Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
783/16.6T8ALM-A.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
DESPEJO IMEDIATO
RENDAS VENCIDAS NA PENDÊNCIA DA ACÇÃO
RENDAS VENCIDAS NA PENDÊNCIA DA AÇÃO
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
NOTIFICAÇÃO AO MANDATÁRIO
RENDA
FALTA DE PAGAMENTO
INCIDENTES DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
ARRENDAMENTO URBANO - ACÇÃO DE DESPEJO ( AÇÃO DE DESPEJO ).
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACTOS PROCESSUAIS ( ATOS PROCESSUAIS ) / NOTIFICAÇÕES.
Doutrina:
- Maria Olinda Garcia, Arrendamento Urbano Anotado, 3.ª ed., Coimbra Editora, 2014, 192.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 247.º, N.ºS 1 E 2.
NRAU (APROVADO PELA LEI Nº 6/2006, DE 27 DE FEVEREIRO E ALTERADO PELA LEI Nº 31/2012, DE 14 DE AGOSTO): - ARTIGO 14.º, N.ºS 3, 4 E 5.
Sumário :
I - O incidente de despejo imediato tem como fundamento o não pagamento das rendas vencidas na pendência da acção. A razão de ser deste regime consiste em evitar que o arrendatário mantenha o gozo da coisa locada durante a pendência da acção sem a correspondente remuneração do locador.

II - Contudo, como a actual redacção do nº 5 do art. 14º do NRAU (introduzida pela Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto) evidencia – ao referir-se a “em caso de deferimento do requerimento” –, a falta de prova do pagamento ou depósito das rendas vencidas na pendência da acção não implica a procedência automática do incidente de despejo imediato.

III - Alegando a R. na contestação a inexigibilidade das rendas em atraso – incluindo as vencidas na pendência da acção – por as partes terem acordado nesse sentido, uma vez que não se encontra ainda assente a sua exigibilidade, não pode o pedido de despejo imediato proceder.

IV - Não existindo norma especial que exija a notificação pessoal, nem se destinando a notificação a chamar a parte para a prática de acto pessoal (nº 2 do art. 247º, do CPC), vigora, quanto ao incidente de despejo imediato, a regra geral segundo a qual “As notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais” (nº 1 do art. 247º, do CPC).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. AA deduziu, em 11/05/2016, incidente de despejo imediato por falta de pagamento das rendas no decurso da acção, nos termos do disposto no art. 14°, nº 4 do NRAU, no âmbito da acção de despejo por falta de pagamento de rendas que instaurou contra BB - Actividades Hoteleiras, Unipessoal, Lda., requerendo a notificação desta para proceder ao pagamento das rendas vencidas na pendência da acção e da indemnização prevista no art. 1041º, nº 1, do Código Civil.

    Em resposta veio a R. arguir nulidade atípica por falta de notificação pessoal da R., requerer que o incidente corra por apenso, com tramitação autónoma, e alegar que as rendas vencidas até 06/10/2016 se encontram pagas na íntegra.

    Por despacho de 31/10/2016 foi indeferido o pedido de despejo imediato por - alegando a R. na contestação a inexigibilidade das rendas em atraso, por existir acordo entre as partes - não estar ainda assente o vencimento das rendas peticionadas.

   Inconformada, a A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de …, pedindo a revogação do despacho recorrido e o deferimento do pedido de despejo imediato.

    A fls. 56 foi proferido acórdão, que julgou procedente o recurso, revogando a decisão recorrida e deferindo o pedido de despejo imediato da R.


2. Vem a R. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

1 - Nos termos do n.° 4, do artigo 14°, do NRAU, o incidente de despejo imediato deve ser processado por apenso à acção principal, tendo tramitação autónoma.

2 - Para além de que, acrescidamente por se tratar de um incidente que corre por apenso, a notificação nos termos de tal disposição legal, deverá ser pessoal, a dirigir directamente à sociedade R., porque se trata de chamar a parte à prática de um acto, sob pena de eventual despejo imediato, tratando-se de despacho que lhe pode causar prejuízo, nos termos e para os efeitos do artigo 220°, n.° 2, do CPC.

3 - Não podendo ser concretizada na pessoa do mandatário da sociedade arrendatária, ainda que validamente constituído nos autos de acção de despejo.

4 - A Recorrente arguiu, em tempo, a nulidade atípica pela preterição de tal formalismo - a referida notificação pessoal da R. - que, agora, por via do presente recurso, deverá ser reconhecida, com anulação de todo o processado posterior, determinando-se a notificação pessoal da R. nos termos e para os efeitos do n.° 4, do artigo 14°, do NRAU, seguindo-se os ulteriores termos até final.

5 - A limitação da defesa do inquilino no sentido de admitir apenas como forma de oposição relevante a prova do pagamento das rendas ou o seu depósito, sendo esse o único meio ao dispor do inquilino para evitar o despejo, só poderá ter lugar quando não seja colocada qualquer questão susceptível de pôr em causa o arrendamento nos seus elementos essenciais, nomeadamente, o vencimento das rendas peticionadas.

6 - No caso, a arrendatária defendeu-se na contestação alegando que as rendas não estavam vencidas, por força de acordo celebrado com a senhoria.

7 - Ao inquilino está aberta a possibilidade de se opor ao seu senhorio do mesmo modo em que se lhe oporia numa acção autónoma, designadamente esgrimindo as excepções que lhe poderia opor em tal acção.

8 - Como bem se decidiu no Acórdão n° 673/2005, do Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta, a propósito da norma do artigo 58° do RAU, "... surge, de forma ostensiva, como uma restrição constitucionalmente intolerável do direito de defesa a limitação, no incidente de despejo imediato por falta de pagamento de rendas na pendência de acção de despejo, das possibilidades de defesa do requerido à alegação e prova de que, até ao termo do prazo para a sua resposta, procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização. Tal entendimento não assegura um tratamento equitativo das partes nem a efectividade da tutela jurisdicional, pelo que não pode deixar de ser considerado como violador do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20° da CRP" tendo sido decidido "Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 58° do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n° 32 l-B/90, de 15 de Outubro".

9 - De igual forma, no caso, o entendimento vertido no Acórdão ora sob recurso é inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20°, da Constituição da República Portuguesa

10 - Ao usar a expressão "em caso de deferimento", a nova redacção do n° 5, do artigo 14°, do NRAU, confere ao juiz margem de apreciação do caso concreto, por aí não se determinar que a ausência de prova do pagamento no prazo de 10 dias constitui automático fundamento de despejo, pressupondo uma intervenção judicial na sua constituição.

Termos em que deverá ser alterada a decisão proferida, no sentido de, por qualquer um dos argumentos aduzidos supra, ser indeferido o despejo imediato requerido.

       A A. Recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

      Cumpre decidir.


3. A factualidade relevante para a decisão consta do relatório do acórdão.


4. Tendo em conta o disposto no nº 4, do art. 635º, do Código de Processo Civil, estão em causa neste recurso as seguintes questões:

- Deve o incidente de despejo imediato ser processado por apenso à acção principal;

- Deve a notificação da R. do incidente de despejo imediato ser feita pessoalmente;

- A defesa da R. em sede de contestação da acção principal obsta ao deferimento do incidente de despejo imediato;

- É inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no art. 20º da Constituição, a interpretação do art. 14º, nº 4, do NRAU, no sentido de, no incidente de despejo imediato, apenas ser admitida como defesa a alegação e prova de pagamento ou depósito das rendas em mora.


5. Afigura-se conveniente fazer um enquadramento preliminar das questões. Na presente acção de despejo por falta de pagamento de rendas, veio a A. deduzir incidente de despejo imediato ao abrigo dos nºs 3, 4 e 5, do art. 14º, do NRAU (aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro e alterado pela Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto), que dispõem como segue:

3 - Na pendência da ação de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais.

4 - Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final.

5 - Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 7 do artigo 15.º e nos artigos 15.º-J, 15.º-K e 15.º-M a 15.º-O.


      Na pendência da acção de despejo mantém-se a obrigação do arrendatário de pagamento das rendas. Nas palavras de Maria Olinda Garcia (Arrendamento Urbano Anotado, 3ª ed., Coimbra Editora, 2014, pág. 192), “o incumprimento do dever principal do arrendatário (…) no decurso da acção de despejo, independentemente do fundamento (ou fundamentos) dessa acção, constitui-se, assim, como um novo fundamento resolutivo, tornando-se, por isso, desnecessária a prossecução da ação para se conhecer da concreta causa de pedir.” Deste modo, o fundamento do despejo imediato é o não pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, enquanto o fundamento da acção de despejo é o não pagamento das rendas vencidas antes da propositura da acção.

      A razão de ser deste regime consiste em evitar que o arrendatário mantenha o gozo da coisa locada durante a pendência da acção sem a correspondente remuneração do locador.

      Contudo, como a actual redacção do nº 5, do art. 14º, do NRAU (introduzida pela Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto) evidencia – ao referir-se a “em caso de deferimento do requerimento” – a falta de prova do pagamento ou depósito das rendas vencidas na pendência da acção não implica a procedência automática do incidente de despejo imediato. Neste sentido cfr. Maria Olinda Garcia, cit., pág. 194.

       Tendo presente estes dados, passemos a apreciar as questões objecto do presente recurso.


6. Como decidido pelo acórdão recorrido, o incidente de despejo imediato corre nos próprios autos e tem início com o requerimento do locador para que o locatário seja notificado nos termos e para os efeitos do art. 14º, nºs 4 e 5, do NRAU.

       Não existindo norma especial que exija a notificação pessoal nem se destinando a notificação a chamar a parte para a prática de acto pessoal (nº 2 do art. 247º, do CPC), vigora a regra geral segundo a qual “As notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais” (nº 1, do art. 247º, do CPC).

        Conclui-se que a notificação do incidente de despejo imediato foi devidamente feita.


7. Considere-se a questão de saber se a defesa da R. em sede de contestação da acção principal obsta ao deferimento do incidente de despejo imediato.

Vejamos o teor da fundamentação do acórdão recorrido:

“Portanto, assente que esteja a existência de um contrato de arrendamento, deduzido o incidente de despejo imediato, em princípio, em nome dos fins e interesses supra enunciados, não deve ser procedente outra defesa que não a prova do pagamento ou depósito das rendas vencidas no decurso da acção.

Já o mesmo não deverá suceder se controvertida for a existência ou validade do contrato de arrendamento. Nesses casos, terá de ser admitida essa forma de defesa do Réu, dado que em rigor, nesses casos não pode haver um "despejo imediato", já que este incidente pressupõe a existência de um contrato de arrendamento.

Ora, no caso que nos ocupa, está perfeitamente admitida a existência e validade de um contrato de arrendamento, apenas há controvérsia sobre um pretenso acordo de pagamento de rendas já vencidas, à data da propositura da acção, mas que, a existir, não pode paralisar o direito do senhorio a receber o pagamento das rendas vincendas. Nada justifica que, à sombra de uma eventual tolerância do senhorio para com o inquilino relativamente a rendas já vencidas antes da interposição da acção, tal tolerância lhe seja imposta também durante a pendência da acção.

Assim, à face do disposto no art.°14.° n.° 4 e 5 do NRAU, e tendo como pano de fundo o disposto no art.° 406.° do Código Civil, não vemos que haja outra forma de impedir o despejo imediato peticionado, que não pela demonstração do pagamento ou depósito das rendas vencidas na pendência da acção.

Tal pagamento não foi demonstrado, pelo que deveria ter sido julgado procedente o incidente de despejo imediato.”


     Entendeu, assim, a Relação, que o acordo entre as partes, que a R. invoca na contestação, diz respeito às rendas vencidas antes da propositura da acção, que não abrange, portanto, as rendas vencidas durante a pendência da mesma, cujo não pagamento constitui fundamento do presente incidente de despejo.

       A Recorrente impugna este entendimento.

      Reitera-se que o fundamento do pedido de despejo imediato é o não cumprimento da obrigação de pagamento das rendas vencidas durante a pendência da acção, obrigação que se encontra prevista no nº 3, do art. 14º, do NRAU: “Na pendência da ação de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais.”

      Para apurar se o requerimento de despejo imediato deve ou não ser deferido, torna-se necessário ter em conta os exactos termos em que a R. Recorrente contestou a acção, que aqui se reproduzem:



10º


Assim, com a tolerância e por acordo com a A. e da procuradora sua filha e através de sucessivos depósitos de € 3.500,00, a R., num hercúleo esforço, pagou todas as rendas até Julho de 2015, assim ficando regularizadas as obrigações decorrentes do arrendamento em curso.

11º


Em 01 de Setembro de 2015, a R. efectuou depósito bancário por via do qual pagou as rendas relativas aos meses de Agosto e Setembro de 2015 e ainda metade da renda do mês de Outubro de 2015.



12º


Por novo depósito bancário de 03 de Novembro de 2015, a R. completou a renda relativa ao mês de Outubro de 2015 (faltavam 50%) e ainda depositou € 375,00 por conta da renda respeitante ao mês de Novembro de 2015.

13º


Nesta altura e terminado o Verão, adivinhavam-se novas dificuldades e a R. acordou com a A. e com a filha sua procuradora ir fazendo depósitos por conta das rendas de acordo com as suas possibilidades.

14º


Ficando acordado que, à imagem do que havia sucedido no ano de 2014 e supra narrado, a R. regularizaria todas as rendas que então estivessem em falta a partir de 01 de Junho de 2016, altura em que a sua facturação iria aumentar significativamente.

15º


Elucidativo e demonstrativo do que vem de se dizer é a carta manuscrita pelo punho da filha da A. CC, com todas as contas feitas por si, datada de 09 de Novembro de 2015 (confr. Doc. n.” 1).

16º


Nessa altura, tudo estava bem (continuando a R. a contar com a habitual tolerância da A. e sua filha e procuradora, que se agradece e reconhece).

17º


Entretanto, é a R. surpreendida com a presente demanda intentada em Janeiro de 2016, ou seja, cerca de dois meses após o manuscrito que constitui o documento n.º 1 ora junto.

18º


É verdade que a A. e sua filha não tinham o dever de celebrar qualquer acordo com a R. que alterasse a data de vencimento das rendas formalmente acordada.

19º


Mas o que é certo é que o fizeram (e, repete-se, a R. agradece a compreensão) e, sendo assim, uma vez que a A. e sua filha aceitaram expressamente ir recebendo entregas por conta das rendas, para depois tudo se regularizar a partir de 01/06/2016, carecem de legitimidade para demandar a R. e de fundamento para peticionar a resolução do contrato sub judice.


     Tendo o incidente de despejo imediato sido deduzido em 11/05/2016, enquanto na contestação a R., aqui Recorrente, invocara terem as partes acordado não serem as rendas exigíveis até 01/06/2016, verifica-se ter o requerimento de despejo imediato como fundamento o não pagamento de rendas cuja exigibilidade é também ela discutida. Falha por isso o pressuposto essencial do art. 14º, nº 4, do NRAU, “Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses…”.

      Nestes termos, não pode o pedido de despejo imediato proceder.


8. Fica, assim, prejudicado o conhecimento da questão da alegada inconstitucionalidade da norma do art. 14º, nº 4, do NRAU, interpretada no sentido de, no incidente de despejo imediato, apenas ser admitida como defesa a alegação e prova de pagamento ou depósito das rendas em mora.


9. Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o acórdão recorrido e indeferindo-se o pedido de despejo imediato da R.


Custas pela Recorrida.


Lisboa, 13 de Julho de 2017

        

Maria da Graça Trigo (Relator)

João Bernardo

Oliveira Vasconcelos