Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5685/15.0T8GMR-G.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA
INCUMPRIMENTO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITOS
PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO
PRAZO DE PROPOSITURA DA AÇÃO
CONTAGEM DE PRAZOS
Data do Acordão: 02/12/2019
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – VERIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS, RESTITUIÇÃO E SEPARAÇÃO DE BENS / VERIFICAÇÃO ULTERIOR / VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITOS OU DE OUTROS DIREITOS.
Doutrina:
- Nuno Manuel Pinto Oliveira, Efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso: em busca dos princípios perdidos?, I Congresso de Direito da Insolvência (coordenado por Catarina Serra), Almedina, 2013, p. 201 e ss.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 146.º, N.º 2 , ALÍNEA B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 21-02-2016, RELATOR JÚLIO GOMES ,IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

- DE 30-10-2017, PROCESSO N.º 2506/13.2TBGMR-G.G1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I. O direito do credor a ser indemnizado pelo não cumprimento do contrato-promessa (vigente antes da declaração de insolvência) tem uma formação complexa (ou bifásica), pois a sua génese radica na declaração de insolvência (o que permitirá considera-lo como uma dívida da insolvência), mas tal direito só se efetiva ou consolida na esfera jurídica desse sujeito quando se torna certo que o contrato não será cumprido. Até esse momento existe a possibilidade (pelo menos teórica) de o contrato-promessa ser cumprido.

II. Assim, só no momento em que se torna certo que o administrador da insolvência não cumprirá o contrato se inicia a contagem do prazo de 3 meses para propor a ação de verificação ulterior de crédito, nos termos da parte final da alínea b) do n.2 do art.146º.

Decisão Texto Integral:

I. RELATÓRIO

1. Por apenso aos autos de insolvência da AA, Ldª, BB propôs ação para verificação ulterior de créditos, nos termos do art.146º do CIRE, contra a Massa Insolvente e os demais credores, sustentada na sua qualidade de promitente compradora de um imóvel habitacional que aquela sociedade, entretanto declarada insolvente, lhe havia prometido vender.

2. As rés Massa Insolvente e CC, S.A. excecionaram a intempestividade da ação, face ao disposto no n.2 do art.146º do CIRE.

3. A primeira instância, através de despacho (de 23.11.2017), decidiu aquela exceção, considerando que a ação era tempestiva. Na fundamentação dessa decisão entendeu-se, em síntese, como se transcreve: “(…) de acordo com o disposto no art.102º, n.1, sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes, em qualquer contrato bilateral em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento, nem pelo insolvente nem pela outra parte, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento. Trata-se de uma suspensão transitória, que tem como função conceder ao administrador da insolvência o período de tempo necessário à ponderação da conveniência do cumprimento do contrato para os interesses da massa.”

E acrescenta: “(…) Nesta matéria referente à tempestividade da presente ação, seguimos de perto o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 03.10.2017, Proc. 2506/13.2TBGMR-G.G1[1] (…). (…) tal como referido no citado Acórdão da Relação de Guimarães, considerando que o cumprimento do contrato se suspende nos termos do art.102º do CIRE até que o administrador tome uma posição, quer por sua iniciativa quer na sequência de interpelação da contraparte, afigura-se-nos, com o devido respeito por posição contrária, que o direito à indemnização se constitui quando a contraparte conhece a posição do administrador no sentido do incumprimento”.

4. Não se conformando com aquela decisão, as recorridas interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto.

5. A segunda instância entendeu, como se lê no acórdão recorrido:

 “(…) que assiste razão às Apelantes, não havendo fundamento legal para sustentar que o crédito da A. se constituiu apenas com a recusa tácita do administrador ao cumprimento do contrato-promessa. Por isso, não tem aplicação o prazo previsto na a 2ª parte da al. b) do n.º 2 do art.146º, e tendo a sentença de declaração de insolvência transitado em 02.02.2016, quando em 07.04.2017 foi intentada a presente ação de verificação ulterior de crédito, há muito tinha decorrido o prazo de 6 meses estabelecido na 1ª parte da al. b) do n.º 2 do art.146º do CIRE”.

E, em conformidade, decidiu o acórdão recorrido: “Julgam-se as apelações procedentes e revoga-se a decisão recorrida e julga-se a presente ação de verificação de créditos intempestiva e extinta a instância, ficando sem efeito todo o processado posterior ao saneador recorrido, incluindo a sentença entretanto proferida”.

6. Não se conformando com a decisão da segunda instância, a Autora interpôs recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1. Proferida a decisão que julgou procedente o recurso interposto, declarando a caducidade do direito de ação da aqui Recorrente, assente no principio da não conservação do contrato, com a mesma não pode concordar a Recorrente, pelo que interpõe o presente recurso.

2. Defende a decisão a quo o argumento sistemático retirado da relação entre o artigo 47º, o 52º nº 1 alínea d) e o artigo 102º do CIRE, sugere que a declaração de insolvência optando pelo não cumprimento tenham um valor (meramente) declarativo.

3.Tal interpretação mostra-se desfasada quer do elemento literal vertido no artigo 102º do CIRE, quer da própria intenção visada pelo legislador.

4. Da norma supra citada resulta expressamente que a declaração de insolvência extingue o direito de exigir a execução especifica, suspendendo o contrato até decisão do administrador, o que faz depreender, implicitamente, que a declaração de insolvência não o extingue.

5. O administrador de insolvência não tem o poder de fazer “reconformar” ou “renascer” as relações contratuais, as quais já se mostram existentes, contrariando o acórdão a quo.
 
6. O que significa que o legislador adoptou o regime da conservação do contrato.

7. Por conseguinte a decisão de não cumprimento do contrato-promessa tem o valor constitutivo do alegado direito.

8. Nesta esteira, veja-se o douto aresto do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-03-2017, processo 2506/13.2TBGMR-G.G1,disponível ww.dgsi.pt.

9. A interpretação em sentido contrário, visada no acórdão impugnado, acolhendo a tese de Pinto de Oliveira, não tem o mínimo de correspondência com a letra da lei, pelo que viola as normas legais de interpretação, designadamente o disposto no artigo 9º do Código Civil.

10. O elemento literal constitui o ponto de partida do intérprete e o limite da interpretação.

11. No processo de interpretação, o elemento literal tem que ser privilegiado face ao alegado elemento sistemático.

12. Aplicando-se as sobreditas regras de interpretação ao artigo 102º nº 1 do CIRE, reconduz à teoria do principio da conservação do contrato ou da continuidade das relações contratuais.

13. A dimensão interpretativa acolhida no douto acórdão impugnado do artigo 146º nº2 alínea b) conjugado com o artigo 102º nº1 do CIRE é violadora do direito fundamental do principio de jurisdição efectiva e acesso ao direito e aos tribunais, plasmado no artigo 20º da C.R.P., pelo que é inconstitucional, o que se invoca para ser declarado com todas as consequências legais.

14. Negar o direito de acção à Recorrente confere prevalência à legalidade formal em detrimento da justiça material, contrariando-se o fim visado pelo legislador e, consequentemente os princípios da Justiça e Equidade, acolhidos naquele preceito da Lei Fundamental.
15. O acórdão a quo enferma de ilegalidade por violar, entre outros, o disposto nos artigos 102º nº 1, 146 nº2 alínea b), ambos do CIRE, no artigo 20º da C.R.P., no artigo 9º do CC e ainda os princípios da equidade e da justiça material.

Nestes termos e nos melhores de direito aplicável deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, mantendo-se o doutamente decido em primeira instância com a demais consequências legais. Assim decidindo farão inteira Justiça

7. Foram apresentadas contra-alegações pelas recorridas: a Massa Insolvente de AA, Ldª e a credora CC S.A., as quais pugnaram, em síntese, pela manutenção do acórdão recorrido.

II. Análise do recurso e fundamentos decisórios:

1. O objeto do recurso:

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, a única questão a apreciar no caso concreto é a de saber se a ação de verificação ulterior de créditos, proposta pela recorrente, foi ou não tempestiva.

 

2. Factualidade relevante:

Foram dados como provados, com relevo para a questão a decidir, os seguintes factos:

« - A AA Lda,. foi declarada insolvente por sentença proferida em 11.02.2016 transitada em julgado a 02.02.2016.

- Na referida sentença foi fixado o prazo de 30 dias, com éditos de 5, para os credores e demais interessados apresentarem as respetivas reclamações de créditos.

- A presente ação de verificação ulterior de crédito foi intentada a 7 de abril de 2017, pedindo a A, o reconhecimento do seu crédito sobre a insolvente no montante de € 122.205,48, com direito de retenção, decorrente do contrato-promessa celebrado com a insolvente e recusa do seu cumprimento por parte do Sr. Administrador da Insolvência e consequente incumprimento;

- A autora interpelou o Sr. Administrador da Insolvência para cumprir o prometido negócio por carta registada com a.r., cuja cópia consta de fls. 63 dos autos, por este rececionada em 17.03.2017, nela constando, de relevante, o seguinte “venho, nos termos e para os efeitos do art. 102.º do CIRE, de modo expresso, solicitar que V. Exa. se pronuncie no prazo de 10 dias, a contar da receção desta carta, quanto ao cumprimento do contrato- promessa (…) Mais informo que findo o referido prazo, nada dizendo, ter-se-á por incumprido definitivamente o referido contrato com as consequências legais que daí decorrem.

- Decorrido prazo concedido de 10 (dez) dias, o Sr. Administrador da Insolvência não respondeu.»

3. O direito aplicável:

3.1. A reclamação de créditos (dirigida ao administrador da insolvência) encontra-se prevista no art.128º do CIRE, o qual define as regras gerais sobre o tempo e o modo de atuação dos credores tendo em vista o reconhecimento e graduação de créditos. 

Credores que assim não tenham agido podem também vir a ser incluídos na lista dos credores reconhecidos por serem do conhecimento direto do administrador da insolvência ou os seus créditos resultarem dos elementos da contabilidade do devedor, como estabelece o art.129º.

Para além destas hipóteses, alguns créditos podem ainda ser reclamados, por via judicial, através da ação de verificação ulterior de créditos, nos termos previstos no art.146º do CIRE, por apenso aos autos da insolvência. Em regra, esta ação tem de ser proposta no prazo de 6 meses a contar do trânsito em julgado da sentença que declara a insolvência. Tal prazo pode, todavia, ser excedido quando o direito reclamado apenas se constitua em momento posterior àquela declaração. Nesta hipótese, o prazo para propor a ação é de 3 meses a contar da constituição do direito [art.146º, n.2, alínea b) in fine].

É, precisamente, neste ponto que se localiza a questão suscitada na revista

Sustenta a Autora/Recorrente que o seu crédito se constituiu apenas depois de ter terminado o prazo de 6 meses a contar do trânsito em julgado da sentença que declarou a insolvência da AA, Ldª, porquanto só após interpelação do administrador da insolvência se verificou a recusa do cumprimento do contrato-promessa, nos termos do art.102º, n.2. Iniciou-se, assim, o prazo de 3 meses para propor a ação; prazo dentro do qual a ação foi efetivamente proposta.

A primeira instância acolheu este entendimento. A segunda instância sustentou entendimento diverso.

Há, assim, que saber quando é que o direito da autora se deve considerar constituído, pois daí depende a resposta a dar à questão da tempestividade da ação.

3.2. Como supra referido, o acórdão em revista julgou as apelações procedentes e considerou a ação de verificação de créditos intempestiva, por ter entendido que o direito da autora reclamar os créditos se havia constituído com a declaração de insolvência (e não com a declaração do administrador da insolvência destinada ao não cumprimento do contrato-promessa). Consequentemente, desaplicou o previsto na a 2ª parte da alínea b) do n.2 do art.146º (assim contrariando o decidido em primeira instância).

Para chegar a essa decisão, a segunda instância baseou-se, essencialmente, na doutrina[2] (que extensamente reproduziu na sua fundamentação), embora a doutrina citada não tenha centrado o seu âmbito de reflexão no tipo de questão em análise nos presentes autos, ou seja, a das regras aplicáveis em matéria de prazos para propor a ação de verificação ulterior de créditos [âmbito de aplicação do art.146º, n.2, parte final das alíneas a) e b)], mas sim na questão de saber se o crédito do promitente comprador deve ser considerado como uma dívida da insolvência ou da massa insolvente.

A decisão em revista socorre-se, ainda, do Acórdão do STJ, de 21.02.2016 (relatado por Júlio Gomes)[3], no qual aquela doutrina também surge referida, embora não a título de fundamentação essencial, mas sim mencionada entre os entendimentos possíveis para justificar o momento em que se deve considerar que o promitente-comprador adquire o direito de retenção.

3.3. O acórdão em revista parece, assim, ter sido seduzido por uma pré-compreensão teórica sobre a natureza jurídica da declaração do administrador de insolvência e, a partir daí, traçou a sua linha decisória, sem uma aturada ponderação das especificidades do caso concreto.

Ora, ao julgador não cabe partir de catalogações dogmáticas (mais ou menos pedagógicas na compreensão da constelação distintiva das figuras jurídicas) para encontrar a solução de um caso concreto.  Cabe-lhe, sim, partir dos interesses vivos do caso decidendo (plasmados na factualidade provada), que reclamam a efetiva tutela do direito, para encontrar a solução mais justa, dentro das opções legais pertinentes e concretamente possíveis.

3.4. A interpretação sustentada na decisão recorrida, nos termos da qual a ação de verificação ulterior de créditos tem sempre de ser proposta dentro dos 6 meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença, porque o crédito se constituirá com a declaração de insolvência (e não com a declaração do administrado da insolvência destinada ao não cumprimento do contrato), conduzirá a que a última parte da alínea a) do n.2 do art.146º do CIRE se transforme em letra morta. Consequentemente, o prazo de 3 meses (a partir da constituição do crédito), previsto na última parte da alínea b) da referida norma, também não encontraria aplicação.

Se o direito a um montante indemnizatório se constituísse, sem mais, como efeito automático do trânsito em julgado da sentença que declara a insolvência, então a 2ª parte da alínea b) do art.2º do art.146º nunca teria aplicação aos contratos-promessa em curso.

3.5. Do ponto de vista da tutela efetiva do direito, poderia perguntar-se em que situação ficaria um promitente comprador (e particularmente aquele que já habita o imóvel prometido comprar), num contrato sem eficácia real (que o administrador não tem, portanto, de cumprir), que por desconhecimento da situação de insolvência do promitente vendedor ou por acreditar que o administrador vai celebrar o contrato prometido, não reclama o crédito dentro do referido prazo de 6 meses. Naturalmente que teria de restituir o imóvel à massa insolvente, por força da extinção do contrato, mas não lhe seria reconhecido o direito de reclamar na insolvência o crédito emergente dessa extinção.

3.6. A declaração, expressa ou tácita, do administrador que revela a intenção de não celebrar o contrato prometido conduz à extinção do contrato-promessa, ainda que a essa declaração (porque emitida num quadro legal específico) não sejam associáveis os efeitos típicos do incumprimento culposo (ou todos esses efeitos).

Na realidade, o administrador exerce um sui generis poder extintivo, que a lei lhe confere tendo em vista a solução que melhor serve os interesses polarizados no processo de insolvência que lhe cabe tutelar. 

3.7 O direito do credor a ser indemnizado (pelo não cumprimento do contrato-promessa vigente antes da declaração de insolvência) tem uma formação complexa (ou bifásica), pois a sua génese radica na declaração de insolvência (o que permitirá considera-lo como uma dívida da insolvência, art.47º do CIRE), mas tal direito só se efetiva ou consolida na esfera jurídica deste sujeito quando se torna certo que o contrato não será cumprido. Até esse momento existe a possibilidade (pelo menos teórica) de o contrato-promessa ser cumprido. E, em tal hipótese, não existirá qualquer crédito a reclamar porque não haverá incumprimento.

Por isso, para os efeitos processuais que ao presente caso interessam, deve entender-se que só nesse momento se verifica a concreta consolidação do direito; e só nesse momento se inicia a contagem do prazo de 3 meses para propor a ação de verificação ulterior de crédito, nos termos da parte final da alínea b) do n.2 do art.146º.

III. DECISÃO: Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido, ficando a prevalecer o decidido em primeira instância sobre a tempestividade da ação. 


Custas pelas recorridas, em partes iguais.

Lisboa, 12 de fevereiro de 2019

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Catarina Serra (Declaração de voto)

Fonseca Ramos

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Declaração de voto


I. Concordando embora com a decisão final, distancio-me da fundamentação exposta no presente Acórdão, essencialmente, pelas seguintes razões:

1.ª) Entendo que os direitos de crédito respeitantes ás dívidas previstas no artigo 102.º, n.º 3, als. c) e d), do CIRE se constituem no momento da declaração de insolvência (em conformidade com o Acórdão desta 6.ª Secção de 21.06.2016, Proc. 3415/14.3TCLRS-C.L1.S1) e não no momento da declaração de recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência.

2.ª) Entendo que a ausência desta declaração pode constituir um impedimento ao exercício do ónus de reclamação do direito mas não é, de todo, uma condição de que dependa a constituição do direito.

II. Os dois pressupostos acima referidos implicam, naturalmente, que a solução assente num raciocínio diverso do seguido no presente Acórdão, a saber:

a) Estando o crédito constituído à data da declaração de insolvência, seria, em abstracto, possível que o credor tivesse reclamado o crédito (como condicional) dentro do prazo geral de reclamação de créditos [cfr. artigo 36.º, n.º 1, al. f), do CIRE].

b) No artigo 146.º do CIRE, prevê-se, no entanto, a possibilidade de reclamação ulterior de créditos. Esta aproveita, em geral, aos credores que não tenham reclamado atempadamente o seu crédito (em regra, por desconhecerem a pendência de processo de insolvência) e é independente das circunstâncias que ocasionaram a não reclamação atempada, pelo que o credor era livre de propor a acção de verificação ulterior, posto que observadas as condições aí impostas.

c) Sendo uma destas condições a propositura da acção no prazo de seis meses a contar da data do trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência e tendo esta acontecido em 2.02.2016, a acção, proposta em 7.04.2017, seria, em princípio, intempestiva.

d) Deverá considerar-se, porém, que só com a declaração (tácita) de recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência, ou seja, com a verificação da condição, ficou o credor plenamente em condições de exigir o crédito e de exercer o ónus de reclamação.

e) Admitindo que o prazo em causa é processual (em conformidade com o Acórdão desta 6.ª Secção de 5.12.2017, Proc. 1856/07.1TBFUN-L.L1.S1), deverá considerar-se que, até àquela data, o credor estava impedido de exercer o ónus de reclamação por facto que não lhe era imputável, existindo, então, uma situação de justo impedimento (cfr. artigos 139.º, n.º 4, e 140,º, n.º 1, do CPC), que não carece de ser alegado (cfr. artigos 140.º, n.º 3, e 412.º do CPC), e podendo e devendo a acção ser admitida como tempestiva.

III. A solução propugnada assegura a realização do principio da tutela jurisdicional efectiva e não põe em causa o efeito útil do prazo previsto na 2.ª parte da al. b) do n.º 2 do artigo 146.º do CIRE (três meses a contar da constituição do crédito).

A previsão deste segundo prazo assegura, também, a realização do princípio da tutela jurisidicional efetiva quando estejam em causa – mas só quando estejam em causa – créditos que se constituam passada mais de metade do prazo previsto na 1.ª parte do preceito, concedendo aos titulares um prazo especial para reclamar. Estão, portanto, excluídos os direitos de crédito referidos no artigo 102.º, n.º 3, als. c) e d), do CIRE, que se constituem no momento da declaração de insolvência, mas outras hipóteses existem (como comprova, só para um exemplo, o caso apreciado no referido Acórdão desta 6.ª Secção de 5.12.2017, Proc. 1856/07.1TBFUN-L.L1.S1). O disposto na 2.ª parte da al. b) do n.º 2 do artigo 146.º do CIRE não se transforma, pois, em “letra morta”.

A tese, seguida no presente Acórdão, de que o crédito se constitui aquando da declaração do administrador da insolvência e, consequentemente, de que o prazo previsto na 2.ª parte da al. b) do n.º 2 do artigo 146.º do CIRE é aplicável em situações como a do caso dos autos implica o risco de que a reclamação ulterior se eternize sem justificação (i.e., mesmo que saiba do processo, o credor não age, porque dispõe de um prazo que só começa a contar depois daquela declaração).


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LISBOA, 12 de Fevereiro de 2019

_______________________

[1] O referido acórdão do TRG tem a data de 30.03.2017 (e não 03.10.2017, como por lapso se escreveu na decisão da primeira instância): http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/ab065fe6123298198025812a00563afb?OpenDocument
[2] Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso: em busca dos princípios perdidos?”; I Congresso de Direito da Insolvência (coordenado por Catarina Serra), Almedina, 2013, pág. 201 e seguintes.
[3]http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4610c87689c140b380257fd90054d88c?OpenDocument