Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | LOPES DA MOTA | ||
Descritores: | RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA PRESSUPOSTOS RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO MATÉRIA DE FACTO MATÉRIA DE DIREITO QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO OPOSIÇÃO DE JULGADOS REJEIÇÃO DE RECURSO | ||
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Data do Acordão: | 06/29/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL) | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário : | I. O recurso de fixação de jurisprudência é um recurso extraordinário que tem por finalidade o estabelecimento de interpretação uniforme de normas jurídicas aplicadas de forma divergente e contraditória em acórdãos dos tribunais da Relação ou do Supremo Tribunal de Justiça, com a eficácia prevista no artigo 445.º do CPP, contribuindo para a realização de objetivos de segurança jurídica e de igualdade perante a lei, que constituem exigências do princípio de Estado de direito (artigo 2.º da Constituição). II. Em jurisprudência uniforme e reiterada, o Supremo Tribunal de Justiça vem fazendo depender a admissibilidade do recurso da verificação de um conjunto de pressupostos, uns de natureza formal e outros de natureza substancial. Destacam-se, de entre estes, as circunstâncias de os acórdãos terem sido proferidos no âmbito da mesma legislação e de, relativamente à mesma questão fundamental de direito, se terem obtido “soluções opostas” na interpretação e aplicação das mesmas normas em idênticas das situações de facto. III. O que estava em causa, quer no acórdão recorrido quer no acórdão fundamento, era saber se os factos provados nos processos constituíam o crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.143.º, n.º 1, do Código Penal ou se não tinham dignidade penal, face ao invocado princípio da “insignificância” penal. IV. Procedendo à qualificação jurídica, o acórdão recorrido concluiu que o facto preenche o tipo de crime, pelo que manteve a decisão de condenação; o acórdão fundamento concluiu que o facto não assume, no caso, relevância criminal, pelo que absolveu a recorrente da prática do crime. V. Quer num caso quer noutro, as conclusões obtidas sobre o preenchimento do tipo de crime, ou subsunção dos factos às normas, dizem respeito a juízos de apreciação e valoração das provas e da matéria de facto, formulados em função de um critério jurídico fixado na norma aplicável (artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal). O resultado obtido (condenação ou absolvição) é o que resulta da decisão em matéria de facto, fora do objeto do recurso para fixação de jurisprudência. VI. Tendo o acórdão recorrido e o acórdão fundamento interpretado a mesma norma incriminadora em termos idênticos, na aplicação a situações diferentes, o processo de “concretização” normativa não resultou da opção por critérios jurídicos diversos exprimindo soluções antagónicas quanto ao sentido da mesma norma aplicada nos dois acórdãos. VII. Pelo que, não havendo oposição de julgados, é o recurso rejeitado (artigo 441.º, n.º 1, do CPP). | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam em conferência na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório 1. AA, arguida, com a identificação dos autos, vem, nos termos do artigo 437.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.09.2022, alegando que nele se apreciou e decidiu uma questão de direito em oposição com o decidido no acórdão de 23.02.2021, do Tribunal da Relação de Évora, no processo n.º 145/18.0GCSSB, que indica como acórdão fundamento. 2. Na tese da recorrente, existe uma “oposição de acórdãos” porque “O Venerando Tribunal da Relação de Évora, no Acórdão que aqui serve de fundamento, decidiu pela irrelevância criminal da conduta da arguida que desferiu uma bofetada (leve), revogando a sentença recorrida e absolvendo-a do crime de ofensa à integridade física simples, enquanto o Venerando Tribunal da Relação do Porto, no caso dos presentes autos, decidiu pela relevância criminal da conduta da arguida que agarrou o queixo e abanou a cabeça e, consequentemente, pela manutenção da decisão de condenação prolatada em 1.ª Instância.” 3. Apresenta motivação com conclusões do seguinte teor: «1 – No presente caso ocorre oposição de julgados, entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento, relativamente à questão fundamental de direito, devidamente identificada e que aqui se dá por inteiramente reproduzida. 2 – Tal questão prende-se com a aplicação do princípio da insignificância no âmbito de um crime de ofensa à integridade física simples num contexto de discussão e exaltação, em que o contacto físico foi ligeiro ou de pequena intensidade (na fundamentação, o Acórdão recorrido apelida o ocorrido de “ligeiríssima contenda”) e do qual não resultaram consequências, nomeadamente necessidade de tratamento médico. 3 – Sobre tal questão, no domínio da mesma legislação/doutrina deverá ser proferido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, o qual, salvo melhor opinião, deverá ser no sentido de se impor a absolvição dos arguidos por verificação da insignificância da ilicitude no crime de ofensa à integridade física sempre que nos encontremos num contexto de discussão e exaltação entre as partes envolvidas, em que o contacto físico foi ligeiro ou de pequena intensidade e do qual não resultaram consequências, nomeadamente necessidade de tratamento médico, independentemente de o ofendido ter ou não sentido dores (ou as mesmas não tiverem tido especial significado) (…)». 4. Vêm juntas certidões do acórdão recorrido, com indicação da notificação aos sujeitos processuais com a data de 15.09.2022, e do acórdão fundamento, com indicação de que transitou em julgado a 09.04.2021. 5. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 439.º, n.º 2, do CPP, o Ministério Público, pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação do Porto, apresentou elaborada resposta defendendo a rejeição do recurso e concluindo nos seguintes termos: «1- De acordo, entre outros, com o Ac. do STJ de 02-10-2008 (proc. nº 08P2484; Relator: Exmº Conselheiro SIMAS SANTOS) “1 – O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, como é jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, exige a verificação de oposição relevante de acórdãos que impõe que: (i) – as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para mesma questão fundamental de direito; (ii) – que as decisões em oposição sejam expressas; (iii) – que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticas”. 2- Assim, importa indagar se no Acórdão fundamento (Ac. da R. Évora de 23.02.2021, proferido no processo nº 145/18.0GCSSB.E1 (publicado in www.dgsi.pt) e no Acórdão proferido nestes autos em 14.09.2022, ambos transitados em julgado, “foram proferidos julgados expressos, não implícitos, porém divergentes, em termos de direito, sobre uma base factual pontualmente idêntica, no domínio da mesma legislação, como se diz no Ac. do STJ de 10.02.2010 307/00.7JAFAR.S1-Al. 3- A questão apreciada e decidida no Ac. fundamento, versou sobre uma conduta consubstanciada num toque, num contacto facial, qualificado como mero “enxota moscas”, que por não ter provocado dores nem exigido tratamento ou assistência médica, foi considerada destituída de dignidade intrínseca ao bem jurídico protegido e justificadora da intervenção do direito penal. 4- Já o Acórdão recorrido apreciou facto histórico claramente diverso, quer na sua formação, desenvolvimento e execução, que nas suas consequências ( e não de um mero toque facial, exoticamente alcunhado de “enxota moscas”): o sujeito ativo do crime apertou o queixo e abanou a cabeça do sujeito passivo, que sofreu dores, tendo decidido que tal conduta integrava a previsão e punição do art. 143º, nº 1, do C. Penal. 5- Assim, salvo melhor apreciação, entendemos que não se confirmam os requisitos necessários que fundamentam a interposição de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, designadamente que “as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticas” e, por conseguinte, cremos não estarmos em presença de “soluções opostas". 6- Nos termos sobriamente expostos, afigura-se-nos que o recurso deve ser rejeitado por inadmissibilidade legal.» 6. Recebido, foi o processo com vista ao Ministério Público, em conformidade com o disposto no artigo 440.º do CPP. O Senhor Procurador-Geral-Adjunto, considera verificados os pressupostos de natureza formal, mas pronuncia-se igualmente pela rejeição do recurso, por não serem idênticas as situações de facto e os acórdãos não assumirem posições diversas em relação à mesma questão de direito, o que faz nos seguintes termos (transcrição parcial): «(…) 4.2.2. Pressupostos substanciais Estava em causa nos dois processos a prática pelas arguidas de um crime de ofensa à integridade física simples previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal. No acórdão recorrido a arguida, ora recorrente, foi condenada pelo referido crime. A condenação assentou, essencialmente, na seguinte realidade de facto provada: [transcrição – reprodução infra] (…) No acórdão fundamento a arguida, que fora condenada na 1.ª instância, veio a ser absolvida pelo Tribunal da Relação de Évora. A decisão esteou-se basicamente na seguinte factualidade provada e não provada: [transcrição – reprodução infra] (…) Como se pode verificar, os alicerces factuais dos dois acórdãos não são idênticos. As diferenças começam logo no circunstancialismo que precedeu as agressões. No acórdão recorrido foi a arguida que abordou a ofendida e que a agrediu após «troca de palavras» sem que tivesse ficado provada a existência de qualquer «discussão» ou estado de «exaltação», nomeadamente da parte da ofendida. No acórdão fundamento, ao invés, arguida e ofendida envolveram-se em intensa discussão, presenciada por terceiros, no decurso da qual trocaram insultos e ameaças. Mas, mais importante que isso, enquanto que no acórdão recorrido a arguida apertou o queixo e abanou a cabeça da ofendida, causando-lhe dores, no acórdão fundamento, que cingiu a sua análise à agressão que antecedeu o envolvimento físico mútuo das duas antagonistas (primeira parte do facto provado 9), a arguida desferiu uma chapada leve na face da ofendida e não se provou que esta tivesse sentido dor na região da cara atingida. Ou seja, a reprovabilidade dos comportamentos, ilustrada pela forma como os mesmos se iniciaram e, acima de tudo, pela intensidade e consequências dos atos perpetrados pelas arguidas, não é idêntica nas duas situações em confronto. Perante tais diferenças factuais naturalmente que as respostas jurídicas não podiam ser iguais. De resto, os acórdãos estão em perfeita sintonia quanto à aplicabilidade do princípio da insignificância ao crime de ofensa à integridade física. Com efeito, lê-se no acórdão recorrido: «Como refere Paula Ribeiro de Faria “O tipo legal do art. 143.º fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados (…) Por ofensa no corpo entende-se todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante”. Como realça esta ilustre Professora, “A ofensa ao corpo não poderá ser insignificante. Sob o ponto de vista do bem jurídico protegido não será de ter como relevante a agressão, e ilícito o comportamento do agente, se a lesão é diminuta (neste sentido, de uma “clausula restritiva de inadequação social”, cf. Figueiredo Dias, Sumários (1975 153)” O Professor Figueiredo Dias entende igualmente que as lesões insignificantes estarão excluídas do tipo penal, tendo em conta que os tipos penais não são neutros mas antes exprimem já, e de uma forma global, um sentido social de desvalor. Nas palavras do Conselheiro Maia Gonçalves, “As ofensas no corpo ou na saúde de outra pessoa, para que atinjam dignidade penal sejam subsumíveis à previsão deste artigo, não podem ser insig-nificantes, precisamente porque sendo o enquadramento penal a última ratio, qualquer comportamento humano, para que seja subsumido a preceito incriminador, deve ser filtrado pela luz que dimana do aforismo de minimis non curat paetor”. Do mesmo modo, a jurisprudência dos Tribunais da Relação tem entendido que o resultado previsto pelo tipo legal de crime de ofensa à integridade física tem que estar presente e que isso só sucede quando o bem jurí-dico é afetado de forma não insignificante – cfr., entre outros, Ac. R. Porto de 08.06.2005, Proc. n.º 0510382, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, Ac. R. Porto de 28.04.2021, Proc. n.º 1132/18.4PBMTS.P1, relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo, Ac. R. Évora. de 22.09.2015, Proc. n.º 1157/10.8PBFAR.E2, relatado pelo Desembargador António Latas, Decisão sumária da R. Évora de 07.03.2017, Proc. n.º 160/16.9 GAVRS.E1, relatada pelo Desembargador António Condesso, todos disponíveis in www.dgsi.pt. No caso presente, está provado que a arguida se aproximou de Graciete Mota e após uma troca de palavras, apertou-lhe o queixo e abanou-lhe a cabeça, sendo que em resultado da sua conduta, a Graciete sofreu dores, embora não necessitando de recorrer a assistência médica. Agarrar significa segurar com vigor, com força e a ofendida Graciete afirmou mesmo “agarrou duro” (sic) e abanou-lhe a cabeça, o que lhe provocou dores, pelo que se afigura que tal conduta não é insignificante, teve consequências ao causar dor, sendo atentatória do bem-estar físico da vítima, assumindo por isso relevância para preencher materialmente o tipo legal de ofensa à integridade física». Concordantemente escreve-se no acórdão fundamento: «Por ofensa no corpo poder-se-á entender todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante e sob o ponto de vista do bem jurídico protegido não será de ter como relevante a agressão, e ilícito o comportamento do agente, se a lesão é diminuta (neste sentido de uma cláusula restritiva de inadequação social” cf. Figueiredo Dias, Sumários 1975 153) - Paula Ribeiro de Faria, ob. cit., p. 205 e 207. Ora, a situação vertente comporta sérias reticências quanto ao significado da “chapada leve” que a recorrente desferiu na face da ofendida, para o efeito da sua conduta se dever ter por penalmente ilícita. Tanto mais que não se alheia de que a ofendida não recebeu tratamento médico e que não se provou que tivesse sentido dor, sem descurar o contexto de discussão em que tudo ocorreu, entre colegas de trabalho e por questões de serviço, em momento de exaltação. (…) Significa o princípio da insignificância que não podem ser penalmente típicas ações que apesar de, em princípio, encaixarem numa descrição típica e de conterem algum desvalor jurídico, ou seja, que não se encontrem justificadas e não sejam plenamente lícitas, apesar disso no caso concreto o seu grau de ilicitude é mínimo, insignificante: porque, de acordo com o seu caráter fragmentário, as condutas penalmente típicas só devem ser constituídas por ações que sejam gravemente antijurídicas, não por factos cuja gravidade seja insignificante. O princípio da insignificância, (…), significa uma restrição tácita dos tipos que, no entanto, só opera quando numa conduta típica que, em princípio, é suficientemente grave, podem encaixar-se casos concretos cujo desvalor seja insignificante, o que pode suceder por ser mínimo o desvalor objetivo do facto ou do resultado ou também por ser mínimo o desvalor subjetivo da ação”. Transpondo tais considerações para o caso aqui em análise, reconhece-se que a situação de facto dos autos não é coincidente com aquela que foi ali avaliada (ter o arguido desferido um empurrão no peito de agente da autoridade quando este se colocou à sua frente). Tem, pois, de admitir-se que uma “chapada”, embora “leve”, tem inevitavelmente um maior desvalor. Ainda assim, não resultando propriamente, provada a dimensão dessa dita leveza da chapada, a motivação decisória permite aquilatar de que se tratou de um mero “enxota moscas”, na expressão usada por quem a presenciou e, como tal, valorada pelo Tribunal, levando, pois, a inferir que até foi muito leve. Entende-se, então, perante todos os apontados factores, de tolerar e aceitar que se verifica, na conduta da recorrente, falta de significado bastante para configurar afectação da integridade física da ofendida, que mereça a dignidade intrínseca ao bem jurídico protegido e justifique a intervenção do direito penal». Reitera-se, pois, que não foi o entendimento jurídico quanto à aplicabilidade do princípio da insignificância ao crime de ofensa à integridade física simples do artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal que justificou as diferentes posições tomadas pelos dois acórdãos, pois quanto a essa aplicabilidade ambos estão de acordo, mas sim as distintas realidades de facto aos mesmos subjacentes. Como bem observa o Sr. procurador-geral-adjunto no Tribunal da Relação do Porto: «É patente a diversidade de condutas, dos pedaços de vida: no acórdão recorrido tratou-se de um caso em que o sujeito ativo do crime “agarrou duro” e abanou a cabeça do sujeito passivo, causando-lhe dores, tendo tal conduta sido qualificada como significativa e atentatória do bem-estar físico da vítima, assumindo relevância para preencher materialmente o tipo legal de ofensa à integridade física. Já no acórdão fundamento, o pedaço de vida que consubstanciava (…) o facto histórico integrante do cri-me de ofensa à integridade física, traduziu-se num “enxota moscas”, que nem sequer provocou dores». 4.3. Conclusão Não se mostrando, por conseguinte, preenchido o pressuposto substancial da oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, quer pela falta de identidade das respetivas realidades de facto, quer porque entre ambos inexiste divergência de entendimento quanto à aplicação do denominado princípio da insignificância ao crime de ofensa à integridade física simples, emite-se parecer no sentido da rejeição do recurso (artigos 440.º, n.º 3, e 441.º, n.º 1, 1.ª parte, do Código de Processo Penal).» 7. Efetuado o exame preliminar, o processo foi à conferência, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 440.º do CPP.
II. Fundamentação 8. Sobre o fundamento do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência dispõe o artigo 437.º nos seguintes termos: «1 – Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar. 2 – É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça. 3 – Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida. 4 – Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado. 5 – O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público». O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, devendo o recorrente, no requerimento de interposição do recurso, identificar o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação, bem como justificar a oposição que origina o conflito de jurisprudência (n.ºs 1 e 2 do artigo 438.º do CPP). 9. Em jurisprudência uniforme e reiterada, vem o Supremo Tribunal de Justiça requerendo a verificação de um conjunto de pressupostos de admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência, uns de natureza formal e outros de natureza substancial (cfr., entre outros, o acórdão de 28.09.2022, Proc. n.º 503/18.0T9STR.E1-A.S1, e jurisprudência nele citada, bem como o acórdão do pleno das secções criminais de 8.7.2021, Proc. 3/16.PBGMR-A.G1.S1, em www.dgsi.pt). Verificam-se os pressupostos de natureza formal quando: (a) a interposição do recurso tenha lugar no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (acórdão recorrido); (b) o recorrente identifique o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição (acórdão fundamento), bem como, no caso de estar publicado, o lugar da publicação; (c) se verifique o trânsito em julgado dos dois acórdãos em conflito, e (d) o recorrente apresente justificação da oposição entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido que motiva o conflito de jurisprudência. Verificam-se os pressupostos de natureza substancial quando: (a) os acórdãos sejam proferidos no âmbito da mesma legislação, isto é, quando, durante o intervalo de tempo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida; (b) as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, isto é, quando entre os dois acórdãos haja “soluções opostas” na interpretação e aplicação das mesmas normas; (c) a questão (de direito) decidida em termos contraditórios tenha sido objecto de decisões expressas, e (d) haja identidade das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos, pois que só assim é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito existem soluções opostas (assim, por todos, os acórdãos anteriormente citados). 10. Mostram-se reunidos os pressupostos relativos ao prazo de 30 dias de interposição do recurso (em 21.10.2022), a contar da data do trânsito em julgado do acórdão recorrido (ocorrido em 29.09.2022, tendo em conta a data presumida da notificação eletrónica e o decurso do prazo de 10 dias para arguição de nulidades após a notificação, por o acórdão não admitir recurso ordinário – artigo 105.º, n.º 1, e 113.º, n.º 12, do CPP) –, à identificação do acórdão fundamento e ao trânsito em julgado. A recorrente, com a qualidade de arguida, tem legitimidade para o recurso e os acórdãos foram proferidos no âmbito da mesma legislação – artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal – em cuja aplicação, alegadamente contraditória, se funda a invocada questão de direito. Há, pois, que determinar se se verifica a oposição de julgados. 11. O recurso de fixação de jurisprudência é um recurso de natureza extraordinária que tem por finalidade o estabelecimento de interpretação uniforme de normas jurídicas aplicadas de forma divergente e contraditória em acórdãos dos tribunais da Relação ou do Supremo Tribunal de Justiça, com a eficácia prevista no artigo 445.º do CPP, contribuindo para a realização de objectivos de segurança jurídica e de igualdade perante a lei, que constituem exigências do princípio de Estado de direito (artigo 2.º da Constituição). Estando em causa a força do caso julgado, que prossegue idênticos objectivos de segurança jurídica, impõe a lei exigentes requisitos, prevenindo a sua utilização como mais uma forma de recurso ordinário destinado à reapreciação da decisão de um caso concreto em divergência com outras decisões de outros tribunais, os quais se evidenciam, desde logo, na sua específica regulamentação (assim, nomeadamente, os acórdãos de 23.02.2022, cit., de 3.11.2021, proc. 36/21.8GJBJA-A.E1-A.S, citado, e de 11.7.2019, proc. 167/16.6GAVZL.C1-A, sumário publicado em https://www.stj.pt/wpcontent/ uploads /2020/04/criminal_ sumarios_2019.pdf). 12. Examinado o processo, mostra-se o seguinte: 12.1. Quanto aos factos e à questão decidida no acórdão recorrido 12.1.1. No processo em que foi proferido o acórdão recorrido, a arguida AA foi condenada na pena de 75 dias de multa, à taxa diária de €7,00, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.143.º, n.º 1, do Código Penal. Inconformada, interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, invocando erro de “aplicabilidade” ao caso concreto do “princípio penal da insignificância dos factos dados como provados”, com a consequente absolvição da arguida quer da condenação na parte crime quer no pedido cível. 12.1.2. Foram julgados provados os seguintes factos: «1. Pelas 21 horas e 30 minutos do dia 8 de agosto de 2019, BB, dirigiu-se à Rua Quinta ..., ..., concelho .... 2. Nas mesmas circunstâncias espácio-temporais, também se encontrava a arguida. 3. Que, a dada altura, aproximou-se da ofendida e após uma troca de palavras, apertou-lhe o queixo e abanou-lhe a cabeça. 4. Em resultado da conduta da arguida, BB sofreu dores, não necessitando de recorrer a assistência médica. 5. Ao atuar como se descreveu, a arguida representou e quis ferir e molestar fisicamente BB, sabendo que a sua conduta era adequada e idónea a provocar-lhe, como provocou, dores. 6. A arguida agiu de forma deliberada e consciente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. 7. Em resultado da supra descrita atuação da arguida, a demandante BB sentiu-se desgostosa e incomodada. (…)». 12.1.3. O tribunal apreciou a questão da aplicação do “princípio penal da insignificância dos factos dados como provados” nos seguintes termos: «2ª questão: sem prejuízo da impugnação da matéria de facto, o recorrente invoca o princípio da insignificância penal, sustentando que as condutas sem danosidade ou sendo esta insignificante, como ocorre no caso presente em que a arguida se limitou a agarrar o queixo de BB, não têm dignidade penal, não devendo por isso ser criminalizadas. Estabelece o art.143.º, n.º1, do C.Penal “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. Como refere Paula Ribeiro de Faria [Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora 1999, Tomo I, pág.205, em nota] “O tipo legal do art.143.º fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados (…) Por ofensa no corpo entende-se todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico de uma forma não insignificante”. Como realça esta ilustre Professora, “A ofensa ao corpo não poderá ser insignificante. Sob o ponto de vista do bem jurídico protegido não será de ter como relevante a agressão, e ilícito o comportamento do agente, se a lesão é diminuta (neste sentido, de uma “clausula restritiva de inadequação social”, cf. Figueiredo Dias, Sumários (1975 153)” O Professor Figueiredo Dias entende igualmente que as lesões insignificantes estarão excluídas do tipo penal, tendo em conta que os tipos penais não são neutros mas antes exprimem já, e de uma forma global, um sentido social de desvalor [In Direito Penal, 2004, pág. 277 4, em nota]. Nas palavras do Conselheiro Maia Gonçalves [In Código Penal Anotado, comentário ao artigo 143º, em nota], “As ofensas no corpo ou na saúde de outra pessoa, para que atinjam dignidade penal sejam subsumíveis à previsão deste artigo, não podem ser insignificantes, precisamente porque sendo o enquadramento penal a última ratio, qualquer comportamento humano, para que seja subsumido a preceito incriminador, deve ser filtrado pela luz que dimana do aforismo de minimis non curat paetor”. Do mesmo modo, a jurisprudência dos Tribunais da Relação tem entendido que o resultado previsto pelo tipo legal de crime de ofensa à integridade física tem que estar presente e que isso só sucede quando o bem jurídico é afetado de forma não insignificante – cfr., entre outros, Ac. R. Porto de 08.06.2005, Proc. n.º0510382, relatado pelo Desembargador Fernando Monterroso, Ac. R. Porto de 28.04.2021, Proc.n.º1132/18.4PBMTS.P1, relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo, Ac. R. Évora. de 22.09.2015, Proc. n.º1157/10.8PBFAR.E2, relatado pelo Desembargador António Latas, Decisão sumária da R. Évora de 07.03.2017, Proc. n.º160/16.9 GAVRS.E1, relatada pelo Desembargador António Condesso, todos disponíveis in www.dgsi.pt. No caso presente, está provado que a arguida se aproximou de BB e após uma troca de palavras, apertou-lhe o queixo e abanou-lhe a cabeça, sendo que em resultado da sua conduta, a BB sofreu dores, embora não necessitando de recorrer a assistência médica. Agarrar significa segurar com vigor, com força e a ofendida BB afirmou mesmo “agarrou duro” (sic) e abanou-lhe a cabeça, o que lhe provocou dores, pelo que se afigura que tal conduta não é insignificante, teve consequências ao causar dor, sendo atentatória do bem-estar físico da vítima, assumindo por isso relevância para preencher materialmente o tipo legal de ofensa à integridade física. Soçobra, assim, também este fundamento do recurso.» 12.2. Quanto aos factos e à questão decidida no acórdão fundamento 12.2.1. No processo em que foi proferido o acórdão fundamento, a arguida foi condenada na pena de 90 dias multa à taxa diária de 5,00 euros, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo mesmo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal. Inconformada, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, alegando que a ofensa corporal de que era acusada «não atingiu dignidade penal por se tratar de um gesto “enxota moscas” e por isso não é subsumível à previsão do Artº. 143º, nº 3, alíneas a) e b) do C. Penal, por ser insignificante, considerando a objectividade da gravidade da ofensa, que foi nula». O recurso foi julgado procedente, sendo a arguida absolvida. 12.2.2. Foram dados como provados os seguintes factos: «1. No dia 14.05.2018, pelas 14:00 horas, no interior do estabelecimento comercial denominado “B...”, sito na Rua ..., em ..., onde ambas trabalhavam, a arguida, AA, e CC, adiante designada por ofendida, iniciaram discussão motivada por questões de serviço; 2. A responsabilidade das reservas de mesa era de CC; 3. A escolha do peixe cabia aos empregados de mesa, como na altura era a categoria profissional da arguida, AA; 4. CC para além de reservar a mesa para um cliente, escolheu o peixe para a refeição daquele e grupo de pessoas que o acompanhava; 5. A mesa reservada pertencia à área, no restaurante, que cabia à arguida, AA, servir às mesas e escolher o peixe; 6. CC na discussão por questões de serviço referida no facto provado 1., dirigindo-se a AA: “Tu serves para ser peixeira”, na presença dos demais colegas; 7. Ao que AA respondeu insistentemente “olha que te dou”; 8. CC respondeu insistentemente a AA dizendo: “Então dá lá”; 9. Nessa sequência, a arguida desferiu uma chapada leve na face da ofendida, após o que ambas agarraram mutuamente os cabelos uma da outra, até que os restantes funcionários as separaram; 10. Na sequência da chapada desferida pela arguida AA, CC não recebeu tratamento médico; 11. A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito, que logrou alcançar, de molestar o corpo da ofendida; (…) Factos não provados: Com interesse para a decisão da causa não resultou provado: 1. CC sentiu dor na região da sua cara atingida;». 12.2.3. O Tribunal da Relação apreciou e decidiu a questão da “insignificância” da ofensa nos seguintes termos: «Relativamente à questão de que (ii) a ofensa corporal não atingiu dignidade penal, a recorrente não avança, para além do mencionado, com específica argumentação a não ser a de se ter tratado de uma “chapada leve”, que a motivação do Tribunal faz equivaler, acompanhando o depoimento da única testemunha presencial, a “um enxota moscas”. Ainda, resulta implícito à alegação que se provou que a ofendida não recebeu tratamento médico (facto provado em 10) e não se provou que a ofendida sentiu dor na cara (facto não provado em 1). Afigura-se que a problemática suscitada é pertinente, justificando o cuidado de, na avaliação dos factos, não a resumir à circunstância em que o Tribunal suportou a sua posição, diga-se, tendencialmente correcta, pois no sentido de que a lesão no corpo ou na saúde, subjacente ao tipo legal, prescinde de que, necessariamente, exista dor ou sofrimento. Não apenas, todavia, essa circunstância deve relevar como o Tribunal a mencionou, como também a exigência de que a ofensa não poderá ser insignificante. ‘Por ofensa no corpo poder-se-á entender todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante e sob o ponto de vista do bem jurídico protegido não será de ter como relevante a agressão, e ilícito o comportamento do agente, se a lesão é diminuta (neste sentido de uma cláusula restritiva de inadequação social” cf. Figueiredo Dias, Sumários 1975 153)’ - Paula Ribeiro de Faria, ob. cit., p. 205 e 207. Ora, a situação vertente comporta sérias reticências quanto ao significado da “chapada leve” que a recorrente desferiu na face da ofendida, para o efeito da sua conduta se dever ter por penalmente ilícita. Tanto mais que não se alheia de que a ofendida não recebeu tratamento médico e que não se provou que tivesse sentido dor, sem descurar o contexto de discussão em que tudo ocorreu, entre colegas de trabalho e por questões de serviço, em momento de exaltação. Aliás, o Ministério Público, na sua resposta ao recurso (e identicamente o Digno Procurador-Geral Adjunto no seu parecer) foi sensível a essas particularidades, sublinhando que ‘A concreta configuração do contacto físico, que apesar de provocado voluntariamente pela arguida, ora recorrente, foi de pequena intensidade e sem consequências assinaladas, bem como o contexto em que tal acção se verificou – na sequência de uma atitude consecutivamente provocatória da demandante CC – cfr. ponto 8 dos factos dados como provados, impõem que se considere não ser a conduta da arguida suficiente para preencher materialmente o tipo legal de ofensa à integridade física, dada a insignificância do respetivo grau de ilicitude, ou seja, ao preenchimento aparente do tipo não corresponde, in casu, a concretização do juízo de ilicitude material subjacente à sua formulação’, mormente, apoiando-se no que se consignou no Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 22.09.2015, no proc. n.º 1157/10.8PBFAR.E2 (rel. António Latas e sendo adjunto o agora relator). Colhe-se, então, deste Acórdão: «O caso concreto, porém, convoca, ao nível do preenchimento do tipo de ilícito, a temática das chamadas causas de atipicidade ou de exclusão da tipicidade, ou seja, na definição de Luzón Peña (Diego-Manuel Luzón Peña, Causas de Atipicidade in AAVV, Problemas Fundamentais de Direito Penal. Homenagem a Claus Roxin, Universidade Lusíada Editora-2002, p. 111 e sgs) (que seguimos de perto nesta matéria), circunstâncias que, por razões materiais, excluem a tipicidade da conduta apesar de esta formalmente encaixar-se na descrição legal, supondo, portanto, a negação do tipo. Partindo da distinção de Luzón Peña entre causas de exclusão do tipo indiciário e causas de exclusão da tipicidade penal ou do ilícito penal, verificam-se estas últimas quando concorrem circunstâncias que operam como causas, tacitamente subentendidas no sentido dos tipos penais, de restrição e portanto de exclusão da tipicidade penal: embora haja uma perturbação ou lesão de bens jurídicos que em princípio é juridicamente relevante, no entanto não é grave o suficiente para considerar-se jurídico-penalmente relevante; portanto, a conduta será de algum modo ilícita, mas não é penalmente típica e ilícita (idem, p. 119) Assim entendidas, as causas de atipicidade penal são uma parte negativa de qualquer tipo penal, podendo considerar-se como tal, sem exaustividade, o princípio da insignificância, a tolerância social, alguns casos de adequação social, certos casos de consentimento não plenamente válido ou a inexigibilidade penal geral – cfr L.Peña, est. cit. p. 120. De entre estas circunstâncias importa-nos no caso concreto o princípio da insignificância, que Luzón Peña diz ter sido concebido por Roxin como causa de atipicidade, e que também se designa como casos de ilícito bagatela. Significa o princípio da insignificância que não podem ser penalmente típicas ações que apesar de, em princípio, encaixarem numa descrição típica e de conterem algum desvalor jurídico, ou seja, que não se encontrem justificadas e não sejam plenamente lícitas, apesar disso no caso concreto o seu grau de ilicitude é mínimo, insignificante: porque, de acordo com o seu caráter fragmentário, as condutas penalmente típicas só devem ser constituídas por ações que sejam gravemente antijurídicas, não por factos cuja gravidade seja insignificante. O princípio da insignificância, conclui L. Peña, significa uma restrição tácita dos tipos que, no entanto, só opera quando numa conduta típica que, em princípio, é suficientemente grave, podem encaixar-se casos concretos cujo desvalor seja insignificante, o que pode suceder por ser mínimo o desvalor objetivo do facto ou do resultado ou também por ser mínimo o desvalor subjetivo da ação». Transpondo tais considerações para o caso aqui em análise, reconhece-se que a situação de facto dos autos não é coincidente com aquela que foi ali avaliada (ter o arguido desferido um empurrão no peito de agente da autoridade quando este se colocou à sua frente). Tem, pois, de admitir-se que uma “chapada”, embora “leve”, tem inevitavelmente um maior desvalor. Ainda assim, não resultando propriamente, provada a dimensão dessa dita leveza da chapada, a motivação decisória permite aquilatar de que se tratou de um mero “enxota moscas”, na expressão usada por quem a presenciou e, como tal, valorada pelo Tribunal, levando, pois, a inferir que até foi muito leve. Entende-se, então, perante todos os apontados factores, de tolerar e aceitar que se verifica, na conduta da recorrente, falta de significado bastante para configurar afectação da integridade física da ofendida, que mereça a dignidade intrínseca ao bem jurídico protegido e justifique a intervenção do direito penal. Não se revela concretizado o juízo de ilicitude material subjacente ao tipo legal, motivo por que a sua conduta, ainda que não lícita, não impõe, dada a sua insignificância nos termos descritos, que se considere que incorreu no crime de ofensa à integridade física simples, por que foi condenada. Em conformidade, a absolvição da recorrente é a solução que melhor reflecte adequada avaliação e equilíbrio.» 13. Em síntese, o que estava em causa, quer no acórdão recorrido quer no acórdão fundamento, era saber se os factos provados nos processos constituíam o crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.143.º, n.º 1, do Código Penal, isto é, se os factos eram ou não criminalmente relevantes, se tinham ou não dignidade penal, face ao invocado princípio da “insignificância” penal. Segundo este princípio, que ambos os acórdãos invocam e aplicam com recurso a idênticas bases de doutrina nacional, convocando a obra do Professor Figueiredo Dias e da Professora Paula Ribeiro de Faria, com referência ao crime de ofensa à integridade física, a ofensa, para ser crime, não pode ser insignificante; se o for, o facto não preenche a previsão típica do crime, ou, como nota o acórdão fundamento, citando Luzón Peña e Claus Roxin, ocorre a exclusão da tipicidade penal. Os factos por que os arguidos estavam acusados eram, obviamente, distintos. Procedendo à qualificação jurídica, o acórdão recorrido concluiu que o facto preenche o tipo de crime, pelo que manteve a decisão de condenação. Por seu lado, o acórdão fundamento concluiu que o facto não assume, no caso, relevância criminal, pelo que absolveu a recorrente da prática do crime. Quer num caso quer noutro, as conclusões obtidas sobre o preenchimento do tipo de crime, ou subsunção dos factos às normas, dizem respeito a juízos de apreciação e valoração das provas e da matéria de facto, formulados em função de um critério jurídico fixado na norma aplicável (artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal), que prevê e pune o crime de ofensa à integridade física. O resultado obtido – condenação ou absolvição – é o que fundadamente o tribunal julgou justificado no caso concreto, de acordo com as exigências de fundamentação da sentença (artigo 374.º do CPP), quando decidiu da questão da culpabilidade (artigo 368.º do CPP), após a audiência de julgamento, em função das provas produzidas, juízo que pode ser (e foi) impugnado e reexaminado em recurso, decidido com idênticas exigências de fundamentação (artigo 425.º, n.º 4, do CPP). 14. Como se decidiu no acórdão de 28.9.2022, no processo n.º 503/18.0T9STR.E1-A.S1, em www.dgsi.pt, o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência não visa a apreciação de decisões em matéria de facto, mas sim de decisões em matéria de direito, requerendo, como seu pressuposto e fundamento (artigo 437.º do CPP), que os mesmos preceitos legais tenham sido interpretados diversamente e aplicados a factos idênticos, com base em soluções opostas ou inconciliáveis, obtidas em resultado de interpretações diferentes quanto à mesma questão de direito, no acórdão recorrido e no acórdão fundamento (assim, acórdão deste Tribunal de 18.9.1991, BMJ 409-664, apud Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, Católica, 4.ª ed., 2011, p. 1192, e acórdão de 23.4.1986, BMJ 356-272, e acórdãos posteriores exprimindo jurisprudência uniforme e consolidada cit. em Simas Santos / Leal Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, p. 195, e, mais recentemente, entre outros, os acórdãos de 18.4.2018, Proc. 364/14.9PTPRT.P1-A.S1, 13.2.2014, Proc. 1006/09.PAESP.P1-B.S1, de 30.4.2014, Proc. 14/09.5TARGR.L1-A.S1, de 26.6.2014, Proc. 8815/12.0TAVNG.P1-A.S1, mencionados em anotação ao artigo 437.º, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, Almedina, 2016). Citando Alberto dos Reis, “Dá-se oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas” (ibidem, 195). O que interessa saber “é se, para a resolução do caso concreto, os tribunais, em dois acórdãos diferentes, chegaram a soluções antagónicas” (ibidem, 196) quanto ao sentido da mesma norma aplicada nesses dois acórdãos. A questão de direito a resolver por via do recurso há de corresponder a uma idêntica “situação de facto” colocada perante uma idêntica “hipótese normativa”, na consideração dos seus diversos elementos relevantes, requerendo uma “decisão por um critério de interpretação” de entre “hipóteses interpretativas” divergentes (como se considerou no acórdão de 28.9.2022, mencionado, citando ainda Ulrich Schroth, Hermenêutica Filosófica e Jurídica, em «Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas», A. Kaufmann e W. Hassemer, Fundação Calouste Gulbenkian, 3.ª ed., Lisboa, 2015, p. 398). 15. Assim sendo, tendo o acórdão recorrido e o acórdão fundamento interpretado a mesma norma incriminadora em termos idênticos, aplicando-a situações diferentes, com resultados diversos impostos pela subsunção e valoração da matéria de facto correspondente, não se mostra presente uma situação em que, no processo de “concretização” de idênticas normas aplicáveis, os tribunais que proferiram as decisões invocadas tenham optado por critérios jurídicos diversos e que, por via dessa diversidade, tenham chegado a soluções antagónicas quanto ao sentido da mesma norma aplicada nos dois acórdãos. Nesta conformidade, não havendo oposição de julgados, deve o recurso ser rejeitado, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, do CPP. Quanto a custas 16. Nos termos do disposto no artigo 513.º do CPP, que estabelece o regime da responsabilidade do arguido por custas, só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 1 e 5 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com o n.º 9 do artigo 8.º e a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
III. Decisão 17. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pela arguida AA, por não haver oposição de julgados. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. Supremo Tribunal de Justiça, 29 de junho de 2023. José Luís Lopes da Mota (relator) Maria Teresa Féria de Almeida Sénio Manuel dos Reis Alves |