Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19837/16.2T8SNT.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ERRO DE JULGAMENTO
VENDA DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
PENHORA
REGISTO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEICULO
GARANTIA
REPARAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
REQUISITOS
Data do Acordão: 10/31/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
“ I- O facto de o A. ter deixado o seu veículo automóvel nas oficinas da R. reconvinte, sem motivo justificativo, não permitindo que esta ocupe esse espaço com outro veículo que lhe traga efectiva rentabilidade, representa para a R. reconvinte um dano de privação do uso daquele espaço;

II- Não tendo ficado provado que a R. extraísse de tal espaço ocupado um concreto rendimento diário, justifica-se a remessa do apuramento desse rendimento pra incidente de liquidação.”

Decisão Texto Integral:

Acordam na 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:

*



A Ré, SUBLITURBO UNIPESSOAL, LDA. em acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum deduziu pedido reconvencional contra o autor, AA, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 7.926,00, acrescida do valor diário de parqueamento até ao dia em que este retirar a viatura e regularizar os valores em dívida, como litigante de má fé, e no pagamento de multa e de uma indemnização.

Foi proferida sentença que julgou procedente o pedido reconvencional e, em consequência, condenou o autor/reconvindo, AA , a pagar à ré/reconvinte, SUBLITURBO UNIPESSOAL, LDA. a quantia de € 16 7867,00, bem como no pagamento de uma indemnização à razão de € 10,00 diários, devida pelo parqueamento do veículo de que é proprietário nas instalações da reconvinte, contabilizada desde 15 de junho de 2019, até ao dia em que daí retirar o veículo e regularizar os valores em dívida.

Inconformado, veio o autor/reconvindo apelar da sentença pedindo a revogação do acórdão e a sua absolvição do pedido.

A Relação proferiu acórdão em que concluiu:

“Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível (2ª) do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, condenando-se o apelante, AA a pagar à apelada SUBLITURBO, UNIPESSOAL, LDA a quantia de € 226,00 (duzentos e vinte e seis euros), bem como no pagamento de uma indemnização a título de privação de uso, à razão de € 10,00 diários, por dia útil, devida desde 14 de julho de 2016 até ao dia em que retirar o veículo das oficinas da apelada. (…)

Custas por apelante e apelada, na proporção de 2/3 e 1/3, respetivamente.”

Esta decisão contou com a seguinte Declaração de voto da Exma. Senhora Desembargadora Adjunta:

“Voto a decisão por estar de acordo em considerar que se está perante um ato ilícito e violador do direito de propriedade do A. resultante da ocupação parcial não autorizada da sua oficina com um veículo, ato causador de um dano suscetível de ser indemnizado, concordando também com o valor indemnizatório fixado, por equiparação a um valor devido pelo depósito ou parqueamento não autorizado do bem.

A minha discordância reporta-se apenas à qualificação do dano em questão como sendo de privação do uso, por considerar que a privação do uso coloca o dono do bem na total impossibilidade de o usar ou dele retirar as utilidades que o bem lhe proporciona, o que entendo que não se verifica no caso concreto, na medida em que o A. continua a ter o domínio total e disponibilidade sobre o espaço da sua oficina.”

De novo inconformado o autor/reconvindo interpôs recurso de revista formulando as seguintes conclusões:

“I – O Acórdão recorrido enferma de nulidades por omissão de pronúncia [Artºs 608 nº2, 615 nº1, alínea d), 1ª parte, do C.P.C, aplicáveis à 2ª Instância por força do Artº 666 do mesmo diploma legal].

II – O Tribunal recorrido não se pronunciou sobre a questão invocada, constituída pelo facto de á data da venda (14/4/2014) incidir uma penhora à ordem do Tribunal Judicial do Cartaxo e respectivas consequências jurídicas.

Entende-se ser de salientar que o veículo a que os autos se reportam foi objecto de um negócio permitido por lei e que integra uma ilicitude grave. Pelo que o Pedido Reconvencional não merece protecção jurisdicional – Artº 2 do C.P.C

III – E devia ter-se pronunciado, porque a penhora em causa e as consequências jurídicas que dela advêm foram invocadas pelo Recorrente na sua alegação para a 2ª Instância, constando nas respectivas conclusões – “S”,”T”,”U”, “I I”, “QQ” e “RR” e “SS” – Artº 608 nº2 do C.P.C..

IV -- Foram também juntos os documentos que se referiram no corpo da alegação do presente recurso e que podiam ter sido complementados se o tribunal tivesse cumprido os princípios fundamentais do Processo Civil, da cooperação e ou do inquisitório (Artº7 nº2 e 411 do C.P.C.).

V – O veículo foi vendido sem a necessária autorização do Tribunal quando estava sob a tutela judicial (Artº 886-C do C.P.C na redacção anterior á reforma de 2013). Foi subtraído ao poder público um bem que estava sob o mesmo.

“A penhora, sendo um acto de apreensão judicial, importa uma transferência da posse, sobre os bens penhorados, do executado para o tribunal, que a exerce através do depositário” - Ac. do TRG, P.32/11.3 TBCTB.A.G1.

VI -- Estando em causa uma questão de interesse e ordem pública, de conhecimento oficioso, também, por esta razão, o Tribunal devia ter conhecido da questão em causa (Artº 608 nº2, parte final, do C.P.C.).

VII -- Deve a questão que se acaba de referir ser conhecida e concluir-se pela ilicitude do comportamento da Recorrida.

VIII –- O Tribunal recorrido não conheceu, também, devendo fazê-lo, da questão com relevância para a decisão da causa, suscitada pelo Recorrente, da existência de duas garantias do bom funcionamento do veículo. Existe uma garantia legal conferida pelo Artº 913 do C.C. que impõe que o bem seja vendido em condições de desempenhar a função normal das coisas da mesma categoria e existe uma garantia convencional que constitui reforço da posição do comprador.

IX – O Acórdão enferma das supra referidas nulidades, por omissão de pronúncia, pelo que, deve ser anulado e ordenada a baixa dos autos á 2ª Instância, para que nesta se proceda á reforma da decisão.

X -- Se por hipótese, for entendido que o Acórdão recorrido justificou o não conhecimento das questões supra referidas concernentes á penhora do veículo, por considerar tal matéria irrelevante, então ocorre erro de julgamento.

XI -- Porque estas questões são relevantes para a conclusão da inexistência de ilicitude no comportamento do Recorrente devem as mesmas ser conhecidas e decidindo-se em conformidade com o que se invoca (inexistência de ilicitude na actuação do Recorrente, mas antes ilicitude grave no comportamento da Recorrida).

XII -- O Recorrente não causou à Recorrida dano de privação de uso, ou qualquer outro dano e o seu comportamento não integra ilicitude.

XIII –- No que concerne ao alegado dano nas instalações da Recorrida entende o Recorrente, pelas razões aduzidas pela Exmª Srª Desembargadora Inês Moura, na sua declaração de voto, nas quais se louva, que não ocorre privação de uso.

XIV -- Entende o Recorrente que, no que concerne à necessidade de prova do dano de uso, o lesado terá de provar que ficou privado de uma possibilidade concreta de uso e que, em consequência, sofreu uma desvantagem real.

XV –Aderindo-se, assim, á corrente jurisprudencial constante dos Acórdãos do Supremo Tribunal Justiça de 15/11/2011 — Procº.nº 6472/06.2TBSTB.E1.S1, de 23/11/2011—Procºnº397-B/1998.L1.S1, de 25/9/2018 –Procº nº2172/14.8TBBRG.G1.S1 e de 30/4/22019--- Procº nº 1226/15.8T8ALM.L1.S2, que o Recorrente perfilha, por da mesma não vermos fundamentos para discordar.

XVI – Tendo presente esta orientação torna-se necessário que viesse alegado, e provado, que a Recorrida teve concreta necessidade de proceder à utilização daquele espaço e que, por ele estar ocupado com o veículo dos autos e não haver mais nenhum disponível nas instalações para onde pudesse deslocar o dito veículo, sofreu uma perda concreta.

XVII – A prova do dano não se basta com o conteúdo da alínea q) da matéria assente.

XVIII – Deve, assim, face á inexistência da prova do dano, ser o Recorrente absolvido do respectivo pedido.

XIX – O comportamento do Recorrente não integra ilicitude.

Deixou ficar o veículo nas instalações da Recorrida por lhe assistir o direito de exigir a reparação da deficiência do veículo – Artºs 913 e 914 do C.C..

Acresce que o veículo não podia circular por estar onerado com a penhora –Arº22 do Cód. Registo Automóvel.

XX – Comportamento ilícito foi o da Recorrida que vendeu uma coisa sem as qualidades necessárias ao preenchimento do seu fim, não tendo disso dado conhecimento ao Recorrente. E, instada para proceder á reparação do veículo invocou a excepção da garantia convencional, quando a natureza desta é a de reforço da garantia legal que decorre dos Artºs913 e 914 do C.C..

XXI -- Comportamento ilícito foi, também da Recorrida que vendeu, sem autorização do Tribunal um veículo que, por estar penhorado, estava sob a tutela judicial (Artº 809 nº1 do C.P.C., redacção anterior a 2013), violando o disposto no Artº 886-C do C.P.C (redacção anterior a 2013).

XXII – Comportamento ilícito foi o da Recorrida que – mesmo a fazer-se fé na sua versão quanto á data em que teve conhecimento da penhora – apesar de ter tomado conhecimento deste facto, em vez de providenciar pela extinção do contrato, insistiu junto do Recorrente para que este fizesse o registo em seu nome (conferir a ordem cronológica dos factos descrita na alegação).

XXIII --Não se provaram os pressupostos da responsabilidade civil, nem o dano nem a ilicitude no comportamento do Recorrente.- Artº 483 do Cod. Civil

XXIV – O Recorrente entende que a situação dos autos não é, em abstrato susceptível de integrar uma situação de “dano de uso”.

Pelas razões que se encontram aduzidas na declaração de voto da Exmª Senhora Desembargadora Inês Moura, nas quais o Recorrente se louva.

Contudo, ainda que a situação pudesse ser vista à luz de um “dano de uso”, como entende o Acórdão recorrido, a Recorrida não alegou, nem provou, factos que integrem nem o dano nem a ilicitude, conforme as razões desenvolvidas no corpo das Alegações [Ponto II, alíneas D) e E)].

XXV – Analisando os autos na perspectiva de “lesão de direito de propriedade”, entende o Recorrente que a sua actuação não integrou lesão da propriedade da Recorrida, nem o seu comportamento se pode considerar ilícito.

Porque o veículo foi entregue pelo Recorrente nas instalações da Recorrida no âmbito do direito que lhe assistia de exigir a sua reparação (Artºs 913 e 914 do C.C) e porque, estando penhorado, não podia circular fora das instalações (Artº22º do Cód. Registo Automóvel).

XXVI – Uma indemnização a título de ocupação sempre deveria ser totalmente excluída, dadas as circunstâncias e o elevadíssimo grau de culpa da Recorrida elevado--Artº 570 e 571 do C.C..

XXVII- O pedido constituído pelos montantes do IUC,s reporta-se ao período em que o veículo se encontrava penhorado à ordem do Tribunal do Cartaxo. A não transferência, no registo automóvel, da identidade do titular do veículo da Recorrida para o Recorrente, é, apenas, uma consequência de todo o comportamento ilícito daquela.

XXVIII- Face ao exposto deverá ser reconhecido que o Acórdão recorrido enferma de nulidade por omissão de pronúncia [violação dos Artºs 608 nº2 e 615 nº1, alínea d), primeira parte, do Cód. Proc. Civil], quanto; -

-á existência penhora do veículo à data da venda e violação do respectivo quadro legal.

- à dualidade de garantias de que o veículo beneficia à data da venda-, garantia legal contante do Artºs 913 e 914 do C.C e garantia contratual.

XXIX – Devendo o Acórdão recorrido ser anulado e ordenado a baixa dos autos à 2ª Instância para ser reformado com conhecimento das nulidades.

XXX—Face ao que tem vindo a ser dito o Acórdão recorrido, decidindo como decidiu, enfermará de erro de julgamento, porquanto no que concerne á penhora parece ter considerado a questão irrelevante e a prova documental insuficiente, quando se pronunciou sobre o aditamento de factos á matéria provada.

XXXI--O Acórdão recorrido violou as seguintes disposições legais: - Artº2 do C.P.C., protecção jurisdicional

- Artº 7 nº2 do Cod. Proc. Civil (princípio da cooperação), Artº 411 (princípio inquisitório);

- Artºs 608 nº2 e 663 nº2 do CPC por não ter conhecido das questões suscitadas sendo uma que uma delas, por ser de interesse e ordem pública) é de conhecimento oficioso;

- Artºs 839, 843, nºs 1 e 2, 851 nº2, 886-C n ºs 1 e 2 e 809 nº 1 do C.P.C na redacção anterior á lei 41/2013 e 26/6/2013 e Artº22 do Cod. Reg. Automóvel, todos concernentes ao regime da penhora,

Artºs 913 e 914 do Cód. Civil (que concediam ao Recorrente o direito a exigir a reparação do veículo), não os tendo em consideração na apreciação da alegada ilicitude do comportamento do Recorrente.

Foram ainda violados os o Artºs 483, 570 e 571, todos do C.Civil..

Assim, caso se entenda que não há lugar á anulação do Acórdão recorrido por não existirem nulidades, então deverá o mesmo ser revogado, decidindo-se em conformidade com o que vem invocado, absolvendo-se o Recorrente de todos os pedidos. Só assim se fazendo JUSTIÇA”

Não houve contra-alegações.

Cumpre decidir.

A matéria de facto dada como provada é a seguinte:

“a) No dia 14 de abril de 2014 foi emitida pela reconvinte, Subliturbo, Unipessoal, Lda. - Compra e Venda de Viaturas Usadas, uma Declaração de Venda relativa ao veículo de mercadorias, marca Mercedes –Benz. Modelo 312 D35.5, matrícula ..-..-GZ.

b) Aí declarou a reconvinte ter vendido na mesma data ao ora reconvindo o identificado veículo automóvel.

c) A transação realizou-se pelo valor total de € 5.080,00, tendo o reconvindo, a par da entrega da sua viatura, pelo valor de € 500,00, entregue, para perfazer o preço total suprarreferido, a quantia, em numerário, de € 2.500,00€ e quatro cheques de € 520,00€, cada um, tendo-lhe sido emitidos a fatura e recibo da quantia entregue em numerário.

d) O veículo foi entregue ao reconvindo, pelo menos em 20 de abril de 2014.

e) Faltou ao reconvindo liquidar € 70,00€ relativo ao preço do veículo.

f) A reconvinte liquidou, nos anos de 2014, 2015 e 2016 o imposto único de circulação devido pelo veículo supra identificado em a), no montante total de € 156,00.

g) Em meados de novembro de 2014 o reconvindo levou o veículo identificado em a) para a oficina da reconvinte invocando que o para-brisas estava a meter água e que o veículo não estava a travar bem.

h) Tendo a viatura sido sujeita a uma vistoria por um dos mecânicos da reconvinte foi diagnosticado que o veículo não travava bem porque as pastilhas das rodas traseiras já estavam gastas, e quanto ao para-brisas, tal devia-se ao facto de as borrachas terem provavelmente dilatado com o calor durante a época do verão.

i) Foi explicado ao reconvindo, várias vezes por telefone, bem como nalgumas deslocações que o mesmo fez à oficina, que a reconvinte não iria suportar os custos com a substituição das pastilhas, ao abrigo da garantia, pois tal situação não estava abrangida pela mesma.

j) Foi explicado exaustivamente ao reconvindo que as pastilhas de travão são material de desgaste, e que, como tal, não está abrangido pela garantia.

k) Da mesma forma foi explicado ao reconvindo que o facto de o para-brisas estar a meter água também era uma situação não abrangida pela garantia, mas a reconvinte propôs-se a ajudar o reconvindo nesta reparação.

l) O reconvindo insistiu sucessivamente que só ia recolher a viatura à oficina quando a mesma estivesse totalmente reparada, quer da parte das pastilhas, quer do para-brisas.

m) Na sequência dos factos supra, a reconvinte remeteu ao reconvindo, em 28 de Novembro de 2014, uma carta registada com aviso de receção, da qual se extrai o seguinte teor: “(…) Vimos por este meio reiterar o que já lhe foi dito várias vezes pessoalmente nas vezes que se deslocou ao nosso estabelecimento comercial. (…) A meio do mês de novembro de 2014 deixou a respetiva viatura no nosso stand reclamando que o para-brisas estava a meter água e que o veículo não travava bem. Após o mecânico de serviço ter averiguado o que se passava com os travões, verificou que o veículo não travava bem porque as pastilhas das rodas traseiras já estavam completamente gastas. As pastilhas de travão são material de desgaste que não está abrangido pela garantia dada, assim como o para-brisas meter água também é uma situação que não está abrangida pela garantia. Se mete água também é porque as borrachas provavelmente dilataram com o calor durante o Verão. Relativamente ao para-brisas propusemo-nos a ajudá-lo na reparação, mas relativamente ao veículo travar mal não podemos suportar os custos com a reparação dessa situação porque não está abrangido pela garantia. Vimos também mais uma vez alertá-lo que se encontram valores em dívida relativamente à viatura no valor total de 252 euros e que o veículo não pode continuar a circular sem ser transferido para seu nome. (…).”

n) Esta carta foi recebida pelo reconvindo em 01 de dezembro de 2014.

o) Após ter recebido a carta remetida pela reconvinte o reconvindo dirigiu-se à oficina da primeira no dia 02 de dezembro de 2014.

p) Até à presente data o veículo identificado em a) está na oficina da reconvinte.

q) O facto de o veículo estar na oficina não permite à reconvinte ocupar esse espaço com outro veículo que lhe traga efetiva rentabilidade.

r) O reconvindo nunca foi retirar o veículo da oficina da reconvinte.

s) O custo do parqueamento de um veículo nas oficinas da reconvinte é de € 10,00 diários.

t) Por carta, registada com aviso de receção datada de 14 de julho de 2016, recebida pessoalmente pelo reconvindo, a reconvinte solicitou-lhe a retirada do veículo das suas instalações bem como o pagamento das quantias relativas ao remanescente do preço, ao IUC e às devidas pelo parqueamento do veículo desde 1 de dezembro de 2014.

u) Na data referida em a) foi entregue ao reconvindo, para além da declaração de venda, a fotocópia do DUA do veículo.

v) Foi acordado entre a reconvinte e reconvindo que o requerimento de registo automóvel necessário para o reconvindo registar o veículo na sua propriedade ser-lhe-ia entregue quando este entregasse os 4 cheques pré-datados à reconvinte, o que foi efetuado em 12 de maio de 2014.

w) A propriedade do veículo matrícula ..-..-GZ, marca Mercedes –Benz encontra-se inscrita a favor da reconvinte pela Ap. N. ...36, de 22/04/2014.

x) Em 26 de Fevereiro de 2015, mostravam-se inscritos sobre o veículo os seguintes ónus:

x.1) Penhora N. Ordem ...70, em 28/11/2011, a favor de A..., Lda.;

x.2) Penhora N. Ordem ...35, em 06/10/2014, a favor do Serviço de Finanças ....

y) Em 17 de Junho de 2016, mostravam-se inscritos sobre o veículo os seguintes ónus:

y.1) Penhora N. Ordem ...70, em 28/11/2011, a favor de A..., Lda.;

y.2) Penhora N. Ordem ...35, em 06/10/2014, a favor do Serviço de Finanças ...:

y.3) Penhora N. Ordem ...24, em 15/01/2016, a favor de Fazenda Nacional.

z) Em 11 de Dezembro de 2017, mostravam-se inscritos sobre o veículo os seguintes ónus:

y.2) Penhora N. Ordem ...35, em 06/10/2014, a favor do Serviço de Finanças ...:

y.3) Penhora N. Ordem ...24, em 15/01/2016, a favor de Fazenda Nacional.

aa) A reconvinte desconhecia a penhora com o n.º de ordem ...70, de 28.11.2011, registada a favor de A..., Lda., quando efetuou a venda do veículo ao reconvindo.

bb) A reconvinte apenas tomou conhecimento da existência da referida penhora quando se deslocou à conservatória para confirmar que o reconvindo não tinha ainda efetuado o registo do veículo a seu favor, após o que encetou as diligências necessárias com vista ao cancelamento da mesma.”

-Não se provou que em 16 de outubro de 2014 o reconvindo tivesse solicitado à reconvinte a inscrição da efetiva da titularidade do veículo em seu nome, bem como a entrega do título de registo e do livrete original.

- Não se provou que desde outubro de 2014 o reconvindo não sabe onde se encontra a carrinha Mercedes-Benz, nem que desde então, nunca foi contactado pela reconvinte.

- Não se provou que a reconvinte tivesse assumido a obrigação de proceder ao registo da propriedade do veículo a favor do reconvindo na Conservatória do Registo Automóvel.

- Não se provou que em 18 de agosto de 2014 a reconvinte deduziu embargos de terceiro, que correu termos sob o n.º de processo 398/06.7..., na Comarca de Lisboa Norte, ..., Instância Central, Secção de Execução, J....

O Direito.

Considera o recorrente que o acórdão recorrido enferma de nulidades por omissão de pronúncia.

Assim, em seu entender, o acórdão enferma, desde logo, de nulidade por não se ter pronunciado sobre a questão invocada relacionada com o facto de, à data da venda (14/4/2014) do veículo, incidir uma penhora desde 25.11.2011, com registo desde 28.11.20122 (e que se manteve até 14.7.2016) à ordem do Tribunal Judicial do Cartaxo e de, ainda assim, o mesmo ter sido vendido sem a necessária autorização do Tribunal quando estava sob a tutela judicial, em violação do artº 886-C do C.P.C na redacção anterior à reforma de 2013.

Porém, afigura-se-nos que o recorrente confunde questões com argumentos.

A verdadeira questão é a indemnização pela privação do uso.

Ora, como constitui jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal, a nulidade da decisão por omissão de pronúncia “apenas se verificará nos casos em que ocorra omissão absoluta de conhecimentos relativamente a cada questão e já não quando seja meramente deficiente ou quando se tenham descurado as razões e argumentos invocados pelas partes” (acórdão de 16.11.2021, proc. n.º 5097/05.4TVLSB.L2.S3, disponível em www.dgsi.pt). Neste sentido, cfr. também os acórdãos de 09.02.2021, proc. n.º 7228/16.0T8GMR.G1.S1, de 12,1.2021, proc. n.º 379/13.4TBGMR-B.G1.S1 e de 10.12.2020, proc. n.º 189/14.1TBPTM.E1.S1, todos publicados em www.dgsi.pt.

De todo o modo, a ser a matéria da penhora autonomizada como questão, nunca se verificaria qualquer omissão de pronúncia, uma vez que a Relação remeteu, relativamente à existência da penhora, para o que foi afirmado na sentença, ou seja, que apenas se verifica a existência de um ónus geradora de anulabilidade do contrato nos termos do art. 905º do CC.

Insiste o recorrente que esta é uma questão de interesse e ordem pública, uma vez que o negócio de compra e venda em 14.4.2014 do veículo, onerado com uma penhora de 28.11.2011, teve na sua génese uma ilicitude grave.

Todavia, não está aqui em causa qualquer questão de interesse e ordem pública susceptível de gerar qualquer nulidade nos termos conjugados dos arts 280º e 286º do CC.

Como se sabe, a penhora envolve a constituição de um direito real de garantia, conferindo ao credor/exequente o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor, que não tenha garantia real anterior (art. 822°, nº 1 do Código Civil) e gerando ineficácia, em relação ao exequente, dos actos de disposição ou de oneração dos bens penhorados, sem prejuízo das regras de registo (art. 819º do Código Civil). O art. 819º não proíbe a venda particular, apenas dispõe que essa venda é inoponível à execução. Sendo que o art. 886º-C do CPC nada tem a ver com a venda particular, mas apenas com a antecipação da venda do bem penhorado no âmbito de um processo executivo, o que não é o caso.

Argumenta, ainda, o recorrente que a venda do veículo penhora implicou a violação dos deveres do depositário, matéria sobre a qual a Relação também não se teria pronunciado.

Também aqui se trata de um argumento jurídico tendente a demonstrar a falta de direito da autora à indemnização pela privação do uso e não de uma verdadeira questão autónoma.

No entanto, sempre se dirá que, confrontado com a alegação do apelante mo sentido de que a administração do bem penhorado pertencia a um depositário (e não à reconvinte) e que este é que era responsável pela conservação do veículo, a Relação afirmou que não estava provado que o veículo estivesse entregue a um depositário (e que, portanto, não poderia ser este o responsável pelo pagamento das despesas de parqueamento e de imposto de circulação). Aliás, deve dizer-se que a penhora de coisas móveis sujeitas a registo nos termos do art. 851º do CPC não implicava necessariamente a constituição de depositário, mas sim a imobilização (que não se fazia com a constituição de depositário) (Lebre de Freitas, CPC anotado, Volume 3ª, 3ª edição, pág. 437).

Como assim, não ocorre qualquer nulidade por omissão de pronúncia, tal como não se verifica qualquer erro de julgamento relativamente a esta matéria.

Argumenta, também, o recorrente que a reconvinte vendeu o veículo bem sabendo que este não podia circular, estando sujeito a ser aprendido.

No entanto, este argumento não colhe uma vez que apenas se provou que: “aa) A reconvinte desconhecia a penhora com o n.º de ordem 01870, de 28.11.2011, registada a favor de A..., Lda., quando efetuou a venda do veículo ao reconvindo; bb) A reconvinte apenas tomou conhecimento da existência da referida penhora quando se deslocou à conservatória para confirmar que o reconvindo não tinha ainda efetuado o registo do veículo a seu favor, após o que encetou as diligências necessárias com vista ao cancelamento da mesma.”

Prosseguindo na indicação de pretensas nulidades por omissão de pronúncia, considera, ainda, o recorrente que o Tribunal recorrido não conheceu, também, devendo fazê-lo, da questão com relevância para a decisão da causa, da existência de duas garantias do bom funcionamento do veículo; uma garantia legal conferida pelo artº 913 do CC que impõe que o bem seja vendido em condições de desempenhar a função normal das coisas da mesma categoria e uma garantia convencional que constituiria o reforço da sua posição de comprador.

Verifica-se, todavia, que, a propósito da indemnização pela privação do uso, consta do acórdão recorrido a seguinte passagem: “Assim, pelo facto do apelante ter deixado o seu veículo automóvel nas oficinas da apelada sem motivo justificativo (a reparação não se encontrava abrangida pela garantia), privou que esta ocupasse esse espaço com outro veículo, limitando-a no exercício dos direitos inerentes ao seu direito de propriedade, no caso, de usar e fruir tal espaço.” (44 Por carta rececionada pelo Reconvindo em 1 de dezembro de 2014, a Reconvinte declarou não ir suportar os custos com a reparação exigida pelo Reconvindo, por a mesma não estar, em seu entender abrangida pela garantia. E ainda, que conhecedor da posição da Reconvinte o Reconvindo não procedeu ao levantamento do veículo das oficinas da primeira, onde ainda permanece)”.

Verifica-se, pois, que o tribunal recorrido se pronunciou, ainda que sumariamente, sobre a suposta garantia.

Como assim, nunca se verificaria omissão de pronúncia em relação à suposta garantia, caso a mesma assumisse contornos de verdadeira questão.

Subsidiariamente, o recorrente invoca erro de julgamento.

Alega que entregou o veículo à reconvinte no âmbito da garantia legal, que lhe assistia, no âmbito do art° 913 do CC., para que este fosse reparado a fim de poder circular, que é a sua função normal. Circunstância que invalidaria o direito a qualquer indemnização por parte da reconvinte, designadamente, a indemnização pela privação do uso.

Porém, por decisão proferida nos autos, o autor viu o seu direito de indemnização (pela qual optou), pelos danos que alegadamente sofreu na sequência dos alegados defeitos da coisa que comprou, ser julgado caducado, nos termos do art. 917º do CC. Não pode reclamar agora a tutela do art. 913º do CC. que sempre pressuporia, aliás, a prova de que os defeitos imputados ao veículo já existiam à data da celebração do contrato, o que ficou por demonstrar (cfr. Ac. STJ de 26.4.2012, Serra Baptista, em www.dgsi.pt).

Invoca, ainda, o recorrente a garantia convencional, mas esta garantia não abrangia os defeitos de que o veículo padecia, como eram a falta de pastilhas nos travões e os defeitos dos pára-brisas.

O recorrente não logrou, portanto, demostrar que o seu comportamento de não levantar o veículo da oficina correspondeu a um comportamento lícito pelo facto de lhe assistir o direito de exigir a reparação das deficiências do veículo.

O comportamento do recorrente viola, assim, e pelo menos, com mera culpa, o direito de propriedade da oficina, na sua vertente do direito de uso.

Dano de privação de uso:

Alega, ainda, o recorrente que o seu comportamento não causou à recorrida dano de privação de uso ou qualquer outro dano. Não lhe causou dano de privação de uso porque o A. continuou a ter o domínio total e disponibilidade sobre o espaço da sua oficina.

Porém, o que está em causa não é a privação do uso de toda a oficina mas a do uso de um determinado espaço da oficina. Ora, tendo ficado provado “q) O facto de o veículo estar na oficina não permite à reconvinte ocupar esse espaço com outro veículo que lhe traga efetiva rentabilidade “não se pode deixar de concluir que, mercê do comportamento do recorrente. a reconvinte ficou privada não de toda a oficina, mas do uso do espaço ocupado pelo veículo, o que, afectando o direito de propriedade na sua vertente de direito de uso, não deixa de representar um comportamento ilícito do recorrente, não justificado, como se viu até agora.

Questão diferente é a de saber se a reconvinte logrou demonstrar a existência de um dano indemnizável.

Sobre o assunto a Relação ponderou:

“Muito embora reconhecendo a existência de divergência jurisprudencial e doutrinal a propósito dos pressupostos da indemnização pela privação do uso da coisa, afigura-se-nos como sendo mais ajustada a posição dominante na jurisprudência, ou seja, no sentido de não ser indemnizável a mera privação do uso da coisa, devendo o lesado alegar e provar (para além da privação do uso) a existência de uma concreta utilização relevante do bem.

Para além de ser o entendimento jurisprudencial dominante do Supremo Tribunal de Justiça, também se trata do entendimento mais recente [38 Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2018, Relator: ACÁCIO DAS NEVES, http://www.dgsi.pt/ jstj]

Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito art. 8º, 3, do CCivil.

Não constituindo a mera possibilidade de uso (que não deve ser confundida com a privação do uso…) - um dano patrimonial só por si indemnizável, desacompanhado da demonstração das concretas e efetivas utilizações que a coisa proporcionava ou era suscetível de proporcionar e que a ocupação fez frustrar, forçoso é concluir que falece um dos pressupostos da responsabilidade civil, ou seja, o dano.

Dano que, como se sabe, na sua vertente patrimonial – porque só esta está neste momento em causa – exprime uma diferença entre o valor real e efetivo do património do lesado e o valor que esse mesmo património teria sem o evento lesivo (valor hipotético, portanto) - (art. 564º nº2 CC).

Ora, tal diferença só pode ser encontrada se o uso ou gozo tiver um valor material concreto, não um valor abstrato; ou seja, quando a sua privação se traduza num dano emergente (prejuízo causado) ou num lucro cessante (benefícios frustrados).

O problema que, no entanto, coloca este tipo de danos diz respeito à dificuldade de aplicação do critério patrimonial resultante da teoria da diferença, expressa no art. 566º, nº 2, no caso em que o lesado não suportou despesas em virtude da privação39

O uso pressupõe uma utilização e a impossibilidade (concreta) desta analisa-se ou numa diminuição patrimonial ou numa frustração de aumento do património; é nesta diferença patrimonial concreta e efetiva, resultante quer da diminuição, quer do não aumento, em que consiste o dano da privação do uso.

Logo, não havendo uso, isto é, aproveitamento das vantagens económicas proporcionadas pela coisa, inexistirá obviamente dano da respetiva privação.

E por isso é que o tribunal carece de conhecer, quando está em causa a privação de uso e dando por assente tratar-se de um dano patrimonial, se aquela privação redundou concretamente num dano emergente ou num lucro cessante, para apurar o valor dos mesmos, pois a indemnização visa precisamente reconstituir - por equivalente pecuniário, na impossibilidade óbvia de reconstituição natural - a situação hipotética que existiria se não tivesse ocorrido o facto ilícito e o dano (art. 562º e 563º CC).

Mesmo quando se aceita a sua patrimonialidade, posição que é a mais comum, e que por nós é sufragada, nota-se uma nítida fratura entre as decisões para as quais basta, para que seja reparável em termos indemnizatórios, a demonstração do não uso do bem atingido, existindo o propósito ou a intenção de dele se aproveitarem as respetivas utilidades [ 40 Vide, neste sentido, Ac. STJ de 05-07-2007, Relator: SANTOS BERNARDINO; Ac. STJ de 12-01-2010, Relator: PAULO SÁ; Ac. STJ de 16-03-2011, Relator: MOREIRA ALVES; Ac. STJ de 08-05-2013, Relator: MARIA PRAZERES BELEZA e, Ac. STJ de 09-0-2015, Relatora: FERNANDA ISABEL PEREIRA, todos in www.dgsi.pt/ jstj ] e aquelas que julgam insuficiente aquela demonstração, sendo ainda necessária a prova de um autónomo ou específico dano patrimonial.[ 41 Vide, neste sentido, Ac. STJ de 12-01-2006, Relator: SALVADOR da COSTA; Ac. STJ de 10-01-2012, Relator: FERNANDO BENTO e, Ac. STJ de 14-07-2016, Relator: LOPES DO REGO, todos in http://www.dgsi.pt/ jstj.]

Na verdade, uma coisa é a privação do uso e outra, que conceptualmente não coincide necessariamente, será a privação da possibilidade de uso.

Uma pessoa só se encontra realmente privada do uso de alguma coisa, sofrendo com isso prejuízo ressarcível, se realmente a pretender usar e utilizar caso não fosse a impossibilidade de dela dispor.

Não pretendendo fazê-lo, apesar de também o não poder, está-se perante a mera privação da possibilidade de uso, sem repercussão económica, que, só por si, não revela qualquer dano patrimonial indemnizável. 42[É que bem pode acontecer que alguém seja titular de um bem, móvel ou imóvel, e apesar de privado da possibilidade de o usar durante certo tempo, não sofra com isso qualquer lesão por não se propor aproveitar das respetivas vantagens ou utilidades]

Bastará, no entanto, que a realidade processual mostre que o lesado pretendia usar a coisa ou que normalmente a usaria, para que o dano decorrente da sua privação ocorra e, por via disso, a respetiva indemnização pela privação do uso seja devida.

Por isso se tem entendido que não basta a simples privação, em si mesma, sendo necessário ainda que se alegue e prove a frustração de um propósito de proceder à utilização da coisa, demonstrando o lesado que a pretenderia usar, dela retirando utilidades que a mesma normalmente lhe proporcionaria, não fora a privação dela pela atuação ilícita de outrem, o lesante.

Assim sendo, não se mostra necessário, como alegado pelo apelante, “que para o alegado prejuízo viesse demonstrado era necessário que a reconvinte tivesse alegado e provado que todo o espaço de parqueamento esteve sempre preenchido, e que ela, reconvinte, teve necessidade de rentabilizar o espaço ocupado pelo referido veículo e que tal não lhe não foi possível por que o veículo do reconvindo estava a ocupar o referido espaço, que seria o único disponível”.

Vejamos o caso dos autos.

Está provado que:

Até à presente data o veículo identificado em a) está na oficina da reconvinte facto provado p).

O facto de o veículo estar na oficina não permite à reconvinte ocupar esse espaço com outro veículo que lhe traga efetiva rentabilidade facto provado q).

O reconvindo nunca foi retirar o veículo da oficina da reconvinte facto provado r).

O custo do parqueamento de um veículo nas oficinas da reconvinte é de 10,00 diários facto provado s).

O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostasart. 1305º, do CCivil.

O uso consiste no poder de satisfazer as necessidades do titular mediante a utilização da coisa. Já a fruição consiste no poder de satisfazer as necessidades do titular com utilidades geradas periodicamente pela coisa. Finalmente, a faculdade de disposição abrange duas categorias de poderes: poderes de disposição jurídica e poderes de disposição material43.[ 43 ANA PRATA (Coord.), Código Civil Anotado, 2ª edição, p. 88.]

Assim, pelo facto do apelante ter deixado o seu veículo automóvel nas oficinas da apelada sem motivo justificativo (a reparação não se encontrava abrangida pela garantia44) [44 Por carta rececionada pelo Reconvindo em 1 de dezembro de 2014, a Reconvinte declarou não ir suportar os custos com a reparação exigida pelo Reconvindo, por a mesma não estar, em seu entender abrangida pela garantia. E ainda, que conhecedor da posição da Reconvinte o Reconvindo não procedeu ao levantamento do veículo das oficinas da primeira, onde ainda permanece], privou que esta ocupasse esse espaço com outro veículo, limitando-a no exercício dos direitos inerentes ao seu direito de propriedade, no caso, de usar e fruir tal espaço.

Essa privação do uso do espaço ocupado pelo veículo do apelante, frustrou um propósito real e concreto de proceder à sua utilização pela apelada, pois não permitiu que esta o ocupasse com outro veículo que lhe pudesse trazer efetiva rentabilidade.

A privação do uso é condição necessária, mas não suficiente, da existência de um dano correspondente a essa realidade de facto.

Ora, verifica-se que a apelada sofreu um prejuízo ressarcível por ter ficado privada da utilização de um espaço na sua oficina, pretendendo-o utilizar, e só não o fazendo por estar ocupado pelo veículo do apelante.

Temos, pois, que pelo facto de o veículo estar na oficina e não permitir à apelada ocupar esse espaço com outro veículo que lhe proporcionasse efetiva rentabilidade, tal mostra-se suficiente para justificar a atribuição de uma indemnização a título de privação do uso.

O que na essência define o dano da privação do uso, independentemente de outros prejuízos concretos que possam alegar-se e provar-se associados a essa ocorrência (danos emergentes e lucros cessantes), é a impossibilidade de usar a coisa por virtude da conduta ilícita do lesante, e enquanto essa impossibilidade subsistir.

Resultou provado que o custo do parqueamento de um veículo nas oficinas da reconvinte era de € 10,00 diários [facto provado s)].

E, será esse o valor do dano sofrido pela apelada pelo facto do apelante lhe estar a ocupar com o seu veículo um espaço na sua oficina?

Pensamos que sim, pois este é o preço que a apelada cobrava aos seus clientes pelo parqueamento dos veículos quando estes ficavam para além do tempo necessário às reparações.

Assim sendo, pese embora não haver sido celebrado qualquer contrato de depósito entre apelante e apelada, será este o valor que a mesma fica impossibilitada de auferir quando os seus clientes deixam os veículos nas suas instalações para além do período posterior à reparação dos mesmos.

Se este é o valor que cobra aos seus clientes por estes deixarem os veículos nas suas instalações após serem reparados, isto é, o valor que deixa de rentabilizar por tal espaço estar ocupado com outro veículo que lhe traga efetiva rentabilidade, será também este o montante do dano que teve pelo facto do espaço estar ocupado pelo veículo do apelante (e isto, independentemente, de não ter celebrado com este qualquer contrato de depósito, nem qualquer outro tipo de contrato, e nada estar provado em contrário).

E, desde quando tal valor será devido, isto é, será desde 1 de dezembro de 2014, como entendeu o tribunal a quo, data em que a apelada lhe comunicou que a reparação não estava abrangida pela garantia, ou, será desde 14 de julho de 2016, data em que lhe foi solicitada a retirada do veículo das suas instalações, bem como o pagamento das quantias devidas pelo parqueamento do veículo?

Pensamos que tal valor será devido desde 14 de julho de 2016, data em que lhe foi solicitada a retirada do veículo das suas instalações, bem como o pagamento das quantias devidas pelo parqueamento do veículo, pois, pelo menos, a partir desta data, o apelante tinha consciência de que estava a causar um dano à apelada (e sendo o apelante o responsável por tal pagamento, pois foi ele quem deixou o veículo nas instalações da apelada, e não um alegado depositário do bem).

Concluindo, pensamos ser de arbitrar à apelada uma indemnização a título de privação de uso de espaço da sua oficina, à razão de € 10,00 diários, por dia útil, devida desde 14 de julho de 2016 até ao dia em que retirar o veículo das oficinas daquela.”

Perfilhando o mesmo entendimento do acórdão recorrido, relativamente à indemnizabilidade do dano de privação do uso, alega o recorrente que era necessário que viesse alegado e provado que a recorrida teve concreta necessidade de proceder à utilização daquele espaço e que, por ele estar ocupado com o veículo dos autos e não haver mais nenhum disponível nas instalações para onde pudesse deslocar o dito veículo, sofreu uma perda concreta,, sendo que a prova do dano não se basta com o conteúdo da alínea q) da matéria assente.

Vejamos.

Em contraposição a uma corrente jurisprudencial que valorizava a existência de um dano autónomo de natureza patrimonial consistente na mera privação do uso do veículo do lesado, independentemente da prova de prejuízos concretos e quantificados, desenhou-se outra corrente alternativa, segundo a qual a privação do uso (sobretudo do veículo automóvel por virtude do acidente) que não implicasse prejuízo específico na esfera jurídica de quem de direito não conferia direito a indemnização, corrente que, designadamente a partir de 2011, assumiu predominância: com os acórdãos de 3.5.2011 e 10.1.2012, relatados por Nuno Cameira e sumariados de forma idêntica “ I - A privação do uso de uma coisa pode constituir um ilícito gerador da obrigação de indemnizar, uma vez que impede o seu dono do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, de usar, fruir e dispor do bem, nos termos genericamente consentidos pelo art. 1305.º do CC. II - Não é suficiente, todavia, a simples privação em si mesma: torna-se necessário que o lesado alegue e prove que a detenção ilícita da coisa por outrem frustrou um propósito real – concreto e efectivo – de proceder à sua utilização”; com os acórdãos do STJ de 12.01.2012 e de 03.10.2013, em que foi relator Fernando Bento, disponíveis, como os anteriores, em www.dgsi.pt, no último dos quais se expendeu, a propósito, o seguinte: “A privação do uso (ou da possibilidade de uso) só constitui dano ressarcível mediante a referenciação às concretas e efectivas utilidades atingidas ou cuja fruição se frustrou; só assim se concretizará tal dano em termos de susceptibilidade da medição através da teoria da diferença (art. 566º nº2 CC); o dano normativo da privação do uso – isto é, sem consideração daquelas utilidades - é meramente abstrato e não exprime uma diferença entre situações patrimoniais, a menos que seja concretizado e explicitado em factos reveladores do prejuízo e dos benefícios frustrados em que consistiu a impossibilidade de gozo”; com o Ac. STJ de 9.7.2015, Fernanda Isabel Pereira, assim sumariado: “a privação do uso de um veículo automóvel, em resultado de danos sofridos na sequência de um acidente de viação, constitui um dano autónomo, indemnizável na medida em que o seu dono fica impedido do exercício dos direitos de usar, fruir e dispor, inerente à propriedade que o art. 1305 do CC, bastando para o efeito que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava”; com o Ac. STJ de 7.3.2017, Roque Nogueira, assim sumariado: “ Competindo ao lesado provar o dano, não basta a prova da privação da coisa, sendo ainda necessário que o autor demonstre que dela pretende retirar utilidades que, normalmente, lhe seriam proporcionadas se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante”; com o Acórdão do STJ, de 22.4.2015, Hélder Roque (relator), cujo sumário se transcreve: “III - A privação do uso só constitui dano ressarcível desde que demonstradas as concretas e efectivas utilidades atingidas ou cuja fruição se frustrou, só assim se concretizando tal dano, em termos de susceptibilidade de medição através da teoria da diferença (art. 566.º, n.º 2, do CC). O dano da privação do uso, sem consideração dessas utilidades, é meramente abstracto e não exprime uma diferença entre situações patrimoniais, a menos que seja concretizado e explicitado em factos reveladores do prejuízo e dos benefícios frustrados em que consistiu a impossibilidade de gozo. IV – Numa situação de privação do uso de um imóvel, constitui entendimento generalizado que recai sobre o autor/lesado o ónus da alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito, designadamente, do valor locativo do imóvel, dos seus propósitos quanto ao uso e fruição do imóvel e das razões da frustração desses objectivos. Todavia, há jurisprudência que defende uma maior abertura em relação à prova do dano da privação do uso, admitindo que esta possa ser feita através de presunções de experiência (cf. Ac. do STJ, de 15-11-2011, Proc. n.º 6472/06.2TBSTB.E1.S1). V - Os fundamentos da indemnização não podem consistir em mera virtualidade do bem gerar frutos civis, por susceptível de serem frustrados eventuais propósitos de o integrar em circuito comercial baseado unicamente nos usos correntes: o dono que se vê privado do bem tem de alegar e provar ter visto frustrado um propósito, real e efectivo, de proceder à sua utilização e em que precisos termos o faria e o que auferiria não fora a ocupação do imóvel pelo lesante”; com o acórdão de 14.7.2016, Lopes do Rego, que sintetizou: “ II-“ Está suficientemente demonstrada a realidade do dano, traduzido na privação do uso de um bem, quando o lesado concretizou e fundamentou, em termos factuais, qual a concreta utilidade que pretendia extrair do bem, especificando o concreto dano sofrido com a impossibilidade de locação do imóvel, por via dos defeitos que o afectavam, imputáveis a comportamentos da R - traduzindo-se tal utilidade específica, em consonância com o destino que lhe vinha sendo dado há vários anos, na colocação no mercado de arrendamento para fins comerciais, alegando-se qual o lucro cessante que em concreto se verificava: o montante das rendas de que o locador ficou privado em consequência do estado de conservação do locado”; com o acórdão de 27.4.2017, do relator Hélder Roque, que destacava: “A questão da ressarcibilidade da «privação do uso» não pode ser apreciada e decidida, em abstrato, aferida pela mera impossibilidade objetiva de utilização da coisa, porquanto a mera privação do uso do bem, independentemente da demonstração de factos reveladores de um dano específico emergente ou de um lucro cessante, é insusceptível de fundar a obrigação de indemnização, no quadro da responsabilidade civil”; ou, finalmente, com o acórdão de 12.7.2018, relatado por Acácio Neves, desta mesma secção: “A mera privação do uso da coisa não é indemnizável, devendo o lesado alegar e provar a privação do uso da coisa por acto ilícito de terceiro e a existência de uma concreta utilização relevante da coisa, o que constitui entendimento jurisprudencial dominante do STJ.”.

Ou seja: de acordo com esta última posição, que sufragamos, se a privação do uso representa um facto ilícito (art. 1305º do CC), a obrigação de indemnização depende da existência de danos; e de um nexo de causalidade entre os mesmos e o facto, devendo a indemnização pecuniária ser medida em função da diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos (art. 566º, nº 2 do CC). A indemnização não prescinde, pois, do apuramento dos factos que revelam a existência de dano na esfera patrimonial da pessoa afectada. Assim, a mera privação do uso, sem repercussão negativa no património do lesado não é susceptível de fundar qualquer obrigação de indemnização.

Ora, revertendo ao caso sub judice, verifica-se que a reconvinte apenas provou que “o facto de o veículo estar na oficina não permite à reconvinte ocupar esse espaço com outro veículo que lhe traga efetiva rentabilidade (al. q)).

Trata-se de facto não totalmente esclarecedor.

Todavia, e ainda assim, dados os termos do facto (“não permite à reconvinte ocupar esse espaço … “) não se afigura que fosse necessário para a prova da impossibilidade de ocupação do espaço do veículo, que se provasse, ainda, que não havia mais nenhum espaço disponível nas instalações para onde pudesse deslocar o dito veículo.

É certo que a ré não especificou os concretos “termos” em que pretendia proceder à rentabilização do espaço (v. v.g. Ac. STJ de 08.5.2007, Sebastião Póvoas e os supracitados Acs STJ de14.7.2016 e 27.4.2017).

Porém, é de admitir que, segundo as regras da experiência, a ré reconvinte utilizava aquele espaço para reparar os veículos ou fazer neles outros trabalhos oficinais (e não para parqueamento). E que nessa medida extraía desse espaço uma “utilidade relevante”, no sentido de dele procurar extrair rendimento.

Sucede, no entanto, que a ré não logrou provar que extraísse desse espaço uma utilidade diária, em termos de trabalhos de reparação ou outros oficinais, pelo que não se pode, também por esta razão, e salvo o devido respeito, equiparar o dano da ré ao custo diário de parqueamento, sob pena de se poder desaguar em alguma arbitrariedade (cfr. Ac. do STJ de 3.2.2009, Mário Cruz, proc. 08A3942 e o Ac. do STJ de 28.10.2010, ambos em www.dgsi.pt).

Como se escreve em CPC anotado, por Abrantes Geraldes e volume I, 2018, a pág. 729 “a opção entre a fixação da indemnização com recurso à equidade e a liquidação subsequente deve dirimir-se a favor do meio que dê mais garantias de se ajustar à realidade. Por isso, se for previsível que o valor exato do dano será apurado c om prova complementar, deverá preferir-se a condenação genérica; já de, apesar de provado o dano, não for previsível que possa determinar-se o seu montante exato com recurso a prova complementar, deve fixar-se logo a indemnização com recurso à equidade (STJ 3-2-09, 08A3942).”

Neste sentido também se pode ver o Ac. STJ de 15.2.2023, proc. 10376/18.8T8SNT.L1.S1, com o sumário: “ (…) II-Havendo danos, mas não estando provado o seu exato “quantum”, a solução passa ou pela fixação da indemnização com recurso à equidade (cfr. art. 566.º/3 do C. Civil) ou pela prolação duma condenação genérica, tendo em vista a sua posterior liquidação (em incidente de liquidação, previsto no art. 358.º/2 do CPC, previsão esta em linha com o disposto no art. 609.º/2 do CPC). III – Quando ainda possam ser trazidos elementos e contributos factuais que irão permitir ajustar o mais possível a fixação da indemnização à realidade, é preferível optar/relegar a fixação da indemnização para incidente de liquidação”!

Cremos, assim, que, no caso em apreço, é possível, com recurso a prova complementar, alcançar um valor do prejuízo resultante da falta de rentabilização do espaço ocupado mais próximo da realidade.

Culpa da lesada:

Entende, ainda, o recorrente que a indemnização a título de ocupação sempre deveria ser totalmente excluída, dadas as circunstâncias e o elevadíssimo grau de culpa da recorrida—arts 570º e 571º do CC.

Porém, não se pode concluir pela existência de um facto culposo da recorrida que tivesse concorrido para a produção ou agravamento dos danos

É verdade que o autor queria um veículo para uso profissional pelo que a ré devia ter providenciado pela venda de um bem não onerado com uma penhora, que pudesse circular. A ré não podia ignorar que o autor não desejava um veículo penhorado e impedido de circular.

Porém, não foi isso que esteve na causa dos danos causados pela paralisação do veículo na oficina. Foi o facto de a ré não ter querido reparar o veículo e o de o autor não ter querido levantá-lo, por pretender a sua reparação.

Despesas do IUC:

Insiste a recorrente que o pedido constituído pelos montantes do IUCs se reporta ao período em que o veículo se encontrava penhorado à ordem do Tribunal do Cartaxo; que a não transferência, no registo automóvel, da identidade do titular do veículo da Recorrida para o Recorrente, é, apenas, uma consequência de todo o comportamento ilícito daquela.

Porém, e na ausência de nova argumentação, remete-se, tal como a Relação, para a passagem da decisão de 1ª instância, quando refere: “o reconvindo, enquanto sujeito ativo no contrato de compra e venda em causa incumpriu a obrigação que sobre si impendia de registar a seu favor a propriedade do veículo matrícula ..-..-GZ de que é proprietário. Porque incumpriu essa obrigação, a propriedade do veículo permaneceu registada a favor da reconvinte e só por esse facto, assumiu a mesma a qualidade de sujeito passivo de IUC. Não fora o incumprimento do Reconvindo e a Reconvinte não seria responsável pelo pagamento de tal quantia. (…)”.

Além disso, não esqueçamos, ficou provado que “aa) A reconvinte desconhecia a penhora com o n.º de ordem 01870, de 28.11.2011, registada a favor de A..., Lda., quando efetuou a venda do veículo ao reconvindo; bb) A reconvinte apenas tomou conhecimento da existência da referida penhora quando se deslocou à conservatória para confirmar que o reconvindo não tinha ainda efetuado o registo do veículo a seu favor, após o que encetou as diligências necessárias com vista ao cancelamento da mesma.”

Não se divisa, deste modo, qualquer responsabilidade da ré que possa desonerar o autor do encargo de suportar o pagamento dos IUCs,

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em conceder parcialmente a revista e consequentemente:

a) revogar o acórdão na parte respeitante à fixação da indemnização pela privação de uso;

b) relegar para incidente de liquidação o apuramento dos prejuízos resultantes da ocupação do espaço da oficina com o veículo do autor (rendimento que a ré deixou de obter com a ocupação do espaço), desde 14 de Julho de 2016 até ao dia em que retirar o veículo das oficinas daquela;

c) confirmar o acórdão quanto ao mais.

Custas pela recorrente e recorrida, em partes iguais.


*


Lisboa, 31 de Outubro de 2023

António Magalhães (Relator)

Jorge Arcanjo

José Aguiar Pereira