Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
125/11.7TTVRL.G1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: RIBEIRO CARDOSO
Descritores: CASO JULGADO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS A CARGO DO RECORRENTE
Data do Acordão: 06/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ÓNUS A CARGO DO RECORRENTE QUE IMPUGNE A DECISÃO RELATIVA À MATÉRIA DE FACTO.
Doutrina:
-Aníbal de Castro, IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS, 2.ª Edição, p. 111;
-Rodrigues Bastos, NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, Volume III, p. 247.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 640.º, N.º 2, ALÍNEA. A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 05-04-1989, BMJ 386.º, P. 446;
-DE 23-03-1990, AJ, 7.º/90, P. 20;
-DE 31-01-1991, BMJ 403.º, P. 382;
-DE 12-12-1995, CJ, 1995, III, P. 156;
-DE 18-06-1996, CJ, 1996, II, P. 143;
-DE 22-02-2017, PROCESSO N.º 988/08.3TTVNG.P4.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
1 - A exceção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa idêntica a outra decidida por sentença transitada, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2 – Não constitui caso julgado relativamente à ação de acidente de trabalho proposta contra a empregadora e contra a seguradora, em que está em causa a violação pela empregadora das normas de segurança, a sentença penal que absolveu o engenheiro responsável pela segurança da obra da prática do crime de infração das regras de construção, bem como do pedido civil contra ele formulado.

3 - Não cumpre o ónus imposto pelo nº 2, al. a), do art. 640º do CPC - indicação exata das passagens da gravação em que se funda a sua discordância - o recorrente que nem indicou as passagens da gravação, nem procedeu à respetiva transcrição e se limitou a fazer um resumo, das partes pertinentes desses depoimentos.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça ([1]) ([2])

1 - RELATÓRIO

AA, com o patrocínio oficioso do Ministério Público, intentou uma ação com processo especial, emergente de acidente de trabalho, contra a BB, S.A. e CC, LDA.

Efetuada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que terminou com o seguinte dispositivo:

«Tudo visto e ponderado, decide-se, julgar parcialmente procedente, por provada, a presente acção especial emergente de acidente de trabalho, declarando-se que o autor AA sofreu um acidente um acidente de trabalho, por via do qual ficou afectado de uma I.P.P. de 18,309%, a partir de 19/03/2011 e, em consequência:

1. - Condena-se a co-ré "CC, Lda.", a título principal, a pagar ao autor:

a) o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 2.172,68 (dois mil cento e setenta e dois euros e sessenta e oito cêntimos), nos termos do disposto nos artigos 18º, nº. 4, alínea c), 48º, nº. 3, alínea c) e 75º, nº. 1, da LAT, aprovada pela Lei nº. 98/2009, de 4/09;

b) a quantia de € 2.271,81 (dois mil duzentos e setenta e um euros e oitenta e um cêntimos), a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária absoluta e parcial, entre o acidente e a alta;

c) a quantia de € 300,00 (trezentos euros), a título de transportes e deslocações obrigatórias;

d) juros de mora sobre o capital de remição e indemnização por ITs, à taxa legal, calculados, em relação ao capital de remição, desde o dia seguinte à alta e até à data da efectiva entrega ao sinistrado do correspondente capital de remição e, em relação à indemnização por ITs, a partir do dia seguinte ao do acidente, nos termos dos arts. 502, nºs. 1 e 2 da Lei nº 98/2009, de 4/09 e 135º do Código de Processo do Trabalho.

2- Condena-se a co-ré "BB, S.A.", a título subsidiário, a pagar ao autor:

a) o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de € 1.520,88 (mil quinhentos e vinte euros e oitenta e oito cêntimos), nos termos do disposto nos artigos 48º, nº 3, alínea c) e 75º, nº. 1 e 79, nº. 3, da LAT, aprovada pela Lei nº. 98/2009, de 4/09;

b) a quantia de € 300,00 (trezentos euros), a título de transportes e deslocações obrigatórias;

c) juros de mora sobre o capital de remição, à taxa legal, calculados, desde o dia seguinte à alta e até à data da efectiva entrega ao sinistrado do correspondente capital de remição, nos termos dos arts. 50º, nº 2 da Lei nº 98/2009, de 4/09 e 135º do Código de Processo do Trabalho.

Declaram-se as supra pensões obrigatoriamente remíveis – cfr. art. 75º, nº 1 da Lei nº 98/2009, de 4/09.

Custas pela co-ré empregadora ou, subsidiariamente, pela co-ré seguradora.

Fixa-se à causa o valor de € 30.720,55. - cfr. art. 120º, nº. 1 do Cod. Proc. Trabalho.

Registe e notifique».

Inconformada, a ré empregadora apelou, impugnando a matéria de facto e sustentando que o tribunal a quo devia ter julgado verificada a exceção do caso julgado e abster-se de conhecer da questão da violação de regras de segurança no trabalho pela recorrente.

E também o autor apelou, sustentando que, sendo a ré seguradora responsável pelas consequências do acidente nos termos do artigo 79.º, n.º 3 da LAT, deveria ter sido condenada a título principal e não a título subsidiário.

A Relação julgou improcedente a invocada exceção dilatória do caso julgado e escusou-se de apreciar o recurso no que tange à reapreciação da prova testemunhal, por considerar não terem sido cabalmente cumpridos os ónus impostos pelo art. 640º do CPC, tendo sido proferida a seguinte deliberação:

«Nestes termos, acorda-se em:

a) julgar a apelação do autor procedente, e, em consequência, alterar o ponto 2 do dispositivo da sentença no sentido de condenar a ré seguradora a título principal, sem prejuízo de direito de regresso sobre a ré empregadora;

b) julgar a apelação da ré empregadora improcedente, e, em consequência, confirmar a sentença recorrida quanto ao mais;

c) condenar a ré empregadora nas custas do seu recurso e não fixar custas pelo recurso do autor, atenta a não oposição ao mesmo por parte da seguradora».

Desta deliberação recorreu a R. empregadora de revista excecional.

Neste Supremo Tribunal, a formação prevista no art. 672º, nº 3 do CPC, considerou não existir uma situação de dupla conforme pelo facto de a Relação ter rejeitado o recurso no que concerne à impugnação da decisão sobre a matéria de facto por inobservância dos requisitos expressos no art. 640º do CPC e por estar em causa a ofensa de caso julgado, tendo proferido a seguinte deliberação:

«Termos em que se acorda em que se proceda à distribuição do recurso como revista nos termos gerais.»

Considerando que, no caso de confirmação do acórdão no que tange à invocada violação do caso julgado e à rejeição da reapreciação da prova gravada, este Supremo Tribunal não poderá conhecer da questão da violação ou não das regras de segurança pela recorrente, pelo facto de se verificar uma situação de dupla conforme, na medida em que a Relação, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, confirmou, nesta parte, a sentença da 1ª instância, foram as partes notificadas para se pronunciarem, nos termos do art. 655º, nº 1 do CPC.

A seguradora pronunciou-se pela inadmissibilidade do recurso e a recorrente requereu o conhecimento do recurso como revista excecional.

Formulou a recorrente as seguintes conclusões, as quais, como se sabe, delimitam o objeto do recurso ([3]) e, consequentemente, o âmbito do conhecimento deste tribunal (omite-se na transcrição as relativas aos pressupostos de admissibilidade da revista excecional):

”11ª E, acrescente-se, foram-no de forma acessória, como "pedra de toque" de fecho da abóboda da argumentação das alegações e não como seu fundamento, per si. Note-se que, mesmo que tal não fosse referida, todas as demais alegações versam sobre os pontos de discordância, e razões de mudança e conclui, a final, pela decisão que deveria ter sido consagrada.

12ª Tal constitui uma violação do Art. 615º, nº 1, al. d) do CPC, uma vez que assim se furtou este tribunal a analisar os pontos concretamente indicados e que lamentavelmente, são muitos, com que a Apelante não concorda e que era dever deste Tribunal tê-lo feito!

13ª Ora, como o Art. 640º impõe vários ónus e vem agora o Tribunal afirmar que parte (relativa aos depoimentos não se encontra, no seu entender e com o devido respeito errado, devidamente concretizado - quando foi feita a repetitiva indicação por remissão para uma sentença que o faz) e omite por completo e mercê de tal raciocínio a análise dos demais argumentos esgrimidos?

14ª Temos, pois, que os requisitos para a reapreciação da prova foram cumpridos. - Art. 640º n.º 1 do CPC.

15ª Assim se rejeitando este douto Tribunal da Relação, sem motivo legal ou legítimo, a incorrer na violação do disposto nos Art. 640 e 615º, n.º 1, al d) do CPC.

16ª Recusa esta ilegal e em contradição com os Acórdãos nesta peça processual expressamente identificados e transcritos.

17ª A decisão proferida pela sentença recorrida está ferida de uma nulidade, porquanto viola o caso julgado.

18ª A Sentença Recorrida veio afirmar que as questões a resolver naqueles autos eram: “apurar da existência e caraterização do acidente sofrido pelo Autor/sinistrado como acidente de trabalho; e averiguação da existência de culpa da co-ré empregadora na eclosão do acidente, por inobservância das regras de segurança e cálculo das prestações a que o autor/sinistrado tem direito e apuramento das entidades responsáveis pelo seu pagamento.”

19ª Ora, com o devido respeito, a questão de apuramento da culpa da Recorrente na eclosão do acidente por inobservância das regras de segurança, já se encontra resolvida por sentença transitada em julgado.

20ª Assim, na Comarca de Vila Real - Juízo de Competência Genérica de Valpaços - Juiz 1, correu termos um processo-crime com o n.º 192/10.0GAVLP, em que foi Arguido DD, responsável único e exclusivo em nome da Recorrente pela obra.

21ª No âmbito desse processo, foi proferida sentença no dia 27.01.2016, em que o Douto Tribunal decidiu:

a) Absolver o arguido DD da prática, em autoria material, de um crime de infração de regras de construção, p. e p. pelos artigos 277º nº 1 al a) e nº 2 do Código Penal, em conjugação com o artigo 22º do DL 273/2003 de 29/10, 13º da Portaria 101/06 de 3 de Abril, 66ºa 72ºe 79º do Regulamento de Segurança no Trabalho e Construção Civil - Decreto nº 41821 de 11.08.1958;

b) julgar totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo ofendido EE;

c) julgar totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo ofendido AA.”

22ª No presente processo estava em causa averiguar do cumprimento ou incumprimento das normas de segurança no trabalho por parte da aqui Recorrente, que se materializaram nas ações deste DD, engenheiro responsável pela obra.

23ª Pelo que, nos autos do processo 192/10.0GAVLP o Tribunal proferiu sentença que absolveu o arguido (Engenheiro civil da Recorrente) do crime de infração de regras de construção.

 24ª Conforme ficou assente na alínea L) da base instrutória, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido — constante de fls. 220 a 231 dos presentes autos.  

25ª Ora, como se viu, nos presentes, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre a questão de saber se a Recorrente cumpriu ou não as regras de segurança.

26ª No entanto, em nosso entender, esta questão já havia sido resolvida à ordem do processo nº 192/10.0GAVLP.

27ª O Tribunal de Valpaços decidiu, no âmbito do processo-crime, absolver o arguido da prática do crime de infração na construção, ou seja, foi do entendimento daquele Tribunal que o arguido não praticou nenhum crime de infração das regras na construção, tendo portanto, cumprido as normas de segurança a que estava adstrito.

28ª Decisão que já se encontra transitada, em julgado.

29ª Não obstante isso, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre a violação das regras de segurança na Sentença Recorrida, decidindo que, “afigura-se-nos ser de responsabilizar, pela reparação do sinistro, a co-ré "CC Lda." nos termos do atrás citado artigo 18º nº 1 da Lei nº 98/2009 de 4/09.”

30ª Entendeu o Tribunal a quo que a Recorrente violou as normas de segurança e, nesse sentido compete-lhe assumir a responsabilidade pelo acidente e pelo pagamento da indemnização ao trabalhador.

31ª Viola o princípio de caso julgado pelo motivo de se ter pronunciado sobre uma questão que já se encontra resolvida por sentença transitada em julgado à ordem de outro processo.

32ª Acresce que, à ordem do processo-crime (Processo nº 192/10.0GAVLP) o Douto Tribunal pronunciou-se sobre a questão de forma diversa do que o Tribunal a quo.

33ª E prossegue: “Analisando o cotejo probatório não é possível concluir que as lesões sofridas pelos ofendidos EE e AA, em virtude do desabamento de terras, tenham tido a sua origem, na circunstância de inexistirem meios de proteção e segurança adequados a evitar tal resultado.

Deste modo, a matéria de facto dada como provada, não é de molde a afirmar que o arguido tenha, no âmbito da sua atividade profissional, infringido quaisquer regras regulamentares ou técnicas que deveria ter observado na execução da obra, tendo deste modo, criado perigo para integridade física de outrem.

Mais não se logrou provar que as lesões corporais sofridas pelos ofendidos, EE e AA, tenham ocorrido em consequência de um perigo criado pelo arguido ao infringir regras técnicas e de construção que poderia e deveria ter observado na execução da obra.

Nestes termos, não se encontrando preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de infração de regras de construção, p. e p. pelo artigo 277º nº 1, al a) do CP pelo qual o arguido vem acusado, terá o mesmo que ser absolvido.

34ª Frise-se ainda que os factos e os meios de prova são idênticos em ambos os processos.

35ª Pelo exposto, resulta claro e inequívoco que a Recorrente não violou as regras de segurança na execução da obra e as lesões sofridas pelo Recorrido não decorrem do facto de a Recorrente não ter observado as regras de segurança.

36ª Por esse motivo se invoca a exceção dilatória de caso julgado, nos termos do artigo 577º al. i), do artigo 580º e do artigo 581º todos do CPC.

37ª Existe uma identidade de sujeitos, uma vez que em ambos os processos os sujeitos são idênticos:

- no processo 129/10.OGAVLP o arguido é o Engenheiro DD, que é Engenheiro Civil da Recorrente e um dos Ofendidos é AA, aqui Recorrido;

- no processo 125/11.7TTVRL a Recorrente, que no processo supra, era arguida, foi aqui Ré e o Recorrido, que no processo supra era Ofendido foi nesta ação Autor.

 38ª Pelo que, as posições jurídicas dos sujeitos são idênticas em ambos os processos.   

39ª Quanto à identidade dos pedidos, este requisito também está verificado. Porquanto:   

- no processo 192/10.OGAVLP AA formulou pedido de indemnização cível, tendo em vista a obtenção de uma indemnização.

- no processo 125/11.7TTVRL o Autor também formulou o pedido de indemnização.

40ª O terceiro pressuposto da verificação do caso julgado, prende-se com a identidade na causa de pedir. Assim,

- no processo 192/10.0GAVLP a causa de pedir prende-se com o facto de ter ocorrido um acidente durante a execução da obra;

- no processo 125/11.7TTVRL a causa de pedir também se prende com o facto de ter ocorrido um acidente de trabalho durante a execução da obra.

41ª O Recorrido, não interpôs recurso da sentença proferida à ordem do processo nº 192/10.0GAVLP, pelo que aceitou a mesma.

42ª A este respeito, também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.06.2012, processo nº 241/07.0TTLSB.L1.S1 afirma que "A figura jurídico-processual do caso julgado pressupõe a existência de uma decisão que resolveu uma questão que entronca na relação material controvertida ou que versa sobre a relação processual, e visa evitar que essa mesma questão venha a ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes, pelo mesmo ou por outro tribunal."

43ª Conforme ficou dito, a decisão proferida pelo Tribunal a quo está ferida da exceção de caso julgado, obstando assim ao conhecimento do mérito da causa.

44ª Ora, como se logrou apurar na sentença proferida peio Tribunal de Valpaços e cujos efeitos transitaram em julgado, a aqui Recorrente não violou quaisquer regras de segurança na construção.

 45ª E, tendo a Recorrente transferido a responsabilidade por acidentes de trabalho para a co-ré seguradora, é a esta a quem cabe proceder ao pagamento das quantias mencionadas.

46ª Pelo exposto, ao assim decidir, violou o tribunal a quo o disposto nos artigos 580º e 581º do CPC, por violação do princípio de caso julgado.

47ª O acidente de trabalho ocorreu no dia 7.07.2010, pelas 17:00h em Valpaços, onde a Recorrente se encontrava a executar uma obra de saneamento básico.

48ª Para o efeito, foram destacados dois trabalhadores da Recorrente: o Recorrido e EE, que se encontravam a colocar anéis de betão numa vala de cinco metros de altura e três metros de largura.

49ª Quando os trabalhadores se encontravam a colocar os anéis de betão deu-se uma derrocada, o que causou as lesões ao Recorrido.

50ª Em primeiro lugar, não ficou provada a necessidade de escorar ou entivar a vala uma vez que se estava trabalhar numa rocha dura, nomeadamente xisto.

51ª Em segundo lugar, não resultou provado que o DD tenha dado ordens aos trabalhadores para estes entrarem na vala.

52ª Pelo que, os trabalhadores o podem ter feito à revelia das instruções que receberam da entidade empregadora.

53ª Posto isto, vejamos que a escavação da presente vala foi efetuada em rocha (nomeadamente em xisto), pelo que, não é obrigatória a entivação do solo.

54ª É aliás, isto que resulta do artigo 67º do Decreto-lei 41821/58 de 11.08 ao afirmar que "É indispensável a entivação do solo nas frentes de escavação. Aquela será do tipo mais adequado à natureza e constituição do solo, profundidade da escavação, grau de humidade e sobrecargas acidentais, estáticas e dinâmicas, a suportar pelas superfícies dos terrenos adjacentes. § único. Exceptuam-se da obrigação prevista neste artigo as escavações de rochas e argilas duras." - sublinhado nosso.   

55ª Conclui-se assim que, nas escavações de rocha não é necessário nem obrigatório colocar entivações, uma vez que o solo é duro, situação que se verifica in casu.

56ª Pois, no caso dos autos a escavação foi efetuada em solo de rocha, designadamente xisto, motivo pelo qual, na vala não foi colocada nenhuma escora no seu interior.

57ª Não procedeu à entivação da vala, nem tinha de o fazer, nos termos do artigo supra transcrito.

58ª Pelo que, a Recorrente agiu em conformidade com as normas legais.

59ª Desta forma, ainda que o Tribunal a quo pudesse pronunciar-se sobre a questão da eventual violação das regras de segurança na construção, jamais podia censurar a conduta da Recorrente, pelo facto de não ter colocado escoras e de não ter procedido à entivação da vala, porquanto não estava obrigada a tais procedimentos, nos termos da lei.

60ª Ao decidir da forma que decidiu, o Tribunal a quo violou também o disposto no artigo 67º do D.L. n.º 41821/58 de 11.08, uma vez que a Recorrente observou todas regras legalmente previstas.

61ª A sentença recorrida deu como provado que "Não foi elaborado qualquer plano de segurança e saúde que contemplasse o risco de soterramento".

62ª O Tribunal de Valpaços por sentença que já transitou em julgado, deu como provado que "A aprovação do plano de segurança e saúde para a execução da obra "Saneamento na Freguesia de Ervões (Valongo)" e o respetivo coordenador de segurança, ocorreu a 06 de setembro de 2010, dois meses depois da obra se encontrar em curso".

 63ª O que efetivamente aconteceu.

64ª Ou seja, o plano de segurança e de saúde apenas foi aprovado em 06.09.2010.

65ª Pelo que, à data do acidente ainda não existia qualquer plano de segurança e de saúde, uma vez que o mesmo só foi aprovado dois meses após o acidente.

66ª Ora, o facto de o plano ainda não ter sido aprovado na data do acidente não é da responsabilidade da Recorrente.

67ª Pelo que, não corresponde à verdade o facto de a Recorrente não ter nenhum plano de segurança e de saúde, em caso de acidente de trabalho.

68ª Aliás, confirmado no depoimento (e por conclusão das demais alegações) da testemunha DD, em sede de inquirição nos presentes autos, cujo resumo foi transcrito na sentença recorrida, é também por ele mencionado que "o plano de segurança da obra apenas foi aprovado cerca de 2 a 3 meses após o acidente".”

O MºPº, patrocinando o sinistrado recorrido, formulou as seguintes conclusões:

(…)

5.ª- Como resulta expressa e inequivocamente do aresto recorrido - cfr. ponto 4.2 - e contrariamente ao sustentado pela Recorrente, foi conhecida a impugnação da decisão sobre a matéria de facto pela mesma formulada, tendo a mesma sido julgada improcedente, não merecendo, por outro lado, qualquer censura o aresto sob recurso ao ter considerado no caso sub judice inatendíveis os depoimentos invocados pela Recorrente para fundamentar a sua pretensão de ver reapreciada a prova gravada, porquanto a mesma não cumpriu pontualmente os ónus estabelecidos no art.º 640.º, n.ºs 1, alínea b) e 2, alínea a) do CPC, submetendo-se, por isso e nessa parte, à sanção prevista na parte final do introito do n.º 1 dessa mesma disposição legal.

6.ª- Não merece igualmente qualquer censura o aresto recorrido ao ter julgado improcedente a excepção dilatória do caso julgado invocada pela Recorrente, porquanto é evidente não se mostrarem no caso em apreço preenchidos os requisitos do caso julgado previstos no art.º 581.º do CPC, não existindo identidade de sujeitos, identidade de pedido e identidade de causa de pedir no processo comum singular n.º 192/10.OGAVLP, que correu termos na Instância Central Local - Secção de Competência Genérica – J1, comarca de Vila Real, e na acção dos autos.

7.ª- Quanto às duas últimas questões suscitadas pela Recorrente que identifica e denomina no corpo das alegações como Da dinâmica do Acidente e Dos Planos de Segurança, as mesmas exorbitam manifestamente o objecto do recurso de revista excepcional susceptível de ser in casu conhecido.

8.ª- O acórdão sob recurso não incorreu em qualquer erro de julgamento, tendo feito uma correcta interpretação e aplicação da lei à factualidade apurada.

9.ª- Nestes termos, deve ser confirmado o acórdão recorrido, negando-se, desse modo, provimento ao recurso.”

Por seu turno a seguradora recorrida, formulou as seguintes conclusões:

“(…)

10ª- E bem andou o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães em rejeitar o recurso referente à reapreciação da matéria de facto com base nos depoimentos testemunhais e apenas se socorrendo dos documentos, pois que a apelante não deu cumprimento aos ónus estabelecidos nos nºs 1, al. b) e 2, al. a) do art. 640º do CPC.

11ª- Sendo obrigatório especificar, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considera relevantes.

12ª A apelante não indicou a hora de início e termo de cada um dos depoimentos, não indicou cada ponto concreto da matéria de facto em relação a cada depoimento, como devia e teria de ser.

13ª- A indicação geral e abstracta dos depoimentos e a transcrição do resumo da fundamentação da matéria de facto constante da douta sentença nas alegações, não satisfaz e não cumpre o ónus que recai sobre o recorrente de “indicar com exactidão as passagens da gravação relevantes”.

14ª- É a própria recorrente que afinal considera que os depoimentos das testemunhas são irrelevantes para a reapreciação da matéria de facto, pois o que pretendia sustentar tal pretensão era apenas e só os documentos, designadamente a prova feita no processo-crime.

15ª- Pois é a própria recorrente que refere:

... tais declarações foram usadas complementarmente e não como fundamento per si para tal revisão da matéria de facto, este sim baseado nos documentos e demais prova carreado nos autos”.

E

16ª- Mais refere a fls 6 das suas doutas alegações:

a recorrente não indicou as concretas passagens das gravações por entender desnecessário fazê-lo já que apenas se limitou a transcrever o próprio resumo do que disse cada testemunha, feito pelo Tribunal de 1ª instância na fundamentação da própria sentença”.

E mais alega,

Ou seja, a recorrente com o seu recurso, não pretendeu que fosse novamente analisada toda a prova testemunhal, apenas evidenciando o próprio resumo que o tribunal de 1ª instância fez sobre o assunto”.

17ª- Assim, são de todo inúteis e inócuas as considerações que a recorrente faz a tal respeito e os acórdãos que junta, pois que não está em causa a reapreciação da matéria de facto com base nos depoimentos das testemunhas, e pelos vistos não era isso que pretendia.

18ª- E também não ocorre caso julgado pois que desde logo não se verifica a identidade de partes, dado que no processo crime o arguido foi o Engenheiro DD, e não a ora recorrente, entidade empregadora, ou o seu representante legal, mas antes aquele enquanto o director técnico da obra.

19ª- Também não ocorre a identidade de pedido, não sendo o pedido de indemnização civil, cujos termos se desconhecem inclusivamente equiparado ao pagamento de capital de remição de uma pensão anual e vitalícia, bem como ao pagamento dos períodos de incapacidade temporária absoluta e parcial.

20ª- Desconhece-se em que termos foi deduzido o pedido de indemnização civil e da sentença junta aos autos e proferida no processo crime apenas consta que:

 “Pelos ofendidos AA e EE foi deduzido pedido de indemnização civil, peticionando a quantia de [€] 25.000,00 cada, a título de danos morais sofridos em consequência do sinistro.

21ª- Sendo reclamados danos morais no processo crime, nos presentes autos o que se peticiona é o pagamento de despesas, incapacidades temporárias, absolutas e parciais, e a pensão anual e vitalícia decorrente da incapacidade permanente parcial, ou seja danos patrimoniais pelo que não identidade de pedido.

22ª- Também não se verifica a identidade da causa de pedir pois que no processo crime está em causa o crime de infração de regras de construção, já nesta acção tem como causa de pedir a existência de um acidente de trabalho, as incapacidades de que ficou a padecer o trabalhador, qual a incapacidade permanente e qual a pensão anual a atribuir e se é remível ou não.

23ª- Acresce que os bens jurídicos protegidos no processo crime e na acção por acidente de trabalho são completamente distintos, enquanto no processo crime se protege a vida e segurança e integridade física das pessoas e bens alheios, daí ser considerado um crime de perigo comum, já com a acção emergente de acidente de trabalho se visa proteger a retribuição e a protecção social do trabalhador e a sua subsistência em caso de sinistro.

24ª- De qualquer modo vigora entre nós o principio da eficácia relativa do caso julgado, pelo que a sentença só produz efeitos inter-partes e não sendo a ora recorrida parte no processo crime jamais lhe seria esta oponível, pelo que, ainda que existisse o caso julgado não se estenderia à aqui recorrida, que não foi parte na causa.

25ª- Também não corresponde à verdade que no processo crime resultou provado que o arguido não violou as regras de segurança, pois que o processo penal se rege por outras regras e princípios diferentes do processo civil, pelo que a absolvição se fundou no principio in dubio pro reo, ou seja, o arguido pese embora não fosse condenado, também não demonstrou que não praticou os factos dos quais vinha sendo acusado.

26ª- E não resultar provado determinado facto, não significa que ficou provado o contrário, ou seja não ficar provado que violou as regras de segurança, não significa que ficou provado que as cumpriu.

27ª- Com doutamente salienta o acórdão recorrido, competia ao sinistrado e seguradora, não obstante a existência de sentença absolutória, a prova dos factos vertidos nos pontos 23, 24 e 25 da matéria de facto dada como provada, “como fizeram”, da responsabilidade agravada da empregadora e da violação das regras de segurança .

28º- A recorrente alude também à apreciação da “Dinâmica do Acidente” e “Dos planos de segurança”, sucede porém, salvo o devido respeito, que tal nem sequer pode ser objecto de recurso de revista excepcional, pois que não se enquadram no disposto no art. 672º do CPC;

29ª- Contudo, salvo o devido respeito, duvidas não restarão quanto à obrigatoriedade da entivação da vala e quanto à natureza do solo, pois risco de soterramento é enorme neste tipo de trabalhos, e por isso a planificação da segurança e saúde é fundamental, não tendo sido efectuado qualquer estudo geológico do terreno, executou-se a obra sem ser efectuado um planeamento e acompanhamento efectivo e eficaz dos trabalhos.

30ª- Inequivocamente as causas do acidente foram a falta de planificação dos trabalhos, o desconhecimento das características geológicas do solo, a ausência de entivação face às características do solo e da vala que era necessária, sobrecarga e vibração causada pelo depósito das terras ao lado da vala e da máquina em movimento, ausência de técnicos de prevenção de segurança no acompanhamento da obra e falta de formação específica dos trabalhadores.

31ª- E se “a obra teve início antes de ser aprovado o plano de segurança”, sibi imputat, pois que sabe, devia saber, e não pode ignorar que não devia dar início aos trabalhos sem o plano de segurança aprovado, o que revela o seu desprezo pelos trabalhadores e a sua segurança e integridade física.

32ª- E como a nossa Doutrina e Jurisprudência também é unânime neste aspecto, como refere Cruz Carvalho in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, pg.83:

Para que se verifique a existência de um acidente de trabalho com culpa da entidade patronal, não é necessário uma culpa grave, bastando que se verifique a simples culpa, o que consiste na falta de cuidado em não se prever o que se deveria ter previsto; não se tomando as precauções devidas para evitar o resultado”.

32ª- E se “ a obra teve início antes de ser aprovado o plano de segurança”, sibi imputat, pois que sabe, devia saber, e não pode ignorar que não devia dar início aos trabalhos sem o plano de segurança aprovado, o que revela o seu desprezo pelos trabalhadores e a sua segurança e integridade física.”

2 – ENQUADRAMENTO JURÍDICO ADJETIVO

Os presentes autos respeitam a processo especial de acidente de trabalho participado em 23 de Março de 2011.

O acórdão recorrido foi proferido em 25 de novembro de 2017.

É assim aplicável:

- O Código de Processo Civil (CPC) na versão atual, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho.

- O Código de Processo do Trabalho (CPT), também na versão atual.

3 - ÂMBITO DO RECURSO – DELIMITAÇÃO

Face às conclusões formuladas e não considerando as destinadas a fundamentar a admissibilidade do recurso de revista excecional, as questões submetidas à nossa apreciação consistem em saber:

1 – Se o acórdão da Relação ao confirmar a sentença na parte em que decidiu ter existido violação pela recorrente das regras de segurança violou o caso julgado formado pela sentença absolutória proferida pelo tribunal de Valpaços no processo-crime nº 192/10.0GAVLP;

2 – Se no recurso de apelação e no que tange à impugnação da decisão sobre a matéria de facto foram cabalmente cumpridos pela recorrente os ónus impostos pelo art. 640º do CPC;

3 – Se a recorrente violou as regras de segurança.

4 - FUNDAMENTAÇÃO

4.1 - OS FACTOS

A matéria de facto julgada provada pelas instâncias é a seguinte:

“1. A co-ré “CC, Lda.” dedica-se à construção civil e obras públicas.

2. No exercício dessa actividade, contratou o aqui autor para trabalhar sob as suas ordens, direcção e fiscalização, como operador de máquinas, auferindo o salário mensal de € 750,00 x 14 meses + € 5,13 x 242 + € 125,30 de outras remunerações, perfazendo a retribuição anual de € 11.866,76.

3. Cumprindo o horário de 2.ª a 6.ª feira, das 08h00 às 12h00 e das 13h00 às 17h00 horas e para prestar serviço em qualquer lugar onde a ré tivesse obras em execução.

4. No dia 07/07/2010, pelas 17h00 horas, em Valpaços, local onde a co-ré, entidade empregadora, executava uma obra para instalação de saneamento básico, o autor foi vítima de um acidente.

5. Pelos períodos de incapacidade temporária absoluta e parcial o autor foi indemnizado pela co-ré/seguradora no valor de € 5.157,10, não tendo recebido qualquer montante por parte da co-ré/empregadora.

6. O autor despendeu € 300,00, em despesas de transporte com as deslocações obrigatórias ao Tribunal e audiências de julgamento de 11/12/20112, 7/3/2012, 12/10/2016 e exame por Junta Médica de 10/07/2012.

7. A co-ré empregadora havia transferido a sua responsabilidade infortunística para a co-ré seguradora, mediante contrato titulado pela apólice n.º 5809895, pelo salário de € 750,00 x 14 meses + € 5,13 x 242 dias + € 125,30 de outras remunerações, perfazendo a retribuição anual de € 11.866,76.

8. A Autoridade Para as Condições de Trabalho (ACT) levou a cabo processo de inquérito ao acidente dos autos, o qual deu origem ao processo de contra-ordenação n.º 281000603, o qual foi impugnado pela co-ré/empregadora.

9. Por decisão proferida em 20/11/2012 no referido processo de contra-ordenação, que correu termos neste Tribunal sob o n.º 570/11.8TTVRL, já transitada em julgado, foi a aqui co-ré empregadora condenada na coima de € 4.000,00 pela prática da infracção prevista e punida pelos arts. 66.º e 67.º do Regulamento de Segurança no Trabalho e Construção Civil, aprovado pelo Decreto-lei n.º 41821, de 11/08/1958, e art. 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de Agosto.

10. No processo comum singular n.º 192/10.0GAVLP, que correu termos na Instância Central Local – Secção de Competência Genérica – J1, comarca de Vila Real, por sentença de 27/01/2016, já transitada em julgado, foi o ali arguido DD absolvido da prática do crime de infracção das regras de construção, p. e p. pelo art. 277.º, n.º.1, alínea a) do Código Penal, em conjugação com os arts. 22.º do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de Outubro, 13.º da Portaria n.º 101/96, de 3 de Abril, 66.º a 72.º e 79.º do Regulamento de Segurança no Trabalho e Construção Civil – Decreto n.º 41821, de 11 de Agosto de 1958, bem como do pedido civil contra si formulado naqueles autos.

11. O acidente em apreço ocorreu quando o autor, que se encontrava no interior de uma vala, colocava anéis (argolas) de betão pré-fabricados e ficou com a mão esquerda entalada entre as argolas.

12. Em consequência desse acidente o autor sofreu traumatismo nos dedos da mão esquerda, esfacelo de D3 e D3 da mão esquerda, com fractura exposta de F1 dos 2.º, 3.º e 4.º dedos.

13. Estes ferimentos resultantes do acidente determinaram, directa e necessariamente, doença com ITA de 08/07/2010 a 03/02/2011, num total de 216 dias, ITP a 30% de 04/02/2011 a 10/03/2011, ou seja, 35 dias, e ITP a 25% de 11/03/2011 a 18/03/2011, ou seja, 8 dias.

14. O autor teve alta clínica em 18/03/2011.

15. Em consequência das lesões sofridas ficou o autor portador de sequelas, traduzidas em rigidez das MF e IF dos 2.º, 3.º e 4.º dedos, equivalente a uma IPP de 18,309%.

16. O autor, na altura do acidente, executava trabalhos para instalação de saneamento básico, tendo a vala aberta uma altura aproximada de 5 metros e uma largura de 3 metros.

17. O autor e outro dos trabalhadores ao serviço da co-ré empregadora encontravam-se dentro dessa vala, para executar as juntas nos anéis (argolas) pré-‑esforçadas para construção das caixas de saneamento.

18. Dentro da vala o sinistrado estava posicionado entre a caixa e o talude da vala.

19. Um trabalhador da empresa “Socorpena, Lda.”, manobrando uma máquina giratória, continuava a abrir essa mesma vala, colocando as terras lateralmente, enquanto em simultâneo o autor e o seu colega estavam dentro da vala executando as tarefas referidas em 17.

20. A co-ré empregadora permitiu a permanência do autor/sinistrado dentro de um raio da acção da máquina retroescavadora, enquanto esta se encontrava em funcionamento.

21. Como a vala não tinha qualquer entivação, designadamente através da colocação de pranchas ou de travejamento horizontal ou vertical, as terras desprenderam-se e caíram por cima dos trabalhadores, um dos quais o autor, deixando-‑os soterrados.

22. Na sequência desse desprendimento de terras, o autor ficou as mãos entaladas entre as argolas.

23. A co-ré empregadora não tinha nos seus quadros e no local do acidente qualquer responsável pela segurança dos seus trabalhadores.

24. Não foi elaborado qualquer plano de segurança e saúde que contemplasse o risco de soterramento.

25. A co-ré empregadora não coordenou o controlo da correcta aplicação dos métodos de trabalho, nem por qualquer forma pôs em prática qualquer plano de segurança que contemplasse o risco de soterramento.

26. Antes do início da obra, a ré empregadora deu informação e formação aos seus trabalhadores para este tipo de trabalhos, através da empresa “Socorpena”.

27. A co-ré seguradora encontra-se a pagar ao autor pensão provisória, calculada com base numa IPP de 18,309%, tendo liquidado até 31/10/2016 a quantia de € 8.538,36.”

4.2 - O DIREITO

Vejamos então as referidas questões que constituem o objeto do recurso, mas não sem que antes se esclareça que este tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações e conclusões, mas apenas as questões suscitadas ([4]).

4.2.1 – Se o acórdão da Relação ao confirmar a sentença na parte em que decidiu ter existido violação pela recorrente das regras de segurança violou o caso julgado formado pela sentença absolutória proferida pelo tribunal de Valpaços no processo-crime nº 192/10.0GAVLP.

A recorrente já havia suscitado no recurso de apelação a violação do caso julgado pela sentença da 1ª instância.

Apreciando a questão, referiu-se no acórdão revidendo:

«Nos termos do art. 580.º do mencionado diploma legal, a excepção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, tendo por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.

Acrescenta o art. 581.º que se repete a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, havendo identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.

Ora, resulta dos autos que no processo comum singular n.º 192/10.0GAVLP, que correu termos na Instância Central Local – Secção de Competência Genérica – J1, comarca de Vila Real, por sentença de 27/01/2016, já transitada em julgado, foi o ali arguido DD absolvido da prática do crime de infracção das regras de construção, p. e p. pelo art. 277.º, n.º.1, alínea a) do Código Penal, em conjugação com os arts. 22.º do Decreto-Lei n.º 273/2003, de 29 de Outubro, 13.º da Portaria n.º 101/96, de 3 de Abril, 66.º a 72.º e 79.º do Regulamento de Segurança no Trabalho e Construção Civil – Decreto n.º 41821, de 11 de Agosto de 1958, bem como do pedido civil contra si formulado naqueles autos.

Tenha-se em conta que o art. 277.º, n.º 1, al. a) do Código Penal dispõe que quem, no âmbito da sua actividade profissional, infringir regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação ou conservação, e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de um a oito anos.

Como é bom de ver, em termos singelos, o processo identificado teve por objecto a apreciação da responsabilidade criminal do referido DD e ainda da sua responsabilidade civil perante, além do mais, o ora autor AA, fundadas na alegada violação pelo mesmo de normas reguladoras da sua actividade profissional de engenheiro civil responsável pela obra.   

A presente acção, por seu turno, no que interessa e também em termos singelos, tem por objecto a apreciação da responsabilidade agravada pela violação de regras de segurança da ora ré, na qualidade de empregadora, pelas consequências do acidente de trabalho sofrido pelo seu trabalhador e ora autor AA.

Assim, é por demais evidente que inexiste identidade de sujeitos (numa acção o demandante é um mero lesado – que por coincidência era trabalhador na obra – e o demandado é o engenheiro civil responsável pela obra, na outra acção o demandante é o trabalhador e a demandada é a empregadora), nem identidade de pedidos (numa acção está em causa uma indemnização nos termos gerais da responsabilidade civil, na outra acção estão em causa prestações em dinheiro e ou em espécie nos termos da responsabilidade por acidente de trabalho), nem identidade de causas de pedir (numa acção o pedido emerge da verificação de acto ilícito e culposo praticado no exercício da profissão, na outra acção o pedido emerge da verificação de acidente de trabalho).

Assim, sem necessidade de mais considerações, julga-se improcedente a invocada excepção dilatória do caso julgado.»

Subscrevemos estas considerações.

Acresce que o art. 624º, nº 1, do CPC, estabelece apenas que “a decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário”, ou seja, não tem força de caso julgado nas ações de natureza cível como é a presente, sendo ainda certo que o arguido naquele processo-crime não é parte na presente ação.

Pelo exposto concluímos que não se verifica ofensa de caso julgado.

4.2.2 - Se no recurso de apelação e no que tange à impugnação da decisão sobre a matéria de facto foram cabalmente cumpridos pela recorrente os ónus impostos pelo art. 640º do CPC;

Estabelece o art. 640º do CPC:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Vistas as alegações e as conclusões da apelação, constata-se que a recorrente, impugna a decisão sobre a matéria de facto com base na prova documental e nos depoimentos das testemunhas que indica.

Relativamente aos depoimentos das testemunhas a recorrente omite em absoluto a indicação das passagens da gravação em que se funda o seu recurso e mesmo o início e o termo dos mesmos.

Refere que fez a indicação por remissão para [a] sentença que o faz, com o que cumpriu o ónus do art. 640º, nº 1.

O preceito em causa é perfeitamente claro ao impor ao recorrente na alínea a), do nº 2, a indicação com exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso.

É certo que esta Secção vem entendendo que o recorrente cumpre suficientemente aquele ónus, quando, apesar de omitir a indicação precisa do início e do termo das concretas passagens da gravação visadas, tenha procedido, no corpo das alegações, à transcrição dos excertos dos depoimentos que pretende ver reapreciados ([5]).

No caso, a recorrente não concretizou as passagens em causa, nem procedeu à respetiva transcrição, com o que efetivamente não cumpriu o indicado ónus, cuja inobservância conduz à rejeição do recurso no que tange à reapreciação da prova gravada, ainda que, como alega, a reapreciação da prova testemunhal tenha sido requerida “de forma acessória, como "pedra de toque" de fecho da abóboda da argumentação das alegações e não como seu fundamento, per si”.

Diga-se ainda, que na sentença e na motivação da decisão de facto, o juiz limitou-se a consignar o resumo dos depoimentos (como expressamente se refere) e não a transcrevê-los. Ora, a reapreciação da prova e a eventual alteração da decisão só é possível com a audição (ou leitura) das passagens da gravação em que se funda o recurso, cuja indicação precisa ou a respetiva transcrição constitui ónus do recorrente.

Não merece, por conseguinte, qualquer censura a decisão da Relação ao rejeitar o recurso no tocante à reapreciação da prova gravada.

É certo que a recorrente peticionou a alteração da decisão da matéria de facto, não só com base na prova testemunhal, mas também com base na prova documental que indicou.

Assim, a rejeição da reapreciação da matéria de facto apenas poderia limitar-se à prova testemunhal, devendo a Relação conhecer do recurso reapreciando a prova com base nos documentos indicados.

E a Relação fê-lo.

Consignou-se no acórdão revidendo:

«Em primeiro lugar, não procede o argumento de que, tendo-se dado como provado sob o n.º 26 que, antes do início da obra, a ré empregadora deu informação e formação aos seus trabalhadores para este tipo de trabalhos, através da empresa “Socorpena”, aqueles factos deveriam ser dados como não provados, sob pena de contradição, uma vez que é manifesto que tal não ocorre. A formação dada aos trabalhadores não dispensava a empregadora de observar os demais deveres em matéria de segurança no trabalho, designadamente os ali aludidos.

(…)

A Apelante fundamenta igualmente a sua pretensão na prova feita no processo-‑crime acima identificado.

Estabelece o art. 624.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe «Eficácia da decisão penal absolutória», que a decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário (n.º 1), presunção essa que prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil (n.º 2).

Está em causa uma norma que confere valor probatório legal extraprocessual à decisão penal absolutória, como sucede na norma que a precede com a decisão penal condenatória, mas, em ambos os casos, nos estritos termos aí estipulados.

Ora, como referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre sobre o preceito em apreço, “[n]uma primeira leitura (…) dir-se-ia que, tal como acontece com a sentença condenatória (art. 623), a decisão penal absolutória constitui sempre uma presunção legal quanto aos factos que nela tenham sido dados como inexistentes  ou não praticados pelo arguido, invertendo o ónus da prova, agora também entre as partes.

Essa leitura seria absurda. Na generalidade dos casos, a prova da inexistência dum facto não altera a distribuição do ónus da prova: não provado o facto em processo penal (…) não se constitui a presunção do art. 623 e o autor da acção civil continua onerado, tal como se não tivesse havido sentença penal, com a prova dos factos constitutivos do seu direito. (…) Pode, porém, a absolvição basear-se na prova de factos impeditivos do efeito dos factos constitutivos que, de outro modo, levariam à condenação. Passa então a caber ao autor da acção civil o ónus de provar o contrário. (…) Não se trata, pois, da presunção da inexistência dum facto (como, com menos rigor, se lê no preceito), mas da presunção da ocorrência do seu contrário. Por outro lado, a previsão do artigo em anotação não é integrada pela absolvição no processo penal por falta de prova dos factos imputados ao arguido, mas pela absolvição pela prova (positiva) de factos de que, na acção civil, ele teria, de outro modo, o ónus.”

Posto isto, e retornando ao caso dos autos, temos que o facto de no processo-crime acima indicado ter sido proferida decisão diversa relativamente aos factos que foram considerados como provados sob os n.ºs 23, 24 e 25 era irrelevante para o desfecho da presente acção, visto que, de qualquer modo, era ao sinistrado e ou à seguradora que cabia o ónus de os provar, como fizeram, não fazendo sentido que existisse uma presunção ilidível da sua inexistência.

Como sublinham os autores citados, existe sempre essa “presunção de inexistência dos factos” contra quem, nos termos gerais, tem o ónus de os provar. Assim, como aqueles realçam, a decisão penal absolutória acima aludida só poderia ter algum relevo se tivesse assentado na prova de factos cuja prova, na presente acção, coubesse à empregadora, caso em que o ónus se inverteria em desfavor do sinistrado e ou seguradora, o que não sucede relativamente a todos os factos ora em questão, que, por integrarem o direito do sinistrado e os requisitos de extinção da obrigação da seguradora, eram estes que tinham de provar, como fizeram.

Em sentido semelhante, veja-se o Acórdão deste Tribunal proferido no processo n.º 330/06.8TTVNF.G1 (Relator Antero Veiga), em que intervieram como adjuntos os ora Relatora e 1.º Adjunto.

Em suma, não se vislumbra hipótese em que, em processo de acidente de trabalho, seja relevante a decisão penal que absolveu o arguido da prática do crime de infracção das regras de construção, p. e p. pelo art. 277.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, porque, de qualquer modo, é ao sinistrado e ou à seguradora que compete a prova dos factos que fundamentam a responsabilidade agravada do empregador por violação de regras de segurança no trabalho.

Desiderato que, como resulta da factualidade provada e respectiva fundamentação, o autor e a seguradora lograram alcançar nos presentes autos, sem que a empregadora tenha de modo legalmente admissível impugnado a respectiva decisão.

Em face do exposto, improcedendo a alteração da matéria de facto provada, que na economia do recurso da ré empregadora era pressuposto necessário de diferente decisão final, improcede tal recurso.»

Afastada a ofensa de caso julgado, a reapreciação da prova levada a cabo pela Relação, porque inserida no âmbito da livre apreciação, está arredada dos poderes sindicantes deste Supremo Tribunal (art. 674º, nº 3, do CPC).

Termos em que o recurso improcede nesta parte.

4.2.3 – Se a recorrente violou as regras de segurança.

Tanto a 1ª instância como a Relação concluíram e decidiram, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, que a recorrente violou as regras de segurança.

Estamos, por conseguinte, perante uma clara situação de dupla conforme impeditiva do conhecimento, neste momento, desta questão por este Supremo Tribunal (art. 671º, nº 3, do CPC).

A recorrente, todavia interpôs o recurso nos termos do art. 672º do CPC.

Quando ouvida sobre a impossibilidade do conhecimento desta questão nesta revista, reiterou o pedido do seu conhecimento em sede de revista excecional.

No acórdão proferido nos autos a formação prevista no art. 672º, nº 3 do CPC, não se pronunciou quanto à verificação ou não dos pressupostos invocados, tendo-se limitado a considerar a inexistência de dupla conforme pelo facto do recurso ter também como objeto a invocada violação do caso julgado e a rejeição da apelação no que tange à reapreciação da prova gravada.

Negada a revista quanto aos fundamentos da revista nos termos gerais, impõe-se nova remessa dos autos àquela formação para que, nos termos do art. 672º, nº 3 do CPC, se pronuncie sobre a verificação dos invocados pressupostos de admissibilidade da revista excecional, quanto à epigrafada questão.

5 - DECISÃO

Pelo exposto delibera-se:

1 – Negar a revista e confirmar o acórdão recorrido no tocante à exceção do caso julgado e à rejeição da apelação para reapreciação da prova gravada.

2 – Determinar a remessa dos autos à formação prevista no art. 672º, nº 3 do CPC, para apreciação dos invocados pressupostos de admissibilidade da revista excecional relativamente à questão da violação, pela recorrente, das regras de segurança.

3 - Condenar a recorrente nas custas da revista, nesta parte em que já decaiu, e que se fixam em 2/3.

Anexa-se o sumário do acórdão.

Lisboa,

(António Manuel Ribeiro Cardoso)

(João Fernando Ferreira Pinto)

(Joaquim António Chambel Mourisco)

Lisboa,

(Ribeiro Cardoso)
(Ferreira Pinto)
(Chambel Mourisco)

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[1] Relatório elaborado tendo por matriz o constante no acórdão formação prevista no n.º 3 do artigo 672° do C.P.C.
[2] Acórdão redigido segundo a nova ortografia com exceção das transcrições (em itálico) em que se manteve a original.
[3] Cfr. 635º, n.º 3 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil, os Acs. STJ de 5/4/89, in BMJ 386/446, de 23/3/90, in AJ, 7º/90, pág. 20, de 12/12/95, in CJ, 1995, III/156, de 18/6/96, CJ, 1996, II/143, de 31/1/91, in BMJ 403º/382, Rodrigues Bastos, in “NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL”, vol. III, pág. 247 e Aníbal de Castro, in “IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS”, 2ª ed., pág. 111.    
[4] Ac. STJ de 5/4/89, in BMJ, 386º/446 e Rodrigues Bastos, in NOTAS AO Código de Processo CivIL, Vol. III, pág. 247, ex vi dos arts. 663º, n.º 2, 608º, n.º 2 e 679º do CPC.
[5] Acórdão deste mesmo coletivo de 22.02.2017, processo n.º 988/08.3TTVNG.P4.S1, in www.dgsi.pt.