Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
647/11.0TBVPV.L1.S1
Nº Convencional: 7º SECÇÃO
Relator: TÁVORA VICTOR
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO AUTOMÓVEL
ANULABILIDADE
FALSAS DECLARAÇÕES
CARTA DE CONDUÇÃO
SEGURADO
NULIDADE
OPONIBILIDADE
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
SEGURADORA
SEGURO OBRIGATÓRIO
PRÉMIO DE SEGURO
RISCO
LESADO
BOA FÉ
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
SUB-ROGAÇÃO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 03/01/2018
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO DO CONTRATO.
Doutrina:
-José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra, 2009 683 ss.;
-José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 2009, p. 94.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 429.º, N.º 1.
SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL, APROVADO PELO DECRETO-LEI N.º 522/85: - ARTIGO 14.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 18-12-2002, PROCESSO N.º 02B389;
- DE 22-20-2009, PROCESSO N.º 1146/05.3TBABF.S1;
- DE 24-04-2014, PROCESSO N.º 6659/ 09.6TVLSB.L1.S1,IN WWW.DGSI.PT.;
- DE 09-07-2015, PROCESSO N.º 487/09.6TBOHP.C1.S1.
Sumário :
I - A instituição da obrigatoriedade do seguro de responsabilidade civil automóvel assenta na necessidade de, perante a consciencialização da incompleta ou deficiente capacidade do responsável pelo ressarcimento, socializar o risco da ocorrência de danos graves que é associado ao desempenho de actividades potencialmente perigosas ou portadoras de risco para terceiros.

II - O contrato seguro de responsabilidade civil automóvel garante ao segurado o pagamento da indemnização devida em função do sinistro ocorrido e, simultaneamente, acautela o respectivo património, assumindo a feição de contrato a favor do terceiro lesado.

III - Inexistindo um interesse público que se sobreponha à vontade das partes e que justifique o conhecimento oficioso da questão e destinando-se a obrigatoriedade do seguro automóvel a acautelar os interesses e direitos dos lesados, a norma do art. 429.º, n.º 1, do CCom, deve ser interpretada como se reportando a uma mera anulabilidade, logo inoponível àqueles.

IV - A prestação, pelo segurado, de falsas declarações relativamente à titularidade de carta de condução aquando da outorga o contrato não se integra na previsão do art. 14.° do DL n.º 522/85, sendo que a consequente mera anulabilidade do contrato não é oponível aos lesados nem ao FGA, que se acha sub-rogado na posição daqueles.

V - A observância do princípio da boa-fé não dispensa a seguradora de, na medida do possível, aferir o relevo e alcance daquelas declarações, em vez de se quedar inerte enquanto não lhe são exigidas responsabilidades e enjeitá-las logo que algo corre mal, invocando a nulidade do seguro; estando em causa interesses de terceiros estranhos ao contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel e sendo a sua celebração obrigatória em virtude da necessidade de socializar o risco, impõe-se aos sujeitos contratuais a exigência de abandonarem uma postura liberal cingida aos seus interesses imediatos, na medida em que são co-responsáveis pelo alcance comunitário dos seus comportamentos.

VI - A impraticabilidade de um controlo absoluto das declarações prestadas pelos segurados por parte das seguradoras não pode servir como pretexto para a anulabilidade do contrato de seguro, na medida em que existe um risco assumido pelas partes que, no caso daquelas, tem como contrapartida a aceitação do pagamento do prémio, havendo ainda que ponderar a forte componente social que enforma o regime do seguro de responsabilidade civil emergente da circulação automóvel e sendo certo, também, que a acção indemnizatória não é o campo adequado para avaliar a validade do contrato de seguro.

VII - Pese embora o sinistro tenha ocorrido cerca de 30 dias após a celebração do contrato, deve-se ter por abusiva, na modalidade de venire contra factum proprium, a arguição da nulidade do mesmo, já que o abuso do direito não pressupõe o decurso de um determinado prazo.

Decisão Texto Integral:       
1. RELATÓRIO.



     Acordam na 7ª Secção cível do Supremo Tribunal de Justiça.



     FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, integrado no Instituto de Seguros de Portugal, com sede na …, …, Lisboa, intentou, em 24.11.2011, contra AA - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., com sede na Rua …, …, em Lisboa e, subsidiariamente, contra BB, residente na Rua …, …, 9700 -… Ribeirinha, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, através da qual pediu que:

  1. O condutor do veículo ...-...-BF seja considerado único e exclusivo culpado pela produção do acidente aqui em crise, e, consequentemente,

  2. A Ré, AA - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., seja condenada no pagamento da quantia de € 122.767,47, acrescida dos juros legais, vencidos e vincendos, contados desde a interpelação até efectivo e integral pagamento e incrementados em 25%, e ainda ao pagamento das despesas que o ora Autor vier a suportar com a cobrança do reembolso que serão oportunamente liquidadas em ampliação do pedido ou em execução de sentença, bem como em custas e procuradoria;

   3. Subsidiariamente, para o caso de se provar que o veículo ...-...-BF circulava sem beneficiar de seguro automóvel válido e eficaz à data dos factos, ser o Réu subsidiário condenado nos precisos termos requeridos em 2.


   Fundamentou o Autor a sua pretensão, no essencial, da seguinte forma:

    No dia 3 de Agosto de 2006, ocorreu um acidente de viação quando o segundo Réu conduzia um Opel Corsa vermelho, de 5 lugares, com a matrícula ...-...-BF;

    O Réu conduzia o BF acompanhado de CC, que seguia ao seu lado;

    No caminho até ao destino, o Réu passou pela freguesia de … para dar boleia a DD e EE, conforme haviam combinado;

    DD e a EE entraram no BF para o banco traseiro;

    Após a entrada daquelas, o segundo Réu mandou-as “apertar as fraldas”, acrescentando que tinha acabado de andar num carro de rally e informando que iriam circular a uma velocidade elevada;

    O segundo Réu arrancou, e seguiu a uma velocidade nunca inferior a 120 km/h;

    Ao descrever uma curva, o segundo Réu perdeu o controlo do BF, entrou em despiste, acabando por embater num muro ali existente;

     A colisão ficou a dever-se única e exclusivamente ao comportamento culposo do ora segundo Réu que, não obedecendo às mais elementares regras de circulação rodoviária, nomeadamente ao circular com velocidade excessiva, praticou uma conduta imprudente e irresponsável, provocando o acidente;

    Paralelamente, agiu com desconhecimento prático e em desacordo com as regras de aptidão para a condução – o que revela imperícia; com falta de atenção imposta pelos cuidados ou precauções que o dever geral de precaução aconselha – o que constitui inconsideração; e sem usar a diligência exigida pelas circunstâncias concretas para evitar o evento – o que integra negligência;

    Em todo este comportamento do condutor do veículo BF, segundo Réu, radica a causalidade do sinistro;

    O segundo Réu iniciou a condução com intentos perigosos, dizendo às passageiras que apertassem as fraldas e fazendo referência ao carro de rally em que havia circulado recentemente, donde se retira que o segundo Réu podia perfeitamente prever o que viria a acontecer e conformou-se com a situação, que não o demoveu, violando, assim, entre outros, o disposto nos artigos 18.º e 24.º do Código da Estrada;

A conduta do segundo Réu consubstanciou a prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência e dois crimes de homicídio por negligência, dando origem ao inquérito com o processo n.º 323/06.5PAVPV, que correu termos neste tribunal;

    O risco emergente da circulação do BF encontrava-se, à data do acidente, transferido para a primeira Ré, AA, mediante um contrato de seguro titulado pela apólice n.º 003…8;

    Contactada a seguradora referida, a mesma disse que o veículo BF não estava coberto, naquela data, uma vez que a referida apólice seria nula em virtude de terem sido prestadas declarações inexactas por parte do tomador;

    Está criada uma situação em que há fundadas dúvidas sobre o verdadeiro titular do dever de indemnizar, já que, a provar-se a existência de seguro válido à data dos factos, é a seguradora parte legítima no presente pleito, ou, caso contrário, será o Réu subsidiário parte legítima no presente dissídio.

    Como causa directa e necessária do referido embate, resultou a morte de CC, de 20 anos e de DD, de 16 anos e ferimentos graves sofridos por EE, com 18 anos à data do acidente;

    Os referidos falecimentos implicaram sofrimentos inarráveis aos seus herdeiros e familiares mais próximos, sendo que a morte dos jovens não foi imediata, sofrendo ambos os jovens, nesse hiato de tempo que decorreu entre o acidente e a morte, dores incomensuráveis;

    CC deixou como seus herdeiros os seus pais, FF e GG;

    DD deixou como herdeiros os seus progenitores HH e II;

    Do acidente resultaram danos para a EE, com 18 anos à data do acidente - fractura da mandíbula, tendo ficado internada no Hospital de …. de 06.08.2006 a 11.08.2006, onde foi submetida a intervenção cirúrgica à mandíbula;

    Posteriormente foi acompanhada pelo Dr. JJ, na Clínica Dentária e Maxilofacial, em …;

    EE e os herdeiros da DD e do CC, face à posição assumida pela primeira Ré, contactaram o Autor no sentido de este proceder ao pagamento das indemnizações correspondentes;

    Instaurado o competente processo de averiguações, a que foi atribuído o n.º 72255, concluiu o Autor dever pagar, ao abrigo do artigo 50.º do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, as seguintes verbas:

a) À Clínica Dentária Maxilofacial (…), a quantia de € 2700,00, em virtude da assistência prestada à lesada EE;

  b) À própria lesada EE, a título de despesas médico/medicamentosas, a quantia de € 446,16, paga em 24.11.2009;

  c) Aos herdeiros de DD, em 26.08.2009, o Autor pagou a quantia de € 81.000,00, assim discriminada:

   1. € 30.000,00 (15.000,00 por cada progenitor), a título do sofrimento de perda da pessoa;

   2. € 1.000,00, a título de sofrimento da própria vítima;

   3. € 50.000,00, a título da violação do direito à vida;

   4. À mãe de CC, em 04.03.2010, o Autor pagou a quantia de € 36.250, assim discriminada:

    5. € 10.000,00, a título de sofrimento perda da pessoa;

    6. € 1.250,00, a título de sofrimento da própria vítima;

    7. € 25.000,00, a título de violação do direito à vida;


   Para prevenir uma hipótese de ilegitimidade passiva, formulou o Autor, o pedido, subsidiariamente, contra o Réu subsidiário, nos termos do disposto no artigo 31.º-B do Código de Processo Civil, invocando que o Réu subsidiário será sempre responsável ao abrigo do n.º 3 do artigo 25.º do Dec. Lei n.º 522/85 de 31 de Dezembro, entendimento legal que veio a ser acolhido no artigo 54.º, n.º 3 do novo diploma legal - Lei do Seguro Obrigatório - Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.

   Concluiu o Autor que se encontra sub-rogado nos direitos dos lesados, nos termos do n.º 1, n.º 3 e n.º 4 do artigo 54.º do Dec. Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, sendo parte legítima nesta acção, assistindo-lhe o direito de exigir dos Réus a indemnização satisfeita, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas de liquidação e cobrança que houver feito.


   Citados, apenas a Ré seguradora apresentou contestação, em 27.01.2012, aceitando a responsabilidade e dinâmica do acidente, tal como alegado, impugnou os valores pagos, bem como a sua responsabilidade no seu pagamento, excepcionando a existência de um contrato de seguro inválido, que a desonera desse pagamento, tudo se passando como se não existisse seguro que cobrisse aquela situação.

   Concluiu a Ré, pedindo que seja julgado procedente a excepção invocada, decidindo-se pela sua absolvição do pedido.

    

    O Autor apresentou réplica, em 25.06.2012, pugnando pela improcedência da arguida excepção, defendendo que o contrato de seguro se encontrava válido e eficaz à data do sinistro, não podendo a Ré seguradora furtar-se aos direitos e deveres a ele emergentes.

    Concluiu, o Autor, pedindo a condenação dos Réus nos termos constantes da petição inicial.

    Dispensada a audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, em 11.03.2013, elaborada a condensação com a fixação dos Factos Assentes e a organização da Base Instrutória.

    

    Em 15.03.2013, o Autor, FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, deduziu ampliação do pedido, nos termos do n.° 2, do artigo 273.° do Código de Processo Civil, tendo por base os fundamentos seguintes:

  1. O Autor intentou a presente acção em 24 de Novembro de 2011.

   2. Com a propositura dessa acção o Autor pretende ser reembolsado dos prejuízos sofridos com a liquidação de indemnizações processadas a lesada EE, aos herdeiros de CC e aos herdeiros de DD, na sequência do acidente de viação ocorrido em 3 de Agosto de 2006;

  3. O Autor, nesse articulado, conclui pela responsabilidade do condutor do veículo ...-...-BF e, consequentemente a responsabilidade subsidiaria da 1° e 2° Réus, seguradora e tomador do seguro respectivamente;

  4. Consequentemente liquidou, as verbas especificadas, na Petição Inicial, deste mesmo processo, a lesada EE, aos herdeiros de CC e aos herdeiros de DD;

   5. Sucede, porém, que por força deste acidente, o Autor, teve ainda de suportar o pagamento de mais indemnizações, tais como:

    a) € 1.913,55 (mil novecentos e treze euros e cinquenta e cinco cêntimos), a título de indemnização extrajudicial pago a lesada EE;

    b) € 100,00 (cem euros), a título de pagamento a KK, Lda. a título de pagamento de serviços médicos prestados por esta empresa a lesada EE;

    c) € 2.340,00 (dois mil trezentos e quarenta euros), a título de pagamento a Dr. JJ Unipessoal Lda. de serviços prestados na reconstituição da mandíbula da lesada EE;

    d) € 350,55 (trezentos e cinquenta euros e cinquenta e cinco cêntimos), a título de despesas com advogados;

  6. Assim, e até à presente data, o aqui Autor incorreu no pagamento das indemnizações e bem assim do montante de € 4.704,10 (quatro mil setecentos e noventa euros e dez cêntimos), ora peticionados;

  7. Os identificados pagamentos foram efectuados em data posterior à promoção do presente processo;

  8. Os factos que deram origem a presente indemnização são os mesmos que estiveram na origem da propositura da petição inicial, sendo a mesma a causa de pedir;

  9. Neste articulado alega factos incluídos nas consequências danosas do acidente, sendo, portanto, a ampliação, mero desenvolvimento do pedido primitivo;

    Pediu, assim, o Autor, a admissão e procedência da requerida ampliação do pedido, condenando-se os Réus nos termos formulados na petição inicial a pagarem ao Autor a quantia de € 127.471,57 (cento e vinte e sete mil e quatrocentos e setenta e um euros e cinquenta e sete cêntimos) acrescido de juros legais vincendos, calculados sobre o capital em dívida, contados desde o pagamento até integral e efectivo pagamento e ainda ao pagamento das despesas com a cobrança e a liquidar em ampliação do pedido ou em execução de sentença.

    Notificada, a Ré seguradora manifestou-se apenas no sentido da exclusão da verba no valor de 350,55 €, a título de despesas com advogado, por ausência de suporte documental.


    Por despacho de 20.01.2015, foi admitida a ampliação do pedido, determinando-se o aditamento à Base Instrutória, dos factos nele contidos e que se deviam considerar impugnados.


   Foi proferida decisão constando do Dispositivo da Sentença o seguinte:

    “Julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência:

   a) Declaro o Réu BB, condutor do veículo com a matrícula ...-...-BF, único e exclusivo responsável pela produção do acidente ocorrido a 03/08/2006, envolvendo aquele veículo automóvel;

  b) Condeno o Réu BB a reembolsar ao Fundo de Garantia Automóvel a quantia global de 127.471,57 €, acrescida de juros de mora, à taxa supletiva legal, contados desde a data da citação, quanto ao valor de 122.767,47 € (cento e vinte e dois mil, setecentos e sessenta e sete euros e quarenta e sete cêntimos), e desde a data da notificação da ampliação do pedido, quanto ao valor de 4.704,10 € (quatro mil, setecentos e quatro euros e dez cêntimos), e até integral e efectivo pagamento;

  c) Condeno o Réu BB a reembolsar ao Fundo de Garantia Automóvel as demais despesas com a cobrança do reembolso a liquidar em incidente prévio à execução de sentença, acrescida dos juros de mora devidos desde a data da notificação para o mesmo;

   d) Absolvo a Ré AA - Companhia de Seguros, S.A., do pedido contra si deduzido;

  e) Absolvo o Réu BB quanto ao demais peticionado contra si.


    O Autor Fundo de Garantia Automóvel apelou da aludida sentença tendo a Relação de … julgado procedente o recurso e revogando a decisão recorrida, que se substituiu por outra, na qual se condena a Ré, AA - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a pagar ao Autor, FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, a quantia de € 127.471,57, acrescida de juros desde a citação e até integral pagamento, à taxa legal.

    

   Por seu turno, inconformada com o decidido pela 2.ª instância, recorre, agora de revista, a Seguradora tendo no termo de tudo quanto alegou, pedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, seja a decisão ora recorrida considerada nula e revogando-se a mesma, proferindo-se decisão a considerar nulo o contrato de seguro celebrado, absolvendo-se a Recorrente do pedido contra si formulado.

Usando da faculdade a que se reporta o art.º 656º do Código de Processo Civil, o relator decidiu singularmente do recurso tendo negado a revista.

Inconformada com o decidido veio a Ré pedir que sobre o decidido recaia um acórdão, considerando as críticas que a Ré entendeu fazer ao aresto singular.

Respondeu o Fundo de Garantia Automóvel pugnando pela manutenção do decidido nos precisos termos em que o foi.

Cabe decidir. Ao fazê-lo tomaremos posição sobre a críticas emitidas.


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2. FUNDAMENTOS.


O Tribunal deu como provados os seguintes,


2.1. Factos.


2.1.1. No dia 03 de Agosto de 2006, pelas 23h20m, numa rua interior da freguesia de …, concelho da ..., ocorreu um embate a envolver o veículo Opel Corsa, com matrícula ...-...-BF, ao volante do qual seguia o Réu BB.

2.1.2. No interior do veículo com matrícula ...-...-BF seguiam, para além do Réu BB, ao seu lado, CC, e no banco traseiro, DD e EE.

2.1.3. Quando seguia em direcção à freguesia de …, a uma velocidade não inferior a 120 km/hora, ao descrever uma curva, o veículo com matrícula ...-...-BF entrou em despiste, vindo a embater num muro existente no local.

2.1.4. Como consequência do embate, resultou a morte de CC e de DD.

2.1.5. CC, com 20 anos de idade, deixou como seus herdeiros ambos os pais, FF e GG.

2.1.6. DD deixou como seus herdeiros ambos os pais, HH e II.

2.1.7. Como consequência do embate, EE sofreu fractura da mandíbula, ficando internada no Hospital de … entre 06.08.2006 e 11.08.2006, onde foi submetida e intervenção cirúrgica.

2.1.8. EE foi posteriormente acompanhada pelo Dr. JJ, na Clínica Dentária e Maxilofacial, em ….

2.1.9. Pela apólice nº 0037…8 foi celebrado contrato de seguro, quanto ao veículo com matrícula ...-...-BF, entre a Ré AA - Companhia de Seguros, S.A. e LL, sendo este na qualidade de “tomador”, com início em 03 de Julho de 2006 e renovação/termo a 3 de Julho de cada ano.

2.1.10. O Autor suportou à Clínica referida em H), pela assistência prestada a EE na Clínica, a quantia de 2.700,00 €. (artigo 1º, da Base Instrutória - provado, por acordo das partes)

2.1.11. Em 24.11.2009 o Autor entregou a EE, a título de despesas médicas e medicamentosas, a quantia de 446,16 €. (artigo 2º, da Base Instrutória - provado, por acordo das partes)

2.1.12. Em 26.08.2009, o Autor entregou aos herdeiros de DD a quantia de 81.000,00 €, sendo 30.000,00 € a título de “sofrimento de perda da pessoa”, 1.000,00 € a título de “sofrimento da própria vítima” e 50.000,00 € a título de “violação do direito à vida”. (artigo 3º, da Base Instrutória - provado, por acordo das partes)

2.1.13. Em 04.03.2010, o Autor entregou à mãe de CC a quantia de 36.250,00 €, sendo 10.000,00 € a título de “sofrimento de perda da pessoa”, 1.250,00 € a título de “sofrimento da própria vítima” e 25.000,00 € a título de “violação do direito à vida”. (artigo 4º, da Base Instrutória - provado, por acordo das partes).

2.1.14. Em despesas de “liquidação do sinistro”, o Autor despendeu 2.371,31 €. (resp. positiva ao artigo 5º, da Base Instrutória)

2.1.15. Na data da celebração do contrato referido em I), LL não era o dono do veículo com matrícula ...-...-BF. (resp. positiva ao artigo 6º, da Base Instrutória)

2.1.16. Nem era o seu condutor habitual ou eventual. (resp. positiva ao artigo 7º, da Base Instrutória)

2.1.17. O que a Ré AA - Companhia de Seguros, S.A. desconhecia. (resp. positiva ao artigo 8º, da Base Instrutória)

2.1.18. O veículo com matrícula ...-...-BF pertencia ao Réu BB, que o utilizava e suportava os seus custos de manutenção. (resp. positiva ao artigo 9º, da Base Instrutória)

2.1.19. Os Réus BB e LL acordaram entre si que o contrato referido em 1) fosse celebrado em nome deste último. (resp. positiva ao artigo 10º, da Base Instrutória).

2.1.20. Com vista a beneficiar de um prémio de seguro mais baixo. (resp. positiva ao artigo 11º, da Base Instrutória)

2.1.21. Na data em que foi celebrado o contrato referido em I), o Réu BB tinha licença de condução há menos de cinco anos. (resp. positiva ao artigo 12º, da Base Instrutória)

2.1.22. A idade e a experiência dos condutores constam de normas internas da Ré AA - Companhia de Seguros, S.A. quanto à aceitação dos contratos de seguro e têm reflexo nos prémios de seguro a pagar. (resp. positiva ao artigo 13º, da Base Instrutória)

2.1.23. O Autor pagou a quantia de 1.913,55 €, a título de indemnização extrajudicial a EE, em consequência do acidente de viação referido em A). (artigo 14º, da Base Instrutória – provado por acordo das partes).

2.1.24. O Autor pagou a quantia de 100,00 € a KK, Lda., pelos serviços médicos prestados por esta empresa a EE, em consequência do acidente de viação referido em A). (artigo 15º, da Base Instrutória – provado por acordo das partes)

2.1.25. O Autor pagou a quantia de 2.340,00 €, a JJ Unipessoal Lda., por conta de serviços prestados na reconstituição da mandíbula de EE, em consequência da fractura mencionada em G). (artigo 16º, da Base Instrutória – provado por acordo das partes)

2.1.26. O Autor teve um gasto de 350,55 €, em despesas com advogado, para além das despesas de “liquidação do sinistro” referidas no artigo 5º, da Base Instrutória (€ 2.371,31). (resp. positiva ao artigo 17º, da Base Instrutória) Ao abrigo do disposto no artigo 607º, nº 4, aplicável ex vi do artigo 663º, nº 2 do Código de Processo Civil.

2.1.27. A proposta de seguro que deu origem à emissão da apólice referida em 9. foi efectuada através do mediador – Agência Nº 09…0 – MM - Sociedade Mediadora de Seguros, Lda.


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2.2. O Direito.


   Nos termos do preceituado nos arts.º 608.º nº 2, 635.º nº 3 e 690.º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal. Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

  - Da alegada nulidade a que se reporta o artigo 682º nº 2 do Código de Processo Civil.

   - O contrato é nulo à luz do artigo 428º do Código Comercial em virtude de o respectivo contratante não ser o seu condutor nem ter qualquer interesse no veículo segurado?

    Cuidados a ter pelos contratantes segurado e seguradora em prol da regularidade do seguro.

    Do abuso do direito por parte da seguradora ao invocar a nulidade do contrato.


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    2.2.1. Da alegada nulidade a que se reporta o artigo 682º nº 2 do Código de Processo Civil.

    

    Antes de entrar propriamente na análise substancial da controvérsia diremos constatar que a recorrente alega que não se verifica, na decisão singular do relator, qualquer referência ao factos provados. No entanto revisitando aquela peça concluímos que os factos provados constam inteiramente a fls. 446 ss do aresto, só por lapso se compreendendo o levantamento desta questão. Portanto e sem necessidade de outras considerações entendemos que nada há a dizer sobre este item, desde logo porque nem o reclamante aponta em concreto qualquer ponto substancial que, nesta sede, exija uma pronúncia mais detalhada.


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    2.2.2. O contrato de seguro celebrado com a AA é nulo à luz do artigo 428º do Código Comercial em virtude de o respectivo contratante não ser o seu condutor, proprietário, nem ter qualquer interesse no veículo segurado?

    Cuidados a ter pelos contratantes segurado e Seguradora em prol da regularidade do seguro. Do abuso do direito por parte da seguradora ao invocar a nulidade do contrato.

   O "contrato de seguro" poderá definir-se como aquele em que uma das partes (segurador) se obriga contra o pagamento de certa importância (prémio), a indemnizar outra parte (segurado ou terceiro) pelos prejuízos resultantes da verificação de determinados riscos[1]. No caso vertente confrontamo-nos perante a validade/invalidade de um seguro de natureza obrigatória regulamentado à data do acidente pelo DL 522/85 de 31 de Dezembro. Este seguro surge como resultado da necessidade de socializar o risco (tomado numa acepção ampla). Se por um lado a dinâmica social potencia a possibilidade da ocorrência de danos em pessoas e coisas, por outro, a consciencialização da respectiva gravidade bem como da incompleta ou deficiente capacidade do responsável do respectivo causador para o ressarcimento, levou à instituição de mecanismos indemnizatórios de assunção obrigatória como condição sine qua non do exercício de certas actividades potencialmente perigosas ou portadoras de riscos nomeadamente em face de terceiros. É na linha deste entendimento que se perfila a instituição do seguro obrigatório no seio das sociedades modernas. O contrato assume pois nesta veste uma natureza trilateral em que figuram por um lado a seguradora, a qual garante ao segurado mediante o pagamento de um prémio, a indemnização que lhe possa vir a ser exigida por um terceiro lesado em consequência do acidente que o vitimou na sua pessoa e também nos seus bens. Por outro lado, o seguro acautela o próprio património do segurado colocando-o ao abrigo da pretensão indemnizatória dos potenciais lesados. Funciona assim o seguro obrigatório de certa forma como um contrato a favor de terceiro lesado, à partida potencial e estranho ao negócio.

    A reforçar a eficácia da protecção surge-nos o artigo 21º nº 1 do Diploma que contempla a criação do Fundo de Garantia Automóvel e onde pode ler-se “O Fundo de Garantia Automóvel garante, nos termos das disposições do presente capítulo, por acidente ocorrido em território nacional e até ao montante obrigatoriamente seguro, relativamente aos danos originados por veículos abrangidos por este diploma a satisfação da indemnização por:

   a) Morte ou lesões corporais quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz ou for declarada a falência da seguradora;

   b) Lesões materiais, quando o responsável sendo conhecido mas não beneficiando de seguro válido ou eficaz revele manifesta insuficiência de meios para solver as suas obrigações.

     2 – (…).

    

   Satisfeita a indemnização - lia-se no primitivo artigo 26º do mesmo Diploma Legal “1 - O Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a liquidação e cobrança;

  2 – No caso de falência o Fundo de Garantia Automóvel fica sub-rogado apenas contra a seguradora falida.

  3 – As pessoas que estando sujeitas à obrigação de segurar não tenham efectuado seguro poderão ser demandadas pelo Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do nº 1 beneficiando do direito de regresso contra outros responsáveis pelo acidente se os houver relativamente às quantias que tiverem pago”.

     As considerações supra-expostas deixam transparecer a razão pela qual particular interesse público subjacente à figura do "contrato de seguro obrigatório" subtraia justificadamente o mesmo a certos princípios de plena autonomia da vontade, como se acentua no preâmbulo do DL nº 522/85 e já se fazia notar no do DL nº 408/79, de 25/9.

 

   Todavia pretendendo-se alargar a cobertura de infortúnios estradais, tal situação seria portadora de um risco muito elevado para as seguradoras na ausência de normas preventivas e correctivas apontando para um equilíbrio das prestações através, desde logo, da boa-fé contratual nomeadamente nos preliminares e formação do mesmo - artigo 277º do Código civil.

   Com interesse no caso em análise há a notar o estatuído no artigo 429.º do Código Comercial vigente à data da celebração do contrato de seguro onde podia ler-se “Toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo.

  § único. Se da parte de quem fez as declarações tiver havido má-fé o segurador terá direito ao prémio”.


    Não iremos alargar-nos em considerações acerca do verdadeiro significado da nulidade referida no artigo 429.º do Código Comercial. Mostra-se firmada na Jurisprudência dos Tribunais Superiores que estamos em face, não de uma nulidade absoluta de conhecimento oficioso, mas antes perante uma mera anulabilidade, considerando que não há nestes casos um interesse público relevante que se sobreponha à vontade das partes de molde a tornar oficioso o conhecimento dos vícios do contrato, mas de âmbito reduzido e respeitante à relação negocial entre o segurado e a seguradora. Aliás a forma como o preceito está redigido, com apelo ao circunstancialismo da génese do contrato para o funcionamento da sanção é mais um subsídio hermenêutico de interpretação do preceito em análise no sentido de uma sanção menos gravosa que propugnamos na esteira aliás de jurisprudência largamente maioritária. E são os relevantes interesses de ordem pública em jogo que justificam, desde logo, o disposto no artigo 14º do DL nº 522/85 de 31/12 quando estabelece que “Para além das exclusões ou anulabilidades que sejam estabelecidas no presente diploma, a seguradora só pode opor aos lesados a cessação do contrato nos termos do art.º 1º do artigo anterior, ou a sua resolução ou nulidade, nos termos legais ou regulamentares em vigor, desde que anteriores à data do sinistro”. Compreende-se que assim seja, pois que a instituição do regime do seguro obrigatório teve essencialmente em vista, como medida de alcance social, a protecção directa dos legítimos direitos e interesses dos cidadãos lesados. Daí que seja pacífico na Jurisprudência dos Tribunais Superiores que nos regimes de seguro obrigatório, o princípio da inoponibilidade das excepções contratuais, do que resulta que só a nulidade do contrato de seguro, pode ser oposta aos lesados” sendo certo que as falsas declarações do segurado aquando outorgou o contrato não se integram na previsão do artigo 14º do DL nº 522/85, o qual funciona como norma especial do contrato de seguro obrigatório automóvel restringindo as hipóteses de nulidade aos casos que menciona. No entanto, a observância dos princípios da boa-fé é recíproca entre as partes no contrato, não estando, sem mais, a seguradora dispensada de aferir, na medida do possível, o relevo e alcance das declarações do segurado, não se remetendo para uma cómoda situação de inércia, maxime recebendo os prémios se e enquanto o seguro não for accionado, aceitando a álea do contrato enquanto não lhe são exigidas responsabilidades, enjeitando-as de imediato logo que algo corre mal, invocando então a nulidade do seguro; este comportamento que poderia ainda encontrar de certa forma cobertura pelo princípio da auto-responsabilidade das partes, não pode aceitar-se na contratação de um seguro obrigatório em que estão em causa interesses de terceiros estranhos ao contrato e tornado obrigatório em virtude da necessidade de socializar o risco, uma das intenções subjacentes à moderna responsabilidade civil. Esta publicização do direito privado, postulada pela carência de acréscimo de solidariedade social da vida hodierna, impõe aos sujeitos contratuais a exigência de abandonarem a postura liberal no círculo restrito dos seus interesses imediatos na medida em que os co-responsabiliza pelo alcance comunitário dos seus comportamentos, quer se traduzam em acções quer em abstenções susceptíveis de se reflectirem em terceiros, aliás os destinatários últimos das medidas legislativas adoptadas nesta sede. Aliás e no caso concreto de falsas declarações, a seguradora poderia ter obstado às consequências de tal situação caso se tivesse assegurado, como era também seu dever genérico, de que iria cobrir um tomador habilitado com carta de condução e legítimo detentor do veículo. Imanente ao preceito em análise e a justificá-lo sob o ponto de vista axiológico, encontra-se também o "princípio da confiança", postulado do princípio da boa-fé contratual acolhida entre nós no artigo 227º do Código Civil. Todavia não é possível, a nosso ver, sustentar de forma abstracta a criação automática de uma relação de confiança ao nível das declarações negociais; é sempre necessário apreciar a qualidade dos sujeitos, o objecto negocial, ponderando o contexto em que o negócio é fechado de acordo com a vontade negocial de ambos.

    O Acórdão da Relação de fls. 364 ss na procedência da apelação acabou revogando o decidido em 1ª instância condenando a Ré AA Insurance PLC a pagar ao Autor Fundo de Garantia Automóvel a quantia de € 127.471,57, acrescido de juros desde a data da citação à taxa legal até integral pagamento sendo certo que o mesmo havia sido demandado para a hipótese de o contrato de Seguro realizado pelo condutor do veículo pesado com a Ré ser declarado nulo.

   Com tal decisão não se conformou a Ré Companhia de Seguros AA que agora sustenta a nulidade do seguro invocando em abono da sua tese desde logo o disposto no artigo 428º do Código Comercial em vigor à data do acidente e onde pode ler-se “O seguro pode ser contratado por conta própria ou por conta de outrem.


   § 1º Se aquele por quem ou em nome de quem o seguro é feito não tem interesse na coisa segurada, o seguro é nulo.

   § 2º (…).

   § 3º (…).”


Entendeu o Acórdão recorrido que a pretensão de celebrar um contrato de seguro e bem assim a respectiva aceitação por parte da Seguradora, tem normas que haverá que observar; cite-se a título de exemplo o reflexo das Cláusulas Contratuais Gerais no âmbito do Contrato de Seguro, Diploma imbuído, desde logo, do intuito de proteger o segurado, parte mais fraca, de expedientes que podem desequilibrar desfavoravelmente ao contratante/tomador do Seguro os pratos da balança, atentos os conhecimentos que aquela tem desde logo pela assessoria de técnicos experientes, conhecedores dos meandros legais.

    

   No caso em análise alega a Ré AA que o contratante tomador do seguro não tem qualquer interesse no veículo segurado, já que o Réu BB era encartado há pouco tempo o que lhe agravaria o prémio do seguro; na verdade, o seguro foi contratado em nome de LL porque tal ficaria mais barato ao Réu. E a Ré AA adianta que face à nulidade do seguro, nos termos do aludido § 1º não lhe pode ser exigida pelo FGA qualquer importância que o mesmo tenha pago aos lesados. Acrescenta ainda que em momento algum aceitou este estado de coisas que deve ser assacado ao comportamento do tomador do seguro. Por lado não é possível extrair a aquiescência da Ré à posterior aceitação dos termos contratuais, considerando até o curto lapso de tempo decorrido entre a outorga do contrato a 3 de Julho de 2006 e o acidente que teve lugar decorrido apenas um mês a 3 de Agosto de 2006. Sustenta ainda a Ré ser impossível fazer um controlo da veracidade das declarações prestadas pelo outro contraente antes de fechado.

    Vejamos: Com o devido respeito entendemos que a recorrente AA não tem razão. A impraticabilidade por parte das seguradoras de um controlo absoluto das declarações prestadas pelo contraente segurado, pela seguradora, não pode ser pretexto para a anulação do seguro por parte da mesma. Em tudo isto existe sempre implicitamente um risco assumido pelas partes outorgantes que revestem o seu relevo e que tem como contrapartida, no caso da AA, a aceitação do pagamento dos prémios a que a outra parte está obrigada contratualmente. Acresce igualmente que se é certo que o incremento do mercado de seguros não se compadece com longas demoras na sua efectivação, é todavia necessário, para uma correcta interpretação do sentido da lei, ponderar o âmbito dentro do qual as soluções se concretizam; Neste caso tal ocorre em sede do Seguro Automóvel Obrigatório, com uma forte componente social. Tal resulta desde logo do artigo 14º do DL 522/85 de 31/12 (aqui aplicável) com correspondência ao artigo 22º do DL 291/2007 de 21/8, que restringem consideravelmente os casos em que é possível à seguradora opor ao lesado a cessação do contrato[2]. Acresce ainda que a acção indemnizatória não deverá ser o palco para apreciar da validade dos contratos de seguro celebrados com os seus clientes numa área em que tem o primado a solidariedade e a rápida solução dos conflitos. A existir anulabilidade do contrato e sendo suscitada apenas após o sinistro, será a mesma inoponível ao lesado[3].

Resulta assim do preceito que nos contratos de seguro que tenham por objecto coberturas de riscos sujeitas ao regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a seguradora não pode invocar perante os terceiros lesados quaisquer exclusões ou anulabilidades não previstas na Lei do Seguro Obrigatório, corporizada no dito DL nº 522/85, ou seja, está-lhe vedado opor-lhes qualquer anulabilidade – que é disso que se trata e não nulidade - prevenida em qualquer outra lei ou norma jurídica geral ou especial”. O Fundo de Garantia Automóvel chama em auxílio da sua tese o princípio da proibição do abuso do direito genericamente previsto no artigo 334º do Código Civil onde pode ler-se “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”[4]. Ora por tudo o que foi dito afigura-se-nos que o comportamento da Ré AA ao invocar a nulidade se configura como uma hipótese de abuso do direito. Enquanto não foi necessário accionar o seguro a Companhia aceitou o mesmo, indiferente a qualquer vício que o pudesse inquinar e só posteriormente, com a eclosão do acidente, vem levantar o problema, o que se nos afigura inadmissível.

Este entendimento enfrenta, contudo, a discordância da Ré AA. Sustenta esta última que a decisão singular em apreciação ao considerar que ao ser invocada a nulidade do contrato de seguro contratado por parte da Recorrente, a faz incorrer em abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium. Isto porque para que se possa considerar a mesma teria que haver decorrido certo lapso de tempo que introduzisse a segurança do direito e a sua não invocação posterior; é que se constata que tal contrato de seguro foi celebrado a 03 de Julho de 2006 e o acidente ocorreu a 06 de Agosto de 2006, ou seja, após 30 dias. Ora será que em 30 dias se pode considerar que existiu período de tempo suficiente para ser criada a convicção de que o direito não seria exercido?

Falta de todo a razão à Ré também neste particular. Na verdade o instituto do abuso do direito tem carácter genérico de cláusula geral que só poderá encontrar cabimento e aplicação face às peculiaridade de cada caso; e ao contrário do que a Ré pretende sustentar, não está dependente na sua aplicação de um determinado prazo. Basta que a situação material subjacente possa subsumir-se nos requisitos genéricos de tal instituto para que o mesmo se tenha por verificado independentemente da consideração do facto tempo. Por outro lado, toda a argumentação usada pelo Relator nos leva a corroborar a posição tomada independentemente de não ser apenas desse teor a fundamentação exercitada.


Por outro lado não existe claro impedimento a que alguém que não sendo susceptível de incorrer em responsabilidade civil possa celebrar um contrato de responsabilidade civil, tendo em linha de conta o estatuído no artigo 6º nº 2 do DL 291/07 onde se pode ler que “Se qualquer outra pessoa celebrar relativamente ao veículo contrato de seguro que satisfaça o disposto no presente decreto-lei fica suprida enquanto produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no artigo anterior”[5]. Estamos assim perante um contrato a favor de terceiro. 

Concluímos que não pode a seguradora prevalecer-se do vício contra os lesados no acidente não podendo opô-lo ao FGA que se encontra sub-rogado no lugar daqueles.

Nesta conformidade, não havendo qualquer outra questão a tratar e superado pela Relação o lapso material concernente à soma das parcelas da indemnização impetradas, constata-se que haverá que negar a revista pedida pela Ré AA, não sendo o acórdão da Relação passível de censura.   


*


3. DECISÃO.


Pelo exposto acorda-se em negar a revista confirmando destarte a decisão singular do Relator.

Custas pela Recorrente.


Lisboa, 01 de Março de 2018


Távora Victor (Relator)

António Joaquim Piçarra

Fernanda Isabel Pereira


__________

[1] Cfr. José Vasques “Contrato de Seguro” Coimbra Editora 2009, pag. 94; José Engrácia Antunes “Direito dos Contratos Comerciais”, Almedina, Coimbra, 2009 683 ss.

Cfr. por todos o Acs. STJ de 24-4-2014 Ac. do S.T.J. (P. 6659/ 09.6TVLSB.L1.S1) in Bases da DGSI

[2] Queremos acrescentar que esta alusão ao artigo 22º do DL 291/2007 de 21/8 inserem-se na mera argumentação do aresto e não pretendem inculcar que aquele normativo é aqui aplicável, como resulta amplamente do teor da decisão singular. Assim ao contrário do que a Ré pretende sustentar no seu último requerimento não está vedado ao Juiz o seu uso no âmbito da respectiva argumentação.

[3] Cfr. Acs. deste STJ de 22-20-2009 (P. 1146/05.3TBABF.S1); de 9-7-2015 (P. 487/09.6TBOHP.C1.S1); 18-12-2002 (02B3891) onde pode ler-se “Tal interpretação que faz coincidir o nosso ordenamento jurídico com os acima referidos é ainda imposta pela finalidade do seguro obrigatório. Um regime que faça depender a determinação do responsável de eventual nulidade relativa resultante de falsas declarações sobre o risco seria fonte de incerteza para os lesados quanto à forma de jurisdicionalmente exercerem os respectivos direitos.

[4] Trata-se de uma faceta do abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium.

[5] Este regime é idêntico ao do aplicável do DL 522/85 de 31 de Dezembro onde pode ler-se que no seu artigo 2º nº 2 que “2 – Se qualquer outra pessoa celebrar, relativamente ao veículo, contrato de seguro que satisfaça o disposto no presente diploma, fica suprida, enquanto o contrato produzir efeitos, a obrigação das pessoas referidas no número anterior.