Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B2111
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
INCAPACIDADE PERMANENTE PARCIAL
DANOS FUTUROS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
PRIVAÇÃO DO USO DE VEICULO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ20070705021117
Data do Acordão: 07/05/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1. A consideração pela Relação do facto de a autora estar desempregada à data do acidente, ao invés do tribunal da primeira instância, não pode ser sindicada pelo Supremo Tribunal de Justiça nem constitui a nulidade do acórdão prevista no artigo 668º, nº 1, alínea d) nem infracção do artigo 659º, nº 3, ambos do Código de Processo Civil.
2. A necessidade de apoio de terceiros para a realização das tarefas da vida diária ocorre em relação aos grandes inválidos, gravemente afectados de sequelas permanentes, o que não ocorre em relação a quem apenas ficou afectado de incapacidade permanente de quinze por cento.
3. É adequada a indemnização por danos futuros no montante de € 7 352,98 atribuída à cozinheira profissional, com 58 anos de idade, desempregada aquando do acidente, auferindo outrora € 498,79 mensais, afectada com incapacidade permanente de quinze por cento sem repercussão directa no seu nível salarial.
4. A privação do uso do veículo automóvel por virtude do acidente que não implique prejuízo específico na esfera jurídica de quem de direito não confere direito a indemnização.
5. É adequada a compensação por danos não patrimoniais no montante de € 25 000 atribuída a quem sofreu fractura da coluna cervical e da rótula direita, esteve internada, foi operada à última referida lesão e para extracção de material de osteossíntese, usou de halo cervical, revela dor e rigidez naquelas zonas e na perna, diminuição da força desta, hipotesia nas extremidades dos braços, e que ficou com cicatriz no joelho, tem dificuldade em subir e descer escadas e na condução, sente tonturas, formigueiros nos braços e nas mãos e dores à mobilização do pescoço, e que sente desgosto por virtude das cicatrizes no couro cabeludo, na testa e no joelho.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I
AA intentaram, no dia 17 de Dezembro de 2001, com apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e encargos concedida por despacho proferido no dia 31 de Maio de 2001, contra a Companhia de Seguros BB SA, a que sucedeu a Companhia de Seguros BB SA, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação no pagamento de 37 143 063$, com fundamento nos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos no embate, no dia 8 de Maio de 1999, entre o veículo automóvel ligeiro com a matrícula nº PD-00-00, conduzido por CC, e o veículo automóvel ligeiro com a matrícula nº UX00-00, conduzido por DD, por este haver invadido a meia faixa de rodagem deles e no contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel celebrado entre este último e a antecessora da ré.
A ré, em contestação, confirmou a existência do referido contrato de seguro, impugnou os factos relativos ao acidente sob o argumento de os desconhecer e afirmou não aceitar o grau de incapacidade da autora.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 29 de Junho de 2006, por via da qual a ré foi condenada a pagar à autora € 90 773 (25 000 + 59 147,45 + 7 352,98 + 2 214,79 – 2 942,22) e ao autor a quantia de € 3 990,38, com o acréscimo de juros à taxa legal desde 10 de Janeiro de 2002.
Apelaram os autores e a ré, e a Relação, por acórdão proferido no dia 30 de Janeiro de 2007, negou provimento ao recurso dos primeiros e concedeu provimento parcial ao recurso da última, reduzindo a quantia de € 59 147,45, relativa ao dispêndio com terceira pessoa, para o montante de € 10 000.

Interpuseram AA e CC recurso de revista, formulando, em síntese útil, as seguintes conclusões de alegação:
- relativamente aos danos futuros por perda de capacidade de ganho, o acórdão recorrido está afectado de nulidade, por ter considerado, sem tal estar provado, que a recorrente estava desempregada à data do acidente, pelo que violou os artigos 659, nº 3, e 668º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil;
- o montante arbitrado para pagamento a terceira pessoa é desajustado, por nem dar para pagar o trabalho durante uma hora diária, pelo que se violou os artigos 562º do Código Civil e 661º do Código de Processo Civil;
- a entender-se que a referida indemnização deve ser arbitrada nos termos do artigo 566º do Código Civil, no mínimo deve contemplar um montante que permita à recorrente
custear dez horas semanais de uma empregada a dias durante onze anos;
- foi violado o artigo 566º, nºs 2 e 3, do Código Civil, porque a indemnização por danos futuros não foi fixada no montante de € 20 945,51, por não ter sido considerada a desvalorização monetária resultante do ingresso no sistema da moeda única e a sua progressão salarial durante os últimos anos da vida activa;
- os elevados danos morais sofridos pela recorrente decorrentes da grave situação física em que ficou justificam a fixação da respectiva indemnização no montante de € 33 668, pelo que se violou o artigo 496º, nº 1, do Código Civil;
- a privação do uso do seu veículo automóvel durante pelo menos um mês implicou transtorno e despesas que devem ser indemnizados em € 149,70 - € 4,99 por dia.

Respondeu a recorrida, em síntese de conclusão de alegação:
- não ficou demonstrado que a recorrente necessite de pessoa que lhe faça a lide doméstica;
- provado que capacidade da recorrente para as lides domésticas ficou reduzida em 15%, o valor fixado é o correcto;
- considerando a idade da recorrente à data do acidente, a esperança de vida activa até à reforma, a remuneração mensal auferida e o grau de incapacidade, o valor arbitrado a título de dano futuro por perda de capacidade de ganho é o adequado;
- é ajustada aos danos não patrimoniais sofridos pela recorrente a compensação que lhe foi arbitrada;
- os factos provados não revelam danos decorrentes da privação do uso do veículo automóvel do recorrente.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. DD, por um lado, e representantes da antecessora da ré, por outro, declararam por escrito, consubstanciado na apólice nº 6 474 018, no dia 5 de Novembro de 1998, a última assumir, mediante prémio a pagar pelo primeiro, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com o veículo automóvel com matrícula nº UX00-00, até ao montante de 125 000 000$.
2. No dia 8 de Maio de 1999, cerca das 10 horas, na Rua ..., em Tomar, em estrada de traçado recto, com a largura de 4,80 metros, bom tempo, boa visibilidade e piso seco, a autora, nascida no dia 13 de Janeiro de 1942, conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula nº PD-00-00 cuja aquisição do direito de propriedade se encontra registada em nome do autor, no sentido poente - nascente, a 30 quilómetros por hora, dentro da metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, o mais encostado possível à berma direita.
3. Em sentido contrário - nascente-poente - DD conduzia naquela Rua o seu veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula nº UX-00-00, ia a olhar para o lado esquerdo e a tentar colocar o cinto de segurança na ocupante EE que ia a seu lado, invadiu a metade esquerda da faixa de rodagem atento o seu sentido de marcha, e foi embater com a parte da frente na parte frontal do veículo conduzido pela autora, na metade da faixa de rodagem por onde aquela circulava.
4. Na sequência do embate mencionado sob 3, em consequência directa e necessária do qual resultaram para a autora a fractura da coluna cervical (C2) e fractura exposta da rótula direita, foi transportada de ambulância para o Hospital de Tomar, de onde foi transferida para o Hospital de Torres Novas, para observação, e, dada a gravidade do seu estado foi transferida deste Hospital para o de Santa Maria em Lisboa.
5. A autora ficou internada no Hospital de Santa Maria, onde foi operada à fractura exposta da rótula direita e lhe foi aplicado halo cervical, até 18 de Maio de 1999, data em que foi transferida para o Hospital de Tomar, onde ficou internada desde 18 de Maio até 28 de Maio de 1999, e, após esta alta, andou em tratamento na consulta externa do Hospital de Santa Maria, devido à fractura da cervical, e na consulta externa do Hospital de Tomar por virtude da fractura da rótula.
6. A autora manteve o halo cervical até ao final de Agosto de 1999, foi operada, no dia 22 de Maio de 2000, no Hospital da Ordem Terceira em Lisboa, para extracção do material de osteossíntese do joelho direito, tendo tido alta em 23 de Maio de 2000, e em 28 de Agosto de 2000, teve alta das consultas da ré.
7. Desde a data da alta hospitalar até Agosto de 2000, necessitou a autora de ajuda de terceira pessoa para se mobilizar e para a realização das tarefas básicas, e iniciou um programa de fisioterapia que continuou, após retirar o halo cervical, por mais 3 séries de 20 tratamentos e que manteve até Janeiro de 2000, altura em que teve alta das consultas do Hospital de Santa Maria.
8. A autora tem actualmente tonturas constantes, agravadas com os movimentos da cabeça, formigueiros nos braços e nas mãos, dores à mobilização do pescoço, dificuldade em subir e descer escadas e em conduzir, dores no joelho direito, dores e edema no pé esquerdo, agravamento com mudanças de tempo, e usa colar cervical para aliviar as dores.
9. Ao exame objectivo, a autora apresenta dores e rigidez acentuada na coluna cervical, dor e rigidez do joelho direito, dor e edema na perna e tibiotársica esquerda, diminuição da força da perna esquerda, hipotesia nas extremidades dos membros superiores e cicatriz operatória longitudinal na região anterior do joelho direito.
10. As referidas lesões e sequelas determinaram para a autora incapacidade genérica temporária total desde 8 de Maio de 1999 até 31 de Agosto de 1999 e incapacidade genérica temporal parcial de 60% desde 1 de Setembro de 1999 até 23 de Agosto de 2000, e uma incapacidade permanente de 15%.
11. A partir de Janeiro de 2002 a autora passou a ser seguida nas consultas da ré seguradora.
12. Antes do acidente, a autora era uma mulher saudável, activa e trabalhadora, era cozinheira e ganhava 100 000$ mensais, e as intervenções cirúrgicas a que foi submetida causaram-lhe dores, que ainda hoje sente, ficou com cicatrizes no couro cabeludo, na testa e no joelho, o que lhe causa desgosto, sentindo-o pelo estado em que ficou.
13. A autora foi obrigada a contratar uma mulher para lhe prestar auxílio e para lhe fazer a lide doméstica, a quem pagou 100 000$ por mês até Maio de 2001 e, após esta data, faz entre 4 horas e 5 horas de serviço doméstico diário, pagando-lhe a autora 700$00 por hora.
14. A autora despendeu em exames médicos, taxas moderadoras de consultas e em exames e tratamentos a quantia de 7 100$, e em medicamentos 6 656$, e, em transportes colectivos e taxis para se deslocar a consultas médicas e tratamentos, 407 090$00.
15. A autora gastou num andarilho e em dois colares cervicais a quantia de 15 500$, e em refeições que teve de fazer fora de casa quando ia a consultas médicas a Lisboa ou a Tomar, 7 680$.
16. O veículo do autor sofreu estragos na parte frontal, impossibilitando-o de circular, a sua reparação foi orçamentada em 800 000$, e a ré entregou à autora 589 863$.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrida deverá ou não prestar à recorrente, a título de indemnização e compensação, mais € 71 557, 38 do que a Relação considerou.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação dos recorrentes e da recorrida, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- delimitação negativa do objecto do recurso;
- está ou não o acórdão recorrido afectado de nulidade por excesso de pronúncia ou de consideração indevida de algum facto?
- cálculo do dano emergente da recorrente decorrente da necessidade de auxílio de outrem;
- cálculo do dano futuro da recorrente por virtude da incapacidade permanente de que ficou afectada;
- cálculo da compensação devida à recorrente por danos não patrimoniais;
- têm ou não os recorrentes direito a indemnização pela privação do uso do veículo automóvel?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões.

1.
Comecemos pela delimitação do objecto do recurso em função do conteúdo das respectivas conclusões de alegação.
O objecto do recurso em análise é delimitado pelo conteúdo das alegações dos recorrentes (artigos 664º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Não está em causa no recurso a exclusiva imputabilidade do acidente a DD a título de culpa nem o nexo de causalidade entre a sua condução automóvel ilícita e culposa e as lesões sofridas pelos recorrentes.
Também não está em causa no recurso, por um lado, o segmento indemnizatório no montante de € 2 214,79 relativos a despesas com exames médicos, consultas, taxas moderadoras, tratamentos, transportes, alimentação, andarilho e colares cervicais, nem o segmento relativo à reparação do veículo automóvel no montante de € 3 990,38.
Nem, por outro, o valor da indemnização pelos danos sofridos pelo recorrente nem a problemática da indemnização moratória correspondente aos juros de mora, nem a cobertura pelo contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel da indemnização em causa, nos termos dos artigos 427º do Código Comercial e 5º, alínea a) e 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro.
Consequentemente, porque as recorrentes não suscitaram a referida problemática, não nos pronunciaremos sobre ela no recurso.

2.
Atentemos agora sobre se o acórdão recorrido está ou não afectado de nulidade.
Os recorrentes, invocando a violação pela Relação do disposto nos artigos 659º, nº 3, 668º, nº 1, alínea d), 713º, nº 2 e 716º, nº 1, do Código de Processo Civil, alegaram a nulidade do acórdão por virtude de nele ter sido considerado, não obstante não constar dos factos provados, que a recorrente, à data do acidente, estava desempregada.
O acórdão é nulo, além do mais que aqui não releva, quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (artigos 668º, nº 1. alínea d), segunda parte, e 716º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Estes normativos estão conexionados com o que se prescreve na segunda parte do nº 2 do artigo 660º, por remissão do artigo 713º, nº 2, ambos do Código de Processo Civil, segundo o qual o tribunal não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
As questões a que se reportam os artigos 660º, nº 2, segunda parte, e 668º, nº 1, alínea d), segunda parte, são as proposições nucleares de facto e de direito em que as partes fundam as respectivas pretensões, incluindo as excepções.
A Relação conheceu das proposições de facto e de direito em que os recorrentes fundaram as conclusões de alegação no recurso de apelação. Acresce que a decisão da Relação de considerar provado o desemprego da recorrente ao tempo do acidente de viação não integra o referido conceito de questão relevante para efeito da nulidade processual acima referida.
Em tema de fundamentação dos acórdãos, deve a Relação considerar os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que teve por provados, fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer (artigos 659º, nº 3 e 713º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Não constava do elenco dos factos provados considerados pelo tribunal da primeira instância que a recorrente, à data do acidente, estava desempregada.
Todavia, a Relação considerou no recurso de apelação o mencionado facto, o que significa que o considerou provado, o que se inclui nos seus poderes sobre a matéria de facto (artigos 712º e 729º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Não infringiu o disposto no artigo 659º, nº 3, do Código de Processo Civil, certo que ele comporta a consideração no acórdão dos factos que tenha por provados.
Como se não verifica, no caso vertente, a excepção a que se reporta o nº 2 do artigo 729º do Código de Processo Civil, não pode este Tribunal sindicar a referida decisão da Relação.
Improcede, por isso, a alegação de nulidade do acórdão e de violação da estrutura do acórdão formulada pelos recorrentes.

3.
Vejamos agora o dano emergente da recorrente derivado da necessidade de auxílio de outrem.
A este propósito está assente que a autora foi obrigada a contratar uma mulher para lhe prestar auxílio e para lhe fazer a lide doméstica, a quem pagou 100 000$ por mês até Maio de 2001 e, após esta data, que ela faz entre 4 horas e 5 horas de serviço doméstico diário pagando-lhe a autora 700$ por hora, e que está afectada de incapacidade permanente de quinze por cento.
O tribunal da primeira instância considerou ser previsível continuar a recorrente a necessitar da empregada durante onze anos – até aos setenta anos – e a suportar o seu custo, e, com base no vencimento anual de € 5 377,04, calculou esta vertente do ano no montante de € 59 147,45.
A Relação considerou, por seu turno, por um lado, que as sequelas permanentes da recorrente geradoras da sua incapacidade de quinze por cento não são absolutamente incapacitantes da execução das lides domésticas.
E, por outro, que há situações de execução de tarefas domésticas para as quais estará efectivamente incapacitada terá necessidade de recorrer a terceira pessoa.
E, finalmente que, na falta de elementos objectivos que permitissem fixar uma indemnização por esse dano, com base nos elementos ditos disponíveis, ao abrigo do artigo 566º, nº 3, do Código Civil, fixou a correspondente indemnização no montante de € 10 000.
A necessidade de apoio de terceiros para a realização das tarefas da vida diária ocorre em relação aos grandes inválidos, ou seja, às pessoas gravemente afectadas de sequelas permanentes.
Todavia, no caso vertente, os factos provados não revelam que recorrente, por virtude da sua incapacidade permanente de quinze por cento, dependa de empregada doméstica para a realização das suas lides domésticas.
Este Tribunal não tem competência funcional para sindicar o juízo de presunção de facto da Relação ao considerar a eventualidade de a recorrente, relativamente a tarefas domésticas mais pesadas, necessitar apenas pontualmente do auxílio de terceira pessoa.
Face aos elementos de facto disponíveis, na envolvência do princípio da equidade, considerando o disposto no artigo 566º, nº 3, do Código Civil, a conclusão é no sentido de que esta vertente do dano foi correctamente quantificada pela Relação.

4.
Atentemos agora no cálculo do quantum indemnizatório devido à recorrente por virtude da incapacidade permanente de que ficou afectada.
No tribunal da primeira instância foi fixada à recorrente a indemnização no montante de € 7 352,98 por danos patrimoniais futuros relativos à perda da capacidade de ganho decorrente da sua incapacidade permanente de quinze por cento.
Utilizou-se para o efeito uma fórmula aritmética que teve em conta o salário mensal da recorrente no montante equivalente a € 498, 80, multiplicado por catorze meses e o resultado assim obtido multiplicado por quinze por cento de incapacidade e 7,019 692 a título de factor de actualização, e a Relação manteve o decidido.
A recorrente pretende que lhe seja atribuída a esse título indemnização no montante de € 20 945,51, por via da utilização de tabela de cálculo que tenha em conta a desvalorização monetária, a sua progressão salarial durante os últimos oito anos de vida activa, o rendimento anual e a taxa de juro de cinco por cento.
A este propósito está assente, por um lado, que para a recorrente, cozinheira de profissão, auferindo mensalmente o equivalente a € 498,79, resultaram sequelas que lhe determinaram incapacidade permanente de quinze por cento.
E, por outro, ao tempo do acidente ela estava desempregada, que aquando da alta clínica, tinha 58 anos, sete meses e dez dias, e que dos 65 anos, data normal da sua reforma, distavam 6 anos, quatro meses e dez dias.
O ressarcimento dos danos futuros, como é o caso vertente, por cálculo imediato, depende da sua previsibilidade e determinabilidade (artigo 564º, n.º 2, 1ª parte, do Código Civil).
Os conceitos de determinabilidade e de indeterminabilidade reportam-se aos danos certos, ou seja, àqueles em que os factos permitem ou não de imediato a precisão do seu montante.
No caso de não serem imediatamente determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior (artigo 564º, nº 2, 2ª parte, do Código Civil).
Assim, na fixação da indemnização devem ser atendidos os danos futuros – danos emergentes ou lucros cessantes – desde que previsíveis, isto é, razoavelmente prognosticáveis, naturalmente em quadro de antecipação do tempo em que irão ocorrer.
Entre os danos futuros previsíveis demarcam-se os certos, razoavelmente prognosticáveis, e os que são meramente eventuais, isto é, os que comportam maior ou menor grau de certeza de ocorrência.
A referência da lei à previsibilidade do dano implica que não sejam susceptíveis de indemnização os danos futuros imprevisíveis, ou seja, quando, face aos factos provados, não sejam razoavelmente prognosticáveis, aos quais são assimilados os eventuais com intenso grau de incerteza de verificação.
Os danos futuros previsíveis, a que a lei se reporta, são essencialmente os certos ou suficientemente prováveis, como é o caso, por exemplo, da perda ou diminuição da capacidade produtiva de quem trabalha e, consequentemente, de auferir o rendimento inerente, por virtude de lesão corporal.
A regra é no sentido de que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que se verificaria se não tivesse ocorrido o evento que obriga à reparação, a fixar em dinheiro no caso de inviabilidade de reconstituição em espécie (artigos 562º e 566º, n.º 1, do Código Civil).
A indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que ele teria então se não tivesse ocorrido o dano, e, não podendo ser determinado o seu valor exacto, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (artigo 566º, nºs 2 e 3, do Código Civil).
A incapacidade permanente é susceptível de afectar e diminuir a potencialidade de ganho por via da perda ou diminuição da remuneração ou da implicação para o lesado de um esforço acrescido para manter os mesmos níveis de ganho ou para exercer as várias tarefas e actividades gerais quotidianas.
No primeiro caso, procurando atingir a justiça do caso, têm os tribunais vindo a acolher a solução de a indemnização do lesado por danos futuros dever representar um capital que se extinga ao fim da sua vida activa e seja susceptível de lhe garantir, durante ela, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho.
Têm sido utilizadas para o efeito pela jurisprudência fórmulas e tabelas financeiras várias, na tentativa de se conseguir um critério tanto quanto possível uniforme. Mas as referidas fórmulas não se conformam com a própria realidade das coisas, avessa a operações matemáticas, certo que não é possível determinar o tempo de vida útil, a evolução dos rendimentos, da taxa de juro e do custo de vida.
Acresce não existir uma relação proporcional entre a incapacidade funcional e o vencimento auferido pelo exercício de uma profissão em termos de se poder afirmar que ocorre sempre uma diminuição dos proventos na medida exactamente proporcional à da incapacidade funcional em causa.
Assim, nesse caso, as mencionadas tabelas só podem ser utilizadas como meramente orientadoras e explicativas do juízo de equidade a que a lei se reporta.
Como se trata de dano futuro no âmbito de um longo período de previsão, a solução mais ajustada é a de conseguir a sua quantificação imediata, embora, face à inerente dificuldade de cálculo, com ampla utilização de juízos de equidade.
Assim, a partir dos pertinentes elementos de facto apurados, independentemente do seu desenvolvimento no quadro das referidas fórmulas de cariz instrumental, deve calcular-se o montante da indemnização em termos de equidade, no quadro de juízos de verosimilhança e de probabilidade, tendo em conta o curso normal das coisas e as particulares circunstâncias do caso.
E apesar do longo período de funcionamento da previsão, a quantificação deve ser imediata, sob a atenuação da fluidez do cálculo no confronto da referida previsibilidade, no âmbito da variável inatingível da trajectória futura do lesado, quanto ao tempo de vida e de trabalho e à espécie deste, por via dos referidos juízos de equidade.
Devem, pois, utilizar-se juízos lógicos de probabilidade ou de verosimilhança, segundo o princípio id quod plerumque accidit, com a equidade a impor a correcção, em regra por defeito, dos valores resultantes do cálculo baseado nas referidas fórmulas de cariz instrumental.
No fundo, a indemnização por dano patrimonial futuro deve corresponder à quantificação da vantagem que, segundo o curso normal das coisas ou de harmonia com as circunstâncias especiais do caso, o lesado teria obtido não fora a acção e ou a omissão lesiva em causa.
No caso vertente, os factos provados não revelam se a incapacidade de grau médio inferior de que a recorrente ficou a sofrer lhe vai ou não implicar redução do salário normal correspondente ao exercício da sua profissão de cozinheira.
Todavia, importa considerar que a mera afectação da pessoa do ponto de vista funcional, isto é, sem se traduzir em perda de rendimento de trabalho, releva para efeitos indemnizatórios, como dano biológico, porque determinante de consequências negativas a nível da actividade geral do lesado.
O referido dano biológico, de cariz patrimonial, justifica, com efeito, a indemnização, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial. Mas as regras de cálculo da indemnização por via das mencionadas tabelas não se ajustam, como é natural, a essa situação.
Perante o mencionado quadro de facto – profissão, idade, rendimento de trabalho, grau de incapacidade geral – e a equidade a operar, mostra-se adequado o cálculo do dano patrimonial futuro operado nas instâncias.

5.
Vejamos agora o cálculo da compensação devida à recorrente por danos não patrimoniais.
Os danos não patrimoniais não são avaliáveis em dinheiro, certo que não atingem bens integrantes do património do lesado, antes incidindo em bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, o bom nome e a beleza.
O seu ressarcimento assume, por isso, uma função essencialmente compensatória, embora sob a envolvência de uma certa vertente sancionatória.
Expressa a lei que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, aferida em termos objectivos, mereçam a tutela do direito (artigo 496º, n.º 1, do Código Civil).
O montante pecuniário da compensação deve fixar-se equitativamente, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias a que se reporta o artigo 494º do Código Civil (artigo 496º, n.º 3, 1ª parte, do Código Civil).
No caso de a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem (artigo 494º do Código Civil).
Assim, as circunstâncias a que, em qualquer caso, o artigo 496º, nº 3, manda atender são o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
A apreciação da gravidade do referido dano, embora tenha de assentar no circunstancialismo concreto envolvente, deve operar sob um critério objectivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjectividade inerente a alguma particular sensibilidade humana.
O acórdão recorrido confirmou a sentença proferida no tribunal da 1ª instância que fixou a compensação por danos não patrimoniais devida à recorrente no montante de € 25 000.
Ela pretende, porém, a sua fixação no montante de € 33 668, sob o fundamento da sua diminuição física e psíquica, do seu sofrimento actual, dos seus quatro internamentos e do seu prolongado tratamento doloroso.
A recorrente sofreu fractura da coluna cervical e fractura exposta da rótula direita, foi operada quanto a esta, usou halo cervical, esteve internada em dois hospitais, foi tratada em consulta externa, foi-lhe extraído material de osteossíntese, submeteu-se a fisioterapia e ficou com quinze por cento de incapacidade.
Revela objectivamente dor e rigidez acentuada na coluna cervical, dor e rigidez do joelho direito, dor e edema na perna e tibiotársica esquerda, diminuição da força da perna esquerda, hipotesia nas extremidades dos braços e cicatriz operatória longitudinal na região anterior do joelho direito.
Experimenta dificuldade em subir e descer escadas e na condução, sente tonturas agravadas com os movimentos da cabeça, formigueiros nos braços e nas mãos e dores à mobilização do pescoço, com agravamento durante as mudanças do tempo, e usa colar cervical para as aliviar.
Ficou com cicatrizes no couro cabeludo, na testa e no joelho, o que lhe causa desgosto.
Estamos perante um quadro de sofrimento físico-psiquico que, pela sua gravidade merece a tutela do direito, e o acidente é imputável a título de culpa grave a Pedro Pereira.
Não se conhece exactamente a situação financeira da recorrente, salvo a que decorre da configuração da sua situação profissional, e ignora-se a situação económica de Pedro Pereira,
Mas esta circunstância não releva porque está a ser accionada uma empresa em virtude de funcionar a cobertura de um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel.
Tendo em conta o referido quadro de dano não patrimonial a que acima se fez referência, usando do juízo de equidade a que se reporta o artigo 496º, nº 3, 1ª parte, do Código Civil, julga-se adequada a compensação de € 25 000 que à recorrente foi fixada nas instâncias.

6.
Atentemos agora na sub-questão de saber se os recorrentes têm ou não direito a indemnização pela privação do uso do veículo automóvel.
A este propósito está assente que veículo automóvel dos recorrentes teve estragos na parte frontal, impossibilitando-o de circular, do que decorre terem ficado privados do respectivo uso.
Ignora-se, todavia, tal como foi considerado no acórdão recorrido, o tempo durante o qual os recorrentes ficaram privados do uso do mencionado veículo automóvel.
Os meros transtornos derivados da privação do uso do veículo automóvel não justificam indemnização por danos não patrimoniais, por não assumirem a gravidade merecedora da tutela do direito a que se reporta o artigo 496º, nº 1, do Código Civil.
Está provada a impossibilidade de os recorrentes utilizarem o seu veículo automóvel por virtude de este não estar em condições de circulação; mas não está assente que dela lhe tenha advindo algum específico prejuízo, ou seja, algum dano emergente ou a privação de algum lucro ou ganho.
O instituto da responsabilidade civil visa, para o caso de afectação de bens materiais, a reconstituição da situação que existiria se não tivesse o evento causador do prejuízo, ou seja, indemnizar os prejuízos sofridos por uma pessoa (artigo 562º do Código Civil).
É certo que, em regra, por um lado, gozar o proprietário de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (artigo 1305º do Código Civil).
E, por outro, dever o agente que, ilicitamente, com dolo ou mera culpa, ou mesmo no quadro do risco, como ocorre em matéria de acidentes de viação, violar aquele direito deve indemnizá-lo dos danos que lhe causar (artigos 483º e 499º a 510º do Código Civil).
Todavia, a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil também depende da existência de danos e pressupõe, como é natural, a verificação do nexo de causalidade entre eles e o facto ilícito lato sensu (artigos 563º do Código Civil).
Também é certo expressar a lei que o tribunal deverá julgar equitativamente dentro dos limites que tiver por provados se não puder averiguar o valor exacto dos danos (artigo 566º, nº 3, do Código Civil).
Isso significa que os juízos de equidade não suprem a inexistência de factos reveladores do dano ou prejuízo reparável derivado de facto ilícito lato sensu, porque o referido suprimento só ocorre em relação ao cálculo do respectivo valor em dinheiro.
Ademais, prescreve a lei que, em regra, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos (artigo 566º, nº 2, do Código Civil).
Assim, face ao referido normativo, a indemnização pecuniária deve corresponder à diferença entre a situação patrimonial efectiva do lesado aquando da decisão da matéria de facto e a sua situação provável nessa altura se a causa do dano não tivesse ocorrido.
A referida regra de cálculo da indemnização em dinheiro, inspirada pelo princípio da diferença patrimonial, não dispensa, como é natural, o apuramento de factos que revelem a existência de dano ou prejuízo na esfera patrimonial da pessoa afectada.
Assim, face ao nosso ordenamento jurídico, a mera privação do uso de um veículo automóvel, isto é, sem qualquer repercussão negativa no património do lesado, ou seja, se dela não resultar um dano específico, emergente ou na vertente de lucro cessante, é insusceptível de fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil.
E pela negativa afectação do direito de propriedade dos recorrentes sobre o veículo automóvel em causa, consubstanciada no estrago que o envolveu, eles têm o direito a ser ressarcidos por via de restauração natural ou de substituição monetária (artigos 562º e 566º, nº 1, do Código Civil).
Assim, tal como foi considerado no acórdão recorrido, não têm os recorrentes direito a indemnização pela mera privação do uso do seu veículo automóvel, porque não está assente que dela lhes tenha advindo algum específico prejuízo.

7.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
O objecto do recurso, dado o conteúdo das respectivas conclusões de alegação, apenas envolve as questões do quantum da indemnização pelo dano futuro derivado da incapacidade da recorrente, pelo dano decorrente da necessidade de assistência de terceira pessoa, pelo dano derivado da privação do uso do veículo automóvel e da compensação por dano não patrimonial.
O acórdão recorrido não está afectado de nulidade por excesso de pronúncia ou por consideração de factos não constantes do elenco considerado no tribunal da primeira instância.
Os factos provados justificam o quantum indemnizatório relativo à incapacidade permanente de que a recorrente ficou afectada, incluindo a perda patrimonial correspondente à assistência de terceira pessoa, bem como o quantum compensatório decorrente do dano não patrimonial.
A privação do uso do veículo automóvel desacompanhada de prejuízo específico dela decorrente não justifica legalmente a atribuição de indemnização aos recorrentes.

Improcede, por isso, o recurso.
Vencidos, são os recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Todavia, como beneficiam do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e dos demais encargos com o processo, inexiste fundamento para que sejam condenadas no pagamento das respectivas custas (artigos 15º, alínea a), 37º, nº 1 e 54º, nºs 1 a 3, da Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e 51º, nº 2, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho).

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso.

Lisboa, 5 de Julho de 2007.

Salvador da Costa (relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luis