Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1210/11.0TYVNG-D.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
CULPA
SINAL
UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
CONSUMIDOR
Data do Acordão: 09/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / ANTECIPAÇÃO DO CUMPRIMENTO / SINAL.
DIREITO FALIMENTAR – EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE OS NEGÓCIOS EM CURSO.
Doutrina:
- Ana Prata, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, p. 312 e 320;
- Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3.ª Edição, p. 472 e 473;
- Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, p. 234 a 238;
- Gisela César, Os Efeitos da Declaração de Insolvência Sobre o Contrato-Promessa em Curso, p. 203;
- Gravato Morais, Cadernos de Direito Privado, n.º 29, p. 3 e ss.;
- Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª Edição, p. 187;
- Pestana de Vasconcelos, Cadernos de Direito Privado, n.ºs 24 e 33, p. 3 e ss e 43 e ss.;
- Pinto Oliveira e Catarina Serra, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 70, p. 399 e ss.;
- Pinto Oliveira, Cadernos de Direito Privado, n.º 36, p. 3 e ss.;
- Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª Edição, p. 186 e 190;
- Vaz Serra, RLJ, Ano 114, p. 178.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 442.º, N.º 2.
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 102.º, N.º 3, ALÍNEA C), 104.º, N.º 5 E 106.º, N.º 2.
CÓDIGO DOS PROCESSOS ESPECIAIS DE RECUPERAÇÃO DA EMPRESA E FALÊNCIA (CPEREF): - ARTIGO 164.º-A.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/2014, DE 20-03-2014;
- DE 03-06-1999, IN CJSTJ, TOMO II, P. 136;
- DE 14-06-2011, PROCESSO N.º 6132/08.OTBBRG-J.G1.S1;
- DE 17-06-2014, RELATOR FERNANDES DO VALE, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 13-07-2017, PROCESSO N.º 1594/14.9TJVNF.2.G1.S2, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:


- DE 14-12-2010, PROCESSO N.º 6132/08.0TBBRG-J.G1.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


- DE 18-10-2011, PROCESSO N.º 259/09.8TBNLS-E.C1;
- DE 06-11-2012, PROCESSO N.º 729/09.8T2AVR-B.C1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


- DE 13-12-2012, PROCESSO N.º 1092/10.0TBLSD-G.P1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - A opção do administrador da insolvência pelo não cumprimento da promessa de venda feita pelo insolvente, dotada de eficácia meramente obrigacional, constituiu um ato lícito e não culposo.

II - Sendo assim, não é adequado trazer à discussão o n.º 2 do art. 442.º do CC (seja por aplicação direta seja por analogia), pois que a atuação do regime do sinal ali prevista pressupõe um incumprimento definitivo, ilícito e culposo dos próprios contratantes (anteriormente à declaração da insolvência), não se podendo fazer equivaler a opção lícita de não cumprimento do administrador da insolvência a esse incumprimento ilícito e culposo.

III - O direito do credor promissário deve ser encontrado exclusivamente no CIRE, nos termos das disposições conjugadas dos respetivos arts. 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5 e 102.º, n.º 3, al. c)..

IV - O AUJ n.º 4/2014 não decidiu, pois que não era essa a questão fundamental de direito a que foi chamado a pronunciar-se, sobre a questão de saber se, recusada a celebração do contrato-promessa pelo administrador da insolvência, o credor promissário tem direito a ver reconhecido na insolvência o dobro do que prestou a título de sinal.

V - O conceito de consumidor não foi objecto de uniformização no AUJ n.º 4/2014.

VI - É consumidor aquele que adquirir bens ou serviços para satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso privado) e para outros fins que não se integrem numa atividade económica levada a cabo de forma continuada, regular e estável.

VII - Tendo a Relação decidido, bem ou mal não importa, que o pagamento do preço da prometida venda estava plenamente provado por confissão da promitente-vendedora exarada no documento que formalizou o contrato-promessa, e não tendo essa decisão sido em si mesma impugnada no recurso de revista, não pode o Supremo ocupar-se da questão.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA e mulher BB intentaram (pelo Tribunal do Comércio de ... e por apenso aos autos de insolvência de CC, Lda.), ao abrigo do disposto no artigo 146º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), ação de verificação ulterior de créditos contra:

- A Insolvente CC, Lda.,

- A Massa Insolvente de CC, Lda. e,

- Os Credores da massa insolvente,

Peticionando:

a) Que seja declarado resolvido o contrato-promessa a que aludem, por culpa da Insolvente;

b) Que seja considerado e reconhecido o crédito que detêm sobre a Insolvente no montante de 119.711,50 euros;

Se assim não se entender:

c) Que seja reconhecido o seu crédito correspondente ao valor do preço pago pela fração prometida vender, no montante de 59.855,75 euros, acrescido de juros de mora à taxa legal, desde 1 de Março de 2000 e até 15 de Maio de 2012, os quais ascendem ao montante de 34.918,13 euros;

d) Que seja reconhecido o direito de retenção, devendo, em virtude disso, o seu crédito ser qualificado e graduado como crédito garantido, precedendo os créditos que beneficiem de hipoteca.

Alegaram para o efeito, em síntese, que celebraram com CC, Lda., esta como promitente-vendedora, o contrato-promessa a que aludem, tendo logo sido pago, como consta declarado no escrito que formalizou o contrato, o preço da prometida venda (12.000.000$00, correspondentes agora a €59.855,75).

Posteriormente foi-lhes traditada a fração prometida vender, de que passaram a dispor como coisa sua.

Declarada que foi a insolvência da promitente-vendedora, o Administrador da Insolvência optou por não cumprir o contrato.

Têm assim direito a que a massa insolvente lhes pague as aludidas quantias, gozando do direito de retenção da fração como garantia desse pagamento.

Contestaram a Massa Insolvente (através do Administrador da Insolvência) e a Credora DD, S.A., concluindo pela improcedência da ação.

Entre o mais que sustentaram, puseram em causa o aludido pagamento do preço da venda e a existência de direito de retenção.

Seguindo a ação seus termos, veio, a final a ser proferida sentença que julgou improcedente a ação.

Inconformados, apelaram os Autores.

Fizeram-no com parcial êxito, pois que a Relação do Porto, mantendo a improcedência dos pedidos de resolução do contrato-promessa e de reconhecimento do crédito de €119.711,50, reconheceu todavia aos Autores um crédito no montante de €59.855,75, bem como o direito de retenção sobre a fração prometida vender.

Inconformados com o assim decidido, pedem revista os Autores e a Credora DD, S.A.

Da respetiva alegação extraem os Autores as seguintes conclusões:

I. Em 20 de março de 20018, os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordaram

“(...) em reconhecer aos autores como privilegiado o crédito no montante de 59.855,75 euros (cinquenta e nove mil oitocentos e cinquenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos) por gozar de direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pelas letras “AR”, descrita na Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., com o número ..., com prevalência sobre créditos com garantia hipotecaria anterior, revogando, assim, a decisão recorrida”.

II. O presente recurso tem como objeto o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, na parte em que reconheceu os Recorrentes como credores de apenas Eur. 59.855,75 (cinquenta e nove mil oitocentos e cinquenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos) - correspondente ao valor do sinal por estes entregue à CC, Lda. - agora Insolvente e Recorrida - aquando da celebração do contrato promessa de compra e venda da acima identificada fracção autónoma “AR” - e já não, como peticionado, do valor de Eur. 119.711,50 (cento e dezanove mil setecentos e onze euros e cinquenta cêntimos) - correspondente ao dobro daquele sinal.

III. Ao decidir como decidiu, o douto Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 104.º, 106.º e 102.º do CIRE, e 442.º, número 2, do Código Civil.

IV. Sendo certo que o douto Acórdão está, naquela mesmíssima parte, em contradição com o teor do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014, o que só por si legitimaria, nos termos do disposto no artigo 629.º, número 2, alínea c), do CPC, a interposição do presente recurso.

V. Após reconhecer, de um turno, que os Recorrentes entregaram à CC, Lda. - agora Insolvente e Recorrida - o valor de Eur. 59.588,75, correspondente à totalidade do preço acordado no contrato-promessa, e, de outro, que o contrato-promessa de compra e venda foi incumprido, o douto Acórdão recorrido defende o entendimento de que

“O cumprimento ou a recusa [do contrato promessa] é assim da competência do Administrador da insolvência atento o disposto no artigo 106 do ClRE (...).

Do número um do preceito transcrito - a contrario sensu - sobressai com clarividência, que, tratando-se de um contrato com eficácia meramente obrigacional como o caso dos autos, cabe ao administrador decidir entre o cumprimento e o não cumprimento da outorga do contrato pendente à data da insolvência.

Incumprimento que aconteceu tal como decorre da contestação apresentada pelo Sr. Administrador onde expressamente refere que "optou pelo não cumprimento do contrato promessa - artigo 33 da contestação -, o qual por ser da sua exclusiva competência não pode ser sindicado no âmbito da reclamação de créditos - Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 05-11-2003, relatado pela Desembargadora Rosa Ribeiro Coelho, disponível em DGSI”.

VI. Os Recorrentes não concordam e não podem conformar-se com o entendimento do Tribunal da Relação do Porto defendido no douto Acórdão recorrido e, logo, com a decisão dele decorrente, que violou, simultaneamente, os artigos 104.º e 106.º do CIRE e 442.º do Código Civil.

VII. O artigo 102.º do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE) consagra o princípio regra quanto aos negócios que, à data da declaração de insolvência, ainda não tenham sido cumpridos, referindo o número 1 que “[s]em prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento”.

VIII. Por referência aos contratos promessa, o artigo 106.º do CIRE estabelece que:

“1- No caso de insolvência do promitente vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador.

2 - À recusa de cumprimento de contrato-promessa de compra e venda pelo administrador é aplicável o disposto no n.º 5 do artigo 104.º, com as necessárias adaptações, quer a insolvência respeite ao promitente-comprador quer ao promitente-vendedor.”

IX. Já o número 5 do artigo 104.º para o qual o número 2 do artigo 106.º remete estatui, relativamente aos contratos de compra e venda com reserva de propriedade e operações semelhantes, que

“os efeitos da recusa de cumprimento pelo administrador, quando admissível, são os previstos no n.º 3 do artigo 102.º, entendendo-se que o direito consignado na respectiva alínea c) tem por objecto o pagamento, como crédito sobre a insolvência, da diferença, se positiva, entre o montante das prestações ou rendas previstas até final do contrato, actualizadas para a data da declaração de insolvência por aplicação do estabelecido no n.º 2 do artigo 91.º, e o valor da coisa na data da recusa, se a outra parte for o vendedor ou locador, ou da diferença, se positiva, entre este último valor e aquele montante, caso ela seja o comprador ou o locatário”.

X. Do número 1 dos artigos 102.º e 104.º do CIRE conclui o douto Acórdão recorrido que, no caso de um contrato promessa com eficácia meramente obrigacional que ainda não haja sido cumprido à data da declaração de insolvência, cabe ao administrador optar pelo cumprimento ou não cumprimento do contrato.

XI. E defende [o douto Acórdão recorrido] que a decisão do administrador de insolvência de não cumprir o contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional, e ainda que haja tradição da coisa - como no caso dos presentes autos - é uma decisão que não consubstancia incumprimento do contrato-promessa nos termos e para os efeitos do disposto no número 2 do artigo 442.º do Código Civil.

XII. Ao contrário do que resulta do douto Acórdão recorrido, o regime previsto no CIRE relativo às consequências do incumprimento do contrato promessa por decisão do administrador de insolvência não se aplica ao contrato promessa, ainda que com eficácia meramente obrigacional, em que tenha havido tradição da coisa a favor do promitente comprador.

XIII. Quando assim seja - como no caso dos presentes autos -, o promitente comprador beneficia do regime legal previsto no artigo 442.º, número 2, do Código Civil - i.e., do direito de exigir o dobro do que houver prestado -, para além do direito de retenção consagrado na alínea f) do número 1 do artigo 755.º do Código Civil, devendo entender-se que o incumprimento é imputável ao insolvente.

XIV. I.e., no referido caso não é aplicável o regime previsto no CIRE para os casos de incumprimento do contrato promessa com eficácia meramente obrigacional.

XV. É certo que o artigo 106.º, número 2, do CIRE manda aplicar às situações de incumprimento de contratos-promessa com eficácia meramente obrigacional o disposto no número 5 do artigo l04.º, “(...) com as necessárias adaptações”.

XVI. No entanto, o número 5 do artigo l04.º do CIRE regula as consequências do incumprimento do contrato de venda com reserva de propriedade em que a coisa ainda não tenha sido entregue ao comprador.

XVII. Naqueloutras em que o tenha sido, aplica-se o disposto nos números 1 a 3 do mesmo preceito, donde resulta que o CIRE não prevê qualquer regime especial - i.e., diferente daquele previsto na lei civil geral, em concreto no artigo 442.º, número 2, do Código Civil - para os casos de incumprimento do contrato promessa sem eficácia real com traditio da coisa.

XVIII. E que, portanto, se lhe aplica a regra prevista no artigo 442.º, número 2, do Código Civil.

XIX. Esta, aliás, a solução prevista no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e Falência (CPEREF), entretanto revogado pela Lei n.º 53/2004, de 18 de março, que aprovou o ClRE.

XX. O artigo 164.º-A do CPEREF submetia o caso em apreço à tutela da lei civil e, portanto, ao regime do sinal previsto no artigo 442.º do Código Civil, o que reforça que, se o legislador quisesse ter regulado no CIRE as consequências da violação do contrato-promessa com eficácia obrigacional tê-lo-ia feito. O que manifestamente não fez!

XXI. O Exmo. Senhor Administrador de Insolvência tornou impossível o cumprimento do contrato-promessa celebrado com os Recorrentes.

XXII. É que, depois da declaração de insolvência, o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência decidiu, sem dar cumprimento ao disposto no artigo 102.º, número 1, do CIRE, e, portanto, sem declarar que optava pela execução ou recusa do cumprimento, vender, no dia 8 de julho de 2015, a fracção autónoma objeto do contrato promessa de compra e venda celebrado com os Recorrentes à empresa DD, Lda.

XXIII. Importa destacar que sobre esta mesmíssima matéria - e no sentido que se vem de defender - foi proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em vinte de março de 2014, o Acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2014, onde foi acordado que

[o] normativo que no CIRE trata desta matéria é o artigo 106.º esclarecendo no seu n.º 2 que “no caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador”. Em tal hipótese e caso o administrador não cumpra o contrato celebrando o contrato definitivo em conformidade, poderá o promitente-comprador lançar mão da execução específica de harmonia com o estatuído nos artigos 827.º, 830.º e 442.º n.º 3 todos do Código Civil.

No entanto, o artigo 106.º supracitado não menciona a situação relativamente vulgar em que o contrato-promessa, mau grado de natureza obrigacional, foi acompanhado de tradição da coisa para o promitente-comprador; é também o caso que aqui analisamos. Dúvidas não há, que não se verificando a tradição da coisa e tendo o contrato efeito meramente obrigacional, ao administrador cabe ponderar e decidir pelo cumprimento ou não cumprimento do mesmo; isto só não sucede caso alguma das partes tenha cumprido na íntegra a sua obrigação e havendo incumprimento definitivo. Contudo, havendo tradição da coisa, a norma não esclarece qual a consequência daí resultante; todavia tal omissão é ultrapassada fazendo apelo ao “lugar paralelo” resultante da conjugação dos artigos 106.º n.º 2 e 104.º .º 1 do CIRE (respeitante à venda com reserva de propriedade) aplicável no caso em análise, já que as razões determinantes do que ali vem exposto quanto ao que lá se regula (compra e venda a prestações) são idênticas às que aqui estão em causa. Subjacente a esta tomada de posição está a forte expectativa que a traditio criou no “promitente-comprador” quanto à solidez do vínculo. Cimentada esta confiança, e “corporizada” destarte a posse, existe, na prática, do lado do adquirente um verdadeiro animus de agir como possuidor, não já nomine alieno mas antes em nome próprio; a partir do momento em que o insolvente entregou as chaves dos prédios ao promitente-comprador, materializou a intenção de transferir para este os poderes sobre a coisa, faltando apenas legalizar uma situação de facto consolidada. Parificada tal situação com as hipóteses do efeito real dos contratos em termos de impedir a resolução respectiva, poderá assentar-se em que o incumprimento dá assim origem ao despoletar do “direito de retenção” a que se reporta o artigo 755.º n.º 1 alínea f) do Código Civil viabilizado pela interpretação a que acima fizemos referência no tocante ao artigo 106.º, pelo que assim sendo subsiste a preferência a que aludimos.

O Administrador não cumpriu o contrato, como é sabido (...)”

XXIV. Os acórdãos uniformizadores de jurisprudência, emanados do Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça têm um valor reforçado, impondo-se ao próprio Supremo Tribunal de Justiça, e constituindo motivo para a admissibilidade especial de recurso nos termos do disposto no artigo 629.º, número 2, alínea c), do CPC.

XXV. É, portanto, apodíctico que o douto Acórdão recorrido, decidindo que o crédito dos Recorrentes corresponde ao valor do sinal em singelo e não ao seu dobro, violou, simultaneamente, os artigos 104.º e 106.º do CIRE e o artigo 442.º, número 2, do Código Civil.

XXVI. Para a eventualidade de o argumentário vindo de apresentar não convencer, cumpre acrescentar que, no caso concreto dos presentes autos, os Recorrentes, logo no momento da celebração do contrato promessa de compra e venda, procederam ao pagamento de sinal de valor correspondente à totalidade do preço.

XXVII. O contrato de compra e venda prometido da fracção autónoma “AR” só não foi imediatamente celebrado foi o facto de o prédio onde esta se situa não ter licença de utilização, sem a qual não é possível celebrar validamente escrituras públicas de compra e venda de bens imóveis.

XXVIII. Os Recorrentes pagaram a totalidade do preço! Cumpriram a prestação a que estavam obrigados por força do contrato promessa de compra e venda.

XXIX. Assim sendo - como é! -, sempre se terá de concluir que, no limite, o Exmo. Senhor Administrador de Insolvência não podia recusar o cumprimento do contrato promessa de compra e venda.

XXX. E isto porque a regra prevista no artigo 102.º, número 1, do CIRE - regra geral para os negócios que, à data da declaração de insolvência, ainda não tenham sido cumpridos - estabelece que o administrador de insolvência apenas tem direito de optar pelo cumprimento ou pelo incumprimento do contrato bilateral quando ainda não tenha havido total cumprimento por uma ou pela outra parte.

XXXI. Não podendo, licitamente, optar pelo não cumprimento, a decisão do Administrador de Insolvência de vender a fracção autónoma “AR” a um terceiro e não aos Recorrentes não pode senão determinar a aplicação do regime previsto no artigo 442.º, número 2, do Código Civil, ficando a massa insolvente devedora dos Recorrentes de quantia equivalente ao dobro do sinal pago, i.e., de Eur. 119.711,50 (cento e dezanove mil setecentos e onze euros e cinquenta cêntimos).

XXXI (repetida). Ao decidir como decidiu, o douto Acórdão recorrido violou, pois, o artigo 102.º, número 1, do CIRE.

Terminam dizendo que «deve o douto Acórdão proferido ser revogado, proferindo-se decisão que reconheça aos Autores como privilegiado o crédito no montante de 119.711,50 euros (…) por gozar de direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pelas letras “AR”, descrita na Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., com o número …-AR, com prevalência sobre créditos com garantia hipotecária anterior.»

                                                           +

São as seguintes as conclusões que a Credora DD, S.A. extrai da sua alegação:

I - O presente recurso tem como objecto o douto Acórdão da Relação do Porto na parte em que reconheceu aos ora Recorridos, como credores, a quantia de €59.855,75, reconhecido como garantido pelo direito de retenção.

II - Decidindo como decidiu, salvo o devido respeito, o douto Acórdão não fez correta aplicação do direito, a que acresce que está em contradição com outros Acórdãos, no domínio da mesma legislação e que decidiu de forma diferente a mesma questão fundamental de direito, conforme se explicará adiante.

III - Comecemos pelo tema da quantia alegadamente paga pelos Recorridos - no ponto 4.2.1 do douto Acórdão recorrido é mencionado que “na sentença recorrida, após análise da figura jurídica do contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional com traditio com enquadramento do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2014, concluiu-se apenas pela disponibilidade da fracção autónoma por não se ter provado a entrega de qualquer quantia a título de sinal nem o preço estipulado no contrato-promessa”

IV - Contudo, tal afirmação não corresponde à verdade, pois o tribunal de 1ª instância não fez esse raciocínio; pelo contrário, após analisar a prova produzida em sede de julgamento e de ponderar a prova documental carreada para os autos, dividiu a sentença em dois temas: o pagamento do sinal e o enquadramento dos autores, ora Recorridos, como consumidores.

V - Ora, em relação ao primeiro tema, podemos constatar (na terceira página da motivação da sentença revogada) o seguinte, que se transcreve, por facilidade de exposição “No que concerne ao pagamento do preço, temos que, para além da declaração constante da cláusula 4.° do contrato promessa, não foi junto aos autos pelos autores, não obstante notificação expressa para o efeito, qualquer outro documento relativo ao meio de pagamento do preço.”

VI - A este propósito, importa lembrar o disposto no artigo 128.º do CIRE, de acordo com o qual “Dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham”.

VII - Do que resulta que a reclamação do crédito deve ser acompanhada dos documentos probatórios da existência do crédito, ainda que o mesmo esteja reconhecido por sentença, pelo que a alegada prova do crédito deve ser apresentada e valorada no processo de insolvência.

VIII - Ora, tal situação não se verificou no caso em apreço, pois os Recorridos nunca apresentaram qualquer prova, nem o mínimo indício de algum pagamento da quantia de $12.000.000,00 (doze milhões de escudos!), correspondente a € 59.855,75.

IX - Foi precisamente por não ser minimamente verosímil que alguém desembolse um montante tal avultado sem ficar com algum registo de pagamento, que a Juíza de 1ª instância considerou como não provado tal pagamento.

X - Na verdade, atenta a ausência de prova de pagamentos bem como da falta de testemunhas que pudessem atestar este pagamento, outra não poderia ter sido a decisão recorrida do não reconhecimento do crédito à Recorrente.

XI - Aqui chegados, cremos que é forçoso concluir que a decisão está bem fundamentada e que não se verifica nenhum erro notório na apreciação da prova, nem insuficiência de prova para a decisão de facto proferida.

XII - Por esse motivo, salvo o devido respeito por opinião contrária, não se vislumbra fundamento para que seja agora sindicada a boa ou má valoração da matéria de facto dada como provada, e que se discuta nessas condições, a valoração da prova produzida; pois tal seria impugnar a convicção do tribunal, olvidando-se o princípio da livre apreciação da prova e da imediação da prova.

XIII - A doutrina e jurisprudência têm entendido que a reapreciação da prova, na segunda instância, deverá limitar-se a controlar o processo da convicção decisório da primeira instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação da decisão.

XIV - Assim, na apreciação do recurso da matéria de facto, o Tribunal de segundo grau deverá apenas aferir se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si e, consequentemente, o Tribunal da Relação só poderá alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, de falta desse suporte.

XV - Ora, no caso em apreço, não há dúvidas que a decisão recorrida foi ponderada, fundamentada, justificada, fazendo referência expressa à valoração que atribuiu à prova documental e o motivo pelo qual não deu como provado os factos que os documentos juntos pretendiam provar bem como à prova testemunhal, discriminando o nome de cada umas das testemunhas ouvidas e a respectiva valoração que lhe deu.

XVI - Em suma, o tribunal formou a sua convicção quanto aos factos que resultaram provados com base na ponderação conjunta dos elementos de prova, documentais e testemunhais que lhe foram apresentados, por referência a cada facto que considerou provado, por seu turno conjugados com as regras da lógica, da experiência comum e do normal acontecer.

XVII - Assim, andou bem o tribunal a quo ao não reconhecer nenhum crédito aos Recorridos, confirmando, assim, a lista de créditos definitiva elaborado pela Sr. Administradora de Insolvência

XVIII - Importa destacar que sobre esta mesma matéria e - no sentido que se vem de defender - foi proferido Acórdão da Relação de Lisboa, no processo n.º 3854/09.1TBVCT.G 1: “Na verdade, a intromissão da Relação no domínio factual, quando da reapreciação da prova, cingir-se-á a uma intervenção “cirúrgica” no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo-se à sua correcção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação”.

XIX - Do enquadramento dos Recorridos no conceito de consumidores - A questão central do acórdão objecto do presente recurso prende-se com o enquadramento dos Recorridos, promitentes-compradores da fração autónoma designada pelas letras “AR” descrita na Conservatória de Registo Predial de ..., freguesia de ..., no conceito de consumidores, por forma a que lhes seja reconhecido o direito de retenção, nos termos do art. 755°, n° 1, al. f), do CC, com prevalência sobre o crédito da Recorrente, com garantia hipotecária anterior.

XX - O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014, de 20.03.2014, uniformizou jurisprudência nestes termos:

“No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.°, n.º 1, al. f) do Código Civil”.

XXI - Decorre deste segmento uniformizador que, no âmbito da graduação de créditos em insolvência, o promitente-comprador apenas goza do direito de retenção prevista no citado art. 755°, n.º 1, al. f), do CC se tiver a qualidade de consumidor.

XXII - Nos termos do art. 2.°, n.º 1, da Lei de Defesa do Consumidor «Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.»

XXIII - Paralelamente, o D.L. n.º 24/2014, de 14/02, define consumidor como «A pessoa singular que atue com fins que não se integrem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional.»

XXIV - Apesar desta exigência, é patente, porém, que o conceito de consumidor não foi objecto de uniformização.

XXV - Importa assim destacar que sobre esta mesma matéria foi proferido Acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça, processo n." 1594/14.9T JVNF.2.G1.S2, disponível in www.dgsi.pt o seguinte:

“1. Segundo o AUJ nº 4/2014, de 20.03.2014, no âmbito da graduação de créditos em insolvência, o promitente-comprador apenas goza do direito de retenção, previsto no art. 755.º, n.º 1, f), do CC, se tiver a qualidade de consumidor.

2. Apesar desta exigência, o conceito de consumidor não foi objecto de uniformização.

3. É consumidor aquele que adquirir bens ou serviços para satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso privado) e para outros fins que não se integrem numa actividade económica levada a cabo de forma continuada, regular e estável.

4. O conceito tem assim subjacente a necessidade de protecção da parte débil economicamente ou menos preparada tecnicamente.

5. Tendo em atenção esse fim, não deve ser considerado consumidor aquele que, sendo comerciante de ourivesaria, promete comprar três apartamentos, que vem a dar de arrendamento (depois de adquirir um outro para habitação própria).

6. A capacidade económica assim revelada, evidencia que esse promitente-comprador não se encontrava perante a contraparte dos negócios numa situação de fraqueza ou vulnerabilidade.

7. Nem essa aquisição e afectação têm a ver propriamente com “consumo”, isto é, com satisfação de necessidades privadas, visando antes a obtenção de rendimentos que essa afectação propicia.”

XXVI - De acordo com o citado Acórdão, será assim consumidor aquele que adquirir bens ou serviços para satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso privado) e para outros fins que não se integrem numa actividade económica levada a cabo de forma continuada, regular e estável.

XXVII - Realce-se que a referida necessidade de protecção, como sublinha Calvão da Silva, tem subjacente a “ideia básica do consumidor como parte fraca, leiga, profana, a parte débil economicamente ou menos preparada tecnicamente de uma relação de consumo concluída com um contraente profissional, uma empresa”.

XXVIII - Porém, como se referiu e vem sendo entendimento incontroverso, o AUJ não uniformizou o conceito de consumidor que deve ser adoptado, não se impondo, assim, o referido entendimento, que não é, parece-nos, o que está consagrado legalmente. Relevante é que não seja dado ao bem adquirido um uso profissional.

XIX - Deste juízo resultou que não existiam elementos para afirmar, pela positiva, que os factos provados - a promessa de compra dos três apartamentos e o posterior arrendamento destes - integram uma actividade profissional, sendo certo que estão claramente fora da actividade profissional normal dos recorridos.

XXX- A conclusão que pareceria lógica seria a de que, por não se ter provado que os recorridos deram aos apartamentos um uso profissional, deveriam ser considerados consumidores.

XXXI - Contudo, entendeu o Venerando Tribunal que “Afigura-se-nos, com efeito, que não estamos perante “consumidores”, entendido o conceito no sentido de parte contratual mais fraca ou menos preparada que carece efectivamente de protecção.

Quem promete comprar, pagando antecipadamente o preço, três apartamentos, que vem a dar de arrendamento, quatro anos depois de ter adquirido um outro para habitação própria, não pode, manifestamente, ser considerado uma parte fraca e débil economicamente.”

XXXII - Subsumindo ao caso concreto, esta é perfeitamente a situação que se verifica neste autos, pois é inelutável concluir que os Recorridos não se encontravam numa situação de debilidade, fraqueza ou vulnerabilidade que é pressuposta pelo conceito de consumidor.

XXXIII - Essa situação é, na verdade, bem diferente da ratio legis da norma, isto é, do particular que investe no imóvel as suas poupanças contraindo uma dívida por largos anos, estando numa situação de franca desprotecção perante o credor hipotecário - neste sentido Cfr. ainda Acórdão deste Tribunal de 17.11.2015.

XXXIV - Não podendo - o Tribunal de que se recorre - olvidar todo o referido circunstancialismo concreto e subverter a ratio subjacente ao direito do consumo

i) O contrato-promessa está datado de 13/08/1997 mas só foi acordado que o prazo para a entrega do referido apartamento seria de 30 (trinta) meses a contar do dia 1 de setembro de 1997, de acordo com a cláusula 6.° do referido contrato, o que aliás vem plasmado na l) dos factos provados da sentença.

ii) Mais, os Recorridos nunca chegaram a habitar a fracção e apesar de terem disponibilizado a mesma a terceiros, nunca receberam um cêntimo por isso, não revelando assim um acto de investimento, pois não permitiu a obtenção de nenhum rendimento.

XXXV - Face ao exposto, é ponto assente que os Recorridos, apesar de terem prometido comprar a fracção sobre a qual foi reconhecido o direito de retenção, nunca fizeram da mesma a sua casa de morada de família, nunca ocuparam a mesma e nem sequer obtinham nenhum rendimento daquela, pelo que essa aquisição e afectação não têm a ver com “consumo”, isto é, com satisfação de necessidades privadas.

XXXVI - Assim, a capacidade económica que permite aos Recorridos a aquisição de um imóvel, pagando a pronto $12.000,000,00, sem nunca terem ocupado o mesmo, nem tendo qualquer preocupação em rentabilizar o investimento, na medida em que o mesmo estava ocupado, de favor, por um casal amigo revela claramente que os recorridos não se encontravam perante a contraparte do negócio numa situação de fraqueza e inferioridade ou em situação de desequilíbrio, motivada por eventual insuficiência de informação (que poderia ser facilmente suprida) ou fraco poder de negociação (que parece incompatível com a referida capacidade económica).

XXXVII - O comportamento dos Recorridos faz revelar que podiam, evitar, de facto, os riscos e abusos a que o consumidor normal, débil economicamente e menos preparado tecnicamente, está habitualmente sujeito, pelo que não se consegue vislumbrar que os Recorridos necessitem da tutela concedida aos consumidores pelo Acórdão uniformizador de jurisprudência.

Termina dizendo que «se pugna pela manutenção da decisão do Tribunal a quo, não devendo os Recorridos ser considerados consumidores e, consequentemente, não lhes seja reconhecido o seu crédito como garantido pelo direito de retenção, nos termos do art. 755°, n° 1, n.º 1. f), do CC.»

                                                           +

Não se mostram oferecidas contra-alegações.

                                                           +

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou fundamentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

São questões a conhecer:

- O direito dos Autores ao crédito correspondente ao dobro do que alegaram ter pago à promitente-vendedora (Insolvente);

- Violação ou errada aplicação da lei de processo em termos da reapreciação da prova;

- Qualidade de consumidores dos Autores.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto:

Vêm dados como provados os factos seguintes:

a) A sociedade comercial “CC, Lda.” foi declarada insolvente por sentença proferida a 2 de Maio de 2012;

b) O pedido de declaração de insolvência foi apresentado pela sociedade comercial “DD, S.A.” a 29 de Dezembro de 2011;

c) Foi apreendida a favor da massa insolvente a fracção autónoma designada pelas letras “AR”, descrita na 1ª Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., com o número …-AR;

d) O prédio urbano onde se integra a referida fracção autónoma foi edificado nos prédios descritos na conservatória do registo predial com os números … e …;

e) A propriedade horizontal foi constituída por escritura pública outorgada a 1 de Abril de 1999, cuja cópia se encontra junta a fls. 22 e seguintes, registada através da inscrição com a ap. 28, de 5 de Abril de 1999;

f) A fracção autónoma designada pela letra AR integra-se no Corpo quatro do referido prédio urbano e corresponde a uma habitação localizada no segundo esquerdo frente, compreendendo hall de entrada, hall de distribuição, cozinha com lavandaria, sala comum, dois banhos, dois quartos e duas varandas, possuindo lugar de garagem e arrumo;

g) Sobre o referido prédio urbano foram constituídas duas hipotecas voluntárias a favor do “EE, S.A.”, registadas através das inscrições com a ap. 19, de 7 de Agosto de 1997, e com a ap. 84, de 8 de Fevereiro de 1999;

h) Os créditos derivados de tais hipotecas foram transmitidos a favor da “DD, S.A.” (inscrições com a ap. 5072, de 13 de Janeiro de 2009, e com a ap. 157, de 14 de Janeiro de 2009);

i) Por acordo escrito denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, datado de 13 de Agosto de 1997, a insolvente, representada pelo sócio e gerente FF, declarou prometer vender ao autor AA, casado com a autora BB, ou a quem este indicasse, um apartamento do tipo T2 no 2º andar frente, com garagem e arrumos na cave, pelo preço de 12.000.000$00, nos termos constantes do documento cujo original se encontra junto a fls. 209 e 210;

j) A cláusula 4ª do referido acordo tem o seguinte teor: “O preço da referida venda é de escudos 12.000.000$00 (…) que a primeira outorgante declara já ter recebido dos segundos outorgantes na totalidade.”;

k) A cláusula 5ª tem o seguinte teor: “O apartamento será entregue pela primeira outorgante aos segundos outorgantes após a obtenção da licença de habitabilidade e livre de quaisquer ónus ou encargos.”;

l) A cláusula 6ª tem o seguinte teor: “O prazo para a entrega pela primeira outorgante aos segundos outorgantes do referido apartamento é de 30 (trinta meses) a contar do dia 1 de Setembro de 1997.”;

m) A cláusula 10ª tem o seguinte teor: “A escritura de compra e venda será celebrada em cartório, dia e hora a indicar pela primeira outorgante que deverá avisar o segundo outorgante por carta registada com aviso de recepção com quinze dias de antecedência.”;

n) O apartamento referido na alínea i) corresponde à fracção autónoma identificada na alínea c);

o) A insolvente não procedeu à marcação da escritura pública de compra e venda da fracção autónoma;

p) Os autores enviaram ao Sr. Administrador da Insolvência a carta cuja cópia se encontra junta a fls. 30 e seguintes, datada de 4 de Março de 2013, cujo teor se dá aqui por reproduzido, concedendo-lhe o prazo de 10 dias para informar se optava ou não “pela execução do contrato promessa”;

q) O Sr. Administrador da Insolvência respondeu através da carta cuja cópia se encontra junta a fls. 35, informando os autores de que no “âmbito das diligências de liquidação do património da insolvente (…) o imóvel descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º …-AR e inscrito na matriz predial sob o artigo …-AR foi adjudicado ao credor hipotecário DD, Lda.”;

r) A insolvente entregou aos autores as chaves da fracção autónoma identificada na alínea c), pelo menos, em Março de 2001;

s) Os autores participaram em algumas assembleias de condóminos;

t) Os contadores de água e de electricidade referentes à mesma fracção autónoma encontram-se em nome do autor;

u) A insolvente nunca procedeu à marcação da escritura pública de compra e venda, nem obteve a licença de utilização relativa ao prédio urbano referido na alínea d);

v) Os autores, a 20 de Março de 2002, pediram a notificação judicial avulsa da insolvente nos termos de fls. 138 e 138 verso, para:

“1º declarar se a fracção prometida vender é portadora de alvará de licença de habitabilidade passado pela autoridade administrativa e em caso afirmativo o respectivo número e data de emissão;

2º marcar, no prazo de 30 (trinta dias) a contar da data desta notificação judicial, a escritura definitiva de compra e venda do referido apartamento”;

w) Os autores não residem na fracção autónoma identificada na alínea c).

O acórdão recorrido mais considerou provado, modificando assim a decisão da 1ª instância quanto à não prova do facto constante do artigo 21º da petição inicial, que a promitente vendedora havia recebido dos Autores, à data da celebração do contrato-promessa, a totalidade do preço da venda (12.000.000$00).

De direito

Quanto ao recurso dos Autores:

Sustentam estes que, ao invés do decidido no acórdão recorrido [que apenas lhes reconheceu um crédito correspondente ao valor - €59.855,75, contravalor de 12.000.000$00 - do pagamento (com natureza de sinal, art. 441º do CCivil) que alegaram ter feito oportunamente], têm direito a ver reconhecido um crédito correspondente ao dobro (€119.711,50) daquela quantia.

É esta a única questão que colocam à nossa decisão neste recurso (tudo o mais que escrevem os Recorrentes não passa de razões ou argumentos).

Mas, segundo cremos, carecem de razão.

Vejamos:

Importa observar que a opção pelo não cumprimento da promessa de venda em causa (que tinha eficácia meramente obrigacional) por parte do Administrador da Insolvência constituiu um ato lícito e não culposo. Tratou-se de um ato praticado no exercício discricionário (em benefício dos interesses da massa) de um poder potestativo conferido por lei (sendo certo que ninguém veio invocar a ilicitude do ato, nomeadamente sob a alegação de ser abusivo).

Sendo assim, como é (e sendo também certo que não estamos perante uma promessa incumprida definitivamente em momento anterior à declaração da insolvência), não é adequado trazer à discussão o nº 2 do art. 442º do CCivil, seja por aplicação direta seja por aplicação indireta (por analogia). A atuação do regime do sinal, tal como previsto nesta última norma, pressupõe um incumprimento definitivo, ilícito e culposo dos próprios contratantes (anteriormente à declaração da insolvência), não se podendo fazer equivaler a opção lícita de não cumprimento do administrador da insolvência a esse incumprimento ilícito e culposo dos contraentes.

Na realidade, a solução do caso não se encontra no n.º 2 do art. 442.º do CCivil, mas sim e exclusivamente no CIRE, nos termos das disposições conjugadas dos respetivos art.s 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5 e 102.º, nº 3, alínea c). O confronto destas normas com o que se prescrevia anteriormente no art. 164.º-A do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e Falência (CPEREF), conjugado com o que se mostra escrito (propósito confesso de romper com as soluções do regime anterior) no relatório preambular do diploma (D.L. n.º 53/2004) que aprovou o CIRE, não deixam margem para dúvidas razoáveis acerca do afastamento do regime do sinal tal como previsto no n.º 2 do art. 442.º do CCivil.

Embora o que acaba de ser dito não se apresente incontroverso na doutrina - no sentido da aplicação do art. 442º, n.º 2 do CCivil aos casos de recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência pronunciam-se Pestana de Vasconcelos (Cadernos de Direito Privado, n.ºs 24 e 33, pp. 3 e seguintes e 43 e seguintes, respetivamente) e Gravato Morais (Cadernos de Direito Privado, n.º 29, pp. 3 e seguintes) -, corresponde, com maior ou menor detalhe, ao entendimento maioritário da doutrina (assim, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, pp. 234 a 238; Pinto Oliveira e Catarina Serra, Revista da Ordem dos Advogados, ano 70, pp. 399 e seguintes; Pinto Oliveira, Cadernos de Direito Privado, n.º 36, pp 3 e seguintes; Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3ª ed., pp. 472 e 473; Ana Prata et al., Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, p. 312 e 320; Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2ª ed., pp. 186 e 190; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª ed., p. 187, Gisela César, Os Efeitos da Declaração de Insolvência Sobre o Contrato-Promessa em Curso, p. 203).

E corresponde também à solução preconizada pela jurisprudência (assim, acórdão da Relação de Guimarães de 14 de Dezembro de 2010, processo n.º 6132/08.0TBBRG-J.G1[1]; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Junho de 2011, processo n.º 6132/08.OTBBRG-J.G1.S1; acórdãos da Relação de Coimbra de 6 de Novembro de 2012 e de 18 de Outubro de 2011, processos n.ºs 729/09.8T2AVR-B.C1 e 259/09.8TBNLS-E.C1, respetivamente; acórdão da Relação do Porto de 13 de Dezembro de 2012, processo n.º 1092/10.0TBLSD-G.P1[2]).

Sendo assim, como é, improcede a pretensão dos Autores ao reconhecimento do crédito correspondente ao dobro daquilo que alegaram ter pago à promitente-vendedora (a Insolvente).

De observar, entretanto, que, contra o que dizem os Autores na conclusão IV, não há qualquer contradição entre a decisão recorrida relativamente ao não reconhecimento de um crédito correspondente ao dobro do que alegaram ter pago à promitente-vendedora e o que foi decidido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 20 de Março de 2014 (AUJ n.º 4/2014). Basta ler o respetivo segmento uniformizador, para ver que assim é.

Efetivamente, na espécie sobre que recaiu o AUJ, e diferentemente do que sucede no caso vertente, não estava em causa saber se o credor tinha direito ao sinal em singelo ou em dobro, e por isso nada foi decidido quanto a essa temática (ainda que se tenham feito ao longo do texto do acórdão diversas alusões ao n.º 2 do art. 442.º do CCivil); o que estava em causa era (unicamente) saber se havia lugar ao direito de retenção para garantia do crédito resultante do não cumprimento da promessa por parte do administrador da insolvência, e foi sobre isto que se pronunciou decisoriamente o AUJ[3]. Mais, decorre claramente do AUJ que o crédito relativamente ao qual se reconheceu o direito de retenção se reportava ao sinal em singelo[4], e não ao seu dobro, e foi sobre essa realidade que trabalhou o acórdão, pelo que é apodítico que o que a decisão tomada no dito AUJ sufragou - e podia ter sufragado - foi o direito de retenção sobre o sinal em singelo, e não sobre o sinal a dobrar.

Consequentemente, nada tendo o AUJ decidido sobre o montante do crédito (se em singelo, se a dobrar), carece de qualquer fundamento a afirmação dos Autores de que estamos perante decisão (a do acórdão recorrido, e o mesmo se diga da presente decisão) que vai, quanto à mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça. Pelo contrário, o acórdão recorrido até está na maior sintonia com o AUJ quanto à questão de direito em causa, pois que, tal como sucedeu neste, reconheceu aos Autores o direito de retenção para garantia do crédito correspondente ao sinal em singelo.

Improcede, pois, totalmente, o recurso dos Autores.

Quanto ao recurso da Credora DD, S.A.:

A Recorrente suscita duas questões (também aqui, tudo o mais que a Recorrente faz constar das suas conclusões não passa senão de razões ou argumentos), e que são:

- Violação da lei de processo no âmbito da reapreciação da prova de livre apreciação;

- A não qualidade de consumidores dos Autores.

Comecemos por esta segunda questão:

É ponto assente que o AUJ n.º 4/2014 faz depender o direito de retenção a que alude a alínea f) do nº 1 do art. 755º do CCivil da qualidade de consumidor do credor reclamante beneficiário de uma promessa de venda.

Mas é também certo que o AUJ não definiu o conceito de consumidor.

Apesar de algumas divergências jurisprudenciais sobre a abrangência de tal conceito, cremos que vale para o efeito o que se expende no acórdão deste Supremo Tribunal de 13 de Julho de 2017 (processo n.º 1594/14.9TJVNF.2.G1.S2, relator Pinto de Almeida, disponível em www.dgsi.pt), subscrito aliás (como adjunto) pelo relator do presente acórdão, e que se passa a transcrever:

«É um conceito restrito o que se encontra consagrado no art. 2º, nº 1, da Lei 24/96, de 31/7 (Lei de Defesa do Consumidor – LDC): considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.

Em diploma posterior – DL 24/2014, de 14/2 (que transpôs a Directiva 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho) – define-se consumidor como a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional.

Esta finalidade de uso – o elemento teleológico do conceito de consumidor – pode ser revelado por forma positiva ou por via negativa.

No primeiro caso, o uso a que o bem se destina é o uso privado: para Calvão da Silva, consumidor é a “pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado – uso pessoal, familiar ou doméstico –, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares”.

No segundo caso, o uso a que o bem se destina é o uso não profissional, estranho ao comércio ou profissão do adquirente do bem ou serviço, que é o seu destinatário final.

Nesta formulação, que é a que se encontra literalmente consagrada no art. 2º, nº 1, da LDC, há, na prática, uma ampliação do conceito de consumidor.

Será assim consumidor aquele que adquirir bens ou serviços para satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso privado) e para outros fins que não se integrem numa actividade económica levada a cabo de forma continuada, regular e estável.

Integrando-se o uso nesta actividade continuada – profissional – a experiência e qualificação que a mesma é susceptível de propiciar excluem qualquer necessidade específica de protecção.

Não será esse o caso, porém, do profissional que actua fora da sua profissão (e assim fora da sua área de competência ou especial qualificação), adquirindo, na veste de consumidor, um bem de consumo para uso não profissional.

Realce-se que a referida necessidade de protecção, como sublinha Calvão da Silva, tem subjacente a “ideia básica do consumidor como parte fraca, leiga, profana, a parte débil economicamente ou menos preparada tecnicamente de uma relação de consumo concluída com um contraente profissional, uma empresa”.

Acrescenta o mesmo Autor que “a ratio do direito do consumo repousa na assimetria formação-informação-poder, com desvantagem para o consumidor; a sua aplicação não pode nem deve conduzir à protecção especial de (…) alguém que, conquanto formalmente actue in casu na veste de consumidor, materialmente seja pessoa dotada de competência técnico-profissional”.

O mesmo pode suceder, parece-nos, com aquele que disponha de elevada capacidade financeira e que, por via disso, possa dispor de adequado apoio técnico e profissional na negociação contratual com o profissional fornecedor do bem ou serviço.

Nestes casos, como acrescenta Calvão da Silva, seria injustificada e até abusiva a aplicação do direito especial de protecção do consumidor, na medida em que a qualificação técnica e profissional que o adquirente dispõe ou pode normalmente dispor lhe permitem evitar os riscos e abusos a que, nas mesmas circunstâncias, o consumidor normal, mais vulnerável – por debilidade económica ou por impreparação técnica –, está exposto.»

No caso vertente decorre de toda a envolvente factual que se conhece que a fração em causa se destinou - e nessa condição e para esse fim foi traditada aos Autores e sempre utilizada - a uso privado, habitacional, e não a fins de exercício profissional ou a qualquer atividade económica continuada, regular e estável. Isto não é prejudicado pela circunstância de (como provado) os Autores não residirem na fração (e até de a terem cedido a um amigo “algum tempo após terem celebrado o contrato-promessa”, sendo que é este amigo que suporta, “como contrapartida pelo facto dos Autores lhe terem disponibilizado o uso do apartamento”, os encargos com água, eletricidade e condomínio, isto tudo segundo afirmam os próprios Autores na alegação que produziram no seu recurso de apelação). O que se afigura essencial é que os Autores não tenham negociado a aquisição da fração parta fins profissionais ou para exercício de uma atividade económica, e isto, como se vê, cumpre-se no caso.

Donde, julgamos que os Autores devem ser vistos como consumidores.

Improcede pois a pretensão da Recorrente à qualificação dos Autores como não consumidores. O que significa também que improcedem as conclusões XIX a XXXVII do respetivo recurso.

Passemos agora à supra aludida primeira questão.

Sustenta a Recorrente que não se mostra feita prova do pagamento da quantia aludida no escrito que formalizou o contrato-promessa.

Sobre isto, escreveu-se o seguinte na sentença da 1ª instância:

“No que concerne ao pagamento do preço, temos que, para além da declaração constante da cláusula 4ª do contrato promessa, não foi junto aos autos pelos autores, não obstante notificação expressa para o efeito, qualquer outro documento relativo ao meio de pagamento do preço.

É certo que do documento junto aos autos resulta que a insolvente declarou dar quitação pelo recebimento do preço acordado (cfr. cláusula 4ª).

No entanto, no âmbito dos presentes autos, tal documento (o contrato promessa de compra e venda) não faz prova plena do pagamento invocado pelos autores. De facto, o documento particular em causa, apenas tem eficácia plena entre as partes, o que não se verifica no caso em apreço (cfr. art. 376º do Código Civil). Relativamente a terceiros, o documento particular vale apenas como elemento de prova a ser apreciado livremente pelo tribunal, sendo que, como vimos, atenta a ausência de qualquer outro elemento probatório, tal documento é insuficiente para provar o pagamento do preço”.

Em consequência, o tribunal de 1ª instância julgou não provado o facto alegado sob o artigo 21º da petição inicial (pagamento do preço acordado). E, por essa razão, julgou a ação improcedente.

Os Autores apelaram, sustentando que o facto do pagamento devia ser considerado provado. Para esse efeito argumentaram (como aliás fizeram ao longo de todo o processo) com a confissão da promitente-vendedora (a Insolvente) constante da segunda parte da cláusula 4ª do contrato-promessa, nos termos da qual “O preço da referida venda é de escudos 12.000.000$00 que a primeira outorgante declara já ter recebido dos segundos outorgantes na totalidade”. Segundo os Autores (conclusão 16ª da apelação), tal declaração da promitente- vendedora constituía prova plena de que fizeram o aludido pagamento, tudo nos termos dos art.s 376.º, n.ºs 1 e 2 e 358.º, n.º 2 do CCivil.

O acórdão ora recorrido subscreveu esse entendimento dos Apelantes.

Isto decorre claro do seguinte inciso do acórdão:

“De acordo com o disposto no artigo 376/2 do Código Civil “Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante (..)” o que nos remete para o artigo 352 do mesmo diploma legal, que preceitua:

“Confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária”.

Donde decorre que o mencionado na 4ª cláusula do contrato-promessa de compra e venda no que tange o pagamento do preço consubstancia-se numa confissão extrajudicial com força probatória plena nos termos do artigo 358, n º2, do Código Civil através a qual se presume o pagamento – cfr. Acórdãos do STJ de 03-06-1999, in CJSTJ, tomo II, pág. 136 e de 17-06-2014, Relatado pelo Conselheiro Fernandes do Vale, disponível em DGSI-

Sendo que o facto do Sr. Administrador ter impugnado o pagamento nada releva para efeitos de anulabilidade da confissão uma vez que a mesma apenas poderia ter sido posta em causa “por divergência entre a vontade e a declaração ou de um vício relevante “ e cujo ónus da prova era seu atento o disposto no artigo 342/2 do Código Civil.

Assim, e em face do conteúdo da 4ª cláusula, a saber: “(...) o preço da referida venda é de escudos 12.000.000$00 (…) que a primeira outorgante declara já ter recebido dos segundos outorgantes na totalidade”, tem de considerar-se provado o pagamento do preço acordado entre os outorgantes para a prometida venda – cfr. Acórdão do STJ de 17-06-2014, acima citado”.

Como se vê, o facto do pagamento foi considerado provado pelo tribunal recorrido, não mediante qualquer convicção formada no exercício de uma livre apreciação da prova, mas sim em função de uma pretensa prova vinculativa (emergente do documento que formalizou o contrato-promessa), isto por força dos art.s 376.º, n.º 2 e 358.º, n.º 2 do CCivil.

Ora, independentemente do assim decidido ter ou não fundamento legal[5], o que é certo é que a Recorrente não o impugna no presente recurso. Nem no corpo da alegação, nem nas conclusões a Recorrente dispensa uma única linha a contestar o ponto de vista do acórdão recorrido aí onde concluiu pela imposição da confissão. O que implica a conclusão de que se trata de questão que está fora do objeto do recurso.

Na realidade, e como resulta das conclusões VIII a XVIII, a Recorrente direciona a sua crítica, não (como se imporia) à ilegalidade substantiva (erro quanto à interpretação e aplicação do direito probatório material) da decisão realmente tomada (ou seja, ao decidido quanto à suposta prova vinculada relativa ao facto em questão), mas sim à ilegalidade processual[6] de uma virtual ou imaginada (pois que não tomada) decisão de valoração da matéria de facto no exercício da livre apreciação da prova.

O que implica apoditicamente a improcedência da pretensão da Recorrente à invalidação do acórdão recorrido por essa concreta razão (ilegalidade processual). Se este Tribunal se ocupasse da legalidade da decisão recorrida aí onde concluiu pela prova vinculativa do facto em questão (o pagamento) em face da confissão exarada no documento que formalizou a promessa de venda, estaria a conhecer para além do objeto do recurso em causa.

Ainda assim, dir-se-á que o que consta das conclusões XII, XIII e XIV carece de fundamento, pois que ao tribunal de apelação compete, em vista do desiderato legal de um efetivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto, escrutinar os factos impugnados, indo em busca da sua própria convicção. Diga-se também que o que consta da conclusão XVIII está correto (a reapreciação da matéria de facto não visa o exame geral ou indiscriminado dos factos da causa, mas sim decidir sobre os concretos erros de julgamento apontados por quem recorre), mas não tem absolutamente nada a ver com o que está aqui em discussão.

Improcede pois o recurso em apreciação.

IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em:

- Julgar improcedente a revista interposta pelos Autores;

- Julgar improcedente a revista interposta pela Credora DD, S.A.

Regime de custas:

Os Autores são condenados nas custas da revista que interpuseram.

A Credora DD, S.A. é condenada nas custas da revista que interpôs.

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Sumário:

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Lisboa, 18 de Setembro de 2018

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Henrique Araújo

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[1] Este acórdão foi relatado pelo ora relator, sendo aqui mencionado apenas por uma questão de coerência e reforço.
[2] Todos disponíveis em www.dgsi.pt
[3] Lê-se do AUJ o seguinte: “Está em causa saber se em contrato promessa incumprido pela promitente vendedora insolvente, o promitente comprador que seja consumidor e a quem foram transmitidos os imóveis objeto do contrato meramente obrigacional goza do “direito de retenção” sobre os mesmos para pagamento dos seus créditos…”
[4] Lê-se também do acórdão que «…o crédito do reclamante sobre a insolvência tem a sua proteção assegurada no artigo 102º, n.º 3 alínea c) do CIRE atento o reconhecimento supra aludido sendo certo que aquele pede apenas uma quantia em singelo». Da conclusão 1ª do recurso apreciado pelo AUJ, transcrita no acórdão, também decorre que estava em causa apenas o sinal em singelo.
[5] E até nem tem, sendo crasso o erro jurídico do acórdão. Exatamente como se escreveu na sentença da 1ª instância, a força probatória plena (vinculativa) emergente da confissão exarada em documento particular só existe no âmbito da relação entre o declarante e o declaratário, e não também no confronto de terceiros (como, in casu, seria o caso da massa falida e dos credores). Quanto aos terceiros a declaração confessória não tem eficácia plena, valendo apenas como elemento de prova a apreciar livremente (v., neste sentido, e para além de toda uma inabarcável jurisprudência, Vaz Serra, RLJ ano 114, p. 178).
[6] Inclusivamente, na página 4 da alegação a Recorrente diz que ao decidir como decidiu quanto ao reconhecimento do crédito o acórdão recorrido “fez uma errada aplicação da lei de processo”.