Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B4255
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERREIRA GIRÃO
Descritores: DESPACHO SANEADOR
CONHECIMENTO NO SANEADOR
FACTOS
DISCRIMINAÇÃO
Nº do Documento: SJ200502100042552
Data do Acordão: 02/10/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 10680/02
Data: 06/17/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: ORDENADA A BAIXA DO PROCESSO.
Sumário : I - Não sendo caso de inconcludência (manifesta improcedência do pedido), deve o acórdão da Relação -- confirmativo da decisão que absolve do pedido no despacho saneador -- discriminar os factos que considere provados;
II - Não estando discriminados os factos, o Supremo não pode aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado à situação concreta, pelo que deve mandar baixar o processo à Relação para que esta se pronuncie explicitamente quanto à matéria de facto que considera provada, nos termos dos artigos 729, nº3 e 730, nº2 do CPC, aplicados extensivamente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Na presente acção intentada por A,- Industrialização e Comércio de Carnes, Ldª contra Caixa B (ex-Caixa de ...) e C - Sociedade Parabancária de Valorização de Créditos, SA, pede a autora que seja declarada a nulidade dos contratos de mútuo celebrados entre ela e a 1ª ré, bem como a consequente nulidade do contrato de cessão de créditos celebrado entre as duas rés - contratos estes todos documentados nos autos --, alegando, em síntese, que:

-- os contratos de mútuo foram simulados, uma vez que as quantias alegadamente mutuadas à autora acabaram por ser canalizadas para uma outra sociedade denominada D- Comércio e Indústria de Produtos Alimentares, Ldª, destinando-se ao pagamento de produtos;

-- essas operações simuladas foram efectivadas por indivíduos que eram simultaneamente gerentes de direito da D, gerentes de facto da autora e directores da Caixa, o que lhes permitiu solicitar a esta ré a concessão dos empréstimos em nome da autora, autorizar os mesmos empréstimos em nome da Caixa e desviar o dinheiro para a D, sua verdadeira destinatária, que beneficiou, assim, de avultadas quantias, sem incorrer na obrigação de as devolver à mutuante;

-- não era, assim, vontade quer dos mutuantes, quer dos mutuários que as quantias emprestadas revertessem a favor da autora, que foi usada somente para camuflar um desvio de dinheiro dos cofres da Caixa B para a D, respectivos sócios e gerentes, bem como para o presidente da mesma Caixa Agrícola;

-- acresce que nem os pedidos dos alegados empréstimos foram autorizados pela assembleia geral da autora, nem a concessão dos mesmos foi aprovada pela direcção da Caixa, conforme exigia o n. 2 do artigo 36 do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo e das Cooperativas de Crédito Agrícola então em vigor, constante do DL 231/82, de 17 de Junho;

-- as alegadas operações de crédito ultrapassaram os limites legais estabelecidos no referido artigo 36, com as alterações introduzidas pelo DL 316/85, de 2 de Agosto;

-- os documentos formalizadores dos supostos empréstimos apresentam graves deficiências, designadamente faltas de assinaturas, que «implicam a respectiva nulidade»;

-- as hipotecas para garantia dos supostos empréstimos nunca foram formalizadas por escritura pública nem registadas, «porque os dirigentes da Caixa que levaram a cabo a simulação não tinham qualquer intenção de pagar os empréstimos que eles mesmo haviam contraído e visavam, com tal omissão, dilatar o prazo da constituição da provisão do empréstimo para cinco anos, assim iludindo o Banco de Portugal».

Para além das normas legais já referenciadas, invoca ainda a autora os artigos 240 e 280, ambos do Código Civil.
Ambas as rés contestaram no sentido da improcedência da acção.
No despacho saneador, as rés foram absolvidas da instância «em face da manifesta improcedência do pedido da autora, ao abrigo do disposto nos arts. 493, ns. 1 e 2 e 495 do Cód. Proc. Civil».

Utilizando a faculdade remissiva concedida pelo nº5 do artigo 713 do Código de Processo Civil, a Relação de Lisboa confirmou esta decisão, negando assim provimento à apelação dela interposta pela autora, que, por isso, pede agora revista desse acórdão confirmativo, com a formulação das seguintes conclusões:

1. Se uma acção vem a ser decidida no despacho saneador com base na «manifesta improcedência do pedido», essa decisão deve ser feita com fundamento no artigo 510, n. 1, b) do CPC, que importa absolvição do pedido.

2. Porque considerou o pedido formulado pela recorrente como sendo manifestamente improcedente, mas classificou essa improcedência como «excepção dilatória inominada», acabando por absolver as recorridas da instância, a douta decisão recorrida está ferida de nulidade, por contradição entre os fundamentos (improcedência do pedido) e a decisão (absolvição da instância, por verificação de excepção dilatória), nos termos do artigo 668, 1, c) do CPC.

3. Na verdade, houve interpretação e aplicação errada dos artigos 510, n. 1,a) e b) e 493, n. 2 e 495 do mesmo Código, pois a decisão recorrida, conhecendo do mérito da causa, uma vez que a considera «manifestamente improcedente», deveria fundamentar-se na segunda alínea do n. 1 do artigo 510, n. 1 do CPC, não na primeira, e tal «improcedência manifesta» não pode ser classificada como «excepção dilatória», pois a excepção dilatória é justamente a que impede que se conheça do mérito da causa.

4. São pressupostos da simulação a existência de divergência entre a vontade real e a vontade declarada, o acordo simulatório e o intuito de enganar terceiros (artigo 240, n. 1 do Código Civil).

5. A despeito do que é sustentado na douta decisão em crise, a recorrente alega na sua petição inicial os factos suficientes para, se provados, levarem à procedência da acção, pois a divergência entre vontade real e vontade declarada e o acordo simulatório, são alegados nos factos constantes dos artigos 53, 55 a 61, 63 e 64, entre outros, da petição inicial, deles resultando ainda o intuito de enganar terceiros.

6. Alegando a recorrente que era intenção dos contraentes, sob a capa do mútuo (negócio simulado), o desvio de fundos da antiga Caixa B, CRL, antecessora da recorrida CCAMETS, para a sociedade comercial «D» (negócio dissimulado), não pode considerar-se, como fez a douta decisão recorrida, que inexistiu divergência entre quanto desejado e quanto declarado por mutuário e mutuante, bem como que não houve acordo simulatório.

7. Por outro lado, foram incluídos na petição inicial factos que, a provar, demonstrariam a intenção de enganar terceiros, nomeadamente quando se refere que, com a simulação, se pretendia isentar a «D» da obrigação de devolver as quantias mutuadas e transferir tal responsabilidade para a recorrente.

8. Ao considerar estes factos insuficientes para que se pudesse provar a simulação, a douta decisão recorrida interpreta e aplica de modo incorrecto o artigo 240, n. 1 do Código Civil, pois vai além da letra e do espírito do mesmo, exigindo a alegação/prova de factos que a lei por sua vez não exige.

9. Não se reconduz à responsabilidade de gerentes ou administradores a situação em que, fazendo-se passar por gerentes de determinada sociedade comercial, certos indivíduos celebram negócios jurídicos em nome da mesma, negócios esses cuja outra contraente é entidade em que tais indivíduos exercem funções e que tem pleno conhecimento da falta de poderes daqueles.

10. Estando todos os intervenientes conscientes da falta de poderes de representação por parte dos supostos gerentes, a sua actuação concertada reconduz-se à simulação, sendo que chegou a haver sobreposição entre os representantes de mutuante e mutuária, com a agravante de terem sido usados abusivamente nome, conta bancária e crédito da recorrente.

11. Para além disso, a responsabilidade por actos praticados no exercício das funções de gerente, administrador ou director, previsto no artigo 72 do Código das Sociedades Comerciais, penaliza aqueles que violaram os seu deveres «legais ou contratuais», de que resulta que apenas pode incorrer nela quem tenha sido legalmente nomeado para o exercício de um daqueles cargos, mas não a quem haja usurpado as funções de gerente e, por conseguinte, nunca esteve vinculado por quaisquer deveres legais ou contratuais.

12. Ao remeter a recorrente para uma acção essa sim inviável a douta decisão recorrida interpreta incorrectamente o artigo 72 do CSC, porque estende a sua aplicabilidade para lá do estabelecido na própria norma.

13. Mais, pretendendo-se a declaração de nulidade de certos contratos, a acção tem que ser movida a quem os tenha outorgado, não sendo possível obter tal declaração em processo movido exclusivamente contra quem seja terceiro com respeito à relação material controvertida, como pretende a douta decisão recorrida ao remeter a recorrente para uma hipotética acção contra quem exerceu funções de gerente de forma irregular no seu seio, pelo que há igualmente interpretação errada do artigo 26 do CPC.

Contra-alegaram ambas as recorridas, defendendo a improcedência do recurso.
Corridos o vistos, cumpre decidir.

Começa a recorrente por arguir a nulidade do acórdão recorrido por contradição entre a fundamentação e a decisão - artigo 668, n. 1, alínea c) do Código de Processo Civil (CPC) --, pois que, tendo concluído pela manifesta improcedência do pedido, deveria ter absolvido as rés/recorridas do pedido e não da instância, conforme erradamente decidiu, qualificando, também erradamente, tal improcedência, como uma excepção dilatória inominada.

Não se verifica, porém, a arguida nulidade, pois que, tendo-se concluído no acórdão recorrido pela existência de uma excepção dilatória, a consequência legal só poderia ser a absolvição da instância ou a remessa do processo para outro tribunal, nos termos do n. 2 do artigo 493 do CPC.
A decisão está, por isso, em perfeita consentaneidade com a fundamentação.

Apesar disso e ainda no âmbito que ora nos ocupa - o das suas consequências processuais - a decisão sob recurso não deixa de ser um decisão errada.

Na verdade, o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador só pode levar à condenação ou à absolvição do pedido - artigo 510, ns. 1, alínea b) e 3 (última parte) do CPC --, pelo que a correcta decisão deveria ter sido, tendo em conta a perspectiva das instâncias sobre o material fáctico alegado pela recorrente na petição inicial, a de absolver as recorridas do pedido, como bem defende a recorrente.

Mas - e entrando agora no âmago do recurso - será o pedido manifestamente improcedente, como decidiram as instâncias?
Ou, ao contrário e como ela própria defende, alegou a recorrente material fáctico suficiente para a procedência da acção?

A fundamentação decisória assentou exclusivamente na análise da petição inicial, que, segundo as instâncias, não contém factos reveladores da invocada simulação e ainda que o demais alegado, integrante da causa de pedir, não passa de «irregularidades» eventualmente fundamentadoras de uma acção da autora contra a sua gerência com fundamento no artigo 72, n. 1 do Código das Sociedades Comerciais (CSC).
Começaremos por dizer que não concordamos com este entendimento.

Na nossa perspectiva, a petição inicial, só por si, contém factos suficientemente indiciadores da alegada simulação (artigo 240 do Código Civil), traduzida na chamada interposição fictíca de pessoas, uma vez que, segundo o alegado, por conluio entre os respectivos corpos gerentes (integrados pelas mesmas pessoas físicas), a verdadeira mutuária dos empréstimos concedidos pela Caixa foi a D (para a qual foram canalizadas todas as quantias mutuadas), tendo a autora, ora recorrente A, intervindo como mera intermediária, ficando ela, no entanto, responsável pela devolução das quantias, em natural e óbvio prejuízo dos respectivos sócios (terceiros relativamente ao negócio, uma vez que não intervieram nele, mas antes e alegadamente «gerentes de facto»).

Acresce que a pedida nulidade dos mútuos assenta também nas alegadas irregularidades da respectiva formalização, por violação do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo e das Cooperativas do Crédito Agrícola, aprovado pelo DL 231/82, de 17 de Junho, o que poderá integrar - muito mais do que a mera responsabilização societária prevista no artigo 72 do CSC, como defendem as instâncias - a previsão do artigo 280 do Código Civil, também invocado na petição inicial.

Ou seja, não estamos perante um caso de inconcludência (ou manifesta improcedência do pedido, como foi qualificado pelas instâncias), justificativo do indeferimento liminar (nos casos previstos no artigo 234-A do CPC), ou da absolvição do pedido no despacho saneador, ao abrigo do artigo 510, n. 1, alínea b) do mesmo Código).

Sendo assim, as instâncias deveriam ter tomado em conta a matéria fáctica alegada não só na petição inicial, como nos demais articulados entretanto oferecidos, fixando os factos que consideram provados (se, porventura, entenderem não ser caso de fazerem uso prévio do convite ao aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos ns. 1, b) e 3 do artigo 508 do CPC).

E isto porque, sem essa discriminação fáctica, não poderá o Supremo, como tribunal essencialmente de revista que é, aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, conforme lhe determina o n. 1 do artigo 729 do CPC.

Tem vindo a ser pacificamente entendido neste Supremo que a omissão (total ou parcial) da matéria de facto pela Relação é situação compreendida no espírito da previsão dos artigos 729, n. 3 e 730, n. 2 e a que estes preceitos são aplicáveis extensivamente.
DECISÃO
Pelo exposto e ao abrigo dos artigos 729, n. 3 e 730, n. 2 ordena-se a baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para que, nos termos acima explicitados, seja fixada a matéria de facto.
Custas pelo vencido a final.

Lisboa, 10 de Fevereirode 2005
Ferreira Girão,
Luís Fonseca,
Lucas Coelho.