Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08S3441
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: VASQUES DINIS
Descritores: QUESTÃO DE FACTO
QUESTÃO DE DIREITO
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE DE TRABALHO
QUESTÃO NOVA
CULPA DO SINISTRADO
INFRACÇÃO ESTRADAL
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Nº do Documento: SJ200905070034414
Apenso:
Data do Acordão: 05/07/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I - A norma do n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil (CPC), segundo a qual devem ter-se por não escritas as respostas dadas pelo tribunal aos quesitos da base instrutória sobre questões de direito, tem subjacente a distinção entre matéria de facto e matéria de direito, que se reflecte no julgamento separado — quer do ponto de vista do momento lógico quer no tocante aos poderes de cognição do julgador — das questões de facto e de direito.

II - Para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei.

III - No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos).

IV - No mesmo âmbito, como realidades susceptíveis de averiguação e demonstração, se incluem os juízos qualificativos de fenómenos naturais ou provocados por pessoas, desde que, envolvendo embora uma apreciação segundo as regras da experiência, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio.

V - Para se saber se um embate de veículos foi ou não violento, basta conjugar a percepção colhida pelos sentidos de quem a ele assiste com as regras gerais da experiência, sem necessidade de elaborar no domínio das normas de direito, daí que o vocábulo "violentamente", utilizado para qualificar aquele fenómeno, representando um juízo não decorrente de qualquer operação de subsunção ou valoração jurídica e sem virtualidade para, por si só, fornecer a solução da controvérsia relativa à descaracterização de um acidente de trabalho, contém-se no domínio dos factos, não devendo, por conseguinte, aquele vocábulo ter-se por não escrito.

VI - A afirmação de que "O sinistrado circulava distraído, sem prestar atenção à sua condução e ao restante tráfego" reporta-se a um estado ou situação do foro interno, psíquico, do sinistrado, realidade cujo conhecimento se pode alcançar mediante a apreensão, pelos sentidos, e interpretação à luz das regras de experiência, de sinais revelados por comportamentos visíveis por outrem, sem qualquer necessidade de operações lógicas de subsunção a regras de direito, situando-se no domínio dos factos.

VII - Devem ter-se por não escritas, nos termos do artigo 646.º, n.º 4, do CPC, a expressão "sem que nada o justificasse", reportada à invasão pelo veículo do sinistrado da faixa de rodagem destinada à circulação de sentido contrário, bem como a expressão, referida ao comportamento da condutora do outro veículo interveniente na colisão, em relação à qual se disse, "que em nada contribuiu para o acidente", pois que ambas as expressões encerram juízos de valor só possíveis de alcançar mediante o recurso a critérios de ordem jurídico-normativa aplicados a realidades factuais, juízos esses que permitem determinar, directamente, se se verificam os pressupostos de que a lei faz depender a descaracterização do acidente — a culpa grave e exclusiva do sinistrado — e, desse modo, contêm, em si, a solução jurídica do pleito.

VIII - Por se tratar de questão nova, o Supremo Tribunal não pode conhecer da questão da descaracterização do acidente de trabalho com fundamento em «violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei» [artigo 7.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (LAT)], se tal fundamento não foi apreciado pelas instâncias, perante as quais apenas foi alegada a descaracterização com fundamento em que o acidente proveio «exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado» (artigo 7.º, n.º 1, alínea b), da LAT)».

IX - Não basta a mera circunstância de a conduta do sinistrado integrar uma infracção ao Código da Estrada, ainda que eventualmente qualificável como contra-ordenação grave ou muito grave para se dar como preenchido o requisito da negligência grosseira que integra a causa de descaracterização do acidente, pois que o regime jurídico dos acidentes de trabalho reclama mecanismos diferentes daqueles de que se socorre a legislação rodoviária: sendo aqui mais premente o interesse da prevenção geral – com o recurso a presunções de culpa e à punição de meras situações de perigo – jamais se poderiam transpor para a sinistralidade laboral os critérios de gravidade adoptados naquela legislação.

X - Para excluir o direito à reparação nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º da LAT, é indispensável que o evento seja imputado, mediante o estabelecimento do nexo de causalidade, exclusivamente, ao comportamento grosseiramente negligente do sinistrado, o que implica a prova de que nenhum outro facto concorreu para a sua produção, impendendo o ónus da prova dos factos que integram a negligência grosseira e a imputação do nexo de causalidade, a título exclusivo, entre ela e o evento danoso, por se tratar de factos impeditivos do direito à reparação, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, sobre a parte demandada.

XI - Estando provado que o acidente consistiu na colisão do velocípede sem motor conduzido pelo sinistrado com um veículo automóvel, que circulavam em sentidos opostos, na semi-faixa de rodagem destinada à circulação do automóvel, em estrada de traçado rectilíneo e inclinação ascendente, atento o sentido do velocípede, com o piso seco e boas condições climatéricas; que o sinistrado circulava distraído, sem prestar atenção à sua condução e ao restante tráfego; que o sinistrado invadiu a faixa de rodagem destinada à circulação dos veículos em sentido contrário, vindo a embater violentamente no automóvel; e que a condutora do automóvel, quando se apercebeu de que o velocípede circulava pela sua hemi-faixa de rodagem, travou e tentou encostar este à sua berma direita, mas não conseguiu evitar a colisão, dada a proximidade do velocípede em que vinha o Autor, deve considerar-se que que, para a colisão dos veículos, contribuiu decisivamente o comportamento do sinistrado, traduzido na invasão da parte da faixa de rodagem destinada à circulação de sentido contrário, assim infringindo a norma de direito rodoviário que tal proíbe.

XII - Porém, não se encontrando, na narração da matéria de facto provada, inequivocamente estabelecido o nexo causal entre a distracção e o facto de o velocípede ter invadido a semi-faixa de rodagem contrária, que pode ter acontecido por outras razões, que não a falta de atenção à condução e ao tráfego, não é possível qualificar de temerário, inútil, sem fundamento, o comportamento do sinistrado, o que afasta a consideração de que agiu com negligência grosseira.

XIII - E desconhecendo-se a velocidade dos veículos, em especial a do automóvel, elemento de particular relevância para aquilatar da inexistência de culpa concorrente, ainda que de grau diminuto, da condutora do automóvel, na produção do sinistro, não é possível imputar, exclusivamente, ao comportamento do sinistrado a ocorrência do acidente.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. Na presente acção especial emergente de acidente de trabalho, instaurada em 31 de Outubro de 2003, foi, no Tribunal do Trabalho de Santa Maria da Feira, proferida sentença que absolveu a Companhia de Seguros , S.A. do pedido de reparação dos danos resultantes do acidente laboral/rodoviário, contra ela formulado pelo sinistrado, BB, ocorrido no dia 6 de Outubro de 2003, pelas 17:20 horas, na Rua F.... Escapães, Santa Maria da Feira, ocasião em que se deslocava do local de trabalho para a sua residência e se registou a colisão do velocípede sem motor, que conduzia, com o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-.., conduzido por CC.

Considerou a sentença, acolhendo a tese defendida na contestação pela Ré, que o acidente se deveu, exclusivamente, a negligência grosseira do sinistrado e, por isso, o julgou descaracterizado, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (doravante, LAT).

O Autor apelou, sustentando, em síntese, que a matéria de facto provada não permite concluir, como concluiu o tribunal da 1.ª instância, pela descaracterização do acidente, dado não se mostrarem, no entender do apelante, preenchidos os requisitos da negligência grosseira em que se baseou o veredicto daquele tribunal.

O Tribunal da Relação do Porto concedeu provimento ao recurso e, revogando a sentença, condenou a Ré a pagar ao Autor:

«— A indemnização diária por incapacidade temporária absoluta, no montante total de € 3.930,75;

— A pensão anual e vitalícia no montante de € 3.117,31, pagável em duodécimos mensais, em 14 meses/ano, a partir da data da alta.

— O subsídio por situação de elevada incapacidade permanente, no montante total de € 4.279,2;

— A prestação suplementar, no montante mensal de € 292,48, pagável em 14 meses/ano, a partir da data da alta, e actualizável na proporção do aumento anual do salário mínimo nacional;

— As despesas com transportes, no montante total de € 500,00; e

— Os juros de mora, à taxa legal, desde as datas de vencimento de cada uma das prestações relativas à indemnização por incapacidade temporária, à pensão anual e vitalícia e à pensão suplementar. E desde a citação para o subsídio por situação de elevada incapacidade e para as despesas de transporte. E até integral pagamento de todas as prestações, nos termos dos artigos 135.º e 74.º, ambos do CPT.»

2. Inconformada, veio a Ré pedir revista, tendo formulado, a terminar a respectiva alegação, as seguintes conclusões:

«I. Perante o factualismo provado nos autos, dúvidas não restam de que o acidente dos autos ocorreu por inquestionável negligência grosseira e violação de regras de segurança rodoviária, por parte do sinistrado, sem causa justificativa.

II. Da matéria assente nos autos, nomeadamente os factos indicados em 15), 16), 18), 19) e 20) da douta sentença, resulta de forma inequívoca o comportamento negligente e temerário do sinistrado, que violou regras de segurança rodoviária essenciais, sem causa que o justificasse e que determinou o embate no veículo que circulava em sentido contrário.

III. Por outro lado, do factualismo provado nos autos resulta, também, que o acidente dos autos ocorreu por inquestionável negligência grosseira do sinistrado.

IV. Verifica-se, assim, que o autor/sinistrado não só agiu de forma inconsiderada, imprudente e desapropriada às condições de trânsito, como ainda, violou regras de circulação rodoviária sem qualquer justificação.

V. Com efeito, a colisão ficou a dever-se, única e exclusivamente, à condução desatenta, imperita e temerária do sinistrado.

VI. A condução do autor/sinistrado, note-se, determinou a invasão da faixa de rodagem contrária, sem qualquer causa que o justificasse, deu origem a um embate "violento" no veículo que circulava na hemi-faixa de rodagem contrária (cujo condutor tentou em vão evitar, encostando-se o mais possível à direita) e teve, ainda, como consequência as lesões de que o sinistrado ficou a padecer que melhor resultam dos autos.

VII. Sendo certo que, a violência do embate em discussão nos autos também se afere (quer se queira ou não) pelas lesões decorrentes do mesmo!

VIII. Na verdade, o sinistrado, ao conduzir o seu veículo em clara infracção das referidas regras rodoviárias e sem prestar atenção ao restante trânsito, desconsiderou e descuidou riscos e perigos totalmente previsíveis, violando, assim, um dever de cuidado que devia e podia ter acautelado.

IX. Pelo que, o autor/sinistrado agiu de forma imprudente, temerária e sem qualquer justificação.

X. O Tribunal a quo entende que a ré seguradora "(...) não alegou nem muito menos provou qualquer facto concreto que permita ao tribunal avaliar da causa da "distracção" do sinistrado, isto é, se foi própria ou alheia, bem como do nexo de causalidade entre a "distracção" e o acidente" ... e considera, ainda, conclusiva a alegação do art. 12.° da contestação.

XI. No entanto, o Tribunal de 1.ª instância ouviu os depoimentos prestados em audiência (os dois ocupantes do veículo OC referidos pela decisão sob recurso, aliás, as únicas testemunhas presenciais do acidente, para além, naturalmente, do autor/sinistrado), analisou-os juntamente com os documentos juntos aos autos (designadamente o auto policial elaborado pela GNR a fls. 291-292 dos autos) e concluiu pela negligência grosseira do sinistrado - "... Culpa essa que se consubstanciou em negligência grosseira e que se reflectiu até na prática de contra-ordenações estradais, circulando na via pública, distraído, sem prestar atenção à sua condução e ao restante tráfego...".

XII. A negligência grosseira poderá assumir gravidade diferente, sendo usual a distinção entre a negligência consciente e inconsciente e, em função da intensidade da ilicitude (a violação do cuidado objectivamente devido) e da culpa (violação do cuidado que o agente é capaz de prestar segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais), entre a negligência lata ou grave.

XIII. Ou seja, para que ocorra a "negligência grosseira" é necessário que se verifique, por parte do sinistrado, uma atitude temerária, manifestamente irreflectida ou indesculpável que seja reprovada por um elementar sentido de prudência. Ora, no caso dos autos, o risco de acidente existia e era absolutamente previsível para um ser humano de mediana cautela.

XIV. A negligência do sinistrado deverá ser qualificada, na medida em que comporta o citado "elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo" (vide o Acórdão do STJ de 29.11.2005, proferido na Revista n.º 1924/05-4, in www.dgsi.pt/jstj).

XV. Por outro lado, a conduta do sinistrado foi temerária, altamente censurável e adequada à produção do acidente, já que deve considerar-se "... negligência grosseira o prosseguimento de comportamentos traduzidos na omissão de cuidados e diligência necessários a obstar à produção de um resultado indesejado e que seriam de exigir a um homem dotado de conhecimentos médios, em face das circunstâncias concretas que se lhe deparavam ...". (Acórdão do STJ proferido em 10.10.2007, no processo 07S2446, in www.dgsi.pt/jstj, sendo o sublinhado nosso).

XVI. Ou seja, é precisamente por referência ao critério do "homo diligentissimus ou b[o]nus pater-familias" a que alude Carlos Alegre que o acidente em discussão nos presentes autos resulta de negligência grosseira do sinistrado.

XVII. O sinistrado colocou-se desnecessariamente, a si próprio e a terceiros, numa situação de grave perigo, com manifesto desprezo pelo risco de acidente que a violação de regras fundamentais representa.

XVIII. Na esteira do ora defendido, o Ac. do STJ de 14.03.2007, proferido no processo n.º 06S4907 (in www.dgsi.pt) defende, precisamente, que,

"Como resulta com evidência da alínea a) do n.° 1 do art. 7.º da Lei n.° 100/97, acabada de transcrever, a descaracterização do acidente apenas se verifica quando o sinistrado agiu com dolo, ou, no caso de incumprimento de regras de segurança impostas pela entidade patronal, quando não haja razão justificativa para esse incumprimento."

Esclarecendo o alcance deste preceito, Pedro Romano Martinez, escreve:

"Neste caso, o legislador exige somente que a violação careça de causa justificativa, pelo que está fora de questão o requisito da negligência grosseira da vítima; a exigência dessa culpa grave encontra-se na alínea seguinte do mesmo preceito. A diferença de formulação constante das alíneas a) e b) do n.° 1 do artigo 7.º da Lei dos Acidentes de Trabalho tem de acarretar uma interpretação distinta. Por outro lado, há motivos para que o legislador tenha estabelecido regras diversas. Na alínea a) só se exige a falta de causa justificativa, porque atende-se à violação das condições de segurança específicas daquela empresa; por isso, basta que o trabalhador conscientemente viole essas regras. (...)

As condições de segurança podem igualmente encontrar previsão na lei e, neste caso, incluem-se não só as regras de segurança no trabalho, como as que respeitam à segurança noutros sectores, nomeadamente na circulação rodoviária. (...).

Acresce que a norma da alínea a) do n.° 1 do artigo 7.º da Lei n.° 100/97 não exige comportamento doloso ou voluntário, mas unicamente a prática de "acto ou omissão", que importe a violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei. (...)."

XIX. Pelo que, a conduta do autor/sinistrado no caso sub judice é causa de exclusão do direito à reparação, nos termos das previsões das als. a) e b) do n.° 1 do art. 7.º da Lei n.° 100/97, devendo, em consequência, ter-se por descaracterizado o acidente em discussão nos autos.

XX. Face ao exposto, o Acórdão recorrido violou o disposto no já citado art. 7.º, n.° 1, als. a) e b) da Lei n.° 100/97, devendo, em consequência, ser revogado.

Nestes termos e nos mais de direito, deve conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se a ora Recorrente, de acordo com as precedentes conclusões, como é de inteira JUSTIÇA!»

Na contra-alegação, o Autor defendeu a confirmação do julgado.

A Exma. Magistrada do Ministério Público, neste Supremo Tribunal, exarou nos autos parecer no sentido de ser negada a revista, ao qual respondeu a recorrente para reafirmar a posição assumida na alegação da revista.

Corridos os vistos, cumpre decidir.


II

1. Na 1.ª instância, a matéria de facto provada foi descrita nos seguintes termos:

«1) No dia 6 de Outubro de 2003, cerca das 17,20 h., na R. F.... Escapães, Santa Maria da Feira, ocorreu um acidente de viação em que interveio o A. BB;

2) Nessa altura, o A. trabalhava sob as ordens e direcção da Lirel – Lima & Resende, Lda., sediada em Arrifana, com a categoria de aprendiz 1.º ano;

3) Auferia mensalmente o vencimento de 278,60 euros, pago 14 vezes por ano, acrescido de 3,40 euros por dia de subsídio de alimentação, pago 22 dias por mês e 11 meses por ano;

4) O acidente deu-se quando o A. se deslocava do seu local de trabalho para a sua residência;

5) Nele intervieram um veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-.., pertencente e conduzido por CC, e um velocípede sem motor, conduzido pelo A.;

6) O veículo OC circulava na rua referida em A) no sentido Escapães-Arrifana e o velocípede no sentido inverso;

7) Do acidente derivaram para o A. as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 260, que aqui se dá por reproduzido;

8) O A. foi dado como clinicamente curado em 7/12/2004, data em que lhe foi dada alta;

9) A entidade patronal do A. tinha a responsabilidade por acidentes de trabalho transferida para a Ré mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº 0000000000/0000

10) Foi tentada a conciliação entre as partes, nos termos e com os resultados constantes do auto de fls. 263 e 264, que aqui se dá por integralmente reproduzido;

11) Por virtude do acidente, o A. ficou afectado de uma I.P.P. de 80,8%, com incapacidade de exercer a sua profissão habitual, tendo necessidade de apoio ocasional de terceira pessoa, conforme consta do apenso para fixação da incapacidade para o trabalho (fls. 154);

12) Desde a data do acidente até à da alta referida em H), o A. ficou com incapacidade temporária absoluta para o trabalho;

13) Por virtude das sequelas do acidente, o A. ficou incapaz de desempenhar a generalidade das tarefas quotidianas e com extrema dificuldade de locomoção e comunicação, carecendo do auxílio ocasional de terceira pessoa;

14) Ainda por causa do acidente, o A. necessitou de se deslocar com frequência a clínicas e hospitais para tratamentos médicos, bem como teve de se deslocar aos Tribunais de Trabalho de Sta. Maria da Feira e do Porto, o que importou um dispêndio global de, pelo menos, 500 euros;

15) No local do acidente e atento o sentido de marcha do sinistrado, a estrada configura uma recta, com inclinação ascendente, pavimentada em betuminoso, em bom estado de conservação e com, pelo menos, 6 metros de largura;

16) No momento do acidente, as condições climatéricas eram boas e o piso estava seco;

17) O sinistrado circulava distraído, sem prestar atenção à sua condução e ao restante tráfego;

18) Sem que nada o justificasse, invadiu a faixa de rodagem destinada à circulação dos veículos em sentido contrário, vindo a embater violentamente no veículo..-..-..;

19) O embate deu-se totalmente na hemifaixa de rodagem desse veículo 00 que em nada contribuiu para o acidente;

20) Quando se apercebeu que o velocípede circulava pela sua hemifaixa de rodagem, a condutora do veículo ligeiro travou e tentou encostar este à sua berma direita, mas não conseguiu evitar a colisão, dada a proximidade do velocípede em que vinha o A..»

2. O Tribunal da Relação eliminou, nos termos do artigo 646.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, da narração da matéria de facto declarada provada pelo tribunal da 1.ª instância, o advérbio "violentamente", constante do item 18), bem como, integralmente, o item 17).

2. 1. Para dar como não escrito o referido advérbio, o acórdão discorreu assim:

«O adjectivo violento aplica-se para qualificar um acto ou um comportamento “em que há emprego de força brutal” ou “abuso da força” ou “uso de violência” (cfr. Dicionário Universal da Língua Portuguesa).

E, nos acidentes estradais, a “força brutal” ou o “abuso da força” ou a “violência” deve avaliar-se em função da velocidade imprimida aos veículos intervenientes em qualquer embate ou despiste, ou seja, quanto mais elevada for a velocidade, mais violento tende a ser o embate ou o despiste que ocorrer.

E não propriamente pelas suas consequências, pois, são conhecidos casos públicos (através de imagens televisivas ou de fotografias em jornais) de embates ou despistes aparatosos, com consequências pessoais menores, comparadas com o estado em que o veículo ou veículos ficaram após o acidente. Ao invés, são também conhecidos casos de embates ou despistes aparentemente sem grandes danos nos veículos, mas com consequências pessoais graves.

No caso dos autos, tratou-se de um embate entre uma bicicleta (“velocípede sem motor” – cfr. ponto 5 da matéria de facto) e um veículo ligeiro, com o pormenor, importante, diga-se, de a bicicleta circular no sentido da “inclinação ascendente” da viacfr. ponto 15 da matéria de facto.

Deste modo, não estando apuradas as velocidades da bicicleta (a subir não devia ser elevada, convenhamos), nem do veículo ligeiro (que travou e tentou encostar à berma direita), o advérbio violentamente tem natureza claramente conclusiva, pelo que se dá como não escrito, nos termos do artigo 646.º, n.º 4, do CPC.»

2. 2. E a supressão do item 17) — onde se consignara que "O sinistrado circulava distraído, sem prestar atenção à sua condução e ao restante tráfego" foi justificada como segue:

«Distraído é um adjectivo que significa “abstracto”, “esquecido”, “descuidado”, “entretido”, “alheado” (cfr. Dicionário Enciclopédico de Língua Portuguesa).

Tal expressão, levada ao quesito 6.º da base instrutória, foi retirada do artigo 12 da contestação da ré seguradora, que se terá apoiado na Descrição do Acidente, incluída na Participação de Acidente de Viação, junta com a contestação, a fls. 291-292 dos autos (a ré seguradora não apresentou qualquer outra prova testemunhal ou documental do acidente, para além dos dois ocupantes do veículo..-..-.. e da dita Participação), segundo a qual, a condutora do veículo ligeiro terá dito à GNR que o sinistrado/ciclista “ia a olhar para o lado, não se apercebendo que circulava na via de sentido oposto”.

Acontece, porém, que não está minimamente explicado o motivo ou motivos pelo(s) qual(is) o sinistrado “ia a olhar para o lado”.

Terá sido por mero descuido? Porque ia entretido a ouvir música, com auriculares nos ouvidos? Porque foi chamado por alguém que circulava na berma da estrada? Porque se tentou desviar de uma pedra ou pau ou areia (um perigo para as bicicletas) existente na via? Ou de um animal? Ou porque, a subir, o sinistrado ia em pé, em cima da bicicleta (levantado do selim – uma técnica muito usada pelos jovens, como é sabido. O autor tinha 16 anos de idade, à data do acidente.), balançando o corpo para a direita e para a esquerda, conforme o pedal da bicicleta que accionava?

Não se sabe.

E será que a condutora do veículo OC não terá confundido o balançar do corpo do sinistrado, para a direita e para esquerda, com o ir “a olhar para o lado”?

Além disso, qual a distância que foi percorrida, pela bicicleta, na hemifaixa de rodagem do veículo OC, antes do embate?

Também não se sabe. E este era um elemento fundamental para avaliar da falta de “atenção do sinistrado à sua condução e ao restante tráfego” da via, por onde circulava.

Na verdade, conforme resulta do desenho do acidente, efectuado pela GNR (cfr. fls. 293 dos autos), a faixa de rodagem da via tinha 6 metros de largura (estreita, diga-se) e a distância entre a parte traseira do veículo...... e a berma esquerda (atento o seu sentido de marcha) era de 3,40m. Tal significa, que o veículo .... circularia junto ao eixo da via. E bastaria que o sinistrado, no seu pedalar balançante, também junto ao eixo da via, se tivesse desequilibrado, por qualquer motivo [derrapagem da roda traseira, o pé que escorregou do pedal, a corrente que saltou, a mudança que não entrou (a bicicleta tinha mudanças?), um pneu que furou, o garfo que partiu, etc.] para tombar sobre o veículo .... sem percorrer qualquer distância na hemifaixa contrária.

Mas tudo isto são meras hipóteses, pois, a ré seguradora não alegou nem muito menos provou qualquer facto concreto que permita ao tribunal avaliar da causa da “distracção” do sinistrado, isto é, se foi própria ou alheia, bem como do modo como o acidente terá ocorrido e qual o grau de culpa do sinistrado, bem como do nexo de causalidade entre a “distracção” e o acidente.

A ré seguradora, na falta de outros elementos de facto sobre a dinâmica do acidente, da expressão “ia a olhar para o lado”, extrapolou para “O sinistrado circulava completamente distraído, sem prestar qualquer atenção à sua condução e ao restante tráfego que se verificava no local, com absoluto desprezo pelo perigo e em desrespeito do mais elementar sentido de prudência” – artigo 12 da contestação.

Ora, com todo o respeito, tal alegação é meramente conclusiva, já que não sustentada em qualquer elemento de facto sobre a dinâmica do acidente e o comportamento do sinistrado na condução da bicicleta.

E sendo a alegação da ré conclusiva, o quesito 6.º da base instrutória e o ponto 17) da matéria de facto também o são, razão pela qual temos este último por não escrito, nos termos do artigo 646.º, n.º 4, do CPC. »

2. 3. Na alegação da revista, a recorrente manifesta a sua discordância relativamente ao decidido nos passos do acórdão que vêm de ser transcritos (conclusões VI, VII, X e XI).

De acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil — diploma a que, na versão anterior à da revisão operada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, pertencem todas as disposições indicadas neste ponto —, que incide sobre o julgamento da matéria de facto, devem ter-se por não escritas as respostas dadas pelo tribunal aos quesitos da base instrutória sobre questões de direito.

Tem esta norma subjacente a distinção entre matéria de facto e matéria de direito, que se reflecte no julgamento separado — quer do ponto de vista do momento lógico quer no tocante aos poderes de cognição do julgador — das questões de facto e de direito.

Nem sempre é fácil distinguir entre o que é matéria de facto e matéria de direito, mas é consensual, na doutrina e na jurisprudência, que, para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei.

No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos) — neste sentido, Manuel A. Domingues Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1963, pp. 180/181, e Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 268; na jurisprudência, entre outros, o Acórdão deste Supremo de 24 de Setembro de 2008 (Documento n.º SJ20080924037934, em www.dgsi.pt).

No mesmo âmbito da matéria de facto, como realidades susceptíveis de averiguação e demonstração, se incluem os juízos qualificativos de fenómenos naturais ou provocados por pessoas, desde que, envolvendo embora uma apreciação segundo as regras da experiência, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio.

2. 4. No caso que nos ocupa, está em causa, no primeiro dos transcritos passos da decisão recorrida, a utilização do vocábulo "violentamente" que, no contexto da resposta ao quesito 7.º da base instrutória reproduzida no item 18) da matéria de facto, representa, através de uma expressão adverbial de modo, a qualificação do fenómeno que consistiu no embate dos dois veículos.

Esta qualificação, porque não decorrente de qualquer operação de subsunção ou valoração jurídica e sem virtualidade para, por si só — sem a ponderação de outros elementos de facto e sem a interpretação e aplicação das pertinentes normas de direito —, fornecer a solução da controvérsia relativa à descaracterização do acidente, contém-se no domínio dos factos.

Com efeito, para se saber se um embate de veículos foi ou não violento basta conjugar a percepção colhida pelos sentidos de quem a ele assiste com as regras gerais da experiência, sem necessidade de elaborar no domínio das normas de direito, o que afasta a possibilidade de aplicação do n.º 4 do artigo 646.º.

Como se referiu, o Tribunal da Relação também eliminou, valendo-se do estatuído no citado preceito, todo o teor do item 17): "O sinistrado circulava distraído, sem prestar atenção à sua condução e ao restante tráfego".

Reporta-se esta asserção a um estado ou situação do foro interno, psíquico, do sinistrado, realidade cujo conhecimento se pode alcançar mediante a apreensão, pelos sentidos, e interpretação à luz das regras de experiência, de sinais revelados por comportamentos visíveis por outrem, sem qualquer necessidade de operações lógicas de subsunção a regras de direito.

De notar que, de acordo com a decisão proferida sobre a matéria de facto, as respostas aos mencionados quesitos da base instrutória se alicerçaram nos depoimentos das testemunhas "CC e DD, respectivamente condutora e ocupante do veículo.., os quais, de forma peremptória, objectiva e sem rebuço, descreveram a dinâmica do acidente com pormenor e rigor, logrando criar a convicção ao tribunal quanto à veracidade das suas afirmações. O tribunal conjugou os depoimentos prestados por estas testemunhas com o teor do auto de participação do acidente de viação, junto a fls. 291 a 294, maxime o croquis ali constante, onde se pode constatar, designadamente, a posição dos veículos após o embate" (fls. 378).

Importa assinalar que os fundamentos alinhados pelo acórdão recorrido, para considerar conclusivos os indicados pontos da decisão proferida sobre a matéria de facto, revelam que o Tribunal da Relação se apoiou, essencialmente, nas regras da experiência e na análise das provas, o que, sendo eventualmente adequado a suportar um juízo de alteração da matéria de facto fixada pela 1.ª instância — juízo que não foi, como tal, assumido pelo acórdão, sendo que a alteração não seria, no caso, consentida, por não se verificarem os pressupostos consignados no artigo 712.º, n.os 1 e 2 —, não tem virtualidade para sustentar a afirmação da natureza conclusiva dos mesmos pontos.

Conclui-se, pois, à luz das considerações supra explanadas a propósito do âmbito de aplicação do n.º 4 do artigo 646.º, não ser caso de ter por não escritos o advérbio "violentamente", que consta do item 18), e a afirmação plasmada no item 17).

Nesta conformidade, não pode subsistir a decisão da Relação, na parte atinente, pelo que terá de atender-se, na apreciação do mérito da causa — que envolve o dilucidar da questão da descaracterização do acidente, segundo as várias soluções plausíveis, à luz do direito aplicável —, à matéria constante dos referidos itens.

3. À luz das considerações que se deixaram acima vertidas no ponto 2. 3. é, todavia, mister desconsiderar duas asserções plasmadas na decisão proferida sobre a matéria de facto: a primeira, contida na expressão "sem que nada o justificasse", reportada à invasão pelo sinistrado da faixa de rodagem contrária [resposta ao quesito 7.º da base instrutória, transposta para o item 19) dos factos provados]; a segunda, referida ao comportamento da condutora do outro veículo, em relação à qual se disse, "que em nada contribuiu para o acidente" [resposta ao quesito 8.º da base instrutória, transposta para o item 19) dos factos provados].

Trata-se, em ambos os casos, de expressões que encerram juízos de valor só possíveis de alcançar mediante o recurso a critérios de ordem jurídico-normativa aplicados a realidades factuais, juízos esses que permitem determinar, directamente, se se verificam os pressupostos de que a lei faz depender a descaracterização do acidente — a culpa grave e exclusiva do sinistrado — e, desse modo, contêm, em si, a solução jurídica do pleito.

Por isso, as indicadas expressões hão-de ter-se por não escritas, nos termos do citado n.º 4 do artigo 646.º, cuja aplicação oficiosa se impõe ao Supremo Tribunal, no âmbito da sua função de aplicar aos factos materiais fixados pelas instâncias o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729.º, n.º 1, do CPC).

4. Definido o quadro factual atendível, impõe-se, neste passo, delimitar o âmbito do conhecimento deste Supremo, relativamente ao fundo da causa, tendo em atenção, desde logo, as posições que as partes assumiram quanto ao objecto da lide e, em particular, no tocante aos fundamentos da controvérsia sobre a descaracterização do acidente.

Na tentativa de conciliação, a seguradora, ora recorrente, declarou não aceitar qualquer responsabilidade pelo acidente "dado que o mesmo se ficou a dever em exclusivo a negligência grosseira do sinistrado" (fls. 264). Em consonância com esta atitude, ao contestar a acção, a demandada centrou a sua defesa, exclusivamente, na alegação de factos para concluir que "não pode deixar de atribuir-se, em exclusivo, a dinâmica do acidente à negligência grosseira do sinistrado", sustentando que o Autor "assumiu um comportamento que conduz ao enquadramento do sinistro na previsão do art. 7.º , n.º 1, al. b) da Lei n.º 100/97, não conferindo, portanto, direito a qualquer reparação".

Em face do assim alegado, a sentença da 1.ª instância apenas cuidou de averiguar da descaracterização do acidente, em função dos pressupostos consignados na alínea b) do n.º 1 do referido artigo 7.º, tendo acolhido a tese da defesa.

No recurso de apelação, tendo o Autor pugnado pela revogação da sentença, e tendo a Ré, na contra-alegação, limitado a sua resposta à defesa da decisão impugnada, o Tribunal da Relação apenas se pronunciou sobre a questão da descaracterização, à luz da norma contida na referida alínea b).

No presente recurso, a Ré sustenta a descaracterização do acidente, invocando o preenchimento da previsão daquela alínea b) e, também, da alínea a) do indicado preceito, de acordo com a qual não dá direito à reparação o acidente que «for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei».

A questão da subsunção do caso à previsão da última das referidas normas não foi, como decorre do que acima se deixou dito, apreciada pelas instâncias, por não ter sido perante elas suscitada.

É sabido que toda a defesa deve ser deduzida na contestação e que só os meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei admita expressamente, podem ser deduzidos após o oferecimento daquele articulado (artigo 489.º, n.os 1 e 2, do CPC).

E é, por outro lado, pacífico o entendimento de que os recursos visam modificar as decisões recorridas, e não criar decisões sobre matéria nova, não podendo o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido objecto da decisão recorrida ou que as partes não suscitaram perante o tribunal recorrido, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso.

Deste modo, tendo a descaracterização do acidente, com fundamento em alegada violação de regras de segurança previstas na lei, sido invocada, apenas, no recurso de revista, e não se tratando de matéria do conhecimento oficioso, ela apresenta-se como questão nova, de que este Supremo não pode conhecer.

A única questão a exigir pronúncia deste órgão jurisdicional é, por conseguinte, a de saber se o acidente em causa se deveu exclusivamente a negligência grosseira do sinistrado.

5. O artigo 7.º, n.º 1, alínea b), da LAT, sob a epígrafe “Descaracterização do acidente”, dispõe que não dá direito à reparação o acidente que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.

O n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril, que regulamentou a LAT, define a negligência grosseira, para efeito de descaracterização do acidente, como um «comportamento temerário em alto e relevante grau», expressão que corresponde, segundo a doutrina e a jurisprudência, sedimentadas no domínio da vigência da Lei n.º 2 127, de 3 de Agosto de 1965, que regulava a matéria, a uma conduta temerária, inútil, indesculpável e de elevado grau de imprudência, ou seja, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência (cfr., por todos, o Acórdão deste Supremo de 18 de Janeiro de 2005, em www.dgsi.pt, Documento n.º SJ200601180034884).

Como se observou no Acórdão deste Supremo de 6 de Julho de 2006 (Documento n.º SJ200601180034884, em www.dgsi.pt), «[e]m geral, considera-se temerário, um comportamento perigoso, arriscado, imprudente, audacioso, arrojado, intrépido, que não tem fundamento».

Ao exigir a negligência de grosseira, ou culpa grave, no sentido referido, a lei afasta a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano, que não considera os prós e contras, que corresponde à culpa leve Cfr. Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais – Regime Jurídico Anotado, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2005, p. 63).

A diferença entre culpa grave e culpa leve, no dizer de Inocêncio Galvão Telles (Direito das Obrigações, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 1982, p. 274), está em que a primeira só por uma pessoa particularmente negligente se mostra ser susceptível de ser cometida.

Importa, ainda, referir que, de harmonia com a jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal, não basta a mera circunstância de a conduta do sinistrado integrar uma infracção ao Código da Estrada, ainda que eventualmente qualificável como contra-ordenação grave ou muito grave para se dar como preenchido o requisito da negligência grosseira que integra a causa de descaracterização do acidente, «sabido que o regime jurídico dos acidentes de trabalho reclama mecanismos diferentes daqueles de que se socorre a legislação rodoviária: sendo aqui mais premente o interesse da prevenção geral – com o recurso a presunções de culpa e à punição de meras situações de perigo – jamais se poderiam transpor para a sinistralidade laboral os critérios de gravidade adoptados naquela legislação» (Acórdão deste Supremo de 14 de Fevereiro de 2007, em www.dgsi.pt, Documento n.º SJ200702140035454).

Por outro lado, para excluir o direito à reparação nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º da LAT, é indispensável que o evento seja imputado, mediante o estabelecimento do nexo de causalidade, exclusivamente, ao comportamento grosseiramente negligente do sinistrado, o que implica a prova de que nenhum outro facto concorreu para a sua produção.

Finalmente, há que ter presente que o ónus da prova dos factos que integram a negligência grosseira e a imputação do nexo de causalidade, a título exclusivo, entre ela e o evento danoso, recai, por se tratar de factos impeditivos do direito à reparação, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, sobre a parte demandada.

6. Na descrição, atendível, das circunstâncias do sinistro, sua dinâmica e comportamento dos intervenientes, surpreende-se o seguinte:

— O acidente deu-se quando o Autor se deslocava do seu local de trabalho para a sua residência (4);

— Nele intervieram um veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula..-..-.., pertencente e conduzido por CC, e um velocípede sem motor, conduzido pelo Autor (5);

— O veículo OC circulava na rua referida em A) no sentido Escapães - Arrifana e o velocípede no sentido inverso (6);

— No local do acidente e atento o sentido de marcha do sinistrado, a estrada configura uma recta, com inclinação ascendente, pavimentada em betuminoso, em bom estado de conservação e com, pelo menos, 6 metros de largura (15);

— No momento do acidente, as condições climatéricas eram boas e o piso estava seco (16);

— O sinistrado circulava distraído, sem prestar atenção à sua condução e ao restante tráfego (17);

— Invadiu a faixa de rodagem destinada à circulação dos veículos em sentido contrário, vindo a embater violentamente no veículo..-..-.. (18);

— O embate deu-se totalmente na hemi-faixa de rodagem desse veículo OC (19);

— Quando se apercebeu de que o velocípede circulava pela sua hemi-faixa de rodagem, a condutora do veículo ligeiro travou e tentou encostar este à sua berma direita, mas não conseguiu evitar a colisão, dada a proximidade do velocípede em que vinha o Autor (20).

Destes factos resulta que, para a colisão dos veículos, contribuiu decisivamente o comportamento do sinistrado, traduzido na invasão da parte da faixa de rodagem destinada à circulação de sentido contrário, assim infringindo a norma de direito rodoviário que tal proíbe.

É certo que também se provou que conduzia distraído, sem prestar atenção à sua condução e ao restante tráfego, facto que configura desprezo pelos cuidados mais elementares a ter no exercício da condução de veículos na via pública, actividade cuja perigosidade exige particular atenção.

Porém, na narração da matéria de facto provada, não se encontra, inequivocamente, estabelecido o nexo causal entre aquela distracção e o facto de o velocípede ter invadido a semi-faixa de rodagem reservada à circulação de sentido contrário, que pode ter acontecido por outras razões, que não a falta de atenção à condução e ao tráfego — por exemplo, a visão súbita de algum obstáculo que, instintivamente, levasse o condutor do velocípede a desviar-se da rota que lhe competia, ou algum movimento do corpo relacionado com o impulsionar do mesmo veículo que, por falhado, pudesse originar a sensação de tornar iminente a perda de equilíbrio e, consequentemente, em tal emergência, desencadear, em reacção, o recurso à mudança de trajectória. .

Deste modo, não é possível qualificar de temerário, inútil, sem fundamento, o comportamento do sinistrado, o que afasta a consideração de que agiu com negligência grosseira.

Acresce que também não se afigura possível, imputar, exclusivamente, ao comportamento do sinistrado a produção do sinistro.

Com efeito, do comportamento da condutora do veículo automóvel, sabe-se que circulava na semi-faixa de rodagem que lhe competia e que, ao aperceber-se de que o velocípede do Autor transitava na mesma semi-faixa, travou e tentou encostar o automóvel à sua berma direita, o que não conseguiu, dada a proximidade do velocípede.

Mas ignora-se a velocidade de qualquer dos veículos, em especial a do automóvel — nada foi alegado a tal respeito —, elemento de particular relevância para aquilatar da inexistência de culpa concorrente, ainda que de grau diminuto, da condutora do automóvel, na produção do sinistro.

Ora, sem tal elemento — e sem outros atinentes aos cuidados postos no exercício da condução pela referida condutora — não é possível formular um juízo seguro de exclusão de ter, também ela, culposamente, concorrido para a ocorrência.

Nesta conformidade, porque não se demonstraram os pressupostos da descaracterização consignados no artigo 7.º, n.º 1, alínea b), da LAT, que, como se disse, à Ré competia demonstrar, improcede a pretensão formulada no recurso.


III

Em face do exposto, decide-se negar a revista.

Custas a cargo da recorrente.

Lisboa, 7 de Maio de 2009



Vasques Dinis (Relator)
Bravo Serra
Mário Pereira