1 do art. 434º do mesmo diploma prescreve que a resolução tem efeito retroactivo, salvo se a retroactividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução.

E o seu nº 2 prescreve que nos contratos de execução continuada ou periódica, a resolução não abrange as prestações já efectuadas, excepto se entre estas e a causa de resolução existir um vínculo que legitime a resolução de todas elas.

 O art. 289º , nº 1 do mesmo diploma legal estipula que tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

Em face destes preceitos, e à primeira vista, o autor teria direito a devolver o veículo comprado e a recorrente teria de devolver o preço contratual daquele.

Porém, o autor beneficiou do uso do veículo e essa utilidade decorreu e foi proporcionada pela compra e venda pelo que deveria devolver o veículo no estado da aquisição, ou seja, novo, com zero quilómetros percorridos, o que é impossível.

Desta forma a devolução do preço contratual pedida pelo autor e a correspondente devolução do veículo com o uso e desgaste entretanto sofrido - como resulta dos factos provados - envolveria um enriquecimento sem causa por parte do autor, violador da boa fé contratual.

Por isso, a sentença de 1ª instância fixou que na devolução do preço contratual em causa deveria ser abatido o valor da desvalorização do veículo ocorrida até à data da prolação daquela sentença, desvalorização essa que fixou em treze mil euros.

Na apelação do autor este defendeu que a data a que se deve referir o valor do veículo a devolver deverá ser, no máximo, a data da propositura da acção.

Por seu lado, a ré apelante defendeu que essa data seja coincidente com a da efectiva devolução da viatura.

O acórdão recorrido optou pela opinião do autor fixando essa data com referência à data da citação das rés.

Este Supremo Tribunal, no seu acórdão de 30-09-2010, proferido no processo nº 822/06.9TBVCT.G1.S1 e relatado pela Sra. Conselheira Maria dos Prazeres Beleza já se pronunciou sobre uma questão idêntica, tendo concluído que : “não sendo possível ao autor restituir o automóvel tal como lhe foi entregue ( nº 1 do art. 289º do Código Civil ), a recorrente só pode ser condenada a restituir o valor que o veículo tiver à data do trânsito em julgado desta decisão, cuja determinação igualmente se remete para liquidação, conforme o disposto no nº 2 do art. 661º do Código de Processo Civil, até ao limite dos € 12.500,00 pedidos, acrescidos dos juros, à taxa legal, que se vencerem até efectivo e integral pagamento”.

Já o Prof. Calvão da Silva defendera idêntica opinião, no seu livro” Venda de Bens de Consumo “, 4ª ed. pág. 109 onde disse: “ no reembolso ao consumidor do preço por força da resolução potestativa do contrato ou da actio quanti minoris, a eventual utilização do produto pelo consumidor pode justificar uma redução do valor a restituir ( cfr. o espirito do art. 434º, nº 2 , do Código Civil )”

Parece-nos ser esta a solução mais equitativa para a questão aqui em apreço.

É certo que o acórdão recorrido considerou que a desvalorização a tomar em conta apenas deveria ser a ocorrida até à data da citação da ré vendedora, correndo por conta desta a desvalorização sofrida após a citação, por à mesma se dever a demora da resolução do processo.

Não podemos concordar com tal entendimento.

Recorrendo ao princípio previsto no art. 805º, nº 3 do Cód. Civil, no sentido de que a demora na satisfação de um débito só vence juros se o débito for líquido, vemos que a demora em satisfazer o débito aqui em causa, se não deve exclusivamente à recorrente, mas também ao autor por haver peticionado um montante que se veio a revelar excessivo para o que lhe era legalmente devido. Logo estava justificada a recusa das rés em proceder a esse pagamento pedido.

Por outro lado, está apurado que o veiculo em causa, apesar dos defeitos que apresenta, não está limitado na sua capacidade de deslocação do mesmo, nem na realização de viagens de longo curso, sendo apenas no “para-arranca” que se sente mais a “vibração” do veículo.

Também se provou que tais defeitos não põem em causa a segurança dos passageiros.

Apurou-se ainda que o veículo, apesar dos referidos defeitos, em 24-02-2012 já tinha percorrido 37 639 quilómetros e que o autor confessou em julgamento que continuava a usar o veículo e que em Setembro de 2013 tinha já percorrido 59 000 quilómetros.

Daqui resulta que apesar dos defeitos do veículo, este tem tido uma utilização intensa por parte do autor pelo que é razoável que essa utilização e subsequente desgaste ou desvalorização seja descontada no valor a devolver pela recorrente em consequência da resolução do negócio.

Procede, deste modo parcial, este fundamento do recurso.

Pelo exposto, concede-se parcialmente a revista pedida e, por isso, se altera o acórdão recorrido no sentido de que o valor que a recorrente tem de devolver ao autor em consequência da resolução do contrato de compra e venda, será o valor que o veículo tiver na data do trânsito em julgado, a fixar nos termos do art. 609º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil.

No mais se mantém o decidido.

As custas na 1ª instância provisoriamente ficam em metade para o autor e na outra metade a cargo das rés.

As custas da apelação do autor ficam a seu exclusivo cargo.

As custas da apelação da ré BB ficam provisoriamente na mesma proporção de metade para esta e a outra metade para o autor.

As custas da revista ficam também provisoriamente em metade para o autor e metade para a recorrente BB.

As custas fixadas provisoriamente serão repartidas na proporção do decaímento, após a liquidação da importância que vier a ser  definitivamente fixada.


*

Nos termos do art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil sumaria-se o acórdão nos seguintes termos:

Venda de Coisa Defeituosa. Resolução.

I. Nos termos do Decreto-Lei nº 67/2003 de 8/4, os meios que o comprador que for consumidor tem ao seu dispor para reagir contra a venda de um objecto defeituoso, não têm qualquer hierarquização ou precedência na sua escolha.

Segundo o nº 5 do art. 4º do referido diploma legal, essa escolha apenas está limitada pela impossibilidade do meio ou pela natureza abusiva da escolha nos termos gerais.

II. Tratando- se de compra e venda de um automóvel novo de gama média/alta que após várias substituições de embraiagem, de sofware e de volante do motor, continuava a apresentar defeitos na embraiagem, pode o comprador consumidor recusar nova proposta de substituição de embraiagem – a terceira – e requerer a resolução do contrato sem incorrer em abuso de direito.

III. Apurando-se que o veículo vendido, apesar dos defeitos não eliminados, continuou a circular sem limitações na respectiva capacidade de circulação e sem afectar a segurança dos passageiros, percorrendo em três anos e meio 59 mil quilómetros, a devolução do valor do veículo a efectuar pelo devedor em consequência da resolução e como correspectivo da devolução carro, deve limitar-se ao valor deste na data do trânsito em julgado.

2015-05-05

João Camilo ( Relator )

António da Fonseca Ramos

José Fernandes do Vale