Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
14079/21.8T8SNT-D.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: M. CARMO SILVA DIAS
Descritores: HABEAS CORPUS
FUNDAMENTOS
PRISÃO ILEGAL
MEDIDA DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
LEI DE PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS EM PERIGO
INCONSTITUCIONALIDADE
COMISSÃO DE PROTEÇÃO DE MENORES
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 09/01/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA/ NÃO DECRETAMENTO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I- De acordo com a maior parte da jurisprudência do STJ é admissível alargar a providência do habeas corpus à medida de promoção e proteção de crianças e jovens de “acolhimento residencial”, atenta a sua natureza e finalidade, uma vez que não deixa de ser uma medida limitativa da liberdade e de direitos fundamentais (ainda que não tenha uma finalidade punitiva, como a medida tutelar educativa), tanto mais que (como se esclarece no ac. do STJ de 2.06.2021) constitui também uma medida que origina uma “compressão do direito à unidade familiar”.

II- De acordo com os elementos constantes deste habeas corpus foi legal a decisão homologatória do acordo de promoção e proteção de 2.03.2022 que aplicou a medida de acolhimento residencial à menor, o processo tem sido tramitado de forma urgente e de acordo com os preceitos legais aplicáveis, tendo em atenção o superior interesse da criança, não se mostrando ultrapassados os prazos ali fixados.

III- A medida de acolhimento residencial encontra-se legalmente prevista (arts. 35.º, n.º 1, al. f) e 49.º da LPCJP), foi aplicada por decisão judicial e pelo tribunal competente, não se mostrando excedido qualquer prazo legal (não tendo sequer chegado o momento de ser revista tal medida), pelo que não se pode concluir que a menor esteja “presa” ou “detida” ilegalmente.

IV- O habeas corpus não serve para apresentar queixas (v.g. contra terceiros ou contra o tribunal, as quais devem ser apresentadas nos locais próprios, se houver fundamento para tal), nem para imputar responsabilidades a terceiros, nem tão pouco para discutir decisões proferidas noutros tribunais, como seja, as do juízo de família e menores (as quais, verificando-se os respetivos pressupostos deverão ser impugnadas pelos meios próprios - art. 123.º, da LPCJP).

Decisão Texto Integral:


Proc. n.º 14079/21.8T8SNT-D.S1

Habeas corpus

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I Relatório

1. AA, progenitora e representante da menor BB, nascida em .../.../2010, veio, através de mandatário, apresentar pedido de habeas corpus, com fundamento em prisão ilegal, nos termos do art. 222.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP, invocando o seguinte:

A menor BB está internada na casa de acolhimento "...", sita em ....

A menor foi objeto de uma medida de promoção e proteção no âmbito da Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, que corre os seus termos no ...Juízo do Tribunal de Família e Menores ..., Processo nº14079/21.....

Se bem que a requerente e a menor tivessem vivido antes de 27 de Setembro de 2021 um período de violência física e psicológica por parte do progenitor pai da menor, hoje e desde já há alguns meses que a requerente mãe tem hoje uma casa longe do pai agressor que era em ..., ....

À data da intervenção do Tribunal de Família e Menores ..., no processo supra referenciado a mãe havia solicitado a ajuda das autoridades no sentido de encontrar uma casa de acolhimento.

O que aconteceu efetivamente em 28 de Setembro de 2021

Tendo a requerente e filha menor saído da casa de acolhimento voluntariamente pois estavam privadas de internet e a filha menor queria sair da referida casa e ambas desejavam encontrar uma nova casa para morar.

Sucede que desde essa data da saída de ambas da casa de acolhimento que a medida de proteção que devia salvaguardar a filha menor se voltou contra esta.

Tendo o MP requerido que fosse aplicada à menor a "medida de promoção e proteção que se venha a revelar adequada".

Tendo sido aberta uma fase de Instrução no processo e lavrada ATA em que a menor fosse encerrada em instituição, embora contra a vontade da mãe e da própria menor, pese embora a assinatura da mãe na referida ATA não reflita a expressão da livre vontade da requerente mãe, por forte pressão psicológica das técnicas da segurança social e do próprio tribunal.

10º

Tendo o pai da menor, que está indiciado por violência doméstica e porte de arma proibida ido falsamente contra a requerente inventando mentiras de uma suposta agressão desta que nunca aconteceu.

11º

Sendo certo que não existe qualquer deliberação colegial composta de Psiquiatra, Psicólogo e médico que tenha examinado a requerente no sentido de apurar uma personalidade da requerente em não poder criar e viver com a sua filha menor.

12º

Não obstante a inexistência de uma deliberação colegial composta de Psiquiatra, Psicólogo e Médico o Tribunal de Família e Menores ... ordenou o encerramento da menor na supra referida casa de acolhimento em condições de privação da menor estar livremente com a sua mãe.

13º

Designadamente a institucionalização da menor em casa de acolhimento é feita contra a vontade da mãe e da menor, que quer sair da referida instituição para ir viver com a mãe na casa desta, agora na ....

14º

Sendo que a proibição da menor ir viver com a mãe uma medida ilegítima.

15º

A saber a menor não pode sair livremente da instituição para ir passear com a mãe;

16º

A menor só pode conferenciar telefonicamente com a mãe 5 minutos por dia, justificando a instituição que tal privação da liberdade é por ordem do tribunal ...;

17º

A menor está proibida de sair da instituição para ir visitar a sua mãe;

18º

Sendo as visitas da mãe á menor na instituição estritamente vigiadas por funcionários da instituição.

19º

Sendo que as limitações supra - referidas que limitam a vontade da menor e da sua mãe uma privação ilegítima da liberdade e uma situação de prisão ilegal.

20º

A Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada pela República Portuguesa em 21 de Setembro de 1990, estipula claramente no seu Art. 9, nº1 que: Os Estados Partes garantem que a criança não é separada dos seus pais contra a vontade destes, salvo se as autoridades competentes decidirem, sem prejuízo de revisão judicial e de harmonia com a legislação e o processo aplicáveis, que essa separação é necessária no interesse superior da criança. Tal decisão pode mostrar-se necessária no caso de, por exemplo, os pais maltratarem ou negligenciarem a criança ou no caso de os pais viverem separados e uma decisão sobre o lugar da residência da criança tiver de ser tomada.

21º

Sendo que a Declaração dos Direitos da Criança, proclamada pela Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas nº1386, de 20 de Novembro de 1959 preceitua claramente no seu Art. 6º que: A criança precisa de amor e compreensão para o pleno e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade. Na medida do possível, deverá crescer com os cuidados e sob a responsabilidade dos seus pais e, em qualquer caso, num ambiente de afeto e segurança moral e material; salvo em circunstâncias excecionais, a criança de tenra idade não deve ser separada da sua mãe.

22º

Mais adiante a Convenção sobre os Direitos da Criança refere que: Art. 18ª, nº1, parágrafo 2: A responsabilidade de educar a criança e de assegurar o seu desenvolvimento cabe primacialmente aos pais e, sendo caso disso, aos representantes legais. O interesse superior da criança deve constituir a sua preocupação fundamental.

23º

 Ora, a norma vertida no Art. 91º , nº1 da Lei nº147/99, de 1 de Setembro preceitua que: Quando exista perigo atual ou iminente para a vida ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou jovem, e na ausência de consentimento dos detentores das responsabilidades parentais ou de quem tenha a guarda de facto, qualquer das entidades referidas no artigo 7.º ou as comissões de proteção tomam as medidas adequadas para a sua proteção imediata e solicitam a intervenção do tribunal ou das entidades policiais.

24º

O Art. 91º da Lei nº147/99, de 1 de Setembro de 1999 é inconstitucional pois confere poderes a entidades estranhas aos tribunais - a saber as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens - para privarem um cidadão dum direito fundamental, ou seja da mãe ou pai do direito à guarda do filho, quando tal medida tem caráter de medida de segurança ou caráter penal, sem que tal medida seja meramente transitória e meramente excecional, violando-se o Art. 18º, n2; o Art. 29º nº1 e o Art. 202º, nº1 e nº2, da Constituição, que confere aos tribunais poderes para assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, sendo que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na constituição, sendo que este não é um caso previsto na mesma, inconstitucionalidade que se invoca desde já nos termos do Art. 70º, nº 1, a) da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional Lei nº28/82; de 15 de Novembro.

25º

A saber, as decisões de retirada sem intervenção dos tribunais prevista na lei nº147/99, de 1 de Setembro estão expressamente previstas no nº3 deste Art. 91º: Enquanto não for possível a intervenção do tribunal, as autoridades policiais retiram a criança ou o jovem do perigo em que se encontra e asseguram a sua proteção de emergência em casa de acolhimento, nas instalações das entidades referidas no artigo 7.º ou em outro local adequado.

26º

Sucede que os procedimentos tomados pelos tribunais por iniciativa ou não das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, são tomados sem base científica válida e sem o fundamento previsto no Art. 205º, nº1 da Constituição da República Portuguesa.

27º

A saber, as decisões dos tribunais ou as iniciativas das Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, são tomadas sem a existência de pareceres de um conjunto de médicos, psiquiatras e psicólogos, numa deliberação colegial, e não têm caráter transitório, mas sim duradouro, como sucede neste caso em crise.

28º

As decisões são tomadas sem base científica coletiva dos referidos médicos, psiquiatras e psicólogos e presididas por um Juiz, e são ao invés decididas por técnicas da segurança social sem habilitações científicas válidas, na sua maior parte executando os seus pareceres com base em meras opiniões e sem a audição da criança e contra a vontade da criança sem fundamento científico e jurídico válido, com sucedeu com a menor BB.

29°

Isto à revelia da vontade da criança, que quer ficar com a sua mãe ou pai, contra o disposto no Art. 12º nº1 e nº2 da Convenção sobre os Direitos da Criança:

l. Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade.

2. Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja diretamente, seja através de representante ou de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional.

30º

Ora nas decisões de retirada da criança dos seus pais, tomadas sem base científica como acima se referiu não são tidas em conta as emoções, necessidades afetivas ou vontade da criança ficar com a sua mãe ou pai, como sucede neste caso com a menor BB.

31º

O fato de as decisões judiciais de retirada da criança serem tomadas contra a vontade da criança e sem base científica de uma deliberação composta por médicos, psiquiatras e psicólogos, viola o superior interesse da criança plasmado no Art. 3º da Convenção sobre os Direitos da Criança e consubstancia falta de fundamento jurídico válido das decisão judicial que decidiu institucionalizar a menor BB, dado que todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social; por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança, neste caso da menor BB.

32º

A privação da liberdade da menor acima referida consubstancia uma prisão ilegal e não uma mera detenção ilegal pois vigora há vários meses.

33º

A prisão ilegal da menor não tem fundamento jurídico face ao Art. 222º, nº2, a) do CPP, dado que é motivada por fato que a lei não permite, sendo uma prisão ilegal

Termos em deve esta providência de Habeas Corpus por prisão ilegal ser recebida, autuada, julgada e decretada a libertação imediata da menor.

2. A Srª. Juiz de turno prestou a informação a que se refere o art. 223.º, n.º 1, do CPP, nos seguintes termos:

Remeta ao Supremo Tribunal de Justiça certidão da acta de tomada de declarações e do acordo de promoção e protecção celebrado no processo principal, ambos com data de 02.03.2022, e de todas as promoções e despachos proferidos no âmbito do mesmo processo, daí resultando que naquela data foi aplicada a favor da criança BB a medida de promoção e protecção de acolhimento residencial, com o acordo dos pais, pelo prazo de seis meses, medida essa protectiva que ainda se mantém em vigor.

Remeta também certidão da promoção que antecede.

*

3. Realizada a audiência aludida no art. 223.º, n.º 3, do CPP, cumpre conhecer e decidir.

*

II Fundamentação
4. Factos
 Extrai-se dos elementos constantes das certidões juntas a este habeas corpus, o seguinte com interesse para esta decisão:

- no processo de promoção e proteção n.º 14079/21.... do Juízo de Família e Menores ..., Juiz ..., depois de realizada a instrução (com audição da menor e dos respetivos progenitores, além de duas técnicas da ...), na conferência a que alude o art. 112.º da LPCJP, realizada em 2.03.2022, foi obtido o seguinte acordo de promoção e proteção referente à menor BB:

A) À menor BB é aplicada a medida de promoção e protecção de Acolhimento Residencial, nos termos dos art.ºs 35º, nº1 alínea f) e 49º da LPCJP nos seguintes termos:

Os progenitores da menor comprometem-se:

1. Respeitar as regras e horários de visitas impostos pela instituição de acolhimento da menor;

2. Aceitar a presença de técnicas da ..., no decorrer das visitas;

3. Submeterem-se à realização de perícias, psiquiátricas e psicológicas;

4. Estipular-se um contacto telefónico por dia, entre os progenitores e a menor;

5. A que a menor seja submetida à realização de perícias, psiquiátricas e psicológicas;

6. A mãe diligenciar por realizar acompanhamento psicológico;

-A aceitar a intervenção dos serviços Técnicos da EMAT, bem como das Técnicas da ..., comparecendo sempre que convocados e permitindo a realização de visitas domiciliárias, bem como seguir as orientações dadas pelos mesmos.

B) A medida aplicada terá a duração de (6) seis meses;

C) O acompanhamento da execução da medida será levado a cabo pela EMAT ..., nos termos do artº 59º, nº 3 da LPCJP, devendo enviar relatório no prazo de cinco meses com vista a ulterior revisão da medida.

- esse acordo foi objeto de despacho homologatório judicial, sendo os respetivos intervenientes condenados a cumpri-lo nos seus precisos termos (arts. 100º e 113º, nº 2 da LPCJP).

- entretanto, também em 2.03.2022 foi determinado “a realização de perícias psiquiátricas e de personalidade aos pais da menor, e a realização de perícia psicológica e pedopsiquiátrica à menor, a solicitar ao INML, remetendo-se cópia dos quesitos constantes do relatório da EMAT ... que antecede.”

- em 11.07.2022 foi proferido o seguinte despacho pela Srª. Juiz titular do processo:

Cumpra o artigo 47.º, n.º 1 do C.P.C.

*

Conforme sugerido pela ..., autorizo o alargamento dos contactos presenciais entre a BB e a mãe, nas visitas efetuadas, que passarão a ter momentos sem supervisão, alternados com momentos de presença da Técnica responsável, autorizando-se ainda o alargamento em duração temporal dos contatos telefónicos encetados entre ambas (com ou sem supervisão dos Técnicos da Instituição) de forma a se aquilatar do impacto que a maior durabilidade dos mesmos e a não sujeição a constante supervisão poderão influir positiva ou negativamente na BB (confluindo no bem estar-emocional da menor).

Comunique à EMAT e à ..., insistindo junto da ... pelo início, com urgência, do acompanhamento pedopsiquiátrico à menor, conquanto que tal implique a continuidade do mesmo no Hospital ..., onde já o havia iniciado.

*

Períodos de férias e fins de semana a passar com a mãe:

À menor impõe-se o acompanhamento pedopsiquiátrico.

A BB evoluiu significativamente nas mais diferentes áreas, quer socialmente, emocionalmente e academicamente, sendo notório uma alteração no seu estado de humor evidenciando bem-estar nas vivências. No entanto, de acordo com a informação veiculada pela ..., é igualmente evidente a alteração emocional e comportamental quer presença/contactos da mãe, quer nos contactos com o pai, quer dos primos, com exceção da prima CC.

Não se encontram, ainda, nos autos o resultado das perícias determinadas à menor e aos progenitores.

É curial a sua junção aos autos, sendo que, presentemente, os contatos telefónicos serão alargados, assim como haverá alternância de momentos de supervisão, com momentos sem supervisão, também aplicáveis às visitas presenciais entre a mãe e a menor para se aquilatar qual o real impacto das mesmas em termos emocionais para a menor.

Impõe-se, também, a realização de visita domiciliária à residência da mãe, já solicitada à EMAT.

Não descuremos os motivos que impeliram à retirada urgente da criança do agregado onde vivia com os seus pais, adotando a menor um discurso de completa rejeição da figura paterna e acusando grave sofrimento emocional, muito alimentado pela progenitora, que lhe dava a conhecer os contornos do conflito conjugal, tornando-a parte ativa neste, permitindo à menor opinar e intervir no conflito (físico e verbal), com um discurso adulto e colado ao da sua progenitora, adotando a criança uma posição de paridade para consigo e para com o pai, no fundo, tornando-a a mãe sua aliada no mesmo.

A vivência quotidiana desta criança centrava-se no assistir e fomentar do conflito conjugal, assistindo a violentas discussões, intervindo nas mesmas, ao ponto de a BB ter abandonado a escola, com comprometimento do seu percurso educativo e de socialização.

Assim sendo, e de forma a não se comprometerem os progressos ora alcançados ao nível das aprendizagens escolares, da estabilização de humor e da sua socialização com pares, tão importante para a sua estabilidade emocional e salutar desenvolvimento de personalidade, sendo de extrema importância a junção das perícias psicológicas solicitadas aos autos, não se descurando os motivos que impeliram à retirada da menor, a título de medida cautelar, do agregado familiar onde vivia, para já, e sem prejuízo de novos elementos carreados aos autos pelas Técnicas da ..., indefere-se a passagem dos períodos de fins de semana e de férias com a mãe.

Notifique e comunique à EMAT e à ....
Direito

5. Invoca a representante legal da menor, sua progenitora, em resumo, que aquela sua filha se encontra presa ilegalmente, por se encontrar sujeita a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, medida essa que, na sua perspetiva, apesar de ter assinado a ata, não refletiu na altura a sua vontade, por ter sido sujeita a forte pressão psicológica das técnicas da segurança social e do próprio tribunal, sendo que a institucionalização da menor em casa de acolhimento foi feita contra a sua vontade e da filha, sendo ilegítima a proibição da menor ir viver com a mãe, bem como todas as demais medidas que limitam a vontade de ambas, privando a filha da liberdade, o que contraria as regras de direito internacional (art. 9.º, n.º 1 e 18.º, n.º 1, da Convenção sobre os Direitos da Criança, art. 6.º da Declaração dos Direitos da Criança), sendo inconstitucional o art. 91.º da Lei n.º 147/99, de 1.09 (o que invoca nos termos do art. 70.º, n.º 1, al. a), da LOTC), pelo que os procedimentos tomados pelos tribunais (por iniciativa ou não das CPCJ) são tomadas sem base científica válida (sem pareceres científicos médicos, psiquiátricos e psicológicos e antes decididos por técnicos da segurança social, sem habilitações cientificas válidas, como aqui sucedeu, à revelia da criança e da mãe, contra o disposto no art. 12.º, n.º 1 e n.º 2 da Convenção sobre os Direitos da Criança), assim sendo violado o superior interesse da criança consagrado no art. 3.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, carecendo de fundamento a decisão que concluiu pela institucionalização da menor, o que mostra que foi motivada por facto que a lei não permite, sendo uma prisão ilegal que vigora há vários meses.
Vejamos então.
6. Dispõe o artigo 222.º (habeas corpus em virtude de prisão ilegal) do CPP:

1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

São taxativos os pressupostos do habeas corpus (que também tem assento no art. 31.º da CRP), o qual não se confunde com o recurso, nem com os fundamentos deste.

Aliás, como diz Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Lisboa: Editorial Verbo, 1993, p. 260, o habeas corpus “não é um recurso, é uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade”.

Convém ter presente, como se refere no art. 31.º, n.º 1 CRP, que “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.” Ou seja, esta providência, que inclusivamente pode ser interposta por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos (art. 31.º, n.º 2 CRP), tem apenas por finalidade libertar quem está preso ou detido ilegalmente e, por isso, é uma medida excecional e muito célere.

De resto, quando se aprecia a providência de habeas corpus não se vai analisar o mérito da decisão que determina a prisão, nem tão pouco erros procedimentais (cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais) já que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

Neste caso concreto, acompanhamos a maior parte da jurisprudência do STJ que considera ser admissível alargar a providência do habeas corpus quando estão em causa medidas de promoção e proteção de crianças e jovens como a de “acolhimento residencial”, atenta a sua natureza e finalidade, uma vez que não deixa de ser uma medida limitativa da liberdade e de direitos fundamentais (ainda que não tenha uma finalidade punitiva, como a medida tutelar educativa), tanto mais que (como se esclarece no ac. do STJ de 2.06.2021) constitui também uma medida que origina uma “compressão do direito à unidade familiar”.

Assim, admitindo-se que a medida de promoção e proteção de “acolhimento residencial” aplicada à menor está abrangida na providência de habeas corpus, o que é que se passa neste caso concreto?

Ora, da análise do caso concreto, verifica-se que a menor está colocada na instituição “...”, na sequência de ter sido homologado judicialmente o acordo de promoção e proteção que lhe aplicou a medida de “acolhimento residencial”, pelo período de 6 meses, tendo ambos os progenitores dado o seu acordo para o efeito, nas condições acima descritas, que constam do respetivo auto de 2.03.2022.

Ou seja, foi a própria progenitora, que agora vem em representação da menor, apresentar o habeas corpus, que durante a instrução do processo de promoção e proteção foi ouvida (tal como o progenitor e a própria menor, além de duas técnicas daquela instituição), que deu o seu acordo para a institucionalização da criança, precisamente tendo em atenção o seu superior interesse, atenta a situação de perigo em que aquela se encontrava, o que era notório pelos elementos que resultavam dos autos e conforme decisão judicial provisória que já havia sido tomada anteriormente (na qual, nos termos dos artigos 3.º, n.º s 1 e 2, als. b) e f), 4.º, al. a), 5.º, al. c) 35.º, n.º 1, al. f), 37.º, n.º 1, 49.º, 92.º, n.º 1, da LPCJP, já fora decidido aplicar, a título cautelar e pelo período de 6 meses a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial).

De notar que essa decisão provisória (tomada previamente ao acordo de promoção e proteção) ocorreu por a Srª. Juiz ter concluído (como consta da mesma decisão judicial) que havia que “por termo à exposição da menor à violência conjugal sofrida, deixando a BB de ser parte ativa no conflito e de forma a não prejudicar ainda mais o seu bem-estar emocional, tão já seriamente posto em crise. Impõe-se, também, por termo ao seu absentismo escolar e fazer com que a mesma não seja privada da sua infância e socialização com crianças da mesma idade, alheando-se e preservando-se a mesma dos conflitos e da violência infligida entre adultos. Neste conspecto, revelando-se os pais incapazes de por termo ao absentismo escolar da menor e, acima de tudo, de preservar a sua integridade psíquica, resguardando-a do conflito conjugal entre eles vivenciado, conclui-se estar a menor BB na situação de perigo emergente a que alude o artigo 3.º, n.º 1 e 2, als. b) e f) e 5.º, al. c) da LPCJP. A mãe da menor declina o acolhimento em Casa Abrigo, do qual, aliás, já beneficiaram e acabaram por dele sair, por iniciativa própria, referindo que não careciam do mesmo. A mãe não tem contatos com família alargada por estar com a mesma incompatibilizada e não concretiza as várias hipóteses que aventou de poder arrendar uma casa para ir viver com a BB. Inexistem, pois, alternativas em meio natural de vida para promover a reintegração da menor, junto de família alargada.

Ao contrário do que é alegado na petição do habeas corpus, a referida situação de perigo da menor ainda não está ultrapassada como resulta claro do despacho acima transcrito, proferido em 11.07.2022, do qual consta, além do mais, que é preciso não comprometer “os progressos ora alcançados ao nível das aprendizagens escolares, da estabilização de humor e da sua socialização com pares, tão importante para a sua estabilidade emocional e salutar desenvolvimento de personalidade, sendo de extrema importância a junção das perícias psicológicas solicitadas aos autos, não se descurando os motivos que impeliram à retirada da menor, a título de medida cautelar, do agregado familiar onde vivia, para já, e sem prejuízo de novos elementos carreados aos autos pelas Técnicas da ...”, sendo, por isso, que foi ainda naquela data (em 11.07.2022) indeferida “a passagem dos períodos de fins de semana e de férias com a mãe.”

Os elementos constantes das certidões juntas a este habeas corpus mostram que foi legal a decisão homologatória do acordo de promoção e proteção de 2.03.2022, que o processo tem sido tramitado de forma urgente, com observância dos preceitos legais aplicáveis, tendo em atenção o superior interesse da criança, não se mostrando ultrapassados os prazos ali fixados.

Portanto, a medida de acolhimento residencial que foi aplicada à menor encontra-se legalmente prevista (arts. 35.º, n.º 1, al. f) e 49.º da LPCJP), foi aplicada por decisão judicial e pelo tribunal competente, não se mostrando excedido qualquer prazo legal (não tendo sequer chegado o momento de ser revista essa medida).

Não se pode, assim, concluir que a menor esteja “presa” ou “detida” ilegalmente, sendo certo que há fundamento jurídico para a medida de acolhimento residencial em que se encontra colocada, a qual foi determinada pelo tribunal competente para o efeito, por facto que a lei permite.

De esclarecer que o habeas corpus não serve para apresentar queixas (v.g. contra terceiros ou contra o tribunal, as quais devem ser apresentadas nos locais próprios, se houver fundamento para tal), nem para imputar responsabilidades a terceiros, nem tão pouco para discutir decisões proferidas noutros tribunais, como seja, as do juízo de família e menores (as quais, verificando-se os respetivos pressupostos deverão ser impugnadas pelos meios próprios - art. 123.º, da LPCJP).

As matérias que a progenitora da menor pretende discutir relativas a supostas ilegalidades, relacionadas com violações de normas de direito internacional (art. 9.º, n.º 1 e 18.º, n.º 1, da Convenção sobre os Direitos da Criança, art. 6.º da Declaração dos Direitos da Criança), com suposta inconstitucionalidade do art. 91.º da Lei n.º 147/99, de 1.09 e com os procedimentos tomados no juízo de família e menores, não cabem no âmbito da apreciação da providência de habeas corpus (que não é um recurso) e na qual não se vai analisar o mérito das decisões ali (no juízo de família e menores) proferidas, nem tão pouco analisar despachos ou eventuais erros procedimentais (cometidos por aquele tribunal ou pelos sujeitos processuais ou seus representantes), já que esses devem ser apreciados em sede própria (de acordo com as regras processuais vigentes).

No habeas corpus apenas podemos analisar se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

No âmbito desta providência, ao STJ não incumbe, nem cabe nos seus poderes de cognição, analisar questões que extravasam os fundamentos previstos no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

Por isso, tendo em atenção o alegado no requerimento em análise, visto o teor das certidões juntas aos autos e atento o disposto no art. 222.º, n.º 2, do CPP, não ocorre qualquer fundamento para o deferimento deste habeas corpus, sendo legal o acolhimento residencial a que a menor se encontra sujeita neste momento.

Assim, conclui-se que esta providencia excecional carece manifestamente de fundamento que a justifique.

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III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a presente providência de habeas corpus, por manifesta falta de fundamento.

Custas pela requerente (progenitora), com 4 UC`s de taxa de justiça e, sendo ainda condenada, nos termos do art. 223.º, n.º 6, do CPP, na importância de 6 UC`s a título de sanção processual.

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Processado em computador, elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pela própria, pelos dois Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pelo Senhor Juiz Conselheiro Presidente da Secção.

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Supremo Tribunal de Justiça, 01.09.2022

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Cid Geraldo (Juiz Conselheiro Adjunto)

Leonor Furtado (Juíza Conselheira Adjunta)

Eduardo Loureiro (Juiz Conselheiro Presidente)