Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
558/20.8T8GMR.G1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
RECONVENÇÃO
OBJETO DO RECURSO
PEDIDO
PETIÇÃO INICIAL
RETIFICAÇÃO DE ERROS MATERIAIS
EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
A falta de apreciação dos pedidos formulados na petição inicial, em sede do recurso de revista, quando nele é apenas impugnado o pedido reconvencional, não constitui erro material, nem omissão de pronúncia.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[1]:


*


Notificada do acórdão que concedeu a revista e revogou o acórdão recorrido na parte relativa ao pedido reconvencional de extinção da servidão, veio a recorrente AA requerer que a acção seja “julgada inteiramente provada e procedente, quanto a todos os pedidos formulados”, como pedira na revista, nomeadamente os pedidos deduzidos sob as alíneas d) e e), os quais só não terão sido apreciados por aquilo que denomina de “inexatidão devida a lapso manifesto”, susceptível de ser rectificado ao abrigo do disposto no art.º 614.º, n.º 1, do CPC ou, em alternativa, arguir a nulidade por omissão de pronúncia, invocando o disposto no art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, pretendendo que sejam “sentenciados os réus, para além do que consta da decisão a:

“a) Reconhecerem que a autora é dona e possuidora do prédio denominado “........” - terreno de mato e pinheiros, que faz parte….. ou ......., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..../....0620 - e ainda do prédio denominado “........” ou “.........”, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..../....1209, com as confrontações que identifica, designadamente com o prédio dos réus.

b) Reconhecerem que esses prédios da autora beneficiam da servidão de passagem que se traduz num caminho de terra batida, destinado ao trânsito de pessoas, animais e veículos, construído sobre o prédio dos réus sito no......., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..../....0824.

c) Reconhecerem que desde há mais de 20, 30 e 50 anos que a autora tem a posse exclusiva, pública, contínua, pacífica, de boa fé, ininterrupta e dotada do “animus” de que usa e frui de coisas próprias, de usar e se servir, com exclusão de outrem, do referido caminho, por onde efectua livremente o trânsito de pessoas e veículos da via pública para os seus prédios e vice-versa.

d) Restituírem à autora a posse de transitar pelo referido caminho para acesso aos seus prédios, demolindo e retirando dele as pedras que nele colocaram, transversalmente, que impedem tal acesso.

e) Não mais obstaculizarem, seja por que modo for, o referido acesso aos prédios da autora, nem ocuparem com o que quer que seja o leito do referido caminho.”


A parte contrária pronunciou-se pelo indeferimento das invocadas pretensões.


Apreciando:

1. Rectificação de erro material

O invocado art.º 614.º, n.º 1, do CPC (também aplicável aos acórdãos por força das remissões dos art.ºs 685.º e 666.º, n.º 1, ambos do mesmo Código) permite a “retificação de erros materiais” dispondo:

Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigido por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz”.

Prevê-se nesta norma a possibilidade de rectificação dos erros materiais nela previstos, a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento das partes, quando não haja recurso ou enquanto não subir se o houver, sendo que, tratando-se de um acórdão, a sua rectificação sempre terá lugar em conferência (cfr. art.º 666.º, n.º 2 do CPC).

Constitui erro material (manifesto) o erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da sentença (ou do acórdão) ou em peças do processo para que eles remetam (cfr. art.º 249.º do Código Civil).

Reanalisado o acórdão reclamado, não se vislumbra um vício susceptível de ser incluído na invocada norma. Não existe qualquer “inexatidão devida a lapso manifesto”. A pretensa omissão de análise dos pedidos formulados jamais poderá ser qualificada como “lapso manifesto”, tendo antes a ver com o objecto do recurso e com a nulidade por omissão de pronúncia também arguida e que se apreciará de seguida.

Situando-se fora do alcance da previsão do invocado art.º 614.º, este não permite qualquer alteração do acórdão, objecto da presente reclamação, tendo-se esgotado o nosso poder jurisdicional, quanto a tal matéria, por força do disposto no art.º 613.º, n.º 1, do CPC.

Improcede, por conseguinte, sem mais considerações, esta questão.

2. Nulidade por omissão de pronúncia

O art.º 615.º do CPC (também aplicável aos acórdãos por força das remissões dos referidos art.ºs 685.º e 666.º, n.º 1) dispõe, no n.º 1, que a sentença é nula, entre outras situações que não importa aqui analisar, quando o juiz “deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar” [al. d), 1.ª parte].  

Vejamos:

Como já escrevemos no acórdão que é objecto da presente reclamação, mas cuja doutrina tem aqui inteira aplicação:        

«Esta nulidade está directamente relacionada com o comando fixado na 1.ª parte do n.º 2 do art.º 608.º do CPC, segundo o qual o “juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.

Só existe omissão de pronúncia quando o Tribunal deixe de apreciar questões submetidas pelas partes à sua apreciação, e não quando deixe de apreciar os argumentos invocados a favor da versão por elas sustentada, não sendo de confundir o conceito de “questões” com o de “argumentos” ou “razões”, como é do conhecimento geral e temos vindo a escrever noutros locais[2].

Também é entendimento pacífico, tanto na doutrina[3] como na jurisprudência[4], que a noção de “questões” à volta das quais gravita a referida infracção processual reporta-se aos fundamentos convocados pelas partes na enunciação da causa de pedir e/ou nas excepções e, bem assim, aos pedidos formulados.

Em sede de recurso, as questões a apreciar reconduzem-se aos pontos essenciais do objecto do recurso, delimitado pelas conclusões, não se confundindo com as razões ou argumentos aduzidos pelas partes para fazer valer o seu ponto de vista.»

A reclamante fundamenta a omissão de pronúncia na falta de apreciação dos pedidos formulados sob as alíneas a), b), c), d) e e), acima transcritas, que correspondem aos que havia formulado na petição inicial.

O fundamento invocado não integra qualquer questão que este Tribunal devesse apreciar no âmbito do recurso de revista, o qual se mostra definido pelas conclusões da recorrente, nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, e visto que os recorridos não interpuseram recurso subordinado, nem ampliaram o âmbito daquele, nos precisos termos do disposto nos art.ºs 633.º e 636.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo Código.

As questões suscitadas nas conclusões do recurso de revista foram delimitadas no acórdão reclamado, de forma clara e expressa, que consistiam em saber:

1. Se o acórdão padece das nulidades que lhe são imputadas: oposição entre os fundamentos e a decisão, omissão de pronúncia e excesso de pronúncia;

2. Se há violação da lei de processo por errada aplicação do art.º 665.º, n.º 2, do CPC;

3. Se houve erro na condenação das custas da acção;

4. E se o direito à servidão de passagem invocada pela autora, já reconhecido, não se extinguiu por desnecessidade.

        

O pedido formulado na parte final das conclusões, que consistia em, na procedência do recurso de revista, “ser revogado e a acção ser julgada inteiramente provada e procedente, quanto a todos os pedidos formulados e a reconvenção improcedente e não provada”, não configura nenhuma questão, mas mera conclusão do pretendido pela autora/recorrente.

A discordância referenciada nas conclusões 6.ª e 7.ª, relativamente ao acórdão recorrido, também não configura uma questão que tivesse que ser apreciada no acórdão reclamado, pois não se reconduz a nenhum ponto essencial do objecto do recurso que era, quanto ao mérito, apenas a extinção da servidão por desnecessidade.

De resto, a existência da servidão de passagem já fora reconhecida no acórdão da Relação, como a recorrente/reclamante reconhece na conclusão 6.ª da revista.

E, contrariamente ao ali referido, a mesma Relação pronunciou-se quanto aos demais pedidos formulados.

Na verdade, no capítulo IX, onde tratou da questão “da existência da servidão de passagem”, que tinha sido objecto da apelação, apreciou os pressupostos da sua constituição, no caso por usucapião, afirmando:

… na situação sub judicio fez-se a prova inequívoca da existência de um caminho, com a largura de cerca de três metros, calcado e trilhado no solo e da existência de um portão instalado pelos Apelados/Réus na confrontação do caminho com a actual Rua do ...... .

São estes sinais permanentes e inequívocos da existência de uma servidão de passagem sobre o prédio dos Apelados/Réus para os prédios, dentre outros, pertencentes à Apelante.

Com efeito, ficou provado que o referido caminho, passando sobre o prédio dos Apelados/Réus, atravessa o prédio da Apelante e faz a ligação deste e doutros prédios, designadamente pertencentes aos donos da Quinta ......, com a Rua do ......., caminho que durante mais de vinte anos, sem interrupção, foi utilizado pelos caseiros da Apelante para, daquela Rua, acederem ao prédio desta, passagem que era feita à vista de todos, designadamente dos Apelados, sem que estes, durante aquele tempo, se lhes tenha oposto, agindo os referidos caseiros com a convicção de não estarem a lesar direitos doutrem e de estarem a exercer um direito próprio da Apelante.

É, assim, de concluir que foi constituída, por usucapião, uma servidão de passagem, para o que agora interessa, a favor do(s) prédio(s) da Apelante, onerando o prédio dos Réus/Apelados.

Procede, pois, o pedido que aquela formula, do que decorre o seu direito a não ser perturbado o exercício de passagem, nos termos que saíram provados.” (cfr. págs. 53 e 54 do acórdão).

E, na parte decisória, acabou por reconhecer “constituída a servidão de passagem a favor do prédio da Apelante sobre o prédio dos Apelados” e declarar a mesma “extinta por desnecessária ao prédio da Apelante”.

A recorrente, ora reclamante, não impugnou correctamente esta parte do acórdão da Relação, que nem sequer poderia impugnar, por falta de legitimidade, visto não ter ficado vencida (art.º 631.º, n.º 1, do CPC).

Por tudo isto se entendeu que estava apenas em causa, quanto ao mérito, o pedido reconvencional de extinção da servidão, única parte questionada no recurso de revista, tendo sido, consequentemente, revogado o acórdão recorrido “na parte relativa ao pedido reconvencional de extinção da servidão”.

Quanto aos pedidos formulados na acção não se pronunciou, nem tinha que se pronunciar, não só porque já tinham sido apreciados pela Relação nos termos em que se deixaram ditos - [os das alíneas a) e b)], por terem sido confessados e serem simples pressupostos do verdadeiro pedido de reconhecimento da existência do direito de servidão, o qual foi reconhecido, com o conteúdo bem definido, donde decorre o direito da autora/recorrente “a não ser perturbado o exercício de passagem, nos termos que saíram provados”, como se escreveu e decidiu no acórdão da Relação, mas também porque não constituíam objecto da revista.

É certo que, na parte decisória, aquele acórdão apenas aludiu à constituição da servidão, não se referindo expressamente aos pedidos formulados sob as alíneas d) e e), não obstante ter afirmado que da constituição da servidão resultava o direito “a não ser perturbado o exercício de passagem, nos termos que saíram provados”.

No acórdão reclamado, não podíamos ter suprido essa falha ou qualquer outra da Relação, que não tivesse sido objecto do recurso de revista, muito menos podemos agora fazê-lo visto que não funciona no Supremo Tribunal de Justiça a regra da substituição prevista no art.º 665.º, n.º 2, do CPC para a Relação.

Inexiste, por conseguinte, a arguida nulidade imputada ao nosso acórdão.

No entanto, porque o Tribunal da Relação deixou de fazer expressa referência, na parte decisória, aos pedidos formulados sob as alíneas d) e e) certamente por ter entendido que ficava prejudicada essa questão pela solução que deu ao pleito, não obstante a ter apreciado na fundamentação, nos termos em que já se deixaram aqui expostos, para evitar mais conflitos, impõe-se que, oficiosamente, se determine que o mesmo Tribunal da Relação, na sequência da apreciação que fez, relativamente à constituição da servidão, que reconheceu, e cujo conteúdo e exercício também já reconheceu, aprecie expressamente aqueles dois últimos pedidos.

        

Por tudo o exposto, sem necessidade de mais considerações, acorda-se em:

1. considerar que não se verificam o apontado lapso manifesto, nem a invocada nulidade do acórdão proferido nestes autos, pelo que se indefere o respectivo requerimento;

2. oficiosamente, determinar que o Tribunal da Relação aprecie expressamente os pedidos formulados pela Autora/recorrente sob as alíneas d) e e), pelos mesmos Juízes, se possível, para o que os autos deverão baixar àquele Tribunal.


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 Sumário:

 A falta de apreciação dos pedidos formulados na petição inicial, em sede do recurso de revista, quando nele é apenas impugnado o pedido reconvencional, não constitui erro material, nem omissão de pronúncia.


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Porque decaiu na reclamação que apresentou, as custas do incidente ficam a cargo da reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 2UCs (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC e art.º 7.º, n.º 4, do RCP e Tabela II a ele anexa).

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Lisboa, 22 de Junho de 2021


Nos termos do art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Ex.mos Juízes Conselheiros Adjuntos que não podem assinar.


Fernando Augusto Samões (Relator, que assina digitalmente)

Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta)

António Magalhães (2.º Adjunto)

________

[1] Relator: Juiz Conselheiro Dr. Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. António Magalhães
[2] Cfr., entre outros, os acórdãos mais recentes de 19 de Maio de 2020, revista n.º 1642/13.0TVLSB.L2.S1 e de 2 de Junho de 2020, revista n.º 3355/16.1T8AVR.P1.S1.
[3] Cfr., v.g. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2.ª edição revista e actualizada, pág. 91, em face do CPC anterior, que continha os correspondentes art.ºs 668.º, n.º 1, d) e 660.º, n.º 2, de igual teor.
[4] Cfr., v.g. Acs. do STJ de 11/11/87, BMJ n.º 371, pág. 374, de 7/7/94, BMJ n.º 439, pág. 526, de 25/2/97, BMJ n.º 464, pág. 464 e de 6/5/2004, in www.dgsi.pt e os nossos acórdãos do STJ de 9/4/2019, proc. 2296/17.0T8LRA.C2.S1 e de 4/6/2019, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, bem como  o de 10/9/2019, processo n.º 1067/16.5T8FAR.E1.S2, entre outros.