Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3236/16.9T8BRG.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: CONTRATO DE MANDATO
PROCURAÇÃO
MANDATÁRIO JUDICIAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
CRIME
FACTO CONTROVERTIDO
EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
EXCEÇÃO PERENTÓRIA
MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
LEGITIMIDADE PASSIVA
Data do Acordão: 10/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGOCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / REPRESENTAÇÃO – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DE OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / CONTRATOS EM ESPECIAL / PRESTAÇÃO DE SERVIÇO / MANDATO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PARTES / LEGITIMIDADE DAS PARTES / PATROCÍNIO JUDICIÁRIO – INSTRUÇÃO DO PROCESSO / PROVA TESTEMUNHAL / PRODUÇÃO – GESTÃO INICIAL DO PROCESSO E DA AUDIÊNCIA PRÉVIA.
Doutrina:
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 787 e788;
-Castro Mendes, Direito Processual Civil, Volume II, AAFDUL, 1978/79, 138-139.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 262.º, N.ºS 1 E 2, 498.º, N.º 3, 1154.º, 1155.º, 1157.º, 1178.º, 1180.º E 1184.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 30.º, N.ºS 1, 2 E 3, 43.º, 498.º, N.º 1, 595.º, N.º 1, ALÍNEA B),
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 208.º.
ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS (EOA), APROVADO PELA LEI N.º 145/2015, DE 09 DE SETEMBRO.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 22-05-2013, PROCESSO N.º 2024/05.2TBAGD.C1.S1., IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :   
I. A celebração do contrato de mandato não está, em regra, sujeita a forma escrita com o que não se deve confundir a outorga de procuração a conferir poderes de representação ao mandatário, a qual revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar (art.º 262.º, n.º 2, do CC).

 II. No âmbito do mandato judicial, o artigo 43.º do CPC exige a adoção das formas ali previstas para conferir ao mandatário forense os poderes de representação necessários à intervenção no processo, o que não significa que não possa ser celebrado contrato de mandato forense consensual, nomeadamente sem representação, fora desse âmbito específico de intervenção.

 III. No caso em que o autor impute ao réu, na qualidade de advogado, a responsabilidade por omissão ocorrida no âmbito de uma relação de mandato, tem-se por assegurada a legitimidade passiva, nos termos do art.º 30.º, n.º 3, do CPC, sem que para tal efeito seja necessária a prova da outorga de procuração forense.

 IV. No âmbito de uma ação emergente de responsabilidade civil delitual com fundamento na alegação de factos suscetíveis de constituir crime para o qual a lei estabeleça prazo de prescrição superior a três anos, é esse prazo mais longo o aplicável ao direito invocado, nos termos do artigo 498.º, n.º 3, do CC.

V. Tal alargamento de prazo é extensível aos co-responsáveis meramente civis, sejam eles ou não agentes do crime.

VI. Quando se encontre controvertida a matéria de facto tendente a demonstrar a ocorrência de infração criminal para efeitos de prescrição, deve ser relegado para final o conhecimento da exceção de prescrição, nos termos do artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do CPC.

Decisão Texto Integral:            
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:



I – Relatório


1. AA (A.) intentou, em 12/07/2016, ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra:

   - BB (1.ª R.);

   - CC, Lda, ora denominada DD, S.A. (2.ª R.);

   - EE (3.º R.);

   - FF (4.º R.).    


Pede o A. que

   A - Os R.R. sejam condenados, solidariamente, a pagar-lhe:     

      a) – a quantia de € 273.199,23;

      b) – a quantia que vier a ser liquidada, a título de lucros cessantes;

   B) – O 3.º R. seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 102.041,23.

   C – Sejam ainda os R.R. condenados a pagar-lhe os respetivos juros de mora, desde a citação.

       Alegou, para tanto, em termos que aqui se desenvolvem de modo a contextualizar as questões suscitadas, o seguinte:

. O A. foi fundador e sócio-gerente da sociedade “Cerâmica GG, Lda, a qual foi instalada em local pertencente àquele;

. A referida sociedade foi declarada insolvente por sentença proferida em 15/12/2011, tendo sido nomeada a 1.ª R. como administradora da insolvência e apreendidos os bens daquela insolvente conforme auto de apreensão de 25/01/2012;

. Em 20/04/2012, tais bens foram vendidos em estabelecimento de leilão sob a responsabilidade da 2.ª R., escolhida para o efeito pela 1.ª R., da qual era gerente o 3.º R., EE;

. No momento do leilão, os bens apreendidos encontravam-se depositados no local da apreensão, consistente nas instalações da insolvente, situadas num imóvel pertencente ao A.;

. Em outubro de 2012, o A. apercebeu-se de que, nos atos de remoção dos bens levados a efeito pelo 3.º R., com a anuência e sob a direção da 2.ª R., estavam a ser incluídos materiais e maquinaria que não pertenciam à insolvente e não constavam dos bens apreendidos, mas que pertenciam ao A.;

. Em face disso, o A. elaborou uma listagem dos bens que estavam a ser indevidamente removidos pelo 3.º R. e entregou cópias dessa listagem quer à 1.ª R., quer ao 4.º R. mandatário do A.;

. O 3.º R., que também exerce a atividade de sucateiro, ao remover conjuntamente os bens apreendidos à insolvente e os que pertenciam ao A., bem sabia que este últimos bens eram propriedade do mesmo A. e quis fazê-los seus, agindo de modo a que fosse perdido o rasto de tais bens;

. A conduta do 3.º R. só ocorreu com a conivência da 2.ª R.;

. A 1.ª R. foi alertada pelo A., por carta registada, no início de setembro de 2012, para a “ameaça” da ocorrência daqueles atos por parte do 3.º R., mas, apesar disso, nada fez;

. O 4.º R., advogado então mandatário do A., elaborou a referida carta, dirigida pelo A. à 1.ª R., tomando assim notícia atempada dos propósitos do 3.º R., nada fazendo para prevenir o furto, por parte deste, dos bens do A.;

. O A. apresentou, em 15/09/2014, queixa criminal contra incertos, pelo furto dos seus bens, denunciando que tais bens se encontravam nas instalações da sucata pertencente ao 3.º R., tendo sido arquivado o inquérito que se lhe seguiu;

. Os bens apreendidos nesse inquérito, que não integravam a massa insolvente, ficaram na disponibilidade do 3.º R., o qual lhes deu o destino que bem entendeu com perda do seu rasto;

. Na execução dos sobreditos atos de remoção, o 3.º R. destruiu diversas partes do imóvel do A., nomeadamente pavimentos, tectos e outras estruturas;

. Os bens pertencentes ao A. indevidamente retirados pelo 3.º R. e os custos da sua reposição importaram no valor global de € 23.759,23;

. A reposição do imóvel do A., em consequência dos estragos nele provocados pelo 3.º R., agravada pelo atraso da entrega do edifico àquele pela 1.ª R., implica o custo de € 82.960,35 acrescidos de IVA, perfazendo o montante de € 102.041,23;

. Além disso, tal situação impossibilitou o A. de, em nome individual, retomar a atividade de indústria de cerâmica e faiança de louças, naquele imóvel, nos termos em que o fazia antes da constituição da sociedade insolvente;

. Tal situação foi geradora de uma significativa diminuição patrimonial do A. correspondente, pelo menos, ao valor dos bens de que se viu privado, na cifra de € 249.440,00;

. Assim, os R.R. são solidariamente responsáveis pelo pagamento da quantia de € 273.199,23, acrescida de juros de mora desde a citação, correspondente ao valor dos bens de que o A. foi privado e respetivas despesas de reposição, bem como do que se vier a liquidar a título de lucros cessantes;

. Por sua vez, o 3.º R. é responsável pelo pagamento da quantia de € 102.041,23, acrescida de juros de mora desde a citação, a título de indemnização pelos danos resultantes da destruição de partes do imóvel do A..     

 2. A 4.º R. apresentou contestação, em que:

- Deduziu a exceção da sua ilegitimidade, alegando ter sido exclusivamente mandatado pelo sociedade “Cerâmica GG, Lda”, e nunca pelo A.;

- Invocou a exceção de prescrição ao abrigo do artigo 498.º;

- Impugnou os factos alegados pelo A. na parte que lhe dizem respeito.

3. As 2.ª R. e o 3.º R. também contestaram, suscitando, além do mais, as exceções das respetivas ilegitimidades, bem como a prescrição do direito contra eles peticionados, ao abrigo do disposto no artigo 498.º, n.º 1, do CC;

4. Por fim, a 1.ª R., de igual modo, contestou, mediante impugnação e dedução da exceção de prescrição com base também no artigo 59.º do CIRE e, subsidiariamente, no artigo 498.º, n.º 1, do CC.

5. Findos os articulados, foi realizada audiência prévia, no decurso da qual o A. se pronunciou sobre a matéria das exceções deduzidas conforme o consignado na ata de fls. 181-182/v.º.

6. Seguidamente, foi proferido saneador a fls. 206-212, datado de 20/02/2017, em que, fixado o valor da causa em € 375.240,46, foram especificamente conhecidas as invocadas exceções de ilegitimidade dos 2.ª, 3.º e 4.º R.R. e da prescrição, concluindo-se:

a) - pela improcedência da exceção de ilegitimidade da 2:ª R.;

b) – pela procedência das exceções de ilegitimidades dos 3.º e 4.º R.R.;

c) – pela procedência das exceções de prescrição com a consequente absolvição dos R.R. dos pedidos.

7. Inconformado com tal decisão, veio o A. interpor recurso de revista per saltum, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - Conforme resulta do disposto no n.º 3 do art. 30º do CPC, na falta de disposição legal em contrário, a legitimidade processual determina-se pela titularidade da relação material controvertida, tal como esta é configurada pelo autor.

2.ª - No caso dos autos, relativamente ao demandado EE, verifica-se que lhe é imputada a prática de factos suscetíveis de implicar a sua responsabilização nos termos peticionados.

3.ª - Decorre claramente da petição inicial que o A. procedeu a tal imputação na pessoa do demandado EE, tratando-se de uma imputação a título pessoal ou individual, o que é bastante para conferir a este legitimidade na causa.

4.ª - Ainda que o Tribunal tivesse dúvida sobre o verdadeiro destinatário da imputação e se tais dúvidas se fundassem em eventual imprecisão do relato contido na petição inicial, o que se impunha era que o Tribunal sinalizasse essas imprecisões e convidasse o Autor a aperfeiçoar a petição, tal como determina o nº 4 do art.º 590.º do CPC;

5.ª - Isto é, o Tribunal deveria proferir despacho pré-saneador no sentido de proporcionar ao A. a oportunidade de esclarecer a sua alegação e especificar a quem é dirigida a imputação em apreço.

6.ª - Não procedendo assim, o Tribunal violou o princípio da cooperação, na vertente do dever de esclarecimento pelo Tribunal, e determinou ao despacho saneador um conteúdo diferente do que este teria no caso de ter sido cumprido o nº 4 do art.º 590.º do CPC.

7.ª - Relativamente ao demandado FF, impõe-se concluir que o mesmo é parte legítima nesta ação, nos termos e para os efeitos definidos no n.º 3 do art.º 30.º do CPC, porquanto a pretensão deduzida pelo A. assenta na afirmação de que havia uma relação de mandato com este R., advogado de profissão;

8.ª - A relação existente entre um cliente e um advogado pode assumir a feição de mandato forense, de âmbito mais abrangente e que confere ao advogado condições para a prática de qualquer ato típico da profissão, e a feição de mandato judicial, de âmbito mais restrito e cujo campo próprio é da representação em juízo – sendo que, neste último caso, o mandato se expressa pela outorga de procuração forense a apresentar nos autos (ou por termo no processo).

9.ª - Ao contrário do que afirma o Tribunal, para o caso vertente e para a assunção da relação de mandato invocada relativamente ao R. FF, não é exigível a existência de uma procuração forense passada pelo A. a favor daquele R., como condição da existência do mandato.

10.ª - Por inerência, invocada na petição inicial a existência de uma relação de mandato entre o A. e o R., tal é bastante para reconhecer a este legitimidade para a causa.

11.ª - Relativamente ao reconhecimento da exceção de prescrição, que conduziu à absolvição do pedido quanto aos R.R. BB, CC, Lda e FF, o Tribunal percebeu claramente que, face ao tempo decorrido desde a prática dos factos, a imputação feita nos autos radicava na afirmação de que a conduta destes R.r. constituía crime, pelo que o prazo prescricional a considerar seria, não já o do n.º 1 do art.º 498.º do CC, mas o aplicável ao crime a cujo tipo legal a conduta imputada seja (ou fosse) subsumível.

12.ª - O teor da alegação feita pelo A. é suficientemente explícito no sentido de que, face à factualidade imputada, a estes três R.R. (e também ao R. EE), a ação foi instaurada na pressuposição de que os factos em causa constituem crime, razão pela qual o prazo prescricional a considerar não seria já o do n.º 1 do art.º 498.º do CPC, mas o mais alargado e correspondente ao crime em causa.

13.ª - Tendo embora percebido tudo isso, o Tribunal afirma que o tipo de crime que poderia estar em jogo sempre teria natureza dolosa e que o A. não alegou factos que integrem o elemento típico “dolo”.

14.ª - A ser assim, haveria uma deficiência da petição inicial, por falta de alegação de factos susceptíveis de preencherem aquele elemento do tipo legal aplicável.

15.ª - Tem-se como seguro que tal deficiência não era de tal monta que implicasse a afirmação da falta de causa de pedir e, por isso, a ineptidão da petição inicial, nos termos do disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 196.º do CPC, com a inerente exceção dilatória da nulidade de todo o processo e a consequente absolvição dos Réus da instância, nos termos das disposições conjugadas da al. b) do nº 1 do art. 278º e da al. b) do art.º 577.º do CPC.

16.ª - Ora, se a deficiência assinalada pelo Tribunal não era motivo de ineptidão da petição inicial, impunha-se então que o Tribunal, no estrito cumprimento da lei, proferisse um despacho de convite ao aperfeiçoamento, nos termos do n.º 4 do art.º 590.º do CPC, na certeza de que tal despacho tem natureza vinculada, isto é, perante uma situação enquadrável no respetivo âmbito, o Tribunal não pode deixar de proferir tal despacho, menos ainda pode proferir de imediato uma decisão de improcedência da acção;

17.ª - No caso vertente, é manifesto que o Tribunal omitiu a prolação do despacho de convite ao aperfeiçoamento que a lei impõe no dito n.º 4 do art. 590.º do CPC.

18.ª - Tal omissão acabou por condicionar e determinar o conteúdo do despacho saneador, já que o raciocínio aí expresso acerca deste ponto tem precisamente como causa directa a falta do despacho pré-saneador, o que constitui motivo para inquinar o próprio despacho saneador.

19.ª - Se o Tribunal entendeu que havia deficiência ou insuficiência na alegação do A., por ter sido omitida menção ao elemento típico “dolo”, o que se impunha era que o Tribunal sinalizasse essa circunstância e convidasse o A. a aperfeiçoar a sua alegação, tal como determina o n.º 4 do art.º 590.º do CPC.

21.ª - Relativamente ao Réu EE, reconhecida que seja a sua legitimidade nestes autos, ficará o mesmo submetido ao critério aplicável aos demais R.R. no âmbito da prescrição decretada pelo Tribunal.

22.ª - Por outro lado, quanto ao R. FF, dado o cariz da relação mantida com o A., a sua responsabilidade tem natureza contratual, pelo que nunca lhe aproveitaria o raciocínio desenvolvido pelo Tribunal, na medida em que a sua responsabilidade civil está sujeita ao regime ordinário da prescrição.

23.ª - Mostra-se violado o disposto no n.º 3 do art.º 30.º e no n.º 4 do art.º 590.º do CPC, bem assim o disposto no art.º 309.º e no art.º 498.º do CC.

24.º - Tratando-se de recurso interposto de decisão referida no n.º 1 do art.º 644.º do CPC, é propósito do Recorrente que o recurso suba diretamente ao STJ, visto que estão verificados os requisitos fixados no n.º 1 do art.º 678.º do CPC.

 8. O 4.º R. e a 2.ª e 3.º R.R. apresentaram contra-alegações a pugnar pela confirmação do julgado.


        Cumpre apreciar e decidir.


     II - Delimitação do objeto do processo


       Do teor das conclusões do Recorrente colhe-se que as questões a resolver incidem sobre os seguintes segmentos decisórios:

   i) – a procedência da exceção de ilegitimidade do 3.º R.;  

   ii) – a procedência da exceção de ilegitimidade do 4.º R;

  iii) – a procedência das exceções perentórias de prescrição invocadas por todos os R.R..


III - Fundamentação

           

1. Quanto à exceção de ilegitimidade do 3.º R.


      O 3.º R., EE, deduziu a exceção da sua ilegitimidade, alegando que, segundo a configuração da relação material controvertida dada pelo A. na petição inicial, ele 3.º R. vem demandado na qualidade de sócio-gerente da 2.ª R., donde decorre a sua ilegitimidade a título pessoal.

       Por seu turno, o A., em sede que resposta àquela exceção apresentada verbalmente na audiência prévia, contrapôs que o 3.º R. foi demandada na base da imputação que lhe é feita no sentido de que praticou, ele próprio, os atos mencionados na petição inicial.

Por fim, o tribunal a quo, na apreciação desta questão, começou por citar diversas passagens da petição inicial que exemplificariam a confusão feita pelo A. entre aquele R. e a sociedade 2.ª R..

Daí considerou o mesmo tribunal que:

«Resulta da alegação do autor, no seu contexto global e relevante, que a atuação do R. EE revestiu a qualidade de representante da sociedade “HH & Cª”. E só nesta qualidade e enquanto tal a sua atuação pode ser compreendida.

A participação do 3º Réu EE nos atos relativos à remoção dos bens apreendidos ocorreu enquanto sócio gerente da sociedade “HH & Ca”, compradora dos bens.

Não resulta da factualidade alegada pela Autora que o Réu EE atuou, em algum momento, por si, despido da representação da compradora dos bens “HH & Cª".»

        E concluiu que:

«Face ao que se deixa exposto, impõe-se a conclusão de que o Réu EE não é titular da relação material litigada, mesmo tal como é configurada pelo Autor, pelo que se impõe concluir pela sua ilegitimidade para ser demandado na ação.

Pelo exposto, julgo o Réu EE como parte ilegítima para a presente ação e, em consequência, absolvo-o da instância.»


         Vejamos.


       Como é sabido, conforme o disposto no artigo 30.º, n.º 1 e 2, do CPC, o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer a pretensão contra ele deduzida pelo autor, interesse este que se exprime pelo prejuízo que àquele réu possa advir da procedência da ação.

          E segundo o n.º 3 do citado normativo:

   Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

        Em suma, hoje, à luz deste preceito, segundo entendimento doutrinário e jurisprudencial pacífico, o pressuposto da legitimidade processual ativa e passiva é, em regra, aferido com base na titularidade em que os sujeitos da relação controvertida são apresentados pelo autor no quadro dessa relação.


      Ora, da leitura da petição inicial podem-se respigar alguns pontos em que se denota alguma confusão entre a qualidade atribuída ao 3.º R. no campo da sua atuação enquanto sócio-gerente da 2.ª R. ou a título pessoal, como, por exemplo, na participação do leilão e na remoção dos bens apreendidos a que se referem os artigos 52.º, 53.º e 77.º da petição inicial.

       Todavia, numa leitura mais cuidada e profunda daquele articulado, depreende-se que o A. imputa ao 3.º R. a remoção de bens que sabia pertencerem ao mesmo A. e que quis fazer seus (artigos 54.º a 56.º, 74.º e 102.º a 106.º, 129.º e 139.º da p.i.), bem como a destruição, na execução dos atos de remoção, de diversas partes do imóvel do A., nomeadamente pavimentos, tectos e outras estruturas (artigos 130.º, 131.º e 146.º da p.i).

      Por outro lado, alegou o A. que o 3.º R. atuou assim com a conivência e anuência da 2.ª R. (artigos 76.º da p.i.), o que, por sí só, não implica uma imputação a título de representante legal da 2.ª R..

É certo que, sob o artigo 77.º da petição inicial, vem alegado que:

«(…) toda da conduta do 3.º R. foi , se não incentivada, pelo menos autorizada pela 2.ª R., já que todas as operações de remoção levadas a cabo pelo 3.º R. decorreram sob orientação e tutela da 2.ª R.»

        Mas logo no artigo 78 do mesmo articulado se refere que isso significava “que o 3.º R. não lograria o seu propósito se a 2.ª R. (…) impedisse a remoção”, sendo nessa base que a A. procura envolver também a 2.ª R. na responsabilidade pelos atos de apropriação imputados ao 3.º R., cuja autoria se mostram expressamente imputados a este. Em nenhuma passagem do referido articulado se afirma que a 2.ª R. quis fazer seus os bens tidos como pertencentes ao A..

       De resto, se algumas dúvidas pudessem existir, elas foram dissipadas pelo A., na resposta à exceção, quando afirmou taxativamente que “o 3.º R. é demandado em virtude da imputação que lhe é feita no sentido de que praticou, ele próprio, os atos mencionados na petição inicial”.

        Face a todo este contexto alegatório, salvo o devido respeito, nada autoriza a concluir, como concluiu o tribunal a quo, que “a atuação do 3.º R. revestiu a qualidade de representante” da 2.ª R. e que “só nesta qualidade e enquanto tal a sua atuação pode ser compreendida”.

       Com efeito, não obstante uma ou outra das aludidas incongruências, o essencial da versão do A. exprime o sentido da imputação dos atos em causa ao 3.º R., a título pessoal, ainda que com a conivência da 2.ª R., além de que foi com tal alcance que o A. acabou por clarificar essa versão na resposta à exceção.

         Assim sendo, tem-se por seguro que essa é a titularidade imputada ao 3.º R. na relação material controvertida configurada e clarificada pelo A.. Saber se este R. atuou nessa qualidade ou na de representante legal da 2.ª R. constitui já uma questão de mérito controvertida, que estava vedada ao tribunal a quo dirimir nesta fase processual e muito menos assumir em sede de legitimidade processual.

         Termos em que se impõe julgar improcedente a invocada exceção de ilegitimidade do 3.º R..          


2. Quanto à exceção de ilegitimidade do 4.º R.


       O 4.º R., FF, invocou a sua ilegitimidade, sustentando que foi exclusivamente mandatado pela sociedade “Cerâmica GG, Lda, de que o A. era então sócio-gerente e que foi esse o único mandato que aceitou: o daquela sociedade e não qualquer outro emitido ou conferido pelo A., não lhe cabendo nenhuma responsabilidade pela promoção e alienação dos bens que integram a massa insolvente da mesma sociedade e muito menos pela sua apreensão.

      Na resposta àquela exceção apresentada no decurso da audiência prévia, o A. contrapôs que alegara a existência de uma relação de mandato entre ele e o 4.º R., posição que secundou, mais desenvolvidamente, através do requerimento de fls. 184-187.

       Porém, o tribunal a quo entendeu, em síntese, que aquela qualidade de mandatário do A. só por documento poderia ser demonstrada. Por isso, convidou o A. a juntar aos autos procuração forense outorgada ao referido R., o que não foi feito.

        A partir daí, depois de alongada exposição sobre o contrato de mandato forense, concluiu que o exercício deste mandato exigia a outorga de procuração e que, não tendo esta sido junta, se impunha concluir pela ilegitimidade do 4.º R..


            Vejamos.


       Em primeiro lugar, importa não confundir o contrato de mandato com a procuração.

        Conforme a definição dada pelo artigo 1157.º do CC, o contrato de mandato é aquele mediante o qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra, tratando-se de um contrato consensual, ou seja, não sujeito a forma escrita.

         Por seu turno, a procuração, nos termos do n.º 1 do artigo 262.º do CC, é o ato pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos. E, segundo o n.º 2 do mesmo artigo, salvo disposição em contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar.

        Significa isto que, distintamente do contrato de mandato, a procuração é um negócio jurídico unilateral tipificado na lei através da qual alguém confere a outrem poderes de representação, mas sem que o procurador assuma, sem mais, a obrigação de praticar atos em nome do outorgante[1]. Esta obrigação só lhe poderá advir do contrato de mandato.

         Assim, pode existir contrato de mandato sem poderes de representação (art.º 1180.º do CC) e mandato como poderes de representação (art.º 1178.º do CC), caso em que tais poderes devem ser então conferidos através de procuração revestida da forma que for legalmente exigida, a qual não se confunde com a forma consensual do mandato. E pode também existir procuração desligada de qualquer mandato, caso em que o procurador não assume a obrigação de praticar atos em nome do outorgante.

No que aqui releva, o contrato de mandato forense traduz-se numa modalidade do tipo genérico de contrato de prestação de serviço, nos ter-mos previstos nos artigos 1154.º e 1155.º do CC, apresentando como diferença específica a particularidade de ter por objeto a prática de atos jurídicos, por conta e em nome do mandante, no âmbito do exercício do patrocínio judiciário, em que relevam, além do interesse das partes, tam-bém o interesse de ordem pública de que seja assegurado aos litigantes uma assistência técnico-jurídica qualificada, essencial para a boa administração da justiça, conforme se proclama no art.º 208.º da Constituição da República.

Trata-se pois de um contrato de mandato atípico com poderes de representação, que hoje se rege, em primeira linha, pelo disposto nos artigos 97.º a 107.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA) aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 09/09, tal como nas disposições correspondentes do referido Estatuto dantes aprovado, sucessivamente, pela Lei n.º 15/2005, de 26/01, e pelo Dec.-Lei n.º 84/84, de 16/03, aplicando-se ainda, a título subsidiário, o regime do contrato de mandato civil constante dos artigos 1157.º a 1184.º do CC.

      Ora, no âmbito do mandato judicial, o que o artigo 43.º do CPC exige é a adoção das formas ali previstas para conferir ao mandatário forense os poderes de representação necessários à intervenção no processo, o que não significa que não possa ser celebrado contrato de mandato forense consensual, nomeadamente sem representação, fora desse âmbito específico de intervenção[2].


       No caso vertente, o A. alegou, na petição inicial, que existia uma relação de mandato entre ele e o 4.º R., no âmbito da qual este elaborou uma carta dirigida pelo A. à 1.ª R., tomando conhecimento dos propósitos do 3.º R., nada fazendo para prevenir a consumação do furto por parte deste.

       É nessa base que o A. imputa a responsabilidade ao 4.º R., pela inércia deste ao não tomar as medidas que lhe incumbiam como mandatário, para prevenir a consumação do alegado furto, o que poderá inscrever-se no âmbito da responsabilidade contratual, não se descortinando, por isso, em que base é que o A. lhe vem imputar uma responsabilidade supostamente delitual solidária com os demais R.R., questão esta a decidir em sede de mérito.

         Seja como for, em face do alegado pelo A. sobre a relação de mandato com o 4.º R., para o que não é, sem mais, legalmente exigida forma solene, é forçoso concluir que o mesmo R. é apresentado como titular da relação controvertida em que o A. radica a responsabilidade que imputa àquele R., o que basta para, em conformidade com o artigo 30.º, n.º 3, do CPC, assegurar a sua legitimidade passiva.

         Termos em que também aqui se impõe julgar improcedente a exceção de ilegitimidade em foco.


        3. Quanto à matéria das exceções de prescrição


        Como foi acima relatado, todos os R.R. invocaram a exceção de prescrição de três anos, ao abrigo do artigo 498.º, n.º 1, do CPC.

         Em resposta a tais exceções, no decurso da audiência prévia, o A. contrapôs que os factos imputados a todos os R.R. eram suscetíveis de constituir crime, razão pela qual o prazo de prescrição deve ser alargado ao período da prescrição criminal, nos termos do artigo 498.º, n.º 3, do CC.

           Porém, o tribunal a quo considerou o seguinte:

            «Ora, o Autor não alega factos que integrem o dolo.

De acordo com o art. 14º, n.º 1, do Código Penal, "age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, atuar com intenção de o realizar". O dolo é uma forma de realização do ilícito típico que, psicologicamente se traduz no conhecimento da vontade de realização de um tipo legal de crime9. Trata-se de uma atitude pessoal indiferente ou contrária ao dever ser jurídico-penal. O dolo compõe-se de dois elementos ou perspectivas: a do conhecimento (elemento intelectual) e a da vontade (elemento volitivo). O elemento intelectual do dolo traduz-se no conhecimento da ilicitude, dos elementos constitutivos do crime, isto é, que o agente conheça o tipo legal de crime que a sua vontade visa realizar. O elemento volitivo consiste numa certa conexão do facto com a personalidade do sujeito, numa certa posição do agente perante o facto, isto é, o agente quis um certo facto e pôs a sua realização como fim último da sua conduta.

Os factos que vêm imputados aos Réus não contêm esta intencionalidade, nem no seu elemento intelectual nem no seu elemento volitivo. Com efeito, nada se refere sobre a representação por parte dos Réus de que a sua conduta fosse tipificada como crime e, muito menos, que sabendo disso quiseram agir desse modo por forma a causar prejuízo ao Autor (aos Réus é imputada a falta do cuidado devido, que tem como consequência a realização do facto proibido por lei, que é, afinal, no que se caracteriza a negligência).

Quer esteja em causa um crime de furto, de descaminho, ou qualquer outro crime patrimonial, falta à alegação do Autor um dos elementos constitutivos do crime, que é o dolo. Mesmo provando-se todos os factos narrados na petição, sempre faltaria o dolo, elemento fundamental para que se pudesse considerar penalmente a conduta dos Réus.

Donde se conclui não ter o Autor alegado que o facto ilícito praticado pelos Réus constitui crime, não beneficiando, consequentemente, do prazo de prescrição alargado.

Por tudo quanto se deixa exposto, considera-se que o direito de indemnização do Autor se mostra prescrito.

A prescrição é uma exceção perentória que conduz à absolvição dos réus do pedido, nos termos do art. 576º, nº3, do C.P.C.».


            Vejamos.


        Do que já acima foi relatado resulta que, logo na petição inicial, o A. imputou, pelo menos, ao 3.º R. a prática de crime de furto dos bens que diz lhe pertencer, com a expressa alegação de que este R. bem sabia que tais bens pertenciam ao A. e que os quis fazer seus. Parece que também configura, de algum modo, a prática de crime de dano no seu imóvel, por parte do R., no decurso da remoção, embora aqui não se apresente tão nítida essa imputação criminal.

         Quanto às 1.ª e 2.ª R., o A. alegou a sua conivência com aquela atuação do 3.º R. aí baseando a responsabilidade criminal que lhe imputa.

         Só em relação ao 4.º R. é que, como já foi referido, não se divisa uma tal corresponsabilização, mas, quando muito, uma hipótese de responsabilidade de matriz contratual, a qual está sujeita ao prazo de prescrição ordinário.

         Seja como for, em relação ao 3.º R. afigura-se que os factos alegados são suscetíveis de integrar as sobreditas infrações criminais, face ao que, uma vez que tais factos sejam provados, se impõe atentar no prazo de prescrição alargado por força do disposto no artigo 498.º, n.º 3, do CC.

         Por outro lado, é também sabido que tal alargamento se estende aos responsáveis meramente civis, sejam eles ou não agentes do crime[3], o que poderá aplicar-se às 1.ª e 2.ª R.R., caso se não prove a infração criminal quanto a estas.

        Em relação ao 4.º R., parece que, na falta de explicitação de qualquer outra atuação conexa com o 3.º R., restará, pelo menos, a hipótese de se lhe aplicar o prazo da prescrição ordinária, sem prejuízo deste ponto dever ser ainda melhor clarificado pelo A. em sede do debate prévio para efeitos de identificação do objeto do litígio nesse particular.

         Nestas circunstâncias, mostra-se prematuro o julgamento das exceções de prescrição invocadas, à luz do disposto no artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do CPC, dado que a matéria alegada, para tal relevante, se mostra controvertida.        

            Termos em que procede a revista também nesta parte.

             

       IV – Decisão


     Pelo exposto, concede-se a revista, revogando-se a decisão recorrida e, em sua substituição, decide-se: 

   a) – Julgar improcedentes as exceções de ilegitimidade dos 3.º e 4.º R.R, considerando-os partes legítimas; 

b) – Relegar o conhecimento das exceções de prescrição para decisão final, ordenando-se o prosseguimento do processo com a prévia identificação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova.

         As custas do recurso são a cargo dos Recorridos.  

 

 Lisboa, 19 de Outubro de 2017

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching

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[1] Sobre a distinção entre contrato de mandato e procuração, veja-se Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 4.ª Edição, Coimbra Editora, pp. 787-788.
[2] Vide, a propósito da distinção entre o contrato de mandato forense e a procuração, Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. II, AAFDUL, 1978/79, p. 138-139.
[3] Neste sentido, veja-se, além de outros, o acórdão do STJ, de 22/05/2013, relatado pelo Juiz Cons. Tavares de Paiva, no processo n.º 2024/05.2TBAGD.C1.S1., disponível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj