Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1060/19.6T8BRR.L1.S1
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: RECURSO DE REVISTA
Data do Acordão: 11/16/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I- O Supremo Tribunal de Justiça está impedido de sindicar como é que o Tribunal da Relação formou a sua convicção na livre apreciação da prova a que procedeu, não se tratando de prova legalmente tabelada.

II- A nulidade da sentença por falta de fundamentação só existe quando essa falta é total.

III- Não tendo o Recorrente suscitado no seu recurso um eventual erro de julgamento não pode o Supremo Tribunal de Justiça conhecer essa questão.

Decisão Texto Integral:


                                         Processo n.º 1060/19.6T8BRR.L1.S1

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

1. Relatório

AA intentou contra Tecnilab Portugal, S.A. ação declarativa de condenação com processo comum, formulando os seguintes pedidos:

I- Ser reconhecida e declarada a ilegalidade da atuação da empresa Ré (alteração ilegal e injustificada das funções do A., impedimento injustificado da prestação efetiva de trabalho por parte do Autor, com recurso a grave assédio moral, esvaziamento de funções e humilhação, com vista a provocar de forma culposa o seu despedimento)

II- Ser a R. condenada a pagar ao Autor os valores não pagos a título de subsídio de férias e de Natal não gozados e não pagos, diuturnidades e vencimento do mês de Março.

III – Um mês por cada ano de trabalho prestado – 21 anos no valor total de € 22.785,00 Euros (Vinte e dois mil setecentos e oitenta e cinco Euros)

V- Indemnização que é por danos morais em montante não inferior a € 25.000,00 (Vinte e cinco mil Euros), tudo valores não pagos até à presente data, bem como os que se venham a vencer até à data de integral e efetivo pagamento pela Ré”.

A Ré contestou.

Foi proferido despacho saneador e realizada a audiência de julgamento.

Em 26.06.2021, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

Face ao exposto determina-se:

- A condenação da Ré no pagamento ao Autor do montante de € 25.014,61 a título de indemnização pela resolução do contrato por justa causa;

- A absolvição da Ré no pagamento ao Autor da quantia devida a título de subsídio de férias e de Natal, diuturnidades e vencimento do mês de março de 2019.

- Absolver a Ré do pedido de condenação no pagamento ao Autor do valor de €25.000,00 a título de danos não patrimoniais.

- Condenar a Ré no pagamento ao Autor do valor correspondente a juros de mora vencidos e vincendos sobre as quantias pelas quais foi condenada supra”.


A Ré interpôs recurso de apelação.

Por acórdão de 6.04.2022, o Tribunal da Relação acordou em “julgar a apelação procedente, modificando o acervo fático conforme sobredito e, na revogação da sentença, absolver a R. do pedido”.

O Autor veio interpor recurso de revista.

A Ré apresentou contra-alegações.

Em cumprimento do disposto no artigo 87.º n.º 3 do CPT o Ministério Público emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

2. Fundamentação

De Facto

Foi a seguinte a matéria de facto dada como provada nas instâncias (manteve-se a numeração feita pelo Tribunal da Relação que numera de 1 a 5 os factos resultantes de acordo das partes e de A a AA os restantes):

1. A Ré é uma empresa que se dedica à atividade de planeamento técnico e científico, e opera em três áreas – produtos, sistemas e serviços com sede na morada supra indicada.

2. O Autor celebrou com a Ré, contrato de trabalho por tempo indeterminado desempenhando à data as funções de motorista/paquete.

3. Ainda assim, foi-lhe dito pelo mesmo, logo de seguida, “então vais para a secção de aprovisionamento”.

4. Em 08 de Fevereiro de 2019, veio o Autor a ser chamado pelo mesmo superior hierárquico que em conjunto com a diretora do Departamento... lhe comunicou que iria de imediato mudar-se para o andar de cima, onde já tinha secretária e espaço definido, passando a desempenhar funções na secção de ... sob direção de BB, que por sua vez respondia à Direção....

5. Entretanto, voltou ao seu posto de trabalho onde permaneceu e trabalhou sem sobressaltos durante pelo menos mais um mês.

A. Veio mais tarde a desempenhar funções no departamento de c..., com a categoria de assistente de ..., onde permaneceu até 08 de fevereiro de 2019, tendo posteriormente e para além daquelas sido ordenada a sua prestação junto do departamento de aprovisionamento.

B. Prestou serviço nos momentos de realização de feiras, muitas e frequentes, em que trabalhava no desenvolvimento do projeto.

C. No fim do mês de Novembro / inicio do mês de Dezembro de 2018, o aqui

Autor é chamado ao gabinete do administrador – Sr. CC à data seu superior hierárquico direto, que verbalmente lhe comunica que iria mudar de departamento e funções.

D. Assim, deixaria de integrar o Gabinete..., que se encontra inserido na Administração e àquela reporta de forma direta, passando a integrar o Departamento Administrativo que tem como responsável a Colaboradora DD, que por sua vez reporta à Direção..., que por sua vez reporta à Administração.

E. Tendo-lhe sido dito que o departamento onde se encontrava tinha vindo a diminuir o volume de trabalho, sendo desnecessário a permanência de dois funcionários no dito departamento.

F. O Autor referiu que se o quisessem despedir era colocarem-no a trabalhar com a tal Colega – DD, tendo à data lembrado tal facto ao administrador CC que encolheu os ombros.

G. O Autor remeteu e-mail à administração questionando sobre os aspetos da mudança de funções, que não lhe foram comunicados, nomeadamente se aquela alteração teria carácter definitivo ou temporário, quais os motivos e fundamentos para tal mudança, critérios de escolha na opção de diminuição do departamento de comunicação e imagem, entre outros.

H. E-mail ao qual não obteve resposta.

I. Na dita reunião com o Administrador CC, a Diretora do Departamento..., foi ao aqui Autor comunicado que a mudança era definitiva, não deixando, todavia, de referir que quando houvessem feiras ou necessidades específicas na área de c... o aqui Autor seria chamado para ajudar o seu colega EE.

J. Desde início que o Autor deixou claro que não concordava com a alteração de funções.

K. Mais tendo dito que, uma vez que o gabinete de onde foi retirado dispunha de dois colaboradores, ainda que houvesse diminuição de trabalho, sempre gostaria de saber por que motivo e com que base teria o Autor sido o escolhido para sair, sendo certo que inclusivamente o Autor era o mais antigo no cargo, tendo tentado perceber quais os critérios para tal escolha, contudo nunca tal foi justificado ou respondido pela entidade patronal.

L. A alteração foi comunicada ao trabalhador oralmente, e ocorreu sem a concordância do mesmo.

M. Eliminado

N. A formação ministrada mais não era do que explicação sumária por parte do coordenador do que devia fazer, faltando-lhe formação nomeadamente na ferramenta informática essencial usada no departamento de aprovisionamentos, formação que não lhe foi dada até à sua saída.

O. O Autor foi admitido no dia .../.../1997.

P. O Autor foi admitido como motorista/paquete, tendo posteriormente passado a trabalhar na área de C....

Q. Prestou algumas vezes serviço por altura de feiras e ou congressos em que a Ré apresentava os seus produtos, participando na montagem e, eventualmente até, dando o seu contributo e opinião na conceção de stands.

R. O vencimento mensal cifra-se no montante de €1065,00. (mil e sessenta e cinco euros).

S. O departamento de comunicação e imagem viu diminuído o seu volume de trabalho, sendo desnecessária a presença de dois funcionários no referido departamento.

T. A Administração realocou o Autor na secção de aprovisionamento.

U. No caso concreto, a diminuição da participação da empresa em feiras, congressos e eventos do sector, resultou no evidente sobredimensionamento dos recursos até então alocados ao gabinete de c..., tendo a empresa optado pela otimização dos recursos.

V. A empresa entendeu que deveria ser o seu colega a ficar na referida área e agiu em conformidade, decidindo que o Autor passaria a prestar serviço na área de aprovisionamento.

W. O facto de ter estado a trabalhar no departamento de comunicação e imagem não resultou de qualquer especial qualificação ou formação do Autor na mesma, nem é detentor de algum tipo de especialização na mesma.

X. Todos os trabalhadores respondem à administração, umas vezes por interposta pessoa como seja um responsável de serviço ou um diretor de departamento ou, na falta destes, sem qualquer intermediário.

Y. Quem delineava a estratégia e definia os moldes em que os diversos departamentos da Ré apresentavam os seus produtos, mesmo quando se deslocavam/participavam em feiras ou eventos, eram as próprias áreas, uma vez que eram elas que, em função do produto a apresentar, escolhiam a melhor maneira de o fazer.

Z. Depois de tomada a opção, eram contactados o Autor e o seu colega da “comunicação e imagem” para: comprarem, sob instruções das áreas respetivas e autorização da administração e da Direção... os materiais, brindes etc, alugar espaços, montar os stands quando havia lugar à sua montagem e posterior desmontagem.

AA. O A. comunicou à R., por carta datada de 14/03/2019, a sua intenção de imediata resolução, com justa causa, do contrato de trabalho celebrado em 2/12/1997, fundada em violação culposa das garantias legais do trabalhador (Artº 394º/1, 2-b) e f) e 4 do CT), carta entregue e recebida nos Recursos Humanos.

De Direito

Ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, o objeto do recurso é delimitado pelas Conclusões do mesmo. Ora, depois de no articulado o Recorrente ter identificado apenas duas questões que enuncia – “Aferir se a sentença recorrida, na reapreciação que fez da prova produzida em audiência de julgamento e em claríssima violação do principio da imediação, ajuizou ou não corretamente a matéria de facto e se a alteração da matéria fáctica por si decretada padece, como entende o recorrente, de nulidade por insuficiência de prova e falta de fundamentação” e “aferir se o douto acórdão ora em crise e contrariando a decisão do tribunal de 1ª Instância, ao qualificar a conduta da Recorrente como justa e adequada, não sendo passível de motivar a resolução do contrato de trabalho por parte do trabalhador padece ou não do vicio de nulidade por insuficiência da prova para a decisão e falta de fundamentação” – são essas e só essas as que são referidas nas Conclusões, identificando-as como “vicio de erro na apreciação de prova e falta de fundamentação” (Conclusão I). Invoca a violação do princípio da imediação (Conclusão II) e do dever de fundamentação a que o Tribunal estava obrigado (Conclusões III a VI).

Quanto à primeira questão a intervenção deste Supremo Tribunal de Justiça quanto à decisão tomada em matéria de facto pelas instâncias é extremamente circunscrita. Decorre do artigo 662.º n.º 4 do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo de trabalho, que das decisões da Relação previstas nos números 1 e 2 do mesmo artigo não cabe recurso para o Supremo. E não se tratando, como não se trata de prova legalmente tabelada ou de ofensa de disposição legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista (n.º 3 do artigo 674.º). Está, por conseguinte, este Tribunal impedido de sindicar como é que o Tribunal da Relação formou a sua convicção na livre apreciação da prova a que procedeu.

O Recorrente invoca, seguidamente, uma nulidade por falta de fundamentação quanto à decisão do Tribunal da Relação de negar a existência de justa causa para a resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador.

A este respeito pode ler-se, no Acórdão recorrido, o seguinte:

“Ocorre, que em Fevereiro de 2019 lhe foi dada ordem para desempenhar funções na secção de a..., integrada na Direção....

Desconhecem-se que funções.

Sabe-se que no organigrama da empresa este departamento estava abaixo do anterior e, assim, o A. que reportava diretamente à Administração, passou a reportar ao Diretor A....

A mudança ordenada teve carater definitivo, podendo o A. vir a ser chamado para colaborar nas feiras. Opção que parece ser do agrado do A. que prestara, algumas vezes, serviço por altura de feiras e ou congressos em que a Ré apresentava os seus produtos, participando na montagem e, eventualmente até, dando o seu contributo e opinião na conceção de stands conforme acima dissemos.

Não vemos que haja aqui alguma mudança de categoria e também não é percetível uma mudança funcional pela simples razão de que são desconhecidas as funções a exercer no aprovisionamento. E, em bom rigor, quais as funções próprias da categoria atribuída.

Não vemos, pois, como sustentar alguma violação do disposto no Artº 120º do CT que pressupõe que o trabalhador possa ser temporariamente encarregado de desempenhar funções não compreendidas na atividade contratada sem que isso implique mudança substancial da sua posição.

Muito embora a mudança ordenada fosse definitiva, não só a mudança de departamento com inerente distinto escalonamento hierárquico não consubstancia, só por si, uma modificação substancial na posição do trabalhador, como, conforme já dissemos, não se provaram diferenças na função a exercer.

Aliás, não deixa de ser estranho que a sentença vinque a inexistência de despromoção e, após, venha a concluir pela justa causa fundada na circunstância de o A. ser transferido de departamento. Também não se compreendendo em que facto assenta o “exercício de funções de confiança” e o “esvaziamento da esfera funcional”.

Não podemos, aliás, alhear-nos das circunstâncias que estiveram na base da transferência de departamento - a diminuição da participação da empresa em feiras, congressos e eventos do sector, que resultou no evidente sobredimensionamento dos recursos até então alocados ao gabinete de c..., tendo a empresa optado pela otimização dos recursos.

Ou seja, manifestamente o exercício da liberdade de gestão da empresa com manutenção do contrato de trabalho, aproveitando o know-how do A., que passou de uma escala setorial para uma mais global. Nenhuma despromoção ou diminuição de status, pois, da circunstância de se exercerem funções num departamento que reporta diretamente à Administração não se pode extrair uma maior valorização profissional no confronto com o exercício em departamento que responde perante uma direção”.

Como se vê, a decisão está motivada e fundamentada, não se podendo falar em qualquer nulidade por falta de fundamentação. A nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC só ocorre quando há uma absoluta falta de fundamentação, o que patentemente não é o caso.

Outra questão seria a de saber se houve erro de julgamento. Mas trata-se de questão que não é suscitada no recurso e que, não sendo de conhecimento oficioso, não podemos agora conhecer.

Decisão: Negada a revista.

Custas pelo Recorrente.

16 de novembro de 2022

Júlio Gomes (Relator)

Ramalho Pinto

Domingos Morais