Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2843/15.1T8OAZ.P1.S2
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA PINTO
Descritores: AMPLIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
RECURSO DE REVISTA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
ISENÇÃO DE HORÁRIO DE TRABALHO
SUBSÍDIO DE ISENÇÃO DE HORÁRIO DE TRABALHO
Data do Acordão: 05/16/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO. CONCEDIDA A REVISTA. NÃO CONHECER DO PEDIDO DE CONDENAÇÃO DO AUTOR COMO LETIGANTE DE MÁ FÉ.
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVA TESTEMUNHAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
-Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, I Volume, p. 318;
-Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 3.ª Edição, reimpressão, p. 263;
-António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 15.ª Edição, Almedina, p. 388,
-Carlos Alberto da Mota Pinto Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª Edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, p. 485;
-Menezes Cordeiro, Isenção de Horário de Trabalho, Subsídios para a dogmática atual do direito da duração do trabalho, Coimbra, Almedina, 2000, p. 83;
-Nunes de Carvalho, Isenção de horário de trabalho, Alguns problemas, Estudos APODIT 4, AAFDL Editora, p. 187 e 192;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, anotado, 4.ª Edição revista e atualizada, Coimbra Editora, p. 342.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 394.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: ARTIGOS 674.º, N.º 3 E 682.º, N.ºS 2 E 3.
DL N.º 409/71, DE 27 DE SETEMBRO, NOVO REGIME JURÍDICO DA DURAÇÃO DO TRABALHO, REVOGA O DECRETO N.º 22500 E O DL N.º 24402: - ARTIGO 13.º.
LEI N.º 99/2003, DE 27 DE AGOSTO: - ARTIGO 6.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 19-12-2007, PROCESSO N.º 07S1931;
-DE 23-05-2012, ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 6/2012, PROCESSO N.º 407/08.5TTMTS.P1.S1, IN DR N.º 121/2012, SÉRIE I, DE 2012.06.25, P. 3197-3211;
-DE 07-02-2017, PROCESSO N.º 3071/13.6TJVNF.G1.S1, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I) Estando em causa, apenas, a interpretação do artigo 394º, do Código Civil, relativamente à fixação da matéria de facto, não se está perante situação que exija certa prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova e nem perante situação que exija ampliação da matéria de facto para constituir base suficiente para a decisão de direito.

II) Tal questão é assim insuscetível de recurso de revista porque não enquadrável quer no disposto no artigo 674º, n.º 3, quer no artigo 682º, nºs 2 e 3, ambos do CPC, pelo que, relativamente a ela, não é admissível a ampliação do âmbito do recurso de revista.

III) Tendo todos os requerimentos, de pedido de autorização de isenção de horário de trabalho, sido efetuados pelo empregador à IGT/IDICT, ao abrigo do artigo 13º, do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de setembro, e tendo o último pedido sido feito por requerimento de 09.12.2002, que foi deferido, em 16.12.2002, pelo período de 4 anos, é aplicável, nos termos do artigo 6º, n.º 1, da Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, à isenção do horário de trabalho prestado de 14 de fevereiro de 1997 a 16 de dezembro de 2006, o regime decorrente do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de setembro [LDT].

IV) Tendo esses pedidos sido feitos com a concordância expressa do trabalhador, para exercer a sua atividade de “Prospector de vendas”, em regime de isenção total de horário de trabalho, e não lhe tendo sido fixado horário de trabalho diário, tem direito, nesse período, à retribuição especial.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 2843/15.1T8OAZ.P1.S2

Revista – 4ª Secção[1]

020/2017




Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça



I


Relatório[2]:

            AA instaurou, em 11 de junho de 2015, na Comarca de Aveiro, Oliveira de Azeméis – Instância Central – 3ª Secção do Trabalho – J1, a presente ação declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho contra “BB, S. A.”, pedindo que a ação seja julgada provada, por procedente, e:
I. A Ré condenada a pagar-lhe:

a. A importância de € 43.253,91, a título de retribuição especial por isenção de horário de trabalho, conforme o sumariado no art.º 132.º;

b. A importância de € 2.625,55, a título de retribuição correspondente ao número mínimo de horas de formação que não lhe foi proporcionada, conforme o sumariado no art.º 162.º;

c. A importância de € 2.579,54, a título de abono para falhas, conforme o sumariado no art.º 172.º;

d. A importância de € 14.108,63, a título de diferenças dos subsídios de Natal, conforme o sumariado nos art.º 333.º;

e. A importância de € 14.350,88, a título de diferenças das retribuições das férias, conforme o sumariado no art.º 464.º;

f. A importância de € 10.517, a título de diferenças dos subsídios de férias, conforme o sumariado no art.º 552.º;

g. A importância de € 15.934,08, a título de compensação pela não concessão de parte das férias, referentes aos anos de 2005 a 2012, conforme o sumariado em I do art.º 680.º;

h. A importância de € 4.835,20, a título de retribuição por não lhe ter sido concedido o gozo de parte das férias vencidas em 01 de janeiro dos anos de 2006 a 2008, até 31 março dos anos seguintes e de parte das férias vencidas em 01 de janeiro dos anos de 2009 a 2012, até 30 de abril dos anos seguintes, conforme o sumariado em II do art.º 680.º.

II. Ser a Ré condenada a pagar os juros de mora, à taxa legal, a calcular do seguinte modo, sempre até integral pagamento:

a. Sobre as importâncias referidas nas alíneas b), g), h) de I, desde a citação;

b. Sobre as importâncias referidas nas alíneas a) e c) de I, desde o último dia de cada um dos meses a que tais prestações se reportam;

c. Sobre as importâncias referidas na alínea d) de I, desde o dia 21 de dezembro de cada um dos anos a que as diferenças se reportam;

d. Sobre as importâncias referidas na alínea e) de I, desde 31 de agosto de cada um dos anos de 1997 a 2013; 

e. Sobre a importância referida na alínea f) de I, desde o dia 31 de julho de cada um dos anos a que as diferenças se reportam.

Para tanto alegou, em síntese, que trabalhou para a ré, tendo acordado, com esta, a cessação do contrato de trabalho por mútuo acordo, mas que ficaram por pagar vários créditos de que é titular.

Assim:

- A partir de 04 de fevereiro de 1991, a Ré admitiu-o ao seu serviço para, sob as suas ordens, direção, fiscalização e mediante retribuição, exercer funções ajustadas à categoria profissional de “Prospetor de Vendas”.

- Autor e Ré subscreveram um acordo de cessação do contrato de trabalho que vigorava entre ambos.

- O Autor, por ordem da Ré, procedia à verificação das possibilidades do mercado, promovendo a venda dos produtos por ela produzidos, junto dos estabelecimentos do sector de armazenagem tradicional do mercado continental português.

- Para tanto, o Autor visitava os potenciais clientes, em viaturas automóveis da Ré.

- Em 27 de janeiro de 1997, a Ré fez dar entrada na Delegação de S. João da Madeira, da Inspeção-Geral de Trabalho [IGT], de um requerimento por si datado de 21 do mesmo mês e ano, a pedir “a isenção de horário de trabalho para o seu colaborador AA, que conduz a viatura marca ..., matrícula -FF, ao abrigo do art.º 13º, do Decreto-Lei n.º 409/71 de 27 de setembro”. 

- O Autor deu o seu acordo à isenção de horário de trabalho.

- O requerimento mereceu do Delegado da IGT o despacho, exarado em 14 de fevereiro de 1997, com o seguinte teor: “Deferido por dois anos”.

- Nos anos seguintes foram renovados, e deferidos, os pedidos de isenção de horário de trabalho, com a concordância do Autor, pelos períodos que decorreram: de 14 de fevereiro de 1997 a 27 de abril de 2000; de 4 de dezembro de 2001 a 4 de dezembro de 2002 e de 16 de dezembro 2002 a 16 de dezembro de 2006.

- E, nesses períodos de tempo, a Ré não lhe pagou qualquer importância, a título de retribuição especial por isenção de horário de trabalho.

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Frustrada a conciliação na audiência de partes, a Ré contestou, excecionando a caducidade/prescrição do crédito de horas, impugnando os factos alegados pelo Autor, e, concluindo, pediu que a ação fosse julgada improcedente, por não provada, e, em consequência, que fosse absolvida dos pedidos.
O Autor respondeu à exceção invocada pela Ré e terminou como na petição inicial.

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Na audiência preliminar, fixado o valor da causa e proferido despacho saneador, foram determinados o objeto do processo e os temas de prova.
Realizada a audiência de julgamento, e decidida a matéria de facto, foi proferida sentença, em 31 de março de 2016, que julgou parcialmente procedente a ação e, em consequência, condenou a Ré “BB, S. A.”, a pagar ao Autor AA, a quantia total de € 71.542,28, assim discriminada:

• A importância de € 41.995,41, a título de retribuição especial por isenção de horário de trabalho acrescida de juros de mora desde o último dia de cada um dos meses a que tais prestações se reportam;
• A importância de € 1.613,79, a título de retribuição correspondente ao número mínimo de horas de formação que não foi proporcionada ao autor acrescida de juros de mora desde a citação;
• A importância de € 5.290,32, a título de diferenças dos subsídios de Natal, acrescida de juros de mora desde o dia 21 de dezembro de cada um dos anos a que as diferenças se reportam;
• A importância de € 14.350,88, a título de diferenças das retribuições das férias, acrescida de juros de mora desde 31 de agosto de cada um dos anos de 1997 a 2013;
• A importância de € 7.703,40, a título de diferenças dos subsídios de férias, acrescida de juros de mora desde o dia 31 de julho de cada um dos anos a que as diferenças se reportam;
• A importância de € 588,48, a título de retribuição por não lhe ter sido concedido o gozo de parte das férias vencidas, acrescida de juros de mora desde a citação.
No mais, julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu a Ré dos restantes pedidos contra ela formulados pelo Autor.

II

            Inconformada com esta decisão, a Ré interpôs recurso de apelação.

            Por acórdão de 02 de março de 2017, do Tribunal da Relação do Porto, foi julgada improcedente a impugnação da decisão proferida na 1ª instância sobre a matéria de facto, e:
1. Concedeu-se provimento parcial à apelação da Ré e, em consequência, revogou-se a sentença recorrida:
a) Na parte em que condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 41 995,41, a título de retribuição especial por isenção de horário de trabalho acrescida de juros de mora desde o último dia de cada um dos meses a que tais prestações se reportam, absolvendo-se a ré de tal pedido;
b) Na parte relativa ao conceito de “regular e periódico” dos complementos salariais, a qual se substitui pelo presente acórdão que:
2. Declarou-se tal periodicidade em, pelo menos, onze meses.
3. Condenou-se a Ré a pagar ao autor a quantia total de € 21 297,92, assim parcelada:  
a) As diferenças de retribuição no subsídio de Natal, na quantia de € 3.795,06 (três mil, setecentos e noventa e cinco euros e seis cêntimos), acrescida de juros de mora desde o dia 15 de dezembro de cada um dos anos a que as diferenças se reportam;
b) As diferenças de retribuição de férias, na quantia de € 13 546,76 (treze mil, quinhentos e quarenta e seis euros e setenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora, desde 31 de agosto de cada um dos anos de 1997 a 2013;
c) As diferenças de retribuição no subsídio de férias, na quantia de € 3 956,10, acrescida de juros de mora desde o dia 31 de julho de cada um dos anos a que as diferenças se reportam.
4. No mais, manteve-se a decisão recorrida.


III

           Deste acórdão, foi interposto recurso de revista pelo Autor AA limitando-o à parte que revogou a decisão da 1ª instância que havia condenado a Ré a pagar-lhe a quantia de € 41.995,41, a título de retribuição especial por isenção de horário de trabalho, acrescida de juros de mora.

            Concluiu a sua alegação da seguinte forma:


1. Os quatro pedidos que a recorrida submeteu a autorização da IGT/IDICT visando a isenção do horário de trabalho do recorrente foram apresentados em 27 de janeiro de 1997, 20 de abril de 1998, 27 de novembro de 2001 e 9 de dezembro de 2002.
2. Tais pedidos foram autorizados com base nas normas constantes dos artigos 13º, 14ç e 15º, da LDT.
3. O Venerando Tribunal “a quo” socorreu-se, para apreciação da apelação, do disposto nos artigos 197º, 198º e 200º, do CT/2009, que vigorou a partir de 17 de fevereiro de 2009.
4. Violou, assim, o disposto no artigo 12º, n.º 1, do Código Civil.
5. Foi intenção da recorrida, claramente plasmada nos quatro pedidos de isenção de horário de trabalho, conseguir o prolongamento do tempo normal de trabalho do recorrente, o que, de facto, alcançou.
6. A recorrida, por força dos ditos pedidos, foi autorizada a exigir ao recorrente que prestasse o seu trabalho sem sujeição aos limites máximos dos períodos normais de trabalho, no período que decorreu de 14 de fevereiro de 1997 a 16 de dezembro de 2006, tal como dispõe o artigo 15º, da LDT.
7. Em consideração da definição de “horário de trabalho” e tendo em conta os efeitos decorrentes das isenções de horário de trabalho que a recorrida viu autorizadas não tinha o recorrente que alegar e provar as horas do inicio e do termo do período normal de trabalho diário, bem assim como das horas de descanso.
8. Na verdade, por força das isenções de horário de trabalho obtidas pela recorrida, o recorrente não estava sujeito ao cumprimento quer de horas de início e termo do período normal de trabalho diário quer das horas de descanso, quer dos limites máximos dos períodos normais de trabalho.
9. A exigência, por parte do Venerando Tribunal “a quo” de prova de factos sobre o horário de trabalho diário do recorrente e de este ter ou não desempenhado, nos anos por si peticionados, a atividade com dispensa efetiva de cumprimento das horas do início e do termo do período normal de trabalho diário, e dos intervalos de descanso é, de todo, inconsequente, já que o recorrente trabalhou em regime de isenção de horário de trabalho e, portanto, não sujeito aos limites máximos dos períodos normais de trabalho.
10. Essa prova resultaria, também, inútil, atento o facto de o disposto no artigo 2º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 421/83, de 2 de dezembro, considerar que o trabalho prestado por trabalhadores isentos de horário de trabalho em dia normal de trabalho não se compreende na noção de trabalho suplementar.
11. Sendo que no artigo 2º, n.º 1, do mesmo diploma se decreta que se considera como trabalho suplementar todo aquele que é prestado fora do horário de trabalho, afigura-se óbvio que o recorrente – como qualquer trabalhador isento de horário de trabalho - não podia beneficiar de retribuição por trabalho suplementar por não ter horário de trabalho.
12. Não tinha, pois, o recorrente de alegar e provar nem qual era o seu horário de trabalho diário – por dele estar isento - nem que desempenhou, nos anos por si peticionados, a sua atividade com efetiva dispensa de cumprimento das horas do início e do termo do período normal de trabalho diário, bem assim dos intervalos de descanso, atenta a irrelevância de tais factos para sustentação do pedido de condenação da recorrida no pagamento da correspondente retribuição especial por isenção de horário de trabalho.
13. Os factos referidos nas alíneas a) a g) de 4.5.1 permitem sustentar que o recorrente exerceu a sua atividade de Prospector de vendas”, no período de 14 de fevereiro de 1997 a 16 de dezembro de 2006, em regime de isenção de horário de trabalho.
14. Consequentemente, a norma constante do artigo 14º, n.º 2, da LCT, atribuía-lhe o direito a retribuição especial por isenção de horário de trabalho não inferior a remuneração correspondente a uma hora de trabalho extraordinário por dia.
15. Alegou, pois, o recorrente os factos constitutivos do seu direito a tal retribuição.
16. Cumpriu, assim, o disposto no artigo 342º, n.º 1, do Código Civil.
17. À recorrida cumpria provar que havia pago tal retribuição que, nem sequer alegou, assim incumprindo o disposto no n.º 2 da mesma norma e diploma.
18. O Venerando Tribunal da Relação não respeitou ou o disposto nos artigos 12º, n.º 1, 342º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, 11º, n.º 2, 13º, 14º e 15º, da LDT, no artigo 45º, n.º 1, da LCT, no artigo 8º, n.º 1, da Lei n.º 99/2003, no artigo 178º, do CT/2003, nos artigos 197º, 198º, 200º e 219º, do CT/2009, e no artigo 2º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 421/83 de 2 de dezembro.

Terminou pedindo a procedência do recurso e, consequentemente, a revogação do acórdão recorrido, na parte em que absolveu a recorrida do pagamento € 41.995,41 e respetivos e juros, atinente à retribuição especial por isenção de horário de trabalho.

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           A recorrida contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da parte recorrida do acórdão, e requereu a condenação do Autor como litigante de má-fé por ter formulado um pedido de pagamento de quantia que bem sabia não ter a ela direito.

Em sede de contra-alegações, a ré “BB, S. A.” deduziu ampliação do âmbito do recurso, nos termos do artigo 636.º do CPC, pretendendo impugnar a decisão do Tribunal da Relação, por erro na apreciação e julgamento da matéria de facto, dado ter havido violação da lei.

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           O autor respondeu à matéria da ampliação, defendendo a sua rejeição face ao disposto nos nºs. 1 e 3 do artigo 640º do CPC.


IV

Nota prévia:

               No decurso deste recurso de revista o Autor/Recorrente faleceu em 28 de dezembro de 2017.
               Junta, aos autos, a certidão do seu óbito, foi a instância suspensa, nos termos do artigo 270º, n.º 1, do CPC.
                Requerida a respetiva habilitação de herdeiros, por decisão de 21 de março de 2018, transitada em julgado, foram julgados habilitados como seus únicos sucessores, CC, DD, EE e FF, pelo que, estes, passaram a ocupar a posição por ele detida no processo.

V

        Reclamação – artigo 652º, n.ºs 3 e 4, do CPC:

Por despacho de 27 de setembro de 2017, foi ordenada a notificação das partes, nos termos e para os efeitos dos artigos 655º, n.ºs 1 e 2, e 679º, ambos do CPC, “ex vi” dos artigos 1º, n.º 2, alínea a), 81º, n.º 5, estes do CPT, por o Autor, na sua contra-alegação, ter levantado a questão da rejeição da ampliação do âmbito do presente recurso de revista e por se afigurar ao, aqui, Relator que se estava perante uma situação de impugnação da matéria de facto (erro na apreciação da prova e na fixação dos factos materiais da causa), e de a mesma não ser sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, atento o disposto no art.º 674.º, n.º 3, do CPC.

Notificado esse despacho às partes, apenas a Ré “BB, S. A.” se manifestou sobre a questão prévia suscitada, alegando, em suma, o seguinte:

- “Dispõe o artigo 674º, n.º 3, do CPC, que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
- Ora, o que pretende é que, para a hipótese de procedência da revista, sejam julgados provados os factos n.ºs 4º-A a 40º e, em particular, os factos 22º-A a 40º, da sua contestação.
- Porque só não foram julgados provados por errada interpretação e aplicação, por parte das instâncias, do artigo 394º, do Código Civil.
- Esta questão só pode ser resolvida através da ampliação do âmbito do recurso, nos termos do artigo 636º, n.º 2, do CPC, com a prolação da decisão pedida no requerimento que efetuou nas suas alegações.
- A menos que este Supremo Tribunal entenda, “ab initio”, que a revista improcederá, caso em que não se justifica a baixa do processo para aquele fim.
- “Fora dessa hipótese e, para, com sacrifício da melhor interpretação da lei substantiva e ao arrepio da jurisprudência deste STJ sobre a interpretação e aplicação do artigo 394º, do CC, não se diminuírem as possibilidades de defesa da Ré, o processo terá de baixar para que a Relação reveja a decisão da matéria de facto à luz daquela melhor interpretação e da invocada jurisprudência deste STJ.”

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No pedido de ampliação do âmbito do recurso a Ré fez o seguinte requerimento:

Nos termos e pelos fundamentos expostos e pelo mais de direito do douto suprimento, deve:
ü Uma vez admitida a ampliação do âmbito do recurso ora requerida pela R., ser o processo mandado baixar à 2ª instância para que a Relação aprecie os factos alegados nos artigos 4º-A a 40º da contestação, e, em particular, os factos 22º-A a 40º à luz da prova testemunhal produzida em 1ª instância, julgando-os provados, como se pedia na apelação e que, após isso, e em função dos novos factos provados, o A. seja notificado para se pronunciar pela manutenção ou não do seu recurso de revista e, na afirmativa, para apresentar novas alegações.

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Em 25 de outubro de 2017, nos termos das normas conjugadas dos artigos 652º, n.º 1, alínea b), 674º, n.º 3, 682º, n.ºs 2 e 3, e 636º, n.º 2, todos do CPC, foi proferida decisão de não admissão da ampliação do âmbito da revista.
           
O seu teor é o seguinte:

                      «[O] artigo 674º, n.º 3, dispõe que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

                      Por sua vez, o artigo 682º, n.º 2, determina que a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674º, e nos termos do seu n.º 3 [o processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito].

                      Do exposto resulta que os poderes do Supremo Tribunal de Justiça, em sede de apreciação/alteração da matéria de facto, são muito restritos.

                      Assim, o Supremo só poderá proceder a essa análise/modificação nas limitadas hipóteses contidas nas normas dos artigos 674º, n.º 3, e 682º, nºs 2 e 3, ou seja quando a decisão das instâncias vá contra disposição expressa da lei que exija certa prova para a existência do facto ou fixe a força de determinado meio de prova (prova vinculada), quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada [para constituir base suficiente para a decisão de direito] ou quando ocorrem contradições da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito.

                      Através do artigo 662º foi concedida ao Tribunal da Relação uma autonomia decisória, em sede de reapreciação e modificabilidade da decisão da matéria de facto.

                      ~~~~~~~~

                      Diz a Ré que o Autor limitou o seu recurso à questão da isenção do horário de trabalho, o que corresponde à realidade.

                      Também diz que essa questão está configurada nos documentos nºs 8, 21, 44 e 63, juntos com a petição inicial, e que alegou, na sua contestação, os factos n.ºs 4º-A a 40º e, em particular, os factos 22º-A a 40º, que devem ser julgados como provados, com recurso à prova testemunhal, por ser, no caso concreto, admissível, e que, o sendo, invalidam os mencionados documentos.

                      ~~~~~~~~

                      A esse respeito diz o acórdão recorrido que “a reapreciação de tal matéria [factos alegados nos artigos 4º-A a 40º da contestação, e, em particular, os factos 22º-A a 40º] coloca duas questões distintas, ambas de direito probatório material: uma que se prende com o valor probatório dos documentos particulares e outra que se prende com a admissibilidade de prova testemunhal quanto à prova do contrário do que deles resulte.

                      Relativamente à primeira questão, resulta inquestionado que autor e ré subscreveram os requerimentos constantes dos autos dirigidos às autoridades sucessivamente competentes do Ministério do Emprego e Segurança Social, nos quais esta “vem requerer isenção do horário de trabalho para o seu colaborador AA” e declara que “dada a natureza das funções que exerce, há necessidade, por vezes, de prolongar o tempo normal do trabalho (…)”. O autor, por sua vez, “dá o seu acordo à isenção (…) e declara que concorda com a isenção de horário de trabalho nos termos em que é requerida”.

                      A isenção de horário, que as leis de trabalho não definem, consubstancia-se numa situação que dispensa a prévia determinação das horas do início e do termo do período normal do trabalho diário, bem assim como dos intervalos de descanso. 

                      […]

                      Deste modo, ao “requerer isenção do horário de trabalho para o seu colaborador AA” e declarar que “dada a natureza das funções que exerce, há necessidade, por vezes, de prolongar o tempo normal do trabalho (…)”, poderia – como fez – a decisão recorrida considerar como provado que a recorrente quis acordar na isenção do horário de trabalho (IHT). 

                      No entanto, a recorrente alega que tal força probatória poderia ser afastada mediante invocação dos fins e contexto que rodearam a elaboração do documento por o regime dos artigos 394.º, 371.º e 376.º do CC não excluir a possibilidade de provar, por testemunhas, o fim ou motivo do próprio documento e que a eficácia probatória dos mesmos se confina à materialidade do que deles consta e não à verdade das declarações neles corporizadas.

                      ~~~~~~~~~~~

                      Ora, o que está aqui em causa é, apenas, a interpretação do disposto no artigo 394º, do CC, que, versando sobre as convenções contra o conteúdo de documentos ou além dele, estipula que é inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objeto quaisquer convenções ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores e que a proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e o negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores (n.ºs 1 e 2).

                      O tribunal recorrido interpretou esse normativo no sentido de que o mesmo só admite, excecionalmente, prova testemunhal quando haja um começo ou princípio de prova por escrito, quando tenha sido impossível, moral ou materialmente, ao contraente obter uma prova escrita ou quando se tenha perdido, sem culpa do contraente, o documento que fornecia a prova.

                      Por sua vez, sustenta a Ré que a sua aplicação não exclui a possibilidade de provar, através de testemunhas, o fim, o motivo ou o conteúdo do próprio documento.

                      Com efeito, segundo a Ré, a eficácia probatória confina-se à materialidade do que deles consta e não à verdade das declarações neles corporizadas.

                      ~~~~~~~~~

                      Quanto a esta questão [admissibilidade ou não de prova testemunhal nos casos referidos no artigo 394º do CC] o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.02.2017, processo n.º 3071/13.6TJVNF.G1.S1, em www.dgsi.pt, decidiu que:
                      1. Como princípio – regra, a fixação dos factos materiais da causa, baseados na prova livremente apreciada pelo julgador nas instâncias não cabe no âmbito do recurso de revista.
                      2. O Supremo Tribunal de Justiça limita-se a aplicar aos factos definitivamente fixados pelo Tribunal recorrido o regime jurídico adequado.
                      3. São exceções a esta regra a existência de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
                      4. Em suma, o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer do juízo de prova fixado pela Relação quando tenha sido dado por provado um facto sem que tivesse sido produzida a prova que a lei declare indispensável para a demonstração da sua existência ou tiverem sido violadas as normas reguladoras da força de alguns meios de prova.
                      5. Nesta área o Supremo Tribunal de Justiça está a sindicar a aplicação de normas jurídicas movendo-se, então, em sede de direito.
                      6. O n.º 1 do artigo 394.º do Código Civil veda a prova testemunhal para demonstração de convenções que contrariem ou ampliem o conteúdo de documentos autênticos ou particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, independentemente da data dessas convenções.
                      7. O n.º 2 do mesmo artigo 394.º manda aplicar essa proibição de meio de prova ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado quando invocados pelos simuladores.
                      8. Muito embora tal tenha sido proposto nos trabalhos preparatórios do Código Civil, a letra da redação final do preceito não autoriza, ainda que por via indireta, o recurso à prova testemunhal e consequentemente (artigo 351.º CC) à prova por presunção judicial.
                      9. Porém, a doutrina e a jurisprudência, inspiradas nos argumentos do Autor da 1.ª proposta (por sua vez seguindo os coevos Códigos Civis Italiano e Francês) e receando a rigidez do preceito, admitem que se utilize prova testemunhal desde que, a montante, surja um “princípio” (ou “começo”) de prova que crie uma convicção que as testemunhas podem sedimentar.
                      10. Essa tese pode aceitar-se com três condições: o princípio de prova consistir num documento, com força e credibilidade; o documento não ser usado como facto – base de presunção judicial; reconhecer-se que se trata de uma laboração da doutrina e da jurisprudência oportunamente arredada do “jure constituto” e, em consequência, a ser tida em consonância com os artigos 9.º e 10.º do Código Civil.
                      11. A prova testemunhal será sempre, nestes casos, complementar (coadjuvante) de um documento indiciário de “fumus bonni juris”.
                      12. São elementos da simulação a divergência entre a vontade real e a vontade declarada; o propósito de enganar (simulação inocente) ou prejudicar (simulação fraudulenta) terceiros.”

                      ~~~~~~~~

                      Estando em causa, apenas, a interpretação do artigo 394º, relativamente à fixação da matéria de facto, não se está perante situação que exija certa prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (prova vinculada – o artigo 399º, do CC, proíbe a prova testemunhal) e nem perante situação que exija ampliação da matéria de facto para constituir base suficiente para a decisão de direito.

                                     Tal questão é assim insuscetível de recurso de revista porque não enquadrável quer no disposto no artigo 674º, n.º 3, quer no artigo 682º, nºs 2 e 3, ambos do CPC.

                      Diz a Ré que, “a contrario”, pode e deve este Supremo Tribunal conhecer do juízo de prova fixado pela Tribunal da Relação quando, por ela, não tenham sido apreciados e aditados factos manifestamente relevantes com fundamento numa errada interpretação da lei.

                            [Acresce que] havendo várias interpretações possíveis da lei, e não tendo havido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, não se pode dizer que se está perante uma sua errada interpretação [diversa e diferente, mas não errada].

                      Não sendo tal questão suscetível de recurso de revista, também não pode ser objeto de ampliação do seu âmbito nos termos do artigo 636, do CPC.

                      Se o fosse, estaríamos a conhecer da matéria de facto.

                      ~~~~~~~~

                                    Esta decisão prejudica o conhecimento da questão prévia suscitada pelo Autor - artigos 608º, n.º 2, 665º, n-º 2, e 679º, todos do CPC.

                      ~~~~~~~~

                      Decisão:


                      Pelo exposto, e dadas as normas conjugadas dos artigos 652º, n.º 1, alínea b), 674º, n.º 3, 682º, nºs 2 e 3, e 636º, n.º 2, última parte, todos do Código do Processo Civil, não se admite a ampliação do âmbito do recurso de revista deduzido, em sede de contra-alegações, pela ré “BB, S. A.”

                      VI

                                  Notificada a decisão às partes, veio a Ré “Fersil – Freitas & Silva, S. A.” reclamar para a conferência, nos termos do artigo 652º, n.º 3, “ex vi” do artigo 679º, ambos do CPC, e dos artigos 1º, n.º 2, alínea a), e 81º, n.º 5, estes do CPT, requerendo que sobre ela recaia um acórdão.

                                  Nesse requerimento, reafirma o que já consta dos autos, e aduz mais o seguinte:
                                  “Afigura-se à requerente que, à luz da análise do artigo 393º do Código Civil, a prova testemunhal não se pode considerar legalmente interdita, tal, como, aliás, entendem Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, anotado, 4ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, página 342, em anotação ao referido artigo”.

                                  Ora, a fundamentação apresentada pela Ré neste seu pedido não é diferente da que já constava nas suas contra-alegação e conclusões e na pronúncia efetuada sobre o despacho de 27.09.2017.

                                 Na verdade, a Ré, no requerimento em que solicita que sobre essa decisão recaia um acórdão, reafirma o que anteriormente havia alegado e aduzido, para os autos, tendo, apenas, acrescentado que a posição dos Professores Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artigo 393º, do CC, é favorável à sua pretensão.

                      Convém, no entanto, referir que a norma aqui em causa não é a do artigo 393º mas sim a do 394º, n.º 2, ambos do Código Civil.

                      Ora, aquela dispõe sobre a inadmissibilidade da prova testemunhal em geral, enquanto esta dispõe sobre a inadmissibilidade da prova testemunhal das “Convenções contra o conteúdo de documentos ou além deles”, em particular.

                      Relativamente ao disposto no artigo 394º, n.º 2, do CC, os mesmos Professores, na respetiva anotação, na página 344, afirmam:

                      “A doutrina do n.º 2, não impede que os simuladores façam a prova da simulação por qualquer outro meio de prova, desde que não seja a testemunhal ou a prova por presunções (cf. Artigo 351º), mesmo que o negócio tenha sido celebrado por documento autêntico”.

                                  Verifica-se, pois, que a posição daqueles ilustres Professores em nada coincide com a pretensão da Ré sendo, até, de teor contrário à mesma.

                      Refere-se, também, o entendimento do Professor Carlos Alberto da Mota Pinto[3] que ensina que “[q]uanto à prova da simulação pelos próprios simuladores, a lei estabelece, quando o negócio simulado conste de documento autêntico ou particular, a importante restrição constante do artigo 394º, n.º 2 […]: não é admissível o recurso à prova testemunhal e, consequentemente, estão também excluídas as presunções judiciais (cf. Artigo 351º)”.

                      ~~~~~~~~

                      Ora, reapreciada a questão, entende-se que é de sufragar a fundamentação e a decisão constantes da decisão singular reclamada e acima transcrita.

                      Não se vê, pois, motivo para alterar a decisão reclamada.

                      VII

                              Recurso de revista:


                      Os presentes autos foram instaurados em 11 de junho de 2015 e o acórdão recorrido proferido em 02 de março de 2017.

                      Assim, são aplicáveis ao caso, o Código de Processo Civil (CPC) na versão conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho e o Código de Processo do Trabalho (CPT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 480/99, de 9 de novembro, e alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 323/2001, de 17 de dezembro, 38/2003, de 8 de março, 295/2009, de 13 de outubro, que o republicou, e Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto.

                      VIII

                                  Do objeto do recurso:

                                 

                                  - O objeto do pressente recurso consiste:

                                 - Em saber se o Recorrente tem direito à importância de € 41.995,41 e juros, a título de isenção de horário de trabalho, no período de 14 de fevereiro de 1997 a 16 de dezembro de 2006 - legislação aplicável e ónus de alegação e de prova;

                                  - Em saber se o Autor litigou com má fé.

                      IX

                      Parecer do Ministério Público:     


                      O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto, junto deste Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 87º, n.º 3, do CPT, emitiu parecer no sentido da improcedência, porque o Autor “nada alegou, nem provou, tendo resultado unicamente provado que a partir do 2º semestre de 2013 até à cessação do contrato de trabalho passou a cumprir horário de trabalho das 9:00  às 18:00 com intervalo para almoço das 12:30 às17:00 horas, sendo certo que era sobre ele que recaía o ónus de provar tais factos.”            

                                     Notificado o parecer às partes, responderam os herdeiros habilitados do falecido Autor dizendo que tendo ficado provado que o Autor esteve isento de horário de trabalho de 14 de fevereiro de 1997 a 16 de dezembro de 2006 e que a Ré lhe não pagou a retribuição especial por isenção de horário de trabalho, o direito a essa retribuição no quantitativo fixado na sentença do Tribunal da 1ª instância emerge, direta e necessariamente, do disposto no artigo 14º, n.º 2, da LDT.


                      X

                                  - Da matéria de facto:

                                  A matéria de facto dada como provada pelas instâncias e relacionadas com a questão em causa é a seguinte:

                                     A ré é uma sociedade comercial que, na sua sede social, se dedica ao fabrico e subsequente comercialização de matérias plásticas não especificadas tais como sistemas de água e artigos em plástico destinados basicamente às indústrias de construção civil e obras públicas.

                                      Com efeitos a partir de 04 de fevereiro de 1991, a ré admitiu ao seu serviço o autor para, sob as suas ordens, direção, fiscalização e mediante retribuição, que, passados cerca de três anos, passou a exercer funções ajustadas à categoria profissional de “Prospector de Vendas”.

                                     A ré manteve sempre tal categoria profissional ao autor até que, em 6 de novembro de 2014, autor e ré subscreveram acordo de cessação do contrato de trabalho que reportaram a essa mesma data.

                                     O autor por mando da ré, procedia à verificação das possibilidades do mercado, promovendo a venda dos produtos produzidos pela ré junto do canal composto pelos estabelecimentos do sector de armazenagem tradicional do mercado continental português.

                                     Para tanto, o autor visitava os potenciais clientes, em viaturas automóveis da ré.

                                      A ré estabeleceu ao autor um horário de trabalho de 40 horas semanais, de segunda a sexta-feira, com descanso semanal obrigatório ao domingo e descanso semanal complementar ao sábado.

                                      A ré pagava ao autor uma retribuição base mensal.

                                     Atribuía-lhe ainda um subsídio de alimentação, por cada dia útil completo de trabalho.

                                     Os valores pagos a título de retribuição base e subsídio de alimentação variaram ao longo da vigência do contrato de trabalho.

                                     Além destas prestações retributivas, a ré pagou ao autor, regularmente e com periodicidade mensal, importâncias variáveis, que mencionou nos respetivos recibos como “Prémio de Produção”, “Complemento Remuneração”, “Prémio de Produtividade”, “Prémio de Desempenho”, Prémio de assiduidade”, “Ob. Vendas e Cobranças”, “Prémio de Objetivos e Cobranças”, “Prémio Irregular” etc., prestações essas atribuídas por força da atividade do autor. e, frequentemente, de valores superiores aos das próprias retribuições mensais.
                                     Por documento intitulado “Acordo de Cessação de Contrato de Trabalho” autor e ré acordaram pôr termo ao contrato de trabalho, com efeitos a partir de 6 de novembro de 2014.
                                      Nesse documento constam, entre outras, as cláusulas Quarta e Quinta que dispõem o seguinte:
                                     - QUARTA: “A PRIMEIRA OUTORGANTE paga, nesta data, ao SEGUNDO OUTORGANTE as seguintes quantias:

                      a. € 35.791,20 (líquida), respeitante à compensação pela cessação do contrato de trabalho;

                      b. € 758,21 (ilíquida), referente à retribuição por 12 dias úteis das férias vencidas em 1/1/2014 e não gozadas;

                      c. € 1.199,53, (ilíquida), referente à parte proporcional de férias pelo trabalho prestado no ano de 2014;

                      d. € 1.199,53 (ilíquida), referente à parte proporcional de subsídio dessas férias;

                      e. € 1.181,10 (ilíquida), referente à parte proporcional do subsídio de natal devido pelo trabalho prestado no ano de 2014” (Doc. 2);
                                        QUINTA: “1 – O SEGUNDO OUTORGANTE, após efetivo recebimento das quantias referidas nas alíneas a), b), c), d) e e) da cláusula QUARTA dá à PRIMEIRA OUTORGANTE recibo e quitação restritos a tais quantias. 
                                        2 – O SEGUNDO OUTORGANTE deixa bem expresso que se reserva ao direito de pedir, na instância judicial competente, o reconhecimento do direito a que a PRIMEIRA OUTORGANTE lhe pague outras importâncias que se entenda serem-lhe devidas por virtude da vigência do contrato de trabalho, assim deixando, nessa medida, ambas as partes, afastada a presunção consignada no art.º 349.º, n.º 5 do Código do Trabalho. “.
                                        Pelo menos desde 31 de agosto de 1996, a ré passou a pagar ao autor a retribuição mensal de 171.920$00, que lhe manteve ao longo dos meses de setembro a dezembro de 1996.
                                         Antes de 27 de janeiro de 1997, a ré não havia requerido à Inspeção Geral do Trabalho isenção de horário de trabalho para o autor.
                                        A ré, em 27 de janeiro de 1997 fez dar entrada na Delegação de S. João da Madeira da IGT de um requerimento por si datado de 21 do mesmo mês e ano.
                                        Nesse documento a ré pediu “a isenção de horário de trabalho para o seu colaborador AA, que conduz a viatura marca ..., matrícula -FF, ao abrigo do art.º 13º do Decreto-Lei nº 409/71 de 27 de setembro”.
                                        Declarou, ainda, que “o referido trabalhador exerce as funções de Vendedor, auferindo a retribuição mensal de Escudos: 171.920$00 de ordenado base, que foi fixado tendo em vista a isenção.”
                                         O autor deu o seu acordo à isenção de horário de trabalho nos termos requeridos.
                                        O requerimento referido mereceu o seguinte despacho do Sr. Delegado da IGT, exarado em 14 de fevereiro de 1997 “Deferido por dois anos.
                                         No período que decorreu de 1 de janeiro de 1997 a 28 de fevereiro de 1998, a ré atribuiu ao autor a retribuição base mensal de 190.212$00.
                                        E, nesse lapso de tempo, não lhe pagou qualquer importância, a título de retribuição especial por isenção de horário de trabalho.
                                        A ré, com data de 20 de abril de 1998, endereçou ao Sr. Delegado do IDICT de S. João da Madeira um requerimento em que pediu “isenção do horário de trabalho para o seu colaborador AA, que conduz a viatura marca ..., matrícula  JL, ao abrigo do art.º 13º do Decreto-Lei nº 409/71 de 27 de setembro”.
                                        Declarou, ainda, que “o referido trabalhador exerce as funções de Prospector Vendas, auferindo a retribuição mensal de Escudos: 198.300$00 de ordenado base, que foi fixado tendo em vista a isenção.”.
                                        Em março de 1998, a ré pagou ao autor a importância de 16.176$00, sob a rubrica “Compensação”.
                                        Que corresponde a “retroativos” de janeiro e fevereiro (diferença de 198.300$00 para 190.212$00 = 8.088$00 x 2 meses = 16.176$00).
                                         O autor deu o seu acordo à isenção de horário de trabalho nos termos requeridos.
                                        O requerimento referido mereceu do Sr. Delegado despacho, exarado em 27 de abril de 1998, do seguinte teor: “Deferido por dois anos”.
                                        No período que decorreu de 27 de abril de 1998 a 27 de abril de 2000, a ré não pagou ao autor qualquer importância a título de retribuição especial por isenção de horário de trabalho.
                                        A ré, em 27 de novembro de 2001, fez dar entrada, na delegação do IDICT de S. João da Madeira, de um requerimento datado de 18 de setembro de 2001.
                                        Nesse documento a ré pediu “isenção do horário de trabalho para o seu colaborador AA, que conduz a viatura marca ..., matrícula -SE, ao abrigo do art.º 13º do Decreto-Lei nº 409/71 de 27 de setembro”.
                                        Declarou, ainda, que “o referido trabalhador exerce as funções de Prospector Vendas, auferindo a retribuição mensal de Escudos: 218.000$00 de ordenado base, que foi fixado tendo em vista a isenção.”
                                        A retribuição base mensal de 218.000$00 vinha já sendo paga pela ré desde janeiro de 2001
                                        O requerimento referido mereceu o seguinte despacho do Sr. Delegado da IGT, exarado em 4 de dezembro de 2001 “Deferido por um ano”.
                                         O autor deu o seu acordo à isenção de horário de trabalho nos termos requeridos.
                                        No período que decorreu de 4 de dezembro de 2001 a 4 de dezembro de 2002, a ré não pagou ao autor qualquer importância a título de retribuição especial por isenção de horário de trabalho.
                                        A ré, em 9 de dezembro de 2002, fez dar entrada na Delegação do IDICT, em S. João da Madeira, de um requerimento datado de 3 do mesmo mês e ano.
                                        Nesse documento a ré pediu “isenção do horário de trabalho para o seu colaborador AA, que conduz a viatura marca ..., matrícula -SE, ao abrigo do art.º 13º do Decreto-Lei nº 409/71 de 27 de setembro”.
                                        Declarou, ainda, que “o referido trabalhador exerce as funções de Prospector Vendas, auferindo a retribuição mensal de Euros 1.111,28 de ordenado base, que foi fixado tendo em vista a isenção.”.
                                        A retribuição base mensal de € 1.111,28 já vinha sendo paga ao autor desde maio de 2002.
                                         O autor deu o seu acordo à isenção de horário de trabalho nos termos requeridos.
                                        O requerimento referido mereceu do Sr. Delegado despacho, exarado em 16 de dezembro de 2002, do teor seguinte: “Deferido por 04 anos”.
                                         No período que decorreu de 16 de dezembro de 2002 a 16 de Dezembro de 2006, a ré não pagou ao autor qualquer importância a título de retribuição especial por isenção de horário de trabalho.
                                         As cópias dos documentos indicados foram, posteriormente às datas constantes dos despachos que deles constam, entregues ao autor, com a expressa determinação de que os devia trazer sempre consigo, para exibição às autoridades com competência para fiscalização dos horários de trabalho.
                                        O autor dispunha de uma viatura automóvel da ré que utilizava ao serviço desta, para visitar clientes, para se deslocar entre a sua residência e a empresa e para a sua vida particular, incluindo fins de semana e períodos pós-laborais, para as suas deslocações com a família, com combustível, seguro e portagens pagos pela ré.
                                        O autor trabalhava 5 dias por semana, de 2.ª a 6.ª feira.
                                    De acordo com as instruções da ré, a rotina semanal de trabalho do autor era de 4 dias no exterior, para visitas comerciais, vendas e acompanhamento de clientes e um dia nos escritórios da ré destinado a elaborar relatórios da semana anterior e a reuniões de coordenação comercial.
                                     Desde o início do segundo semestre de 2013 até à cessação do contrato de trabalho, por instruções da ré, devido à redução das suas vendas, o autor passou a trabalhar, cerca de três semanas por mês, os cinco dias por semana nos escritórios sede da ré, cumprindo um horário das 9 horas às 18 horas, com intervalo para almoço entre as 12 horas e 30 minutos e as 14 horas.
                                        Nos dias em que realizava trabalho comercial de visitas e vendas diretas a clientes, no exterior das instalações da ré, era o autor quem definia os clientes que iria visitar.
                                        Quando precisava de faltar ou ausentar-se do trabalho o autor dava justificação ao seu superior hierárquico.
                                         Por volta de 1997 a GNR exigia os horários de trabalho ou um documento comprovativo da isenção de horário de trabalho.
                                        Os requerimentos de isenção de horário de trabalho referidos identificam o veículo conduzido pelo autor.
                                        A ré apenas concedeu ao autor 3 horas de formação profissional em 2007, 7 horas em 2008, 1 hora em 2009 e 2 horas em 2011.
                                        No ano de 2005, a ré pagou ao autor a retribuição base mensal de € 1.178,13.
                                        No ano de 2006, a ré pagou ao autor a retribuição base mensal de € 1.304,00.
                                        No ano de 2007, a ré pagou ao autor a retribuição base mensal de € 1.336,50.
                      No ano de 2008, a ré pagou ao autor a retribuição base mensal de € 1.370,00.
                      No ano de 2009, a ré pagou ao autor a retribuição base mensal de € 1.370,00.
                      No ano de 2010, a ré pagou ao autor a retribuição base mensal de € 1.390,50.
                      No ano de 2011, a ré pagou ao autor a retribuição base mensal de € 1.390,50.
                      No ano de 2012, a ré pagou ao autor a retribuição base mensal de € 1.390,50.
                      No ano de 2013, a ré pagou ao autor a retribuição base mensal de € 1.390,50.
                                        No ano de 2014, a ré pagou ao autor a retribuição base mensal de € 1.390,50.
                                        O autor, por mando da ré, recebia cheques de clientes correspondentes aos valores das transações que o autor promovia.
                                        Após o recebimento destes cheques, o autor entregava-as nos escritórios da ré.
                                        A ré nunca pagou ao autor qualquer quantia, a título de abono para falhas.
                                        Desde 1979 que a ré tem um departamento de cobranças que promove as cobranças junto de clientes destas com as competências de elaboração das listas de faturas vencidas e de dívidas de natureza comercial e outras, elaboração de acordos de pagamento, negociação das condições de pagamento das faturas vencidas, registo dos recebimentos, cobrança de valores a clientes e emissão dos respetivos recibos.
                                         O autor nunca pertenceu a este departamento.
                                        O autor recebia cheques e entregava-os na secção de cobranças da ré para poder registar novas encomendas por o cliente ter o seu plafond esgotado, não podendo encomendar sem pagar faturas vencidas e para garantir o recebimento pela ré e atingir os objetivos de cobranças de modo a auferir uma comissão.
                                         A maioria dos pagamentos eram feitos diretamente à ré.
                                        A estrutura da remuneração do autor, ao longo do tempo, foi a seguinte: salário base, subsídio de alimentação e dois prémios, um que correspondia a cerca de 10% do salário base [mais concretamente correspondia a 10% do salário base e do subsídio de alimentação] e que era pago, sob diferentes nomenclatura, mais concretamente prémio de produtividade, prémio de produção, prémio de desempenho e prémio de assiduidade destinado a premiar o desempenho, assiduidade e cumprimento das regras da empresa, podendo ser cortado pelas chefias; e outro relativo a comissões sobre vendas e/ou cobranças que assumiu os nomes de complemento de remuneração, objetivos de vendas, objetivos de cobranças objetivos de vendas e cobranças e prémio de objetivos de vendas e cobranças que se traduzia em comissões por vendas e/ou cobranças.
                                        Em dezembro de 1997, a ré pagava ao autor a retribuição base mensal de 190.212$00.
                                         […].”


                      XI

                                         - Do direito:

                      A isenção do horário de trabalho, cuja retribuição foi peticionada pelo falecido Autor, decorreu de 14 de fevereiro de 1997 a 16 de dezembro de 2006.

                      Em 1997 vigorava o Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de novembro de 1969 [LCT].

                      Ora, a LCT autonomizou a figura da isenção do horário de trabalho e adotou essa designação genérica para posterior legislação.

                                      Com efeito, nos seus artigos 49º e 50º, referia-se ao horário de trabalho e à sua isenção, nos seguintes termos:

                                                    Quanto ao horário de trabalho dizia que competia à empregadora estabelecer o horário de trabalho dentro dos condicionalismos legais.

                                     Quanto à sua isenção estabelecia que os trabalhadores isentos de horário de trabalho, nas condições a estabelecer na respetiva legislação, tinham direito, em regra, a retribuição especial, nunca será inferior à remuneração correspondente a uma hora de trabalho extraordinário por dia, sempre que a isenção implicasse a possibilidade de prestação do trabalho para além do período normal de trabalho.

                                   A isenção do horário de trabalho, veio a ser regulada mais tarde pelo Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de setembro.

                                     Segundo o seu artigo 11º, n.ºs 1 e 2, "horário de trabalho" consistia na determinação, pelo empregador, para cada trabalhador, das horas do início e do termo do período de trabalho diário, bem como dos intervalos de descanso, dentro dos limites do período de funcionamento dos estabelecimentos comerciais e industriais.

                                  Contudo, podiam ser isentos de horário de trabalho, mediante requerimento das entidades empregadoras, os trabalhadores cujo exercício regular da atividade ocorresse fora do estabelecimento, sem controlo imediato da hierarquia – artigo 13, n.º 1, alínea c), da LDT.

                                  Esses requerimentos, dirigidos à IGT/IDICT deviam ser acompanhados da declaração de concordância dos trabalhadores, bem como dos documentos que fossem necessários para comprovar os factos alegados – artigo 13º, n.º 2.

                                  Dispunha, por sua vez, o artigo 14º, n.º 2, que na falta de disposições incluídas nos instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, os trabalhadores isentos de horário de trabalho tinham direito a uma retribuição especial, que não seria inferior à remuneração correspondente a uma hora de trabalho extraordinário por dia.

                      Por fim, o artigo 15º, da LDT, estabelecia que os trabalhadores isentos de horário de trabalho não estavam sujeitos aos limites máximos dos períodos normais de trabalho, mas a isenção não prejudicava o direito aos dias de descanso semanal, aos feriados obrigatórios.

                      ~~~~~~~

                      Ora, a LDT foi revogada pelo artigo 2º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto, que aprovou o Código do Trabalho de 2003, e o trabalho aqui em causa foi prestado, como sobredito, de 14 de fevereiro de 1997 a 16 de dezembro de 2006.

                      Acresce que em 1 de dezembro de 2003, entrou em vigor o Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto.

                      Quanto à aplicação da lei no tempo, estipulava o artigo 6º, n.º 1, da Lei n.º 99/2003, que ficavam sujeitos ao regime do Código do Trabalho os contratos de trabalho e os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho celebrados ou aprovados antes da sua entrada em vigor, salvo quanto às condições de validade e aos efeitos de facto ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento (n.º 1), ou seja, anteriormente a 1 de dezembro de 2003.

                                     

                                     Assim, à isenção do horário de trabalho prestado pelo falecido Autor, de 14 de fevereiro de 1997 a 16 de dezembro de 2006 é aplicável o regime decorrente do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de setembro [LDT], e não o do CT/2003 ou o do CT/2009, porque todos os requerimentos de pedido da sua autorização foram efetuados à IGT/IDICT, ao abrigo do seu artigo 13º, e porque o último pedido foi feito através de requerimento de 09.12.2002 e a respetiva autorização foi concedida, pelo período de 4 anos, por despacho de 16.12.2002 [data a partir da qual esta autorização produziu efeitos até 16.12.2006].

                      ~~~~~~

                                     Quer a LCT quer a LDT não definiam, diretamente, a isenção de horário de trabalho.

                                     Nas palavras de Menezes Cordeiro[4] “[d]a própria designação «isenção de horário» é de concluir que se trata duma situação que dispensa a prévia determinação das horas do início e do termo do período normal de trabalho diário, bem assim como dos intervalos de descanso”.

                                     Como diz António Nunes de Carvalho[5], a conclusão a que chegou Menezes Cordeiro "[é] retirada a partir da mera justaposição das expressões “isenção” que é lida como “dispensa”, e “horário de trabalho”, tomado a partir da sua noção legal. Ficam, contudo, na sombra duas interrogações fundamentais.

                                  Por um lado, a questão de saber a quem, e com que sentido, se reporta essa isenção (ou dispensa), aspeto crucial para se entender o exato conteúdo flexibilizador da figura e identificar os interesses que visa primacialmente tutelar

                           De outra parte, a designação suscita dúvidas quanto à precisa incidência da isenção, já que o seu regime, tanto o atual como o vigente antes de 2003, se refere tanto a horário de trabalho como ao período normal de trabalho.

                                   Era o que resultava do proémio do artigo 13º, n.º 1, e do artigo 15º, ambos da LDT.

                                  Com efeito, o empregador tinha a possibilidade de não sujeitar o trabalhador aos limites máximos dos períodos normais de trabalho, com dispensa de fixação de horário de trabalho, desde que houvesse a anuência do trabalhador e desde que a autoridade administrativa o autorizasse.

                                  Em termos de conteúdo, a isenção assumiu, nas suas diversas configurações normativas, um sentido duplo.

                                  António Nunes de Carvalho, diz que ela “[e]nvolve, por um lado, um acréscimo do poder patronal na gestão temporal da prestação através da dispensa da fixação de horário de trabalho. Por outro lado, está ainda associada, ainda que não necessariamente, a uma permissão de aproveitamento da prestação de trabalho para além do período normal.[6]” 

                                     Assim sendo, a isenção de horário de trabalho correspondia à isenção dos limites normais, à definição de horário de trabalho e à concretização da jornada de trabalho diária e semanal.

                                  Por outro lado, a LDT preservava, o direito do trabalhador isento de horário de trabalho aos dias de descanso semanal, obrigatório e complementar, aos feriados obrigatórios e aos dias de descanso previstos nos IRC’s, mas não limitava claramente o trabalho prestado nos dias úteis.

                                 

                                  Apesar do referido, o trabalhador isento de horário não ficava, durante os dias úteis, obrigado a um trabalho de duração incerta.

                                  Como ensinava António Monteiro Fernandes[7] “[n]a sua tradicional configuração – na lei anterior à codificação de 2003 (a LDT de 1971) -, a isenção de horário de trabalho obedecia a um modelo único. De acordo com esse modelo, ela traduzia-se na possibilidade (para o empregador) de utilização dos serviços do trabalhador, não só à margem de um definido esquema cronológico de prestação (horário), mas também independentemente dos «limites máximos dos períodos normais do trabalho».

                                     A isenção só não abrangia os dias de descanso semanal nem os feriados; se o trabalhador «isento» fosse chamado a prestar a sua atividade nesses dias, deveria auferir as compensações correspondentes (artigos 41º e 42º, da LDT).”

                                     Este entendimento veio a ser consagrado no artigo 2º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 421/83, de 02 de dezembro [Lei do Trabalho Suplementar - LTS], ao dispor que não se compreendia na noção de trabalho suplementar o trabalho prestado por trabalhadores isentos de horário de trabalho em dia normal de trabalho.

                                   Neste sentido foi fixada jurisprudência pelo acórdão n.º 6/2012, de 23.05.2012, proferido no processo n.º 407/08.5TTMTS.P1.S1, e publicado no DR n.º 121/2012, Série I, de 2012.06.25, páginas 3197-3211.
                      - “Ao trabalhador isento de horário de trabalho, na modalidade de isenção total, não é devido o pagamento de trabalho suplementar em dia normal de trabalho, conforme resulta dos artigos 17.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de setembro, e 197.º, n.º 4, alínea a), do Código do Trabalho de 2003, mesmo que ultrapasse os limites legais diários ou anuais estabelecidos nos artigos 5.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Decreto-Lei n.º 421/83, de 2 de dezembro, e 200.º, n.º 1, alíneas a) a c), do Código do Trabalho de 2003, após a entrada em vigor deste diploma”.

                      ~~~~~~

                                    

                                    Ora, o acórdão recorrido aplicou, ao caso em apreço, o regime da “isenção de horário de trabalho” do Código do Trabalho de 2009, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro.

                                         Refere o mesmo que “a lei laboral distingue, com clareza, “tempo de trabalho”, “período normal de trabalho” e “horário de trabalho” – cf. artigos 197.º, 198.º e 200.º, prospectivamente, do CT/2009. A isenção de horário de trabalho reporta apenas ao “horário de trabalho”, isto é, às “horas de início e termo” e não também ao “período normal de trabalho diário”, que se mantem inalterado.

                                        Ora, sobre o “horário de trabalho” apenas resulta provado que, a partir do 2.º semestre de 2013 até à cessação do contrato de trabalho (em 6 de novembro de 2014), o autor passou a cumprir o horário das 9.00 às 18.00 horas, com intervalo de almoço das 12.30 às 14.00 horas.
                                         Isto para concluir, que o autor não alegou, nem provou, que, efetivamente, tal como acordara com a ré, desempenhou, nos anos por si peticionados, a sua atividade com efetiva dispensa de cumprimento das horas do início e do termo do período normal do trabalho diário, bem assim como dos intervalos de descanso.”
                                         
                                        Contudo, como sobredito, a isenção do horário de trabalho prestado, pelo falecido Autor, de 14 de fevereiro de 1997 a 16 de dezembro de 2006 está sujeita ao regime do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de setembro.

                                     

                                     Ora, resultava da LDT, que o empregador tinha a possibilidade de não sujeitar o trabalhador aos limites máximos dos períodos normais de trabalho, com dispensa de fixação de horário de trabalho diário.

                                     

                                     Havendo esta dispensa, ou seja, não existindo horário de trabalho diário fixado também inexistia período normal do trabalho diário.

                                     

                                     Neste sentido decidiu o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 19.12.2007, e proferido no processo n.º 07S1931[8].
                                      Diz o seu sumário:


                      III. A resposta a um quesito, que o autor se encontrava «sujeito ao regime de isenção de horário de trabalho», no sentido de que o autor prestava o seu trabalho sem que se encontrasse submetido a um regime de horário de trabalho, traduz um juízo de facto, uma constatação dos acontecimentos da vida real, cuja existência pode ser constatada e afirmada.
                      IV. Face ao princípio da economia processual e do máximo aproveitamento dos atos praticados, cabe ao Supremo tomar em consideração, para efeitos da decisão de mérito, os factos que estão plenamente provados no processo, designadamente por documentos (artigos 659.º, n.º 3, 713.º, n.º 2 e 726.º do CPC).
                      V. Assim, tendo a ré, em contestação, junto documentos demonstrativos de que requereu à IGT a concessão de isenção de horário para o autor, que este deu a sua concordância e que a IGT deferiu o pedido, e o autor, em resposta a esse articulado, impugnado os efeitos pretendidos com os aludidos documentos, mas já não o seu teor, deve o Supremo consignar nos autos a materialidade dos documentos e atender à mesma na decisão de mérito.
                      VI. Verificando-se que a entidade patronal requereu à IGT autorização para o autor exercer a atividade em regime de isenção de horário de trabalho, por desempenhar funções de direção, confiança e fiscalização, e o autor deu a sua concordância, a invocação feita por este, na ação intentada, de que não exercia essa funções, traduz uma violação do dever de lealdade a que o trabalhador se encontra vinculado, seja na formação, seja na execução do contrato, suscetível de o fazer incorrer em abuso de direito, ao peticionar o pagamento de trabalho suplementar por invalidade do regime de isenção de horário de trabalho, com aquele fundamento.

                                     

                      ~~~~~~

                                  Dado o exposto, e de acordo com o ónus da prova, ao trabalhador isento de horário de trabalho competia fazer prova de que exerceu a sua atividade sob o regime de isenção de horário de trabalho, por serem factos constitutivos do direito pior si invocado, ao passo que ao empregador competia fazer prova de que lhe pagou a remuneração correspondente a esse regime – artigo 342º, nºs 1 e 2, do Código Civil.

                      ~~~~~~~~~~

                                      No caso concreto provou-se que:


                                     - A Ré admitiu, com efeitos a partir de 04 de fevereiro de 1991, ao seu serviço o autor para exercer a sua atividade sob as suas ordens, direção e fiscalização, e, passados cerca de três anos, começou a exercer funções ajustadas à categoria profissional de “Prospector de Vendas”, sendo que tal categoria profissional foi mantida até que, em 6 de novembro de 2014, ambos subscreveram um acordo de cessação do contrato de trabalho;
                                     - O autor, nessas funções, procedia à verificação das possibilidades do mercado, promovendo a venda dos produtos produzidos pela ré junto do canal composto pelos estabelecimentos do sector de armazenagem tradicional do mercado continental português, visitando, para tanto, os potenciais clientes, em viaturas automóveis da ré;

                                    - A ré estabeleceu-lhe um horário de trabalho de 40 horas semanais, de segunda a sexta-feira, com descanso semanal obrigatório ao domingo e descanso semanal complementar ao sábado:

                                     - Com datas de 27 de janeiro de 1997, 20 de abril de 1998, 27 de novembro de 2001 e 09 de dezembro de 2002, a Ré fez dar entrada na IGT/IDICT, nos termos do artigo 13º, do Decreto-Lei n.º 409/71, de 27 de setembro, requerimentos em que solicitava a “isenção de horário de trabalho” para o seu trabalhador AA, o falecido Autor, que exercia as funções de “Prospector de Vendas” e que conduzia uma sua viatura, que identificou em cada requerimento:

                                     - O falecido Autor deu, nos quatro requerimentos, o seu acordo à isenção nos termos requeridos e por despachos datados, respetivamente, de 14.02.1997, de 27.04.1998, de 04.12.2001 e de 16.12.2002, do Delegado da IGT/IDICT foram deferidos, o primeiro e o segundo pelo período de 2 anos, o terceiro pelo período de 1 ano e o quarto por um período de 4 anos;

                                      - As cópias dos documentos indicados foram, posteriormente às datas constantes dos despachos que deles constam, entregues ao autor, com a expressa determinação de que os devia trazer sempre consigo, para exibição às autoridades com competência para fiscalização dos horários de trabalho.

                                     - O autor dispunha de uma viatura automóvel da ré que utilizava ao serviço desta, para visitar clientes, para se deslocar entre a sua residência e a empresa, trabalhava 5 dias por semana, de 2.ª a 6.ª feira, sendo que de acordo com as instruções da ré, a rotina semanal de trabalho do autor era de 4 dias no exterior, para visitas comerciais, vendas e acompanhamento de clientes e um dia nos escritórios da ré destinado a elaborar relatórios da semana anterior e a reuniões de coordenação comercial.

                                  Provou, pois, o falecido Autor, que no período de 1 de fevereiro de 1997 a 16 de dezembro de 2006, prestou a sua atividade para a Ré em regime de isenção de horário de trabalho.

                                  Por sua vez, da factualidade provada resulta que a Ré não provou, como lhe competia, que pagou ao falecido Autor a retribuição especial a que ele tinha direito, não inferior à remuneração correspondente a uma hora de trabalho extraordinário por dia.

                      XIII

                                - Da litigância de má-fé por parte do falecido Autor:

                                Na apelação, a Ré já havia pedido a condenação do falecido Autor como litigante de má-fé.
                                   Decidiu-se o seguinte no acórdão recorrido:

                                   “A recorrente invoca a litigância de má-fé do autor, uma vez que “formulou pedido de pagamento a uma quantia a que bem sabe não ter direito, por não ter sido para esse fim que lhe foram entregues os documentos que agora invoca como suporte desse seu pedido-

                                  Apreciando, dir-se-á que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões já proferidas que incidam sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e não criá-las sobre matéria nova, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas, salvo aquelas que são de conhecimento oficioso.

                                   Trata-se de uma decorrência do incumprimento do ónus de invocar nas peças processuais os fundamentos da ação e da defesa (artigo 147.º do CPC), expressão dos princípios da concentração da defesa e da preclusão estabelecidos (artigo 573.º, n.º 1, do CPC).

                                  A litigância de má-fé pela dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento a parte não devia ignorar integra uma das previsões da litigância de má-fé (artigo 542.º, n.º 1 e 2 do CPC).

                                   Trata-se de má-fé substancial (Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, I vol., pp. 318), a qual, segundo o Prof. Alberto dos Reis “diz respeito ao fundo da causa, ou melhor, à relação jurídica material ou de direito substantivo (…) o litigante usa de dolo ou má-fé para obter decisão de mérito que não corresponde à verdade e à justiça (…)”.

                                 (Cf. Cód. Proc. Civil Anotado, vol. II, 3.ª edição, reimpressão, pág. 263).

                                  Assim, suscitada pela recorrente nas suas alegações de recurso, a mesma apenas se poderá configurar relativamente à pretensão deduzida em 1.ª instância, onde a questão da litigância de má-fé não foi suscitada.

                                   Deste modo, tratando-se, como se trata, de questão nova, dela não se conhece.”
                      ~~~~~~
                                   Ora, nas suas contra-alegações repete tal pretensão.

                                   Diz ela:
                      - “De acordo com a conclusão precedente, o A. formulou pedido de pagamento a uma quantia a que bem sabe não ter direito, por não ter sido para esse fim que lhe foram entregues os documentos que agora invoca como suporte desse seu pedido,
                      - O que ditará a improcedência desse pedido e a condenação dele como litigante de má-fé”.
                                       Tendo em conta o decidido no acórdão recorrido e que dessa parte não foi interposto recurso, transitou ela em julgado.
                                                  Assim, não se pode, agora, conhecer dessa questão.

                      XIV

                                     - Deliberação:


                      1. Indeferir a reclamação apresentada e manter o despacho singular reclamado.
                      2. Conceder a revista e, em consequência, revogar, parcialmente o acórdão recorrido, e repristinar a sentença da 1ª instância na parte em que condenou a Ré a pagar ao Autor ”a importância de € 41.995,41, a título de retribuição especial por isenção de horário de trabalho acrescida de juros de mora desde o último dia de cada um dos meses a que tais prestações se reportam”.
                      3. Não conhecer do pedido efetuado pela Ré de condenação do Autor como litigante de má-fé.
                      4. Custas da revista pela Ré e da apelação por ambas as partes, na proporção do seu decaimento.
                      5. Custa da reclamação e do incidente pela Ré

                      ~~~~~~~~

                      Lisboa, 2018.05.16

                      Ferreira Pinto (Relator)

                      Chambel Mourisco

                      Pinto Hespanhol

                      ____________________
                      [1] - FP – CM/PH
                      [2] - Relatório elaborado com base no da sentença e no do acórdão recorrido.
                      [3] - Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, página 485.
                      [4] - Isenção de Horário de Trabalho, Subsídios para a dogmática atual do direito da duração do trabalho, Coimbra, Almedina, 2000, página 83.
                      [5] - Isenção de horário de trabalho – Alguns problemas, Estudos APODIT 4, AAFDL Editora, página 187.
                      [6] - Obra citada, página 192.
                      [7] - Direito do Trabalho, 15ª edição, Almedina, página 388.
                      [8]-http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c43e78c6138cad9e802573ec003400c6?OpenDocument7.