Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1704/21.0T8GRD.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: CASO JULGADO
EMBARGOS DE EXECUTADO
Data do Acordão: 05/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :
I- Julgados improcedentes embargos opostos a uma execução, o ali executado pode, em processo posterior, vir invocar meios de defesa que podia ter invocado (e não invocou) nos embargos que opôs à anterior execução e, a partir daqui, obter a restituição do pagamento que, no âmbito da anterior execução, haja efetuado ao ali exequente.
II- Efetivamente, não existe no CPC um qualquer preceito legal que estabeleça o ónus de embargar e tal ónus também não é extraível, por interpretação, dos artigos 728.º/1 e 2 e 732.º/6, ambos do CPC, o que significa, não estando consagrado tal ónus de embargar, que não ficam precludidos os fundamentos não invocados (e que não há preclusão decorrente da não dedução de embargos).
III- O sentido do atual art. 732.º/6 do CPC é o de deixar claro que uma decisão de mérito proferida nos embargos é dotada da força geral do caso julgado material em relação à causa de pedir e aos fundamentos que ali foram invocados (não impedindo nova ação de apreciação baseada em outra causa de pedir), ou seja, o caso julgado que se constitui é restrito à causa de pedir invocada e, em consequência, não há preclusão em relação ao que não foi invocado/discutido nos embargos.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 1704/21.0T8GRD.C1.S1





ACORDAM, NA 6ª SECÇÃO, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I - Relatório
Matadouro Beira Alta, Agrupamento de Produtores de Carnes do Distrito da Guarda S.A., com sede no Parque Industrial ..., Lote ...6, propôs a presente ação declarativa com processo comum contra Caixa Geral de Depósitos, com sede na Av. ..., ..., pedindo a condenação da ré a reconhecer que prescreveram as prestações unitárias e globais periodicamente renováveis relativas ao pagamento da totalidade do capital associado ao “contrato de abertura de crédito junto aos autos”, sendo, consequentemente, inexigíveis também quaisquer juros e comissões de disponibilidade de gestão ou outros valores conexos com o referido capital.
Para o efeito, alegou:
Em 04/05/2018, a CGD, aqui ré, deu entrada a uma execução contra o “Matadouro Beira Alta, Agrupamento de Produtores de Carnes do Distrito da Guarda S.A.”, aqui autor, tendo juntado como título executivo um “contrato de abertura de crédito”, celebrado entre a CGD e o Matadouro.
Tal processo de execução corre termos no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, JC Cível e Criminal – Juiz ..., sob º nº 806/18....; tendo a aqui autora deduzido embargos, em que alegou a prescrição dos “juros”, “comissões” e “imposto de selo sobre juros” vencidos há mais de cinco anos; e tendo a CGD contestado os embargos e alegado que o “capital em dívida se estabilizou no dia 14 de Março de 2011, no valor de 149.639,37€ e que “o referido contrato de abertura de crédito venceu-se no dia 14 de Junho de 2011 (trimestre seguinte), data a partir da qual começaram a ser contabilizados juros”.
Após o que a aqui autora tentou que, no âmbito de tais embargos, fosse apreciada a prescrição do crédito de capital, todavia, a sentença não apreciou a questão da prescrição do capital e, no recurso que interpôs da decisão, também não foi apreciada a referida questão.
Assim, não tendo sido apreciada tal questão, pretende o autor que tal questão seja aqui apreciada, sustentando que, tendo sido citado para os termos da execução no dia 21 de Janeiro de 2019, prescreveu, pelo decurso do prazo de 5 anos, o pagamento da totalidade do capital.

A ré contestou.
Opôs a exceção de caso julgado e de preclusão e pediu a absolvição da instância.
E sustentou que o prazo de prescrição do crédito de capital é de 20 anos.

Dispensada a realização da audiência prévia, procedeu-se à elaboração de saneador-sentença, em que se julgou verificada a exceção dilatória de caso julgado e, em consequência, se absolveu a ré da instância.

Inconformado, apresentou o autor recurso de apelação, recurso que, por Acórdão da Relação de Coimbra de 13/12/2022, foi julgado totalmente improcedente e, em consequência, mantida a decisão recorrida.

Ainda inconformado, interpõe agora o A. o presente recurso de “revista excecional”, visando a revogação do acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que julgue não verificada a exceção do caso julgado.
Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:
“(…)
A) É, portanto, admissível a dedução de ação declarativa, após a dedução de oposição à execução, desde que com fundamentos diversos dos apresentados no processo executivo.
B) Mais concretamente, não se invocando nos embargos à execução, antes deduzidos, a prescrição do capital em dívida do crédito exequendo, não fica extinta a faculdade de a invocar e ver declarada em outro processo instaurado contra a exequente.
C) O executado, ao deduzir oposição à execução/embargos de executado, não está obrigado a concentrar nos embargos toda e qualquer defesa, ao contrário do se impõe ao réu quando apresenta contestação numa ação declarativa. Na ação executiva, o executado ao ser citado/notificado para deduzir oposição, não lhe é feita qualquer cominação, pelo que o efeito preclusivo da falta de oposição ou da não dedução de todos os fundamentos, ocorre apenas no processo executivo;
D) A oposição à execução não deve ser perspetivada como uma contestação ao pedido executivo, pelo que não lhe será aplicável a norma prevista no artigo 573.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. A oposição à execução é de entender como uma petição de uma ação declarativa autónoma, em que o seu objeto é definido pelo executado, cada um dos fundamentos que invoca são verdadeiras e autónomas causas de pedir;
E) o artigo 732.º, n.º 6, do Código de Processo Civil (anterior 732.º, n.º 5), prevê que a decisão de mérito ocorrida numa oposição à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda, mas não coloca qualquer óbice à dedução de ação declarativa em diferente causa de pedir, pois tão só as decisões transitadas em julgado e que incidam sobre o mérito da causa, através da apreciação da relação material controvertida discutida na ação é que são suscetíveis de adquirir força de caso julgado material e, como tal de adquirir força obrigatória fora do processo em que foram proferidas, cf. artigos 619.º, 620.º e 621.º do Código de Processo Civil.
F) Até porque, no caso concreto, no âmbito dos embargos antes deduzidos, não foi proferida qualquer decisão incidindo sobre o mérito da causa em discussão nestes autos, ou seja, não foi proferida qualquer decisão acerca da prescrição do capital, nem foram apreciados os respetivos factos fundamentadores dessa prescrição do capital, invocados nestes autos. Efetivamente, quer a causa de pedir quer o pedido desta ação declarativa, são diferentes dos anteriores. Ou seja, não existe caso julgado material sobre a questão de mérito controvertida nestes autos.
G) De referir ainda que, com a Sentença proferida no âmbito do processo nº 806/18...., ou seja, no âmbito dos referidos anteriores embargos de executado, fixou-se, para além do mais, que: “o capital em dívida “estabilizou-se” no dia 14 de março de 2011, no valor de 149.639,37€, tendo-se vencido, nos termos contratualmente acordados, no dia 14 de junho de 2011”. Ou seja, tendo em conta o teor do respetivo contrato de crédito em causa, com essa sentença fixou-se que o prazo para amortização do capital foi “automaticamente renovado por períodos iguais e sucessivos”, até à data da última renovação “no dia 14 de março de 2011”, tendo-se vencido “no dia 14 de junho de 2011”. Pelo que, com a fixação dos referidos factos, que se invocaram nestes autos, tornou-se pertinente e oportuna a invocação da prescrição do capital, o que deve ser deferido no âmbito destes autos (alíneas e) e g) do artigo 310º do Código Civil), pois nunca tal questão foi apreciada à luz dos referidos factos.
H) Até porque a apreciação da prescrição é um procedimento metodológico complexo e dinâmico, dependendo da consideração de vários elementos, quer diretamente materiais (o tempo da prescrição) quer da conjugação do tempo em constante decurso com as várias correntes interpretativas que forem surgindo até ao momento em que a prescrição é invocada e apreciada, sendo que, recentemente, acerca da questão de mérito aqui invocada e ainda não apreciada, foi proferido por este STJ um ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA, n.º 6/2022, de 22 de setembro, Publicado: Diário da República n.º 184/2022, Série I de 2022-09-22, páginas 5 – 15, cujo sumário refere: «I - No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação. II -Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.» (…)”

A ré respondeu, sustentando, em síntese, que o Acórdão recorrido não violou qualquer norma, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.

Remetidos os autos, após se considerar verificada a “dupla conforme”, à Formação a que alude o art. 672º/3 do CPC, foi decidido, por Acórdão da Formação de 14/03/2023, admitir a Revista excecional, nos termos do artigo 672°/1/a) do C P. Civil (resultando “em decorrência, prejudicada a análise dos fundamentos impugnatórios atinentes à relevância social da questão objeto de recurso e da oposição de julgados”).

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

*

II – Fundamentação de Facto
Factos provados com relevo para a decisão:
1.Em 24/05/2018, a ré intentou uma ação executiva contra a autora, juntando como título executivo o “contrato de abertura de crédito em conta corrente de utilização simples”, junto nos autos a fls.15 a 21, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, celebrado entre a autora e a ré, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Juízo Central Cível e Criminal – Juiz ..., sob o nº 806/18.....
2.A aqui autora foi citada para os termos da referida execução no dia 21 de Janeiro de 2019.
3.Consta do mencionado contrato de abertura de crédito em conta corrente de utilização simples que:
“(…)
6. Prazo
6.1 – 6 meses, com início na data da perfeição do contrato, adiante indicado na parte final.
6.2 - O prazo referido será automaticamente renovado por períodos iguais e sucessivos, a menos que a Caixa, ou o(s) 1º(s) CONTRAENTE(S), denuncie o contrato por escrito, e com, pelo menos, 30 dias de antecedência, em relação ao termo do prazo que estiver em curso. (…)
8. UTILIZAÇÃO DE FUNDOS-MOVIMENTAÇÃO DA CONTA-CORRENTE A conta corrente será movimentada
8.1 – A DÉBITO, por crédito da conta de depósitos à ordem constituída em nome do(s) primeiro(s) CONTRATANTE(S), sob o nº ...30, na agência da CGD em ... … (…)
12. PAGAMENTOS (…)
12.3 – Amortização do capital – No termo do prazo ou, em caso de renovação, no termo do último prazo renovado.” Na parte final do mencionado contrato consta: “Data considerada para perfeição do contrato: 14 de Setembro de 2001”.
4.No requerimento executivo, na parte respeitante à “liquidação da obrigação” consta, para além do mais, que: “Juros de 14/06/2013 a 27/04/2018: 78.787,05€”; …“A partir de 28/04/2018 são devidos juros à razão diária de 35,97€, a que corresponde a taxa de 8,325%, a qual inclui a sobretaxa de mora de 3% nos termos do art. 8º do Dec. Lei 58/2013 de 08/05.
5.No mencionado processo de execução, a autora deduziu embargos de executado, em que alegou, para além do mais, que: “(…) Quanto aos “juros”, “comissões” e “imposto de selo sobre juros” somados ao capital líquido, a sua alegação a nível processual impõe a indicação das circunstâncias necessárias à sua quantificação, designadamente o valor do capital, a data de vencimento/constituição em mora, a respetiva taxa, a respetiva fundamentação dos cálculos e as datas limite em que é operada a liquidação.
6.Mais alegou a aqui autora que na “liquidação da obrigação”, a exequente omitiu a taxa aplicada, as datas limite em que é operada a liquidação (relativamente às “comissões” e “imposto de selo sobre juros”) e a respetiva fundamentação dos cálculos do “valor dependente de simples cálculo aritmético” e do “valor Não dependente de simples cálculo aritmético” relativamente aos valores que parecem dizer respeito a “juros”, “comissões” e “imposto de selo sobre juros”.
7.O mencionado processo de embargos de executado correu termos no Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Juízo Central Cível e Criminal – Juiz ..., sob o nº 806/18.....
8.Na contestação aos embargos de executado, a aqui ré invocou, para além do mais, que: “... o capital em dívida se estabilizou no dia 14 de Março de 2011, no valor de 149.639,37€ …”; “ o referido contrato de abertura de crédito venceu-se no dia 14 de Junho de 2011 ( trimestre seguinte), data a partir da qual começaram a ser contabilizados juros”.
9.Face ao alegado da referida contestação, em 08/05/2019, a aqui autora juntou aos autos de processo 806/18...., o requerimento de fls. 64 a 65, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, do qual consta, para além do mais, que “…uma vez que foram alegados factos novos na contestação (art.º 587º, 2ª parte do CPC)” (…) e como “3. (…) A exequente não especifica qual a data em que o alegado contrato terá sido resolvido; alega, no entanto, que o “capital em dívida se estabilizou em 14/03/2011”. Ora, conforme consta do extracto junto pelo exequente com o Requerimento Executivo, o “capital em dívida se estabilizou em” 02/10/2003 e não em 14/03/2011.
Assim, se o critério do vencimento é a data em que o “capital em dívida se estabilizou”, tendo-se verificado tal estabilização em 02/10/2003, tendo o executado já invocado o instituto a prescrição na sua oposição à execução, clarifica que a prescrição invocada abrange assim também todas “As quotas de amortização do capital pagáveis com os juros” e Quaisquer outras prestações periodicamente renováveis”, nomeadamente relativas também a devolução de capital, previstas nas alíneas e) e g) do artigo 310º do Código Civil, vencidas, pelo menos desde a data de 02/10/2003”.
10. Em 02.07.2019, foi proferido o despacho saneador sentença junto nos autos a fls. 67 a 77, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, nos termos do qual o Tribunal decidiu julgar “parcialmente procedente a exceção de prescrição invocada pela executada, julgando prescritos os juros de mora liquidados (de 14/06/2013) até o dia 21 de Janeiro de 2014, determinando a notificação da exequente para reformular a liquidação de tal obrigação apenas a partir do dia 21 de Janeiro de 2014, absolvendo-se a embargada do demais peticionado.”
11. Na fundamentação de tal decisão consta ainda que:
“Relativamente ao valor do capital em dívida dúvidas não existem, por não ter sido sequer objeto de exceção, que o prazo de prescrição é o ordinário, de 20 anos, que, após a data do seu vencimento, ainda não decorreu (cfr. artigo 309º do Código Civil).”
12. A autora interpôs recurso de tal decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo sido proferido o acórdão de fls. 81 a 87, onde para além do mais, se decidiu que a questão da prescrição do capital é “uma questão nova, não pode, agora, ser conhecida em fase de recurso, sendo o mesmo, nesta parte improcedente.”
13. A autora interpôs recurso do mencionado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual não foi admitido.
14. Por acórdão de 11 de Maio de 2021, o Tribunal da Relação de Coimbra indeferiu a reclamação apresentada pela aqui autora, por considerar inexistir qualquer nulidade do acórdão mencionado no art. 11) da factualidade assente, por omissão de pronúncia.
15. A decisão e os acórdãos mencionados nos artigos 10), 12) 13) e 14) estão transitadas em julgado.

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III – Fundamentação de Direito
A presente revista, excecionalmente admitida pela Formação (nos termos do art. 672.º/3 do CPC), coloca-nos exclusivamente perante uma questão de caso julgado, mais exatamente, perante a questão de saber se, julgados improcedentes embargos opostos a uma execução, o ali executado pode, em processo posterior (como é o caso da presente ação), vir invocar meios de defesa que podia ter invocado (e não invocou) nos embargos que opôs à anterior execução e, a partir daqui, obter a restituição do pagamento que, no âmbito da anterior execução, haja efetuado ao ali exequente.
Questão a que, sem prejuízo da proficiente argumentação constante do acórdão recorrido, nos inclinamos, antecipando a conclusão, a dar resposta afirmativa, ou seja, a dizer que o ali executado pode vir invocar meios de defesa que podia ter invocado (e não invocou) nos embargos que opôs à anterior execução.
Percebemos que se contraponha – como faz o Conselheiro Abrantes Geraldes, in CPC Anotado Volume II, Almedina, páginas 80 e 81 – que é “dificilmente compreensível a razoabilidade de um modelo processual que, nos termos da primeira tese referida [a tese de que a não utilização dos meios de defesa na execução não preclude a posterior invocação noutra ação das exceções não opostas ao direito exequendo]…., conferisse ao executado a possibilidade de questionar, em ação autónoma, com base num alegado enriquecimento sem causa do exequente, o direito de crédito que este invocou na ação executiva e que, no entanto, o executado não questionou ou não questionou de forma completa quando teve a oportunidade de deduzir embargos”.
Assim como percebemos que se observe – como faz o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in Blog do IPPC (em comentário ao Ac. deste STJ de 19/03/2019) – que “qualquer leigo terá enorme dificuldade em aceitar que essa solução [que se traduz, primeiro, num pagamento do executado ao exequente e, depois, numa restituição por este do que anteriormente tenha recebido daquele mesmo executado] possa corresponder a um bom e normal funcionamento da justiça”.
Sucede – é o ponto – que não existe no CPC um qualquer preceito legal que estabeleça o ónus de embargar e também não nos parece que se possa/deva afirmar que tal ónus é extraível, por interpretação, dos artigos 728.º/1 e 2 e 732.º/6 ambos do CPC.
Tanto mais que, numa tal tarefa interpretativa não pode perder-se de vista, como o TC vem considerando, que, “num processo equitativo, não podem aceitar-se efeitos preclusivos intensos sobre direitos essenciais das partes com base em regras pouco claras. Ou, dito de outro modo, quanto mais intenso é o efeito preclusivo (intensidade medida pela centralidade do direito afetado), mais exigente deve ser o intérprete com a clareza da regra na qual esse efeito se baseia, clareza que se há de buscar, antes de mais, na própria letra da lei, regra que visa evitar que o risco interpretativo seja desproporcionadamente alocado à parte, com sacrifício dos seus direitos processuais, e injustificadamente aliviado do lado do legislador, que tem o dever de sinalizar com clareza os efeitos desfavoráveis, principalmente a supressão de direitos processuais de grande importância[1].
E começamos por acentuar este aspeto – sobre a não consagração na lei processual dum ónus de embargar – por a solução a que se chegue ter que ser idêntica quer para o caso de, tendo-se deduzido embargos, não se haverem neles deduzido os meios de defesa que agora se vêm invocar quer para o caso de nem sequer se haverem deduzido embargos; e por, naturalmente, tal identidade de solução ser a consequência da existência dum ónus de embargar.
E se, em relação à 1.ª hipótese, ainda poderá ser invocado/interpretado o disposto no art. 732.º/6 do CPC – isto é, pode ser invocado que foi proferida uma decisão de mérito nos embargos e que a mesma constitui, segundo a interpretação que possa ser feita de tal preceito, caso julgado quanto a tudo o que diga respeito à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda – outro tanto não acontece em relação à 2.ª hipótese, em que, não tendo sido deduzido embargos, não existe uma qualquer decisão de mérito proferida nos embargos a que seja atribuída força de caso julgado material e que possa servir de fulcro e alicerce ao raciocínio segundo o qual todos os meios de defesa e tudo o que diga respeito à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda (por não terem sido deduzidos embargos) não pode mais ser deduzido e discutido.
Como se reconhece no acórdão recorrido, a questão sub-judice é hoje controvertida na jurisprudência[2] e na doutrina, porém, no passado, atrevemo-nos a dizer que chegou a ser um pouco menos controvertida.
A seu propósito, ensinava o Prof. Anselmo de Castro[3] que a ação executiva “existe para realizar o direito, com tanto se bastando e não para o declarar; logo, também esse fim não pode ser assinado à oposição e impor-se ao executado o ónus de a deduzir. A oposição está instituída, na e para a execução, tão só para os fins que a lei lhe fixa, quando o executado a queira deduzir, de suspender ou anular a execução e não para que em todo o caso seja tornado ou fique certo o direito do credor”. Acrescentado ainda que “para se ter como excluída a ação de restituição do indevido na falta de oposição seria preciso ver-se na ação executiva uma ação declarativa do direito a ela acoplada, de que a oposição à execução funcionasse como contestação, e não o pode ser, por nenhum pedido de declaração do direito comportar o pedido de execução. Ou ver na ação executiva uma provocatio ad agendum para declaração negativa do direito do credor, isto é, o exercício de uma ação declarativa provocada.
Na mesma linha de raciocínio, sustentava o Prof. Lebre de Freitas[4] que, “(…) diversamente da contestação da ação declarativa, a oposição por embargos de executado, constituindo, do ponto de vista estrutural, algo de extrínseco à ação executiva, toma o caráter duma contra-ação tendente a obstar à produção dos efeitos do título executivo e (ou) da ação que nele se baseia. (…)
Constituindo petição duma ação declarativa e não contestação duma ação executiva, a propositura de embargos de executado não representa a observância de qualquer ónus cominatórios (ónus de contestação, ónus de impugnação especificada) a cargo do réu na ação declarativa. (…)
Mas, na medida em que os embargos de executado são o meio de oposição à execução idóneo à alegação dos factos que em processo executivo constituiriam matéria de exceção, o termo do prazo para a sua dedução faz precludir o direito de os invocar no processo executivo, a exemplo do que acontece no processo declarativo: enquanto neste o efeito preclusivo se dissolve, com a sentença, no efeito geral do caso julgado, tal não acontece no processo executivo, em que não há caso julgado, pelo que nada impede a invocação duma exceção não deduzida em outro processo. A decisão neste subsequentemente proferida não tem eficácia no processo executivo, mas pode conduzir à restituição ao executado da quantia conseguida na execução, pelo mecanismo da restituição do indevido. (…)”
E prosseguindo, a propósito de saber se, então, a decisão proferida nos embargos seria “dotada dos atributos do caso julgado material”, sustentava ainda o Prof. Lebre de Freitas que a pura lógica pode/deve ceder aos interesses em jogo, quando estes imponham uma solução diversa: se a lei processual estatui, para a oposição do executado, uma forma solene em que o princípio do contraditório é plenamente assegurado, não se vislumbra uma boa razão para admitir que posteriormente uma outra ação com a mesma causa de pedir possa voltar a discutir a existência da obrigação exequenda.
“ (…) Assim, no caso de oposição de mérito, a procedência da [oposição] não se limita a ilidir a presunção estabelecida a partir do título e, embora sempre nos limites objetivos definidos pelo pedido executivo, goza de eficácia extraprocessual nos termos gerais, como definidora da situação jurídica do direito substantivo reinante entre as partes (…). A sentença proferida sobre uma oposição de mérito é assim dotada da força geral do caso julgado, sem prejuízo de, quando for de improcedência, os seus efeitos se circunscreverem, no termos gerais, pela causa de pedir invocada (negação dum fundamento da preensão executiva ou exceção perentória contra ela), não impedindo nova ação de apreciação baseada em outra causa de pedir[5].
Ora, a nosso ver, é justamente este entendimento (e apenas este entendimento), com todo o respeito pela argumentação desenvolvida no acórdão recorrido, que está consagrado no atual 732.º/6 do CPC.
Entendimento que, em resumo, era o seguinte:
Não representando a oposição à execução uma contestação da ação executiva e não estando por isso sujeita aos ónus de contestação, de impugnação especificada e de preclusão, entendia-se que a ação de restituição do indevido se devia ter sempre como admissível e acessível ao executado que, mesmo por negligência, não houvesse deduzido qualquer oposição.
Porém, também se entendia (conforme transcrição do Prof. Lebre de Freitas) que não seria assim – não seria admissível a ação de restituição do indevido – se a falta de causa da deslocação patrimonial (produzida na execução) invocada na ação de restituição do indevido tivesse como fundamento a mesma causa de pedir que já havia sido invocada na oposição deduzida à execução e que aí havia sido alvo de decisão de mérito (naturalmente, de improcedência).
E não há razões suficientes para sustentar que a reforma processual de 2013 se afastou de tal entendimento.
O atual 732.º/6 do CPC dispõe que “a decisão de mérito proferida nos embargos à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda” e, claro, a expressão “nos termos gerais” circunscreve o caso julgado material à causa de pedir invocada nos embargos para obstar à produção dos efeitos do título executivo, ou seja, não fica dito pelo art. 732.º/6 que o caso julgado da decisão proferida nos embargos preclude a invocação de um fundamento diverso daquele que o executado invocou nos embargos à execução.
Como é sabido, embora o efeito preclusivo se dissolva, com a sentença, no efeito geral do caso julgado, não é o caso julgado que produz a preclusão da invocação de fundamentos que não foram alegados, sucedendo, isso sim, que a preclusão produz os seus efeitos autonomamente e que, proferida a sentença, se “serve” da exceção do caso julgado para impor a sua função estabilizadora.
Assim, a preclusão (da invocação dum fundamento não invocado nos embargos), a existir, teria ocorrido no momento em que o executado apresentou a petição de embargos, mas, é o ponto, para a preclusão ter em tal momento ocorrido teria que existir e ser aplicável aos embargos um preceito como o do art. 573.º/1 do CPC – um preceito que grosso modo diria que o executado tinha que deduzir/concentrar na petição de embargos toda a sua defesa.
E este preceito nem existe, nem, repete-se, é extraível do atual art. 732.º/6 do CPC.
O sentido do estabelecido no então art. 732.º/5 do CPC pela reforma de 2013, conhecendo-se qual era o “estado da arte” – sobre os embargos constituírem a PI duma ação declarativa e não a contestação duma ação executiva e sobre o alcance (que era o que supra se referiu) do caso julgado da decisão proferida nos embargos – só pode ter sido o de deixar claro que uma decisão de mérito proferida nos embargos é dotada da força geral do caso julgado material em relação à causa de pedir e aos fundamentos que ali foram invocados (não impedindo nova ação de apreciação baseada em outra causa de pedir).
Caso o legislador de 2013 pretendesse ser inovador e consagrar a solução de não poderem ser invocados, em nova ação, fundamentos que não foram invocados nos embargos, não podia (atento o referido “estado da arte”) deixar de ser explícito e, salienta-se, era-lhe muito simples sê-lo: bastaria introduzir no art. 732.º do CPC um número a dizer ser ao caso aplicável o disposto no art. 573.º/1 do CPC.
E não se diga que a interpretação que fazemos se socorre de jurisprudência e de doutrina anteriores ao atual art. 732.º/6 do CPC e que neste só se diz que há caso julgado porque antes há preclusão e que “dado que o art. 732.º/5 do CPC estabelece o consequente -- que é o caso julgado da decisão de improcedência dos embargos -- então também tem de se verificar o antecedente -- que é a preclusão dos fundamentos de defesa do executado que não tenham sido alegados nos embargos[6].
É que não há nenhuma incompatibilidade entre considerar-se que não há preclusão e a existência de caso julgado, uma vez que, na interpretação que fazemos – e que, a nosso ver, corresponde ao entendimento que a lei consagrou – o caso julgado se constitui restrito aos fundamentos que foram invocados, discutidos e decididos pela decisão de mérito dos embargos, ou seja, há mesmo caso julgado material sobre a existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda, mas esse caso julgado é restrito à causa de pedir invocada e, claro, não há preclusão em relação ao que não foi invocado/discutido nos embargos.
E a circunstância de na reforma processual de 2013 se haverem estabelecido ónus e cominações para o executado no âmbito dos incidentes respeitantes à matéria de exigibilidade e da liquidação da obrigação (cfr. arts. 715.º/4 e 716.º/4 do CPC) é explicável pela feição declarativa de tais incidentes e, acima de tudo, não permite extrapolações, ou seja, não permite que, por interpretação, se extraia de tais preceitos a consagração na lei dum ónus geral de embargar (quando tais preceitos contêm advertências muito precisas e colimadas à verificação dos requisitos da obrigação exequenda).
Como começámos por referir, não existe no CPC um preceito legal que estabeleça o ónus de embargar e, como o TC vem sustentando, de regras pouco claras não podem/devem retirar-se efeitos preclusivos intensos, como seria o caso se dos arts. 715.º/4, 716.º/4, 728.º/1 e 732.º/6 do CPC se extraísse, por interpretação, a existência do ónus de embargar[7].
E a existência ou não dum ónus de embargar será sempre, a nosso ver, a chave da solução da questão sub judice, uma vez que é a partir da consagração de tal ónus de embargar que ocorre a preclusão dos fundamentos não invocados (ou a preclusão decorrente da não dedução de embargos), o que significa que, não existindo ónus de embargar, não ficam precludidos os fundamentos não invocados.
Em conclusão:
Decorre do que se acaba de expor que o resultado dum processo executivo não é imutável, que o ato satisfativo do credor (pagamento) na execução não goza de irrevogabilidade análoga à do caso julgado material; que o desfecho da execução não surte eficácia fora do processo executivo, obstando, é certo, a uma nova ação executiva, mas não impedindo a propositura, pelo executado, duma ação de restituição do indevido com um fundamento não discutido ou apreciado nos embargos opostos à ação executiva.
Isto dito, revertendo ao caso dos autos, é esta última situação que se verifica: nos embargos de executado, o aqui A. não invocou a prescrição do crédito de capital, pelo que não há qualquer caso julgado material que se haja formado a propósito de tal fundamento que, assim sendo, aqui pode ser invocado.
Enfim, não existe identidade de causa de pedir entre a presente ação – em que se invoca a prescrição do crédito de capital emergente do contrato de abertura de crédito – e a oposição à anterior execução.
É quanto basta para, como se antecipou, julgar não verificada a exceção do caso julgado e, em consequência, conceder a revista, revogar o acórdão recorrido e substituí-lo por decisão a julgar não verificada a exceção do caso julgado, devendo o processo prosseguir, na 1.ª Instância, a atinente tramitação processual (que a apreciação substantiva da prescrição do crédito de capital suscite).

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IV - Decisão
Nos termos expostos, decide-se julgar não verificada a exceção do caso julgado e, em consequência, concede-se a revista, revoga-se o acórdão recorrido e determina-se que o processo prossiga, na 1.ª Instância, a sua atinente tramitação processual (que a apreciação substantiva da prescrição do crédito de capital suscite).
Custas de ambos os recursos (apelação e revista) pela R..
Transitado, remeta à 1.ª Instância.

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Lisboa, 03/05/2023

António Barateiro Martins (Relator)
Luís Espírito Santo
Ana Resende

Sumário, art.o 663, n.o 7, do CPC.


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[1] Acórdão TC 766/2022 de 15-11-2022, Processo n.º 170/2022 1.ª Secção, relatado pelo Cons. Teles Pereira.

[2] Embora este Supremo em Acórdãos proferidos em 4-04-2017 (no processo n.º 1329/15.9T8VCT.G1.S1), em 19-03-2019 (no processo n.º 751/16.8T8LSB) e em 24-05-2022 (no processo n.º 327/20.5T8CBTG1.S1), todos publicados em www.dgsi.pt., tenha afirmado ser admissível a dedução de ação declarativa, após a dedução de oposição à execução, desde que com fundamentos diversos dos apresentados no processo executivo.
[3] In Manual da Ação Executiva, pág. 291/300, num item que sugestivamente intitulou de “O problema da oposição à execução como único meio de defesa do executado contra execuções injustas ou como meio com fins próprios ou específicos não excludentes do meio comum da ação de restituição do indevido”.
[4] In Ação Executiva, 1993, pág. 163/4.
[5] Lebre de Freitas, in Ação Executiva, 1993, pág. 168.
[6] Miguel Teixeira de Sousa no comentário no Blog do IPPC referido.

[7] Não nos repugnaria nada – bem pelo contrário – que outra fosse a solução processual: como refere o Conselheiro Abrantes Geraldes, acima citado, é dificilmente compreensível que o executado venha discutir em ação autónoma o direito de crédito que não questionou ou não questionou de forma completa quando teve a oportunidade de o fazer em embargos, porém, enquanto o ónus de embargar não for assumida e explicitamente consagrado pelo legislador, não há processualmente onde alicerçar os efeitos preclusivos.